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Carolina Machado 11J

      Vinte e sete

      Aquele terraço sombrio estava realmente a precisar de renovar a alma.
Que se comprasse o terreno do lado e se fizesse algo em grande, alargar a
casa, quem sabe se não conseguiríamos espaço para um jardim onde pudesse
dar o devido uso ao cavalete, um cantinho propício às minhas loucuras e
devaneios. O cinzento, o musgo das paredes húmidas, toda aquela putrefacção
começava a enojar-me seriamente. Repelia-me o amarelo mostarda das
paredes, o verde fétido da vedação e as ervas daninhas que nasciam
contentes entre os azulejos, sem se aperceberem de que não eram, de todo,
bem-vindas. Não estava ali para contemplar a imundície, procurava um bom
lugar para assistir àquele caloroso anoitecer.

      Há muito que não andava descalça pelo terraço, a reflectir. Como era
bom aquele sopro morno, aquele rasto de um ardente, fogoso dia de sol. O
chão, ainda em brasa, incendiou-me o espírito dormente. Voltei a ter uma
daquelas conversas civilizadas comigo própria. Cogitei, ri-me de mim, odiei-me,
arrumei o consciente… e o inconsciente, por via das dúvidas. Ora riscava a
raiva numas folhas, ora paralisava fixada no céu cor-de-rosa mastigando
arrependimentos. Os riscos valeram a pena, os arrependimentos talvez não.

      Hoje, quis abrir as janelas que nunca vi abertas e saber o porquê de não
as ter aberto antes. Havia imensa gente e toda a gente era eu. Contradiziam-
se, empurravam-se, enlouqueciam. Vi cores que, muito provavelmente, não
pertencem a paletas deste mundo. A certa altura, já idealizava coisas sem
nome, coisas a que só podia chamar coisa, toquei o irrealizável, cheirei o
impossível… e perdi o medo do que não existe. A descoberta da irrealidade,
um orgasmo intelectual… sem recurso a alucinogénios, juro.

      Os loucos desapareceram. Um silêncio tétrico gelou as árvores, só ouvia
a minha respiração, não havia ninguém na rua, os carros deixaram de passar.
Eu existia. As sábias paredes do terraço abraçaram-me, os vividos azulejos
tinham histórias para me contar.

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