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MANDELA

Este suplemento faz parte integrante do PÚBLICO e não pode ser vendido separadamente

HANS GEDDA/CORBIS

“Está nas vossas mãos
fazer do mundo um lugar
melhor”
“Eu prezo muito a minha
liberdade mas prezo ainda
mais a vossa”
“Eu só sou um ser humano
se tu fores um ser humano.
Eu só sou um ser humano
se for humano contigo”
II | ESPECIAL | PÚBLICO, SEX 6 DEZ 2013

MANDELA 1918-2013

“O nosso
querido
Nelson
Mandela
deixou-nos”
Sul-africanos saem à rua para chorar
a morte e celebrar a vida de Mandela,
Madiba, Tata, o pai da nação. “Sabíamos
que este dia estava a chegar”, disse Zuma
Rita Siza

O

nosso querido Nelson
Ro l i h l a h l a M a n d e l a ,
Presidente fundador da
nossa nação democrática,
deixou-nos. Partiu pacificamente. Este é um momento de profunda tristeza. A nossa
nação perdeu o seu melhor filho”,
anunciou o Presidente da África do
Sul, Jacob Zuma, na declaração televisiva em que comunicou ao país
— e ao mundo — a morte do herói e
símbolo da paz, justiça e reconciliação nacional, aos 95 anos.
Mandela, que há meses estava
em estado crítico na sequência de
uma infecção pulmonar, morreu
tranquilamente às 20h50 (hora
local) na sua casa de Joanesburgo, informou Zuma. “Agora está a
descansar em paz”, prosseguiu o
Presidente, sublinhando que “pela
sua humildade, a sua compaixão e a
sua humanidade, Mandela ganhou
o amor de todo o país”. “E nós víamos nele aquilo que procuramos
em nós próprios”.

“Sabíamos que este dia estava
a chegar, mas nada poderá diminuir o nosso doloroso e profundo
sentimento de perda”, completou
Jacob Zuma, que disse que todas as
bandeiras do país tinham sido baixadas a meia-haste — e assim permanecerão até ao funeral do líder
histórico do Congresso Nacional
Africano (ANC) e do movimento
anti-apartheid, prémio Nobel da
Paz em 1993 e o primeiro negro a
presidir à África do Sul depois das
primeiras eleições livres e democráticas.
“A África do Sul perdeu um colosso, o epítome da humildade,
igualdade, justiça, paz e esperança para milhões de pessoas. A sua
vida dá-nos o exemplo e a coragem
para prosseguir a luta pelo desenvolvimento e o progresso, para o
fim da fome e da pobreza”, comentou o seu partido, numa primeira
nota oficial.

Inspiração mundial
O exemplo, a sabedoria e a mensagem de paz e tolerância que
Mandela repetiu durante a vida foi

evocada não só na sua terra natal,
mas em todo o mundo. “Eu fui um
desses inúmeros milhões que sentiram a inspiração do seu exemplo”,
confessou o Presidente dos EUA,
Barack Obama. Numa declaração
na Casa Branca, Obama recordou
que a sua primeira acção política,
“a primeira vez que me envolvi com
um assunto ou um movimento político”, foi participar num protesto
contra o apartheid na África do Sul.
“Estudei as suas palavras e os seus
escritos. O dia em que foi libertado
da prisão foi uma revelação de que
grandes coisas são possíveis se nos
deixarmos guiar pela esperança e
não pelo medo. Como tanta gente
por este mundo fora, não consigo
imaginar a minha própria vida sem
o exemplo de Nelson Mandela.”
“Perdemos um dos mais influentes, mais corajosos e profundamente bons seres humanos com que dividimos o nosso tempo nesta Terra.
Nelson Mandela já não nos pertence. Agora ele pertence às eras da
História”, declarou Obama. “Através da sua enorme dignidade e da
sua indomável vontade de sacrificar

“O seu percurso
de prisioneiro a
Presidente é a
melhor ilustração
da promessa de que
os seres humanos
e os países podem
sempre mudar
para melhor”, disse
Barack Obama
a sua própria liberdade pela liberdade dos outros, Madiba foi capaz
de transformar a África do Sul e de
emocionar o resto do mundo. O seu
percurso de prisioneiro a Presidente é a melhor ilustração da promessa de que os seres humanos e os
países podem sempre mudar para
melhor”, referiu Obama.
“Nelson Mandela alcançou, na
sua vida, mais do que se pode es-

perar de qualquer pessoa. Hoje
voltou para casa”, concluiu o primeiro Presidente negro da História
dos Estados Unidos, que prometeu
continuar a fazer o possível para
“aprender” as grandes lições do líder sul-africano: “Tomar decisões
guiado pelo amor e não pelo ódio;
nunca subestimar a diferença que
uma única pessoa pode fazer; continuar a sonhar com um futuro que
seja digno do seu sacrifício”.

Funeral por anunciar
O primeiro-ministro britânico, David Cameron, anunciou que em sinal
de respeito e homenagem a Nelson
Mandela, as bandeiras da sede oficial do Governo, em Downing Street,
também voarão a meia-haste. “Uma
grande luz extinguiu-se deste mundo. Mandela foi um herói do nosso
tempo”, escreveu Cameron na sua
conta oficial do Twitter.
“Mandela mudou o curso da
História do seu povo, do seu país,
do seu continente e do mundo”,
assinalou o presidente da Comissão Europeia, Durão Barroso. O
secretário-geral da Organização
PÚBLICO, SEX 6 DEZ 2013 | ESPECIAL | III
ULLI MICHEL/REUTERS

Nelson
Mandela
e Winnie
Mandela
à saída da
prisão em
Fevereiro de
1990

No crepúsculo da vida continuou
como farol da História
Educado para ser o conselheiro de um rei, nunca viveu como um aristocarata
mas sim como um combatente pela liberdade que refundou um país
Obituário
Ana Dias Cordeiro

E
das Nações Unidas, Ban Ki-moon,
lembrou o líder sul-africano como
“um gigante da justiça e um homem
simples e inspirador”. “Ninguém
fez mais no nosso tempo para promover os valores e as aspirações
das Nações Unidas. Nelson Mandela mostrou-nos como é possível,
no nosso mundo e em cada um de
nós, acreditar, sonhar e trabalhar
pela justiça e pela humanidade”,
observou. “Ele foi capaz de tocar as
nossas vidas de uma maneira que
era profundamente pessoal.”
Milhares de sul-africanos, emocionados mas já não chocados com
a notícia, saíram ontem imediatamente para a rua para lamentar a
morte de Mandela, e ao mesmo
tempo celebrar a vida de Madiba,
o nome tribal tradicional do seu
clã pelo qual era afectuosamente
conhecido e tratado — bem como
Tata, a palavra da língua Xhosa que
significa “pai”.
Ainda não são conhecidos a data
ou pormenores sobre as cerimónias
fúnebres, embora a imprensa sulafricana avance a hipótese de o funeral não ser nos próximos dias.

m Robben Island, uma das
prisões onde passou 27 anos
da sua vida, Nelson Mandela
esteve, nos primeiros tempos,
em isolamento. Vivia numa
cela exígua, onde não entrava
a luz do dia. Do tecto, pendia por
cima da sua cabeça uma lâmpada
constantemente ligada. Nada lhe
permitia distinguir o princípio do
fim do dia.
Mais tarde, admitia que a
consciência do tempo a passar,
longe dos seus, tinha sido uma
das coisas a causar-lhe maior
sofrimento na prisão.
“É terrível”, disse numa das
muitas entrevistas que deu depois
de libertado, referindo-se ao peso
da inevitabilidade da morte, ainda
mais palpável na sua condição de
condenado à perpetuidade. Esse
fim de vida, então distante, chegou
ontem e foi anunciado pelo actual
Presidente Jacob Zuma, que se
referiu a Mandela como “o maior
filho” da África do Sul.
Nelson Rolihlahla Mandela
sofria de problemas respiratórios
e várias vezes foi internado. Tinha
95 anos.
Estava, há longos meses, longe
dos olhares do público, como
quando esteve preso durante
quase três décadas, mas era uma
presença reconfortante, um
símbolo, uma “figura maior do
que a vida”, como disse dele um
analista sul-africano.
O arcebispo sul-africano
Desmond Tutu previu ser este
um momento “traumático” para
a África do Sul, o da perda de
Mandela, figura que descreveu
como “um ser humano fantástico”,
numa entrevista ao PÚBLICO em
Lisboa no ano passado. “Quando
vai para a prisão, é uma pessoa

zangada, revoltada, que acredita
na violência como meio de
conquistar a liberdade. Quando
sai, emerge como uma pessoa
extraordinariamente magnânima.
O sofrimento por que passou
ajudou-o a suavizar a sua posição”,
disse Tutu.
E acrescentou: “Ele acreditava
convictamente que se é líder
pelas pessoas que são lideradas
e não em benefício próprio.
Fomos incrivelmente abençoados
por termos Madiba [Mandela]
aos comandos, num momento
histórico para o nosso país.”
A morte de Mandela “é uma
perda tremenda para o país”,
afirmou Ray Hartley, director do
jornal sul-africano “The Times” ao
PÚBLICO. “A África do Sul perderá
aquele sentimento reconfortante
de que existia este grande
unificador”, acrescentou, embora
notando que “os processos
políticos não serão afectados
pelo seu desaparecimento”.
Também em entrevista, Thierry
Vircoulon, investigador associado
do Institut Français des Relations
Internationales e co-autor de L’
Afrique du Sud de Jacob Zuma
(L’Harmattan) previu que, sem
Mandela, a África do Sul entraria
“num momento de recolhimento
nacional”. E realçou, numa
entrevista no ano passado sobre
o momento que viveria o país
depois do desaparecimento de
Nelson Mandela: “A nova África
do Sul não vai desaparecer com
ele, porque ele fez um excelente
trabalho enquanto pai fundador
dessa nova África do Sul” – país
arco-íris criado para não excluir
ninguém entre os seus 50 milhões
de habitantes.
No primeiro discurso como
homem livre, frente a uma
multidão na Cidade do Cabo, no
dia da sua libertação da prisão de
Victor-Verster, a 11 de Fevereiro de

1990, Mandela declarou: “Estou
aqui não como um profeta mas
como um humilde servo de vós,
o povo. (…) Ponho, por isso, os
restantes dias da minha vida nas
vossas mãos.” Nesse discurso,
falava aos sul-africanos.

Por um mundo melhor
Anos depois, nas celebrações para
o seu 90º aniversário em 2008,
dirigia-se às pessoas do mundo
inteiro: “Está nas vossas mãos
fazer do mundo um lugar melhor.”
Como que em espelho desse
seu apelo universal, o Presidente
dos Estados Unidos Barack Obama
escreveu no prefácio do livro das
memórias íntimas de Mandela
Conversations with Myself (2010):
“Através das escolhas que fez,
Mandela deixou claro que não
temos de aceitar o mundo como
ele é – e que podemos contribuir
para que o mundo seja aquilo que
deveria ser.”
A sua história é evocada como
inspiração para outros e os seus
actos como exemplos a seguir.
As suas palavras sobreviverão
como lições de vida. “Ele foi
Presidente para desempenhar
um papel exemplar na unificação
e reconciliação do povo
profundamente dividido da
África do Sul”, disse De Klerk em
declarações feitas há três anos a
propósito do mesmo livro também
lançado em Portugal, com o título
Nelson Mandela – Arquivo Íntimo
(Editora Objectiva).
“Independentemente de
qualquer possível crítica, o homem
que emerge de Conversations with
Myself é uma eminente figura,
não só na história da África do Sul
mas na história do século XX”,
acrescentou Frederik W. de Klerk,
ex-líder do Partido Nacional último
Presidente branco da África do
Sul (1989-1994), que partilhou o
prémio Nobel da Paz 1993 com

Mandela depois das negociações
para o fim do apartheid.
Nelson Mandela era desde 1998
casado com Graça Machel, exprimeira dama de Moçambique,
que sobre ele tece os maiores
elogios e, ao mesmo tempo,
relativiza o seu estatuto de último
dos grandes heróis, cujo legado
não se compararia a nenhum
outro. “Todo o mundo diz que
ele foi o melhor. Ele foi o que
devia ser naquelas circunstâncias
específicas da África do Sul”,
afirmou numa entrevista ao
PÚBLICO em Lisboa em 2010. “É
verdade que ele deu o melhor de
si próprio. Mas existirão outros
líderes, num momento histórico
diferente, capazes de enfrentar
desafios diferentes e com um estilo
de liderança diferente.”
Porém, talvez como nenhum
outro, Mandela, líder do
Congresso Nacional Africano
(ANC, na sigla em inglês) e
primeiro Presidente negro da
África do Sul, foi elogiado e
homenageado em vida, já depois
de ser perseguido, no seu país,
como terrorista e classificado
como tal pela Administração dos
Estados Unidos, no passado. O
New York Times referiu-se-lhe
como o estadista “mais amado do
mundo”, em 2009, quando a ONU
determinou, por consenso dos
192 países membros, que o dia de
aniversário do ex-Presidente, 18
de Julho, seria o Dia Internacional
Nelson Mandela.
O jornal considerou que os
seus valores como pai fundador
continuariam a moldar a nação
e o seu lugar vital na consciência
dos sul-africanos permaneceria
intacto, durante muito tempo
– mesmo depois do seu
desaparecimento.
Pelo menos até ao fim de 2010,
Mandela continuava, todos os
meses, a receber quatro mil
c
IV | ESPECIAL | PÚBLICO, SEX 6 DEZ 2013

MANDELA 1918-2013
c mensagens do mundo inteiro.

Algumas com uma homenagem
e outras a desejarem-lhe uma
reforma tranquila e feliz, informou
a Fundação Nelson Mandela em
Dezembro de 2010 que, numa
declaração enviada a jornalistas
de todo o mundo, recomendou
que limitassem os pedidos
de autógrafos, declarações,
entrevistas ou aparições públicas,
de forma a “ajudar a tornar a
reforma de Madiba [o seu nome
de clã] um período de paz e
tranquilidade”.
Em 2009, Graça Machel
lamentava a perda do brilho
no olhar do marido. Nos três
anos seguintes, o líder histórico
continuou a aparecer em
fotografias por ocasião do seu
aniversário, com um ar cada vez
mais frágil.
Uma das últimas vezes que
Mandela compareceu num evento
público, ao lado da mulher, foi
na cerimónia de encerramento
do Mundial de Futebol em
Joanesburgo em 11 de Julho em
2010. Eram imagens de televisão.
Em 2011, eram divulgadas
fotografias do ex-Presidente com
Michelle Obama e, mais tarde, ao
lado de Hillary Clinton, quando
a ex-secretária de Estado dos
Estados Unidos o foi visitar à
aldeia onde cresceu e onde estava
a residir, Qunu, na província do
Cabo Oriental.
Nelas, Mandela sorria, com o
mesmo sorriso digno e com que
caminhou livre depois de passar
os portões da prisão de VictorVerster, perto da Cidade do Cabo,
a última onde esteve depois
de Robben Island (até 1982) e
Pollsmoor.
As últimas imagens do exPresidente, difundidas pela
televisão sul-africana em
Maio deste ano, indignaram
por exporem a sua extrema
fragilidade. Mostravam um
Mandela ausente, incomodado e
muito doe

Descendente do rei thembu
O desejo de Mandela, expresso
na autobiografia “Long Walk to
Freedom” (2005) – publicada
em Portugal pela editora Campo
das Letras com o título “Longo
Caminho para a Liberdade”
– era ser sepultado junto dos
seus antepassados em Qunu,
no Transkei, província do Cabo
Oriental.
Foi aqui que nasceu, em 1918,

e foi educado para ser, como o
pai falecido, conselheiro do rei
thembu, Jongintaba Dalindyebo.
Era descendente de Ngubengcuka,
que tinha antes sido o rei dos
thembu, incluídos no mais vasto
grupo linguístico dos xhosa.
Mandela descreve o rei, que foi
seu pai adoptivo e do qual teria
sido conselheiro se não tivesse
começado uma nova vida em
Joanesburgo, como “um homem
tolerante e esclarecido que tinha
alcançado o objectivo de todos os
grandes líderes: mantivera o seu
povo unido”.
Ele recebera-o quando Mandela
tinha nove anos depois da morte
do pai que ficara desapossado
de tudo por desafiar um
representante da administração
britânica. Sem condições para
o criar, a mãe entregou-o ao rei
e Mandela cresceu a aprender a
escutar os anciãos.
‘Madiba’ era nome do seu clã –
e era assim que frequentemente
o chamavam, por respeito.
Para muitos sul-africanos,
também era “Tata”, que significa
“pai” em xhosa, ou “khulu”
que significa “grandioso”. Na
clandestinidade, a partir de 1961,
era David Motsamayi, disfarçado
de motorista, cozinheiro ou
jardineiro.
Não foi conselheiro, nem rei,
mas a sua educação de aristocrata,
os estudos de advocacia, o carisma
e dedicação à luta anti-apartheid
fizeram dele figura de proa do ANC
e principal ícone da libertação
da África do Sul. Não aceitou
ser libertado da prisão antes de
ver garantidos a libertação dos
outros presos políticos, o fim do
apartheid e o levantamento do
estado de emergência no país.
“Eu prezo muito a minha
liberdade mas prezo ainda mais
a vossa”, escreveu num discurso
lido pela filha Zindzi, num comício
no Soweto, em 1985, dirigido aos
africanos e membros do ANC, a
partir da prisão. O discurso era
uma resposta a uma oferta do
Presidente Botha para a libertação
em condições que Mandela
recusava.

Ensinamentos umbuntu
O ex-Presidente sul-africano e
Nobel da Paz sabia escutar as
pessoas, olhá-las nos olhos e
compreender as suas diferenças.
Tinha certezas suficientes nas
suas convicções para as poder
defender, mas também dúvidas

AFP

razoáveis “para estar aberto aos
outros e saber ouvi-los”, refere
Ebrahim Rasool, embaixador da
África do Sul nos Estados Unidos,
numa entrevista à GlobalAtlanta
no final de 2010.
Era humano, caloroso, firme,
convincente e magnânimo,
dizem os analistas ouvidos pelo
PÚBLICO. E foi abençoado com
uma “capacidade extraordinária”
de perdoar. Vivia de acordo com
os ensinamentos e a filosofia de
vida umbuntu que aprendera,
ainda criança, dos anciãos na
terra onde cresceu, Qunu: “Eu só
sou um ser humano se tu fores
um ser humano. Eu só sou um ser
humano se for humano contigo.”
Soube entender o receio
dos brancos da África do Sul,
tranquilizá-los, com a garantia
de que seriam incluídos no novo
país que, pedra a pedra, ergueu.
Não confundiu as pessoas e o
regime. Pelo contrário: soube ver
a diferença entre o Governo e a
população branca que em parte
conquistou dando-lhe provas
de que não seria discriminada.
Deixou de lado os rancores,
superou a mágoa do tempo na
prisão e da humilhação sofrida
pelo povo.
Deixou a liderança do ANC e a
presidência no fim do primeiro
mandato para deixar a via aberta
a uma nova geração de políticos.
Tentou, com isso, lançar uma
mensagem aos líderes que se
perpetuam no poder e aproveitam
a aura que a luta de libertação lhes
conferiu no passado.
A voz era suave mas as suas
palavras ecoavam como só as
palavras dos líderes universais
e respeitados ecoam, tanto
nas críticas que fez a déspotas
africanos incapazes de deixar o
poder como quando, por exemplo,
se opôs à intervenção dos Estados
Unidos no Iraque em 2003, ou
noutras circunstâncias.
“Era um político fenomenal”,
continua Ray Hartley, director
do sul-africano The Times. Para
este jornalista que cobriu os cinco
anos da Presidência de Mandela,
entre 1994 e 1999, não foi tanto o
momento da História que fez de
Mandela um herói, mas Mandela
que soube fazer História.
“O papel dele em criar
as circunstâncias foi muito
importante, porque tinha a força
de carácter e a personalidade
para chegar aos dirigentes” que
estavam do outro lado na procura

da paz. “Foi um impulso natural
para ele e não algo que se forçou a
fazer. Ele tem essa postura natural
de estadista.” E acrescenta: “Ele
é tremendamente carismático e
de forma poderosa. Teria sido um
bom político em qualquer era mas
nesta foi especialmente bom.”
Foi ao mesmo tempo um bom
líder de uma luta de libertação
e um bom Presidente, diz Ray
Hartley mesmo perante aspectos
menos felizes do seu mandato,
diz: “Quando chegou a altura de
montar instituições eficientes de
Governo, foi um pouco mais fraco
aí. E o legado disso continua até
hoje com a corrupção no Governo
e os erros na administração.
Nesses cinco anos, muito mais
podia ter sido feito, como criar as
condições para uma administração
mais profissional e mais
intransigente com as más práticas
de administração e a burocracia.”
Seja como for, realça: “O que
a África do Sul precisava era de
alguém capaz de unificar o país,
falar para todas as pessoas e ter
o respeito de toda a nação. [Uma
pessoa] que ao mesmo tempo
fosse capaz de transformar um
país em necessidade urgente
de mudança. Era a coisa mais
importante a fazer e ele foi capaz
de a fazer.”
Em 2004, com 86 anos, Mandela
anunciou a sua retirada dos actos

públicos – para além da política
que já tinha abandonado em
1999. Nessa altura, incumbiu a
Fundação Nelson Mandela, o
Nelson Mandela Children’s Fund
e a Mandela Rhodes Foundation
de continuarem, em seu nome,
o trabalho humanitário em que
se envolvera depois de deixar a
presidência e que estava muito
virado para a luta contra a sida.
Na mesma ocasião, referiu a
brincar: “Não me telefonem, eu
telefono-vos”, lembra, num artigo
de Dezembro de 2010, o jornalista
do The Sowetan Ido Lekota.
“Embora não lhe tenhamos
telefonado”, escreve o jornalista,
“a sua figura ‘maior do que a
vida’ continua a pairar sobre a
nossa democracia e o panorama
político” da África do Sul.

“A voz da razão”
Na vida como na luta, Mandela
sempre se regeu pela dignidade.
Era um verdadeiro líder, e todos
o respeitavam como tal, lembram
alguns dos seus camaradas de luta
em excertos depoimentos, citados
pela BBC.
“Era a voz da razão dentro
do ANC”, sublinha por sua vez
o analista Thierry Vircoulon ao
PÚBLICO. “A sua influência é
imensa porque encarnou a aliança
entre a razão e o rigor. Mesmo
durante as mais fortes tensões da
PÚBLICO, SEX 6 DEZ 2013 | ESPECIAL | V
Mandela
com o então
Presidente
De Klerk em
Fevereiro de
1990, dois
dias antes da
sua libertação

luta contra o apartheid e, quando
vozes dentro do ANC defendiam
uma linha política intransigente,
Mandela manteve um discurso
apaziguador e conciliador. Sempre
soube que os brancos e os negros
não tinham outra escolha se
não viverem juntos na África do
Sul”, acrescenta este especialista
francês de África, autor de vários
livros sobre a África do Sul, que
teve um cargo na embaixada
de França no país, e conheceu
Mandela. “Ele transmitia uma
impressão de grande força interior
e de grande bondade”, recorda.
A esse propósito, lembra um
traço da sua personalidade: “Para
ele, até o exercício da autoridade
devia ser desempenhado com
amabilidade. Era um Presidente
gentleman. Tinha o hábito de dizer
aos seus guarda-costas: ‘Se tiverem
de empurrar as pessoas, façam-no
com um sorriso.’”
Também o académico
Guilherme Fonseca-Statter,
investigador do Centro de Estudos
Africanos do Instituto Superior de
Ciências do Trabalho e da Empresa
(ISCTE) em Lisboa, recorda
“Mandela como um senhor com ‘S’
grande”.
Ele estudara a fundo os seus
direitos e impunha-se ao respeito
de todos, incluindo os próprios
guardas prisionais, sustenta o
académico. Para poder partilhar
com os companheiros a comida
que recebia de uma amiga na
prisão, partilhava primeiro com os
carcereiros, conta.
Da mesma forma, para
conquistar o reconhecimento dos
direitos do seu povo, os africanos,
reconheceu os direitos do próprio
povo afrikander.
“Eleito em 1994, fez uma
recepção e convidou todos os
dignitários afrikanders, muitos
deles altos representantes do
regime do apartheid, como
Botha. E foi tomar chá com a
viúva de [Hendrik] Verwoerd
que não pudera comparecer por
viver longe de Pretória. “Não
discriminou ninguém”, conta
Guilherme Fonseca-Statter.
Nem mesmo Verwoerd que
tinha sido primeiro-ministro
entre 1958 e 1966 quando o ANC
foi banido, obrigando muitos
dirigentes como Mandela a passar
à clandestinidade, e quando
se realizou o Julgamento de
Rivonia em que Mandela e outros
dirigentes do ANC enfrentaram
a pena de morte por alta traição

Datas
1918 Nasce em Mvezo
1942 Começa os contactos com
o ANC e completa a Licenciatura
em Direito

contra o Estado, acabando por ser
condenados a prisão perpétua.

Morrer por um ideal
Enquanto advogado, assumiu
a sua própria defesa nesse
histórico julgamento. Usou a
tribuna em nome da causa da
liberdade, dizendo que lutava
contra a dominação branca da
mesma forma que lutaria contra a
dominação negra e que acalentava
“o ideal de uma sociedade
democrática e livre” em que
todas as pessoas pudessem “viver
juntas”.
“É um ideal para cuja
concretização espero viver”,
disse. “Mas se for necessário, é
um ideal pelo qual estou disposto
a morrer.” Enfrentava então, no
Julgamento de Rivonia em 1964,
a pena capital por alta traição
contra o Estado e convencera-se
de que seria condenado à morte.
Chegara a citar Shakespeare a
esse propósito: “Aceite a morte; e
a morte e a vida serão assim mais
doces.”
Foi condenado a prisão
perpétua. E o seu nome, que
muitos sul-africanos associavam
a um perigoso terrorista, ficou
ligado ao número de prisioneiro –
466 64.
A luta era a sua vida, admite
na autobiografia, onde confessa
também a genuína felicidade
que sentira nos raros momentos
dedicados aos filhos – quando
ainda estava em liberdade – ou
quando teve nos braços a neta
recém-nascida, da sua filha Zindzi,
numa visita de ambas à prisão de
Robben Island.
Já em liberdade, numa entrevista
à revista “Time” em Fevereiro de
1990, disse acreditar no valor da
dedicação quase exclusiva à luta:
“Sim, valeu a pena. Ser preso por
causa das nossas convicções e
estar preparado para sofrer por
aquilo em que se acredita vale a
pena. É uma conquista para um
homem cumprir o seu dever na
terra independentemente das
consequências”, considerou.
Nunca escondeu porém a
angústia e o dilema de colocar “o
bem do povo à frente do bem da
família”. Na mesma entrevista,
questionado sobre se sentia mágoa
por ter estado preso 27 anos,
respondeu: “Sim e não.”
O difícil equilíbrio, nunca
alcançado, entre a dedicação à
família, por um lado, e à causa da
libertação, por outro, perseguiu-o

1944 Casa-se com Evelyn Mase,
com quem terá 4 filhos e de
quem se divorcia em 1956.
1957 Casa-se com Winnie
Mandela com quem terá duas
filhas e de quem se divorcia em
1996
1961 Entra na clandestinidade,
adopta o nome de David
Motsamayi.
1962 Deixa o país para receber
treino militar e recolher apoios
para o ANC. Regressa e é preso
por incitamento e por sair
ilegalmente do país
1964 É acusado de sabotagem
e condenado a prisão perpétua
no Julgamento de Rivonia
juntamente com sete outros
destacados activistas. Entra na
cadeia de Robben Island Em
sua defesa, Mandela, no duplo
papel de acusado e advogado,
pronuncia o célebre discurso
“Speech from the dock”.
1985 Rejeita a oferta do
Presidente PW Botha de o libertar
se ele renunciar à violência. Só
virá a aceitar a libertação se
todos os outros presos políticos
também o forem e se o ANC
deixar de ser banido.
1990 É libertado da prisão de
Victor Verster perto de Paarl e
pronuncia um discurso histórico
1993 Recebe o Nobel da Paz
com Frederik De Klerk
1994 Vota pela primeira vez na
vida e é eleito primeiro Presidente
negro da África do Sul
1998 Casa-se com a
moçambicana Graça Machel
1999 Abandona a vida política
e a liderança do ANC no fim do
mandato como Presidente
2008 Discursa no Hyde
Park, em Londres, palco das
comemorações do seu 90.º
aniversário
2010 Aparece naquela que
se pensava ser a última vez na
cerimónia de encerramento do
Mundial de Futebol
2013 Morreu ontem aos 95 anos,
na sua casa em Joanesburgo

durante toda a vida e é algo
presente nas suas memórias em
Nelson Mandela – Arquivo Íntimo.
Mas aceitou-o como terá aceitado
a defesa que fez de o ANC recorrer
às armas que via como única
resposta possível a dar a um
regime que oprimia o seu povo.
“Nunca irei lamentar a decisão
que tomei em 1961, mas gostaria
que um dia a minha consciência
estivesse tranquila”, afirmou
referindo-se à decisão tomada em
1961 de passar à clandestinidade
e formar o MK (Umkhonto we
Sizwe – A lança da nação) fundado
em 1961, que se tornou a ala
militar do ANC de que foi primeiro
comandante-chefe.

Sementes para a paz
Da mesma forma que ousou
recorrer às armas, avançou mais
tarde sozinho, sem o ANC, no
primeiro gesto de negociar com o
Governo. Escreve várias missivas
ao ministro da Justiça, Kobie
Coetsee, que só depois de algum
tempo dão frutos.
Sem querer ser desleal para
com o ANC – que tinha como
princípio não dialogar com o
Governo enquanto o movimento
não fosse legalizado e os presos
políticos libertados – Mandela
transmite ao Governo o seu
pensamento: as negociações eram
a única saída para impedir que o
país mergulhasse numa espiral
de violência mútua que tornaria
os objectivos da luta ainda mais
difíceis de alcançar.
Quando apresenta aos
companheiros da luta na prisão
a sua intenção de avançar,
convence-os de que o importante
não seria ver quem deu o primeiro
passo para as conversações mas o
que delas viria a resultar no futuro.
Firme e persuasivo, é também
ele quem convence o adversário,
o Governo, de que não perderia
credibilidade perante o povo ao
sentar-se à mesa das negociações
com o ANC, mesmo sem este
renunciar à violência. “O povo
compreenderá”, desde que lhe
seja explicado que essa era a única
solução para a paz, diz Mandela.
Essas conversações viriam a
resultar em 1990 na sua libertação
e na dos outros presos políticos,
no fim do apartheid e na realização
das primeiras eleições livres na
África do Sul em 1994.
Nos 23 anos que viveu depois
de ser libertado, além de concluir
a missão, iniciada ainda na

prisão, de negociar o fim do
apartheid com o Governo do
Partido Nacionalista, e de ser
eleito primeiro Presidente negro
da África do Sul, dedicou-se,
depois da retirada da vida política,
e através da Fundação com o
seu nome, a uma nova causa – o
combate e a prevenção da sida
– à qual se sentia especialmente
ligado.
Em 2005, a morte do filho
Makgatho, vítima de sida, leva
Mandela a uma rara intervenção
pública desde o fim do mandato
presidencial em 1999. Lança
um apelo para que se ponha fim
ao tabu e se fale desta como de
qualquer outra doença, porque
só assim, diz, a sida deixará de ser
fatal.
Já antes tinha perdido o outro
filho, mais velho, Thembekile,
num desastre de carro, em 1969,
quando estava preso, e uma filha
pequena ainda bebé Makawize,
ambos do primeiro casamento
com Evelyn Mase, de quem se
divorciou em 1957.
Dos seis filhos que teve,
acompanharam-no até ao fim
dos seus dias as três filhas:
Zindzi, Zenani e Makawize. E
Graça Machel, viúva do primeiro
Presidente da República de
Moçambique Samora Machel,
com quem Mandela casou em
18 de Julho de 1998, dia do
80º aniversário e que esteve
diariamente a seu lado nos últimos
dias no hospital.
Também Winnie MadizikelaMandela, com quem foi casado
quase 30 anos, esteve perto dele
nestes últimos tempos em que
estava doente.
Na autobiografia, Mandela
conta que quando viu Winnie
pela primeira vez “soube que
a ia amar”. Durante os anos
em que esteve preso, era ela
a sua confidente e, durante
muito tempo, quem melhor
o compreendia. A política, os
métodos utilizados e a visão do
rumo que devia seguir a luta
acabam por separá-los. O casal
divorcia-se em 1996.
A solidão marcou o tempo
passado na clandestinidade e, mais
tarde, os quase 30 anos na prisão,
de onde escreve em 1 de Outubro
de 1976 uma carta a Winnie em
que se lê: “Tenho momentos de
felicidade em que rio sozinho ao
pensar nas oportunidades e nos
momentos de prazer que tive na
vida.”
VI | ESPECIAL | PÚBLICO, SEX 6 DEZ 2013

MANDELA 1918-2013
Como a “estratégia
do cobertor” fez de
Mandela uma inspiração
para o mundo
Os 27 anos passados na prisão em nome de uma causa, o fim
do apartheid, reservam-lhe uma admiração e lugar únicos
na História. História de como “a estratégia do cobertor” o fez
dialogar com o inimigo e tornar-se uma inspiração para o mundo
Joana Gorjão Henriques

Q

uando estava na prisão,
Mandela percebeu que se
tivesse frio não ia adiantar
escrever uma carta ao
director a queixar-se; a única
pessoa que lhe poderia trazer
um cobertor seria o responsável
pela secção da cela onde estava. Por
isso, precisava de dialogar com os
carcereiros.
A história foi contada pelo próprio
Mandela ao jornalista sul-africano
Allister Sparks, ex-director do Rand
Daily Mail, e mais tarde correspondente dos jornais The Washington Post
e The Observer. “Mandela começou a
conhecer os carcereiros e soube que
eram muito mal pagos, não tinham
estudos, tendiam a ter dificuldades e
como era advogado ajudou-os, deulhes conselhos de borla”, conta-nos
a partir da África do Sul o autor de
vários livros, como The Mind of South
Africa (1991) ou Beyond the Miracle: Inside the New South Africa (2006). “Ganhou a confiança deles, conseguiu
saber por que é que tinham tanto medo dos negros sul-africanos e porque
eram tão violentos. Percebeu que eles
tinham medo: medo do número de
negros, de que a maioria negra tomasse conta do poder e de que eles,
brancos, fossem os primeiros a perder o emprego e a sofrer” — e conhecê-los era conhecer também muitos
outros brancos sul-africanos.
Sparks foi nomeado em 1995 por
Nelson Mandela para o conselho da

South African Broadcasting Corporation, tornou-se o director de informação da estação em 1997, e conviveu
com ele de perto. Usa a história do
cobertor para chegar ao osso do que
pensa ter sido o legado de um homem
que teve um papel decisivo no fim de
uma segregação racial de 46 anos (de
1948 a 1994 — oficialmente, com as
primeiras eleições multiraciais). “A
sua contribuição para a negociação
de acordos foi esta capacidade de
perceber a psicologia daqueles contra quem se estava a insurgir e depois
encontrar um meio de anular o factor
que estava a bloquear o acordo” – o
medo. E repete: “A sua importância
no movimento pelos direitos civis é
isto, tem que se entender a psicologia
do inimigo, das pessoas que estão a
oprimir-nos e perceber: porque estão a oprimir-nos? Porque tendem a
tornar-se violentos?”
A “estratégia do cobertor”, chamemos-lhe assim, serviu-lhe então
depois nos tempos de liberdade.
Desenvolvendo a capacidade de
se colocar no lugar dos outros e de
empatizar com eles, fez “gestos simples”, segundo Sparks, cheios de
simbolismo. Nisso tornou-se “muito
habilidoso”. Por exemplo, decidiu ir
tomar chá com Betsie Schoombie, a
viúva de um dos homens por detrás
da ideologia do apartheid, Hendrik
Verwoerd, primeiro-ministro entre
1958 e 1966. “Visitou-a, e tornou o
facto público”, sublinhado que não
temia perdoá-los em nome do sucesso da paz, mesmo depois dos 27 anos
passados na prisão, de onde não saiu

com rancor ou amargura em 1990.
Outro exemplo da estratégia do cobertor: “Chamou todos os generais
da minoria branca e disse-lhes: ‘Eu
nunca poderei derrubar-vos, mas
vocês nunca nos conseguirão matar
a todos. É melhor entendermo-nos:
eu mantenho-vos nos vossos postos
mas é preciso ter generais negros
também’.”
Mandela, o primeiro presidente
negro da África do Sul, é o homem
dos gestos. Não é apenas o jornalista
sul-africano quem nos fala deles. Ao
contrário do que aconteceu em outros casos, quando chegou ao poder
em 1994 não propôs uma política de
expulsão da minoria branca, lembra
o italiano Livio Sansone, do departamento de Antropologia e Centro
de Estudos Afro-Orientais da Universidade Federal da Bahia, a viver
no Brasil há décadas. E, mais uma
vez, soube utilizar “a política da cor”
de forma inteligente, acrescenta-nos
numa conversa por Skype a partir da
Europa. Outro momento decisivo:
quando quis manter um serviço de
segurança composto por brancos.
“O que foi simbólico: um presidente
negro andar com um monte de polícias brancos… Ele era genial nesse
aspecto. Manteve os seguranças brancos para mostrar que não tirava os
brancos dos cargos deles.”
Na memória de Sílvio Humberto,
economista, professor e fundador do
Instituto Steve Biko (nome de um activista sul-africano da luta contra o
apartheid), ficou também a perseverança de um líder que demonstrou ao

mundo que era possível “equilibrar
a arte de fazer política com as agruras do racismo”. “Uma das primeiras coisas com que o racismo acaba
é com a humanidade e fica difícil restabelecer o diálogo com alguém que
não te considera humano. Mandela
conseguiu equilibrar as duas coisas,
fazer a transição na África do Sul e
saber o momento exacto de sair e de
não se perpetuar no poder.” O também vereador da cidade de Salvador
repete-nos a imagem dos “gestos”:
“Ele deu uma lição de fazer política
com o seu exemplo, com o seu gesto.
É o gesto de quem tem a mão aberta, e está disposto a estender a mão
ao outro em prole da África do Sul”.
E não menos importante: só saiu da
prisão quando “pôde lutar de igual

para igual, com dignidade”.
Por isso, como diz Sparks, a África do Sul “adora-o”. “É um tesouro
nacional, adorado por todas as raças
no país”.

A luta armada
Mas Mandela passou por diversas fases na sua vida, nem todas tão conciliatórias quanto a imagem que ficou
do Nobel da Paz dos últimos anos.
Quando era novo, formou a ala militar do ANC (Spear of the Nation,
abreviado MK). Não iria conseguir
vencer uma luta por meios pacíficos,
defendia. Gandhi tinha lançado a sua
carreira política na África do Sul, e a
sua postura era a de resistência passiva. “Mandela, na fase inicial, decidiu
que enquanto se está a enfrentar um
PÚBLICO, SEX 6 DEZ 2013 | ESPECIAL | VII
THEMBA HADEBE/AFP

Mandela
celebra os
seus 90 anos
com os netos
em 2008

um homem íntegro, apesar de pertencer ao Partido Nacional, e “isso
deu-lhe poder”. “Teve a visão para
olhar além do imediato, e de dar um
passo em direcção ao outro lado. Não
tenho a certeza de que qualquer outro líder tenha sido capaz de dar esse
passo e de tomar os riscos que ele
tomou para convencer toda a gente.
É uma qualidade fantástica.”
Outras qualidades, como líder: ser
“muito firme”, diz Makhanya. Mas a
coisa mais importante: “a sua humildade”. Isso vem do facto de Mandela
não se colocar no lugar de quem dá
ordens, mas de fazer a outra pessoa
sentir que era tão importante quanto
ele: “Podia relacionar-se com presidentes da mesma forma que se relacionava com as pessoas da rua.” Depois de ter saído da prisão e fazê-lo
determinado a unir o país, Mandela
não teve apenas uma liderança forte. Teve disponibilidade para perdoar, para deixar o passado para trás,
e disse ainda aos sul-africanos que
não deviam temer a democracia,
acrescenta.

O milagre da sobrevivência

regime que usa armas não se podem
usar meios pacíficos”, sublinha Sparks. “Mais tarde mudou a sua perspectiva, embora nunca abandonasse
a estratégia militar. Enquanto estava na prisão percebeu que o braço
armado que fundou podia ser um
factor importante num acordo de
negociação.”
Por outro lado, o não abdicar da luta armada foi um risco, porque poderia eventualmente desencadear uma
guerra civil, lembra-nos em conversa telefónica o jornalista sul-africano
Mondli Makhanya, antigo director do
The Sunday Times sul-africano.
Durante as negociações com o então presidente Frederik Willem de
Klerk, com quem chegou ao fim do
apartheid, Mandela disse que ele era

Esta capacidade invulgar de comunicação e de empatia tornou-o um
símbolo, não apenas para negros
mas para todos. Acima de tudo, diz
Makhanya, Mandela lutou pela igualdade e pelos direitos humanos. Daí
que este jornalista afirme: “Mandela
não nos pertence, pertence ao mundo, é o nosso Mandela mas é também
o Mandela do mundo”.
Mandela é do mundo, e seria influenciado também por outros activistas do mundo. O historiador americano Clayborne Carson, escolhido
pela família de Martin Luther King
para editar e publicar os seus escritos, reconhece nele as influências do
activista norte-americano no qual se
especializou. A partir da Califórnia,
Carson fala-nos da inspiração do boicote de Montgomery — em 1955, Rosa
Parks recusou dar o seu lugar a um
branco no autocarro (como era a regra) e desencadeou o movimento dos
direitos civis liderado por King, o que
levou ao fim da segregação racial nos
EUA. “Na altura havia semelhanças
entre as lutas nos Estados Unidos e
na África do Sul”, lembra o também
fundador do Instituto Martin Luther
King na Universidade de Stanford, onde ensina. Aliás, quando foi aos EUA
Mandela quis conhecer Rosa Parks.
“Sei que ficou muito comovido, porque a via como uma pessoa crucial
na luta dos afro-americanos”.
Nos anos 1980 a luta contra o
apartheid foi apoiada pelos afro-

americanos, que fizeram protestos
à porta da embaixada sul-africana em
Washington D.C. e pressão para que
Ronald Reagan, então presidente,
adoptasse medidas contra a África
do Sul, recorda. E, curiosamente, “o
maior protesto em Stanford não foi
nos anos 1960 mas nos 1980 contra o
apartheid”, diz. “Os americanos viam
Mandela como líder, mas ele estava
na prisão. Conheceram-no melhor
depois quando saiu.”
Nos EUA Mandela é visto como alguém que fez uma “extensão internacional dos princípios de Martin Luther King” — e esses princípios são o
de “um longo e paciente sofrimento”, completa Henry Gates, famoso
especialista em estudos afro-americanos, professor na Universidade de
Harvard. Quem sabe definir carisma,
questiona retoricamente ao telefone
de Cambridge, EUA, quando lhe falamos das suas características como
líder. “A diferença entre King e Mandela é que nunca ninguém sonhou
que King iria emergir como Presidente dos EUA e isto é diferente. Aqui
nos EUA a acção política era mais um
movimento moral, baseado em objecção de consciência e na tentativa de
converter as cabeças e os corações
dos cidadãos; no caso de Mandela foi
um golpe, a tentativa de suplantar um
partido por outro, e por isso resistiram tão violentamente.”
Mandela nunca desistiu nem capitulou, diz o também autor de vários
programas de televisão. Sobreviveu
aos anos na prisão e depois “apareceu
como se fosse ontem!”, lembra entusiasmado. “Todos celebrámos este
homem que era um super-homem.”
Gates guarda um poster original
da primeira campanha política de
Mandela, para o qual olha todos os
dias quando acorda. Quando ele foi
libertado da prisão, levou as filhas
a assistir ao momento pela TV. “Na
história ocidental dos negros nada é
mais importante do que a sua sobrevivência e a eleição como presidente
porque é um triunfo tão grande de
uma oposição negra ao poder dominante”, diz. Não é por acaso que o
professor fala em “sobrevivência”,
como se tivesse sido um milagre. Nos
EUA todos os grandes líderes do movimento dos direitos civis foram mortos: J.F. Kennedy, Malcolm X, o próprio Dr. King, como os americanos
lhe chamam. “Mandela sobreviveu e
dirigiu um país, é um milagre entre
os negros.”

Optimismo e cor da riqueza
Não é como milagre que o sociólogo Éric Fassin, professor na École

Normale Supérieure de Paris e especialista em temas raciais, define
o legado de Mandela. Mas quase. A
lição a tirar do papel de Mandela
como activista pelos direitos civis
resume-se numa palavra: “Optimismo”. Optimismo porque transmite
a esperança, a quem está do lado
do perdedor durante anos, de que
pode um dia ganhar, diz-nos entre as
aulas em Paris: “Aquilo que parecia
ser algo que ia continuar para sempre — o apartheid — acabou. Mandela foi libertado e depois tornou-se
presidente. A ideia de que, quando
se está a perder, o impensável pode
tornar-se viável é aplicável a todo o
tipo de movimentos sociais e todas
as situações. Pensemos no que se
passa em Israel.”
Na África do Sul, ao mesmo tempo
que se lutava pelo fim do apartheid,
outro movimento favorecia o separatismo negro, lembra Clayborne
Carson. O que Mandela conseguiu
foi não fazer do fim do apartheid

Não haverá um
segundo Mandela
porque ele é produto
de um tempo. Foi o
“sonho colectivo
de muitos” porque
o resto do mundo
também estava
empenhado em
abolir o apartheid
“uma luta de negros contra brancos
mas de brancos e negros a ultrapassarem as injustiças juntos”, algo que
lhe garante ainda admiração única.
“Mandela e o ANC eram consistentes
a defender uma África do Sul multirracial.” Carson não tem dúvidas
de que Mandela “será lembrado, ao
lado de King e de Ghandi, como um
dos três grandes nomes da liberdade
humana e dos direitos humanos do
século XX”.
Aí está, então, uma segunda razão
para Éric Fassin usar a palavra “optimismo”: a luta pelo fim do apartheid foi uma batalha racial, mas as
expectativas eram de que iria haver
uma batalha de sangue, só que isso
não aconteceu. Moral da história:
“Nem todas as revoluções precisam de se transformar em sangue
ou numa ditadura. O exemplo que
Mandela deu foi que o impensável

acontece e que a nação arco-íris até
certo ponto funcionou. Não significa
que o racismo desapareceu, não sou
naïf, mas significa que África do Sul
pode ultrapassar isto.”

O país após o apartheid
Se a admiração pelo Mandela dos
tempos da luta na prisão contra o
apartheid é quase geral, já a sua postura enquanto presidente da África
do Sul e o seu lado conciliatório é
menos consensual.
O “grande exemplo, brutal,” de
alguém “tenaz, que falava muito
na construção e apontava para o
futuro” do Mandela da fase inicial
ficou aquém das expectativas na fase posterior para o português Nuno
Santos, sociólogo, conhecido como
rapper Chullage e à frente de duas
associações activistas, a Plataforma
Gueto e a Khapaz. Envolvido com
outros movimentos internacionais
pela igualdade racial, e leitor de
blogues de autores sul-africanos
que andam na casa dos 30 anos,
Nuno Santos fala de uma África do
Sul onde formalmente a segregação
racial acabou, mas onde na prática
continuam a existir desigualdades
entre brancos e negros. Há hoje
uma burguesia negra sul-africana,
mas “o acesso aos empregos”, por
exemplo, “continua a ser altamente
racializado”, as condições de vida
melhoraram num par de cidades
e no resto do país ainda há muitos
que precisam de andar horas para
buscar água potável e trabalham
em “condições obscenas”, exemplifica.
O sul-africano Mondli Makhanya
contextualiza: os problemas raciais
na África do Sul agora são muito diferentes de há 20 anos. O que Mandela conseguiu durante os cinco
anos em que esteve na presidência
(1994-1999) foi “algo extraordinário”: “Mudou as condições de vida
de muita gente, havia pessoas que
não tinham electricidade, novas casas foram construídas para quem
vivia em bairros de lata, muitos passaram a ter água potável”. Mas: “Há
muita coisa a fazer.” Não há separação racial nas escolas, nos bares, nos
autocarros, “as pessoas relacionamse umas com as outras, ultrapassouse a barreira da cor”, e isso deve-se,
considera, ao que Mandela fez durante o seu mandato: “a reconciliação, reconstrução da nação”. A nível
económico confirma as informações
que Nuno Santos vai recebendo da
sua rede: “A maior parte do dinheiro está em mãos brancas, a classe
média é predominante branca e os
VIII | ESPECIAL | PÚBLICO, SEX 6 DEZ 2013

MANDELA 1918-2013
pobres são negros. A maioria ainda
vê a cor da riqueza como branca, e
a cor da pobreza como negra. Isso
afecta as relações, porque as pessoas pensam: ‘Para que serve a liberdade, se não há liberdade económica?’” Para ele, “o grande desafio de
agora é passar da reconciliação para
um equilíbrio económico.”

O QUE ELES DIZEM

“Sabíamos que este dia
estava a chegar. O nosso
povo perdeu um pai”
Jacob Zuma
Presidente da África do Sul

O herói do meio
O filósofo alemão Hans Magnus Enzensberger descreveu Mandela como “o herói do meio” e é assim que
Livio Sansone o gosta de ver. Porque
tanto ele como Frederik De Klerk tiveram “a coragem de fazer um acordo contra a maioria da vontade do
povo”. Havia na África do Sul quem
quisesse um ajuste de contas racial,
e ambos “fizeram com que isso não
acontecesse. É um símbolo importante.” Depois Mandela teve ainda
a coragem de se “auto-exilar” — sair
da política — e dizer: “‘Fiz a minha
luta, agora deixo espaço para os outros’. Há poucos como ele”, conclui
Sansone.
Herança e legado de Mandela como líder activista pelos direitos civis?
A crença de que “é possível ter uma
sociedade em que a diversidade não
é considerada como problema mas
como valor, um valor que tem que
ser exercitado diariamente porque
o racismo tem muitas armadilhas e
sabemos que, às vezes, mudam-se
as leis mas não a cabeça”, diz Sílvio
Humberto. “É o que ele defendeu: se
você é educado para odiar também
pode ser educado para amar.”
Resultado de um momento catártico, ícone de um sofrimento
colectivo de centenas de anos, ele
era único, diz Sansone. Não haverá
um segundo Mandela, considera,
porque ele é produto de um tempo.
Foi, como lhe chama, “o sonho colectivo de muitos”, porque o resto
do mundo também estava empenhado em abolir o apartheid, “algo
muito injusto e anti-histórico”. Uma
personagem charmosa, sedutora,
meiga, Mandela é ainda “um pouco
um santo”. Não tem dúvidas: “Não
vejo no horizonte um líder tão charmoso quanto Mandela.”
No fundo, a estratégia “do cobertor” pode ter sido eficaz, mas teve
menos de estratégia no sentido cínico do termo, e mais de autenticidade. Allister Sparks lembra a singularidade do sucesso de Mandela em
direcção aos opositores: “Projectava
uma personalidade muito humana
e calorosa até para os inimigos. Ele
fazia-o de forma muito honesta. Esses gestos nunca pareciam falsos.”

“Mandela deixa um
extraordinário legado
de universalidade que
perdurará por gerações”
Aníbal Cavaco Silva
Presidente da República

“Ele alcançou mais do
que se pode esperar
de qualquer homem.
Não consigo imaginar
a minha vida sem o
exemplo de Mandela”
Barack Obama
Presidente dos EUA

“Muitos no mundo inteiro
foram influenciados pela
sua luta altruísta pela
dignidade, igualdade e
liberdade humana”
Ban Ki-moon
Secretário-geral da ONU

“Mandela mudou o
curso da história para
a sua população, para
o seu país, para o seu
continente, para o
mundo”
Durão Barroso
Presidente da Comissão
Europeia

“Um resistente
excepcional, um lutador
magnífico. A incarnação
da nação sul-africana”
François Hollande
Presidente de França

O melhor de todos nós
AFP

Editorial

N

ão enterraremos
nas nossas vidas um
homem mais incrível
e marcante do que
Nelson Mandela. O verbo
é intencionalmente
no plural. Mandela não é da
África do Sul, é do mundo. No
século XX, ninguém como ele
simbolizou o “homem bom”.
Mandela não foi um político,
foi um homem de Estado. Não foi
calculista, foi visionário. Não foi
rancoroso, foi magnânimo. Não foi
mesquinho, foi altruísta. Não foi
arrogante, foi humilde.
Há dois mil anos, Cícero, ele
próprio um “homem bom”,
identificou as qualidades de um
líder: integridade, elegância,
inteligência política, coragem,
moderação e generosidade. Hoje
desvalorizamos alguns destes
atributos. Basta pensarmos como
a moderação é muitas vezes vista
como uma característica dos
fracos. Ou elegância, tida como
superficial. Já agora, o mestre
Cícero destacava ainda mais
dois requisitos: saber fazer a paz
com honra e acreditar que “o
compromisso é fundamental para
conseguir resolver as coisas”.
Graça Machel disse do marido,
com quem casou em 1998, que
“há uma percepção um pouco
romântica de Nelson Mandela,
todo o mundo diz que ele foi o
melhor”. É verdade, exageros
humanos. É um mito, endeusado
por todos, único a ver decretado
um dia internacional com o seu
nome pelas Nações Unidas.
Mas Mandela tem essa força:
emociona como homem,
mas também emociona como
pensador político e emociona
como homem de acção. E num
mesmo homem, isso é raro como
raro é o oxigénio fora da Terra.
Mandela é o homem dos
gestos inesquecíveis. Dos gestos
simbólicos que o tempo apagará
da memória, como quando, já
Presidente, convidou para um
chá Betsie Schoombie, viúva de
Hendrik Verwoerd, primeiroministro entre 1958 e 1966 e
ideólogo do apartheid, ou de
quando decidiu manter como

Mandela a caminho do seu julgamento em 1956
segurança pessoal da presidência
os polícias brancos que herdara de
Frederik de Klerk.
Mas é acima de tudo o homem
de um gesto estrutural que os
livros de História vão contar por
muitos séculos: dialogou com
o inimigo e conseguiu com isso
mudar o regime de um país. Nos
anos 1980, o apartheid era o mais
injusto e aparentemente insolúvel
sistema político do mundo.
Mandela descreveu-o como “o
maior crime da era moderna a
seguir ao Holocausto”. Travou
a escalada de violência e evitou
a guerra civil, fez a transição na
África do Sul e, ao mesmo tempo,
não se perpetuou no poder,
mostrando a todos, dentro e fora
do país, a importância de saber
sair no momento certo.
Mandela uniu o seu saber inato
de que a “paz tem de ser feita com
honra” a um saber que aprendeu
na prisão: conseguir que o
cérebro domine o sangue. Nas
suas palavras: “A emoção dizianos: ‘A minoria branca é o nosso
inimigo, nunca devemos falar
com eles.’ Mas a cabeça dizianos: ‘Se não falares com eles,
o país vai explodir em chamas.
Tivemos de reconciliar esse
conflito. Falarmos com o inimigo
foi o resultado desse domínio
da mente sobre a emoção.”
Mandela não fez a ponte com o
inimigo sozinho. O rio tem duas
margens. Do outro lado estavam
Neil Barnard, chefe dos serviços
secretos, e o Presidente Botha.
Os três deram o passo histórico
que mudou o país e deixou uma

lição de reconciliação ao mundo.
Barnard e Botha souberam ler
a realidade e perceber que sem
um acordo político o país iria
devorar-se a si próprio. Mandela
soube dizer que sim ao primeiro
convite de diálogo secreto.
Barnard soube dar dignidade
ao prisioneiro com quem
secretamente falava. Mandela
soube exigir falar directamente
com Botha. O “velho crocodilo”,
símbolo mundial do racismo,
soube receber Mandela com
respeito e até graciosidade.
Mandela falou em Afrikaans no
primeiro encontro. O objectivo
das nossas vidas, sempre disse
Mandela, é “sermos melhores do
que o melhor de nós mesmos”.
Bill Clinton, o mais africano
dos Presidentes americanos e
cujos mandatos na Casa Branca
coincidiram com os de Mandela
no Tuynhuys, resumiu o que
era estar com Mandela: “Se
ele conseguiu fazer tudo isto,
enfrentar tudo isto e mesmo
assim ter um sorriso na cara e
uma canção no coração, quem
sou eu para me queixar?”
Mandela deixa um país com
futuro. Mas também um país
criticado por estar a viver um
“triste declínio”, com a economia
a perder fôlego, a corrupção a
aumentar, a desigualdade social
gritante. Deixa um desafio às
novas gerações. Transformar a
reconciliação em prosperidade.
Ninguém sabe se vão conseguir.
Sabemos apenas que, como hoje
citamos Cícero, em 4013 citaremos
Nelson Mandela.

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Nelson Mandela

  • 1. MANDELA Este suplemento faz parte integrante do PÚBLICO e não pode ser vendido separadamente HANS GEDDA/CORBIS “Está nas vossas mãos fazer do mundo um lugar melhor” “Eu prezo muito a minha liberdade mas prezo ainda mais a vossa” “Eu só sou um ser humano se tu fores um ser humano. Eu só sou um ser humano se for humano contigo”
  • 2. II | ESPECIAL | PÚBLICO, SEX 6 DEZ 2013 MANDELA 1918-2013 “O nosso querido Nelson Mandela deixou-nos” Sul-africanos saem à rua para chorar a morte e celebrar a vida de Mandela, Madiba, Tata, o pai da nação. “Sabíamos que este dia estava a chegar”, disse Zuma Rita Siza O nosso querido Nelson Ro l i h l a h l a M a n d e l a , Presidente fundador da nossa nação democrática, deixou-nos. Partiu pacificamente. Este é um momento de profunda tristeza. A nossa nação perdeu o seu melhor filho”, anunciou o Presidente da África do Sul, Jacob Zuma, na declaração televisiva em que comunicou ao país — e ao mundo — a morte do herói e símbolo da paz, justiça e reconciliação nacional, aos 95 anos. Mandela, que há meses estava em estado crítico na sequência de uma infecção pulmonar, morreu tranquilamente às 20h50 (hora local) na sua casa de Joanesburgo, informou Zuma. “Agora está a descansar em paz”, prosseguiu o Presidente, sublinhando que “pela sua humildade, a sua compaixão e a sua humanidade, Mandela ganhou o amor de todo o país”. “E nós víamos nele aquilo que procuramos em nós próprios”. “Sabíamos que este dia estava a chegar, mas nada poderá diminuir o nosso doloroso e profundo sentimento de perda”, completou Jacob Zuma, que disse que todas as bandeiras do país tinham sido baixadas a meia-haste — e assim permanecerão até ao funeral do líder histórico do Congresso Nacional Africano (ANC) e do movimento anti-apartheid, prémio Nobel da Paz em 1993 e o primeiro negro a presidir à África do Sul depois das primeiras eleições livres e democráticas. “A África do Sul perdeu um colosso, o epítome da humildade, igualdade, justiça, paz e esperança para milhões de pessoas. A sua vida dá-nos o exemplo e a coragem para prosseguir a luta pelo desenvolvimento e o progresso, para o fim da fome e da pobreza”, comentou o seu partido, numa primeira nota oficial. Inspiração mundial O exemplo, a sabedoria e a mensagem de paz e tolerância que Mandela repetiu durante a vida foi evocada não só na sua terra natal, mas em todo o mundo. “Eu fui um desses inúmeros milhões que sentiram a inspiração do seu exemplo”, confessou o Presidente dos EUA, Barack Obama. Numa declaração na Casa Branca, Obama recordou que a sua primeira acção política, “a primeira vez que me envolvi com um assunto ou um movimento político”, foi participar num protesto contra o apartheid na África do Sul. “Estudei as suas palavras e os seus escritos. O dia em que foi libertado da prisão foi uma revelação de que grandes coisas são possíveis se nos deixarmos guiar pela esperança e não pelo medo. Como tanta gente por este mundo fora, não consigo imaginar a minha própria vida sem o exemplo de Nelson Mandela.” “Perdemos um dos mais influentes, mais corajosos e profundamente bons seres humanos com que dividimos o nosso tempo nesta Terra. Nelson Mandela já não nos pertence. Agora ele pertence às eras da História”, declarou Obama. “Através da sua enorme dignidade e da sua indomável vontade de sacrificar “O seu percurso de prisioneiro a Presidente é a melhor ilustração da promessa de que os seres humanos e os países podem sempre mudar para melhor”, disse Barack Obama a sua própria liberdade pela liberdade dos outros, Madiba foi capaz de transformar a África do Sul e de emocionar o resto do mundo. O seu percurso de prisioneiro a Presidente é a melhor ilustração da promessa de que os seres humanos e os países podem sempre mudar para melhor”, referiu Obama. “Nelson Mandela alcançou, na sua vida, mais do que se pode es- perar de qualquer pessoa. Hoje voltou para casa”, concluiu o primeiro Presidente negro da História dos Estados Unidos, que prometeu continuar a fazer o possível para “aprender” as grandes lições do líder sul-africano: “Tomar decisões guiado pelo amor e não pelo ódio; nunca subestimar a diferença que uma única pessoa pode fazer; continuar a sonhar com um futuro que seja digno do seu sacrifício”. Funeral por anunciar O primeiro-ministro britânico, David Cameron, anunciou que em sinal de respeito e homenagem a Nelson Mandela, as bandeiras da sede oficial do Governo, em Downing Street, também voarão a meia-haste. “Uma grande luz extinguiu-se deste mundo. Mandela foi um herói do nosso tempo”, escreveu Cameron na sua conta oficial do Twitter. “Mandela mudou o curso da História do seu povo, do seu país, do seu continente e do mundo”, assinalou o presidente da Comissão Europeia, Durão Barroso. O secretário-geral da Organização
  • 3. PÚBLICO, SEX 6 DEZ 2013 | ESPECIAL | III ULLI MICHEL/REUTERS Nelson Mandela e Winnie Mandela à saída da prisão em Fevereiro de 1990 No crepúsculo da vida continuou como farol da História Educado para ser o conselheiro de um rei, nunca viveu como um aristocarata mas sim como um combatente pela liberdade que refundou um país Obituário Ana Dias Cordeiro E das Nações Unidas, Ban Ki-moon, lembrou o líder sul-africano como “um gigante da justiça e um homem simples e inspirador”. “Ninguém fez mais no nosso tempo para promover os valores e as aspirações das Nações Unidas. Nelson Mandela mostrou-nos como é possível, no nosso mundo e em cada um de nós, acreditar, sonhar e trabalhar pela justiça e pela humanidade”, observou. “Ele foi capaz de tocar as nossas vidas de uma maneira que era profundamente pessoal.” Milhares de sul-africanos, emocionados mas já não chocados com a notícia, saíram ontem imediatamente para a rua para lamentar a morte de Mandela, e ao mesmo tempo celebrar a vida de Madiba, o nome tribal tradicional do seu clã pelo qual era afectuosamente conhecido e tratado — bem como Tata, a palavra da língua Xhosa que significa “pai”. Ainda não são conhecidos a data ou pormenores sobre as cerimónias fúnebres, embora a imprensa sulafricana avance a hipótese de o funeral não ser nos próximos dias. m Robben Island, uma das prisões onde passou 27 anos da sua vida, Nelson Mandela esteve, nos primeiros tempos, em isolamento. Vivia numa cela exígua, onde não entrava a luz do dia. Do tecto, pendia por cima da sua cabeça uma lâmpada constantemente ligada. Nada lhe permitia distinguir o princípio do fim do dia. Mais tarde, admitia que a consciência do tempo a passar, longe dos seus, tinha sido uma das coisas a causar-lhe maior sofrimento na prisão. “É terrível”, disse numa das muitas entrevistas que deu depois de libertado, referindo-se ao peso da inevitabilidade da morte, ainda mais palpável na sua condição de condenado à perpetuidade. Esse fim de vida, então distante, chegou ontem e foi anunciado pelo actual Presidente Jacob Zuma, que se referiu a Mandela como “o maior filho” da África do Sul. Nelson Rolihlahla Mandela sofria de problemas respiratórios e várias vezes foi internado. Tinha 95 anos. Estava, há longos meses, longe dos olhares do público, como quando esteve preso durante quase três décadas, mas era uma presença reconfortante, um símbolo, uma “figura maior do que a vida”, como disse dele um analista sul-africano. O arcebispo sul-africano Desmond Tutu previu ser este um momento “traumático” para a África do Sul, o da perda de Mandela, figura que descreveu como “um ser humano fantástico”, numa entrevista ao PÚBLICO em Lisboa no ano passado. “Quando vai para a prisão, é uma pessoa zangada, revoltada, que acredita na violência como meio de conquistar a liberdade. Quando sai, emerge como uma pessoa extraordinariamente magnânima. O sofrimento por que passou ajudou-o a suavizar a sua posição”, disse Tutu. E acrescentou: “Ele acreditava convictamente que se é líder pelas pessoas que são lideradas e não em benefício próprio. Fomos incrivelmente abençoados por termos Madiba [Mandela] aos comandos, num momento histórico para o nosso país.” A morte de Mandela “é uma perda tremenda para o país”, afirmou Ray Hartley, director do jornal sul-africano “The Times” ao PÚBLICO. “A África do Sul perderá aquele sentimento reconfortante de que existia este grande unificador”, acrescentou, embora notando que “os processos políticos não serão afectados pelo seu desaparecimento”. Também em entrevista, Thierry Vircoulon, investigador associado do Institut Français des Relations Internationales e co-autor de L’ Afrique du Sud de Jacob Zuma (L’Harmattan) previu que, sem Mandela, a África do Sul entraria “num momento de recolhimento nacional”. E realçou, numa entrevista no ano passado sobre o momento que viveria o país depois do desaparecimento de Nelson Mandela: “A nova África do Sul não vai desaparecer com ele, porque ele fez um excelente trabalho enquanto pai fundador dessa nova África do Sul” – país arco-íris criado para não excluir ninguém entre os seus 50 milhões de habitantes. No primeiro discurso como homem livre, frente a uma multidão na Cidade do Cabo, no dia da sua libertação da prisão de Victor-Verster, a 11 de Fevereiro de 1990, Mandela declarou: “Estou aqui não como um profeta mas como um humilde servo de vós, o povo. (…) Ponho, por isso, os restantes dias da minha vida nas vossas mãos.” Nesse discurso, falava aos sul-africanos. Por um mundo melhor Anos depois, nas celebrações para o seu 90º aniversário em 2008, dirigia-se às pessoas do mundo inteiro: “Está nas vossas mãos fazer do mundo um lugar melhor.” Como que em espelho desse seu apelo universal, o Presidente dos Estados Unidos Barack Obama escreveu no prefácio do livro das memórias íntimas de Mandela Conversations with Myself (2010): “Através das escolhas que fez, Mandela deixou claro que não temos de aceitar o mundo como ele é – e que podemos contribuir para que o mundo seja aquilo que deveria ser.” A sua história é evocada como inspiração para outros e os seus actos como exemplos a seguir. As suas palavras sobreviverão como lições de vida. “Ele foi Presidente para desempenhar um papel exemplar na unificação e reconciliação do povo profundamente dividido da África do Sul”, disse De Klerk em declarações feitas há três anos a propósito do mesmo livro também lançado em Portugal, com o título Nelson Mandela – Arquivo Íntimo (Editora Objectiva). “Independentemente de qualquer possível crítica, o homem que emerge de Conversations with Myself é uma eminente figura, não só na história da África do Sul mas na história do século XX”, acrescentou Frederik W. de Klerk, ex-líder do Partido Nacional último Presidente branco da África do Sul (1989-1994), que partilhou o prémio Nobel da Paz 1993 com Mandela depois das negociações para o fim do apartheid. Nelson Mandela era desde 1998 casado com Graça Machel, exprimeira dama de Moçambique, que sobre ele tece os maiores elogios e, ao mesmo tempo, relativiza o seu estatuto de último dos grandes heróis, cujo legado não se compararia a nenhum outro. “Todo o mundo diz que ele foi o melhor. Ele foi o que devia ser naquelas circunstâncias específicas da África do Sul”, afirmou numa entrevista ao PÚBLICO em Lisboa em 2010. “É verdade que ele deu o melhor de si próprio. Mas existirão outros líderes, num momento histórico diferente, capazes de enfrentar desafios diferentes e com um estilo de liderança diferente.” Porém, talvez como nenhum outro, Mandela, líder do Congresso Nacional Africano (ANC, na sigla em inglês) e primeiro Presidente negro da África do Sul, foi elogiado e homenageado em vida, já depois de ser perseguido, no seu país, como terrorista e classificado como tal pela Administração dos Estados Unidos, no passado. O New York Times referiu-se-lhe como o estadista “mais amado do mundo”, em 2009, quando a ONU determinou, por consenso dos 192 países membros, que o dia de aniversário do ex-Presidente, 18 de Julho, seria o Dia Internacional Nelson Mandela. O jornal considerou que os seus valores como pai fundador continuariam a moldar a nação e o seu lugar vital na consciência dos sul-africanos permaneceria intacto, durante muito tempo – mesmo depois do seu desaparecimento. Pelo menos até ao fim de 2010, Mandela continuava, todos os meses, a receber quatro mil c
  • 4. IV | ESPECIAL | PÚBLICO, SEX 6 DEZ 2013 MANDELA 1918-2013 c mensagens do mundo inteiro. Algumas com uma homenagem e outras a desejarem-lhe uma reforma tranquila e feliz, informou a Fundação Nelson Mandela em Dezembro de 2010 que, numa declaração enviada a jornalistas de todo o mundo, recomendou que limitassem os pedidos de autógrafos, declarações, entrevistas ou aparições públicas, de forma a “ajudar a tornar a reforma de Madiba [o seu nome de clã] um período de paz e tranquilidade”. Em 2009, Graça Machel lamentava a perda do brilho no olhar do marido. Nos três anos seguintes, o líder histórico continuou a aparecer em fotografias por ocasião do seu aniversário, com um ar cada vez mais frágil. Uma das últimas vezes que Mandela compareceu num evento público, ao lado da mulher, foi na cerimónia de encerramento do Mundial de Futebol em Joanesburgo em 11 de Julho em 2010. Eram imagens de televisão. Em 2011, eram divulgadas fotografias do ex-Presidente com Michelle Obama e, mais tarde, ao lado de Hillary Clinton, quando a ex-secretária de Estado dos Estados Unidos o foi visitar à aldeia onde cresceu e onde estava a residir, Qunu, na província do Cabo Oriental. Nelas, Mandela sorria, com o mesmo sorriso digno e com que caminhou livre depois de passar os portões da prisão de VictorVerster, perto da Cidade do Cabo, a última onde esteve depois de Robben Island (até 1982) e Pollsmoor. As últimas imagens do exPresidente, difundidas pela televisão sul-africana em Maio deste ano, indignaram por exporem a sua extrema fragilidade. Mostravam um Mandela ausente, incomodado e muito doe Descendente do rei thembu O desejo de Mandela, expresso na autobiografia “Long Walk to Freedom” (2005) – publicada em Portugal pela editora Campo das Letras com o título “Longo Caminho para a Liberdade” – era ser sepultado junto dos seus antepassados em Qunu, no Transkei, província do Cabo Oriental. Foi aqui que nasceu, em 1918, e foi educado para ser, como o pai falecido, conselheiro do rei thembu, Jongintaba Dalindyebo. Era descendente de Ngubengcuka, que tinha antes sido o rei dos thembu, incluídos no mais vasto grupo linguístico dos xhosa. Mandela descreve o rei, que foi seu pai adoptivo e do qual teria sido conselheiro se não tivesse começado uma nova vida em Joanesburgo, como “um homem tolerante e esclarecido que tinha alcançado o objectivo de todos os grandes líderes: mantivera o seu povo unido”. Ele recebera-o quando Mandela tinha nove anos depois da morte do pai que ficara desapossado de tudo por desafiar um representante da administração britânica. Sem condições para o criar, a mãe entregou-o ao rei e Mandela cresceu a aprender a escutar os anciãos. ‘Madiba’ era nome do seu clã – e era assim que frequentemente o chamavam, por respeito. Para muitos sul-africanos, também era “Tata”, que significa “pai” em xhosa, ou “khulu” que significa “grandioso”. Na clandestinidade, a partir de 1961, era David Motsamayi, disfarçado de motorista, cozinheiro ou jardineiro. Não foi conselheiro, nem rei, mas a sua educação de aristocrata, os estudos de advocacia, o carisma e dedicação à luta anti-apartheid fizeram dele figura de proa do ANC e principal ícone da libertação da África do Sul. Não aceitou ser libertado da prisão antes de ver garantidos a libertação dos outros presos políticos, o fim do apartheid e o levantamento do estado de emergência no país. “Eu prezo muito a minha liberdade mas prezo ainda mais a vossa”, escreveu num discurso lido pela filha Zindzi, num comício no Soweto, em 1985, dirigido aos africanos e membros do ANC, a partir da prisão. O discurso era uma resposta a uma oferta do Presidente Botha para a libertação em condições que Mandela recusava. Ensinamentos umbuntu O ex-Presidente sul-africano e Nobel da Paz sabia escutar as pessoas, olhá-las nos olhos e compreender as suas diferenças. Tinha certezas suficientes nas suas convicções para as poder defender, mas também dúvidas AFP razoáveis “para estar aberto aos outros e saber ouvi-los”, refere Ebrahim Rasool, embaixador da África do Sul nos Estados Unidos, numa entrevista à GlobalAtlanta no final de 2010. Era humano, caloroso, firme, convincente e magnânimo, dizem os analistas ouvidos pelo PÚBLICO. E foi abençoado com uma “capacidade extraordinária” de perdoar. Vivia de acordo com os ensinamentos e a filosofia de vida umbuntu que aprendera, ainda criança, dos anciãos na terra onde cresceu, Qunu: “Eu só sou um ser humano se tu fores um ser humano. Eu só sou um ser humano se for humano contigo.” Soube entender o receio dos brancos da África do Sul, tranquilizá-los, com a garantia de que seriam incluídos no novo país que, pedra a pedra, ergueu. Não confundiu as pessoas e o regime. Pelo contrário: soube ver a diferença entre o Governo e a população branca que em parte conquistou dando-lhe provas de que não seria discriminada. Deixou de lado os rancores, superou a mágoa do tempo na prisão e da humilhação sofrida pelo povo. Deixou a liderança do ANC e a presidência no fim do primeiro mandato para deixar a via aberta a uma nova geração de políticos. Tentou, com isso, lançar uma mensagem aos líderes que se perpetuam no poder e aproveitam a aura que a luta de libertação lhes conferiu no passado. A voz era suave mas as suas palavras ecoavam como só as palavras dos líderes universais e respeitados ecoam, tanto nas críticas que fez a déspotas africanos incapazes de deixar o poder como quando, por exemplo, se opôs à intervenção dos Estados Unidos no Iraque em 2003, ou noutras circunstâncias. “Era um político fenomenal”, continua Ray Hartley, director do sul-africano The Times. Para este jornalista que cobriu os cinco anos da Presidência de Mandela, entre 1994 e 1999, não foi tanto o momento da História que fez de Mandela um herói, mas Mandela que soube fazer História. “O papel dele em criar as circunstâncias foi muito importante, porque tinha a força de carácter e a personalidade para chegar aos dirigentes” que estavam do outro lado na procura da paz. “Foi um impulso natural para ele e não algo que se forçou a fazer. Ele tem essa postura natural de estadista.” E acrescenta: “Ele é tremendamente carismático e de forma poderosa. Teria sido um bom político em qualquer era mas nesta foi especialmente bom.” Foi ao mesmo tempo um bom líder de uma luta de libertação e um bom Presidente, diz Ray Hartley mesmo perante aspectos menos felizes do seu mandato, diz: “Quando chegou a altura de montar instituições eficientes de Governo, foi um pouco mais fraco aí. E o legado disso continua até hoje com a corrupção no Governo e os erros na administração. Nesses cinco anos, muito mais podia ter sido feito, como criar as condições para uma administração mais profissional e mais intransigente com as más práticas de administração e a burocracia.” Seja como for, realça: “O que a África do Sul precisava era de alguém capaz de unificar o país, falar para todas as pessoas e ter o respeito de toda a nação. [Uma pessoa] que ao mesmo tempo fosse capaz de transformar um país em necessidade urgente de mudança. Era a coisa mais importante a fazer e ele foi capaz de a fazer.” Em 2004, com 86 anos, Mandela anunciou a sua retirada dos actos públicos – para além da política que já tinha abandonado em 1999. Nessa altura, incumbiu a Fundação Nelson Mandela, o Nelson Mandela Children’s Fund e a Mandela Rhodes Foundation de continuarem, em seu nome, o trabalho humanitário em que se envolvera depois de deixar a presidência e que estava muito virado para a luta contra a sida. Na mesma ocasião, referiu a brincar: “Não me telefonem, eu telefono-vos”, lembra, num artigo de Dezembro de 2010, o jornalista do The Sowetan Ido Lekota. “Embora não lhe tenhamos telefonado”, escreve o jornalista, “a sua figura ‘maior do que a vida’ continua a pairar sobre a nossa democracia e o panorama político” da África do Sul. “A voz da razão” Na vida como na luta, Mandela sempre se regeu pela dignidade. Era um verdadeiro líder, e todos o respeitavam como tal, lembram alguns dos seus camaradas de luta em excertos depoimentos, citados pela BBC. “Era a voz da razão dentro do ANC”, sublinha por sua vez o analista Thierry Vircoulon ao PÚBLICO. “A sua influência é imensa porque encarnou a aliança entre a razão e o rigor. Mesmo durante as mais fortes tensões da
  • 5. PÚBLICO, SEX 6 DEZ 2013 | ESPECIAL | V Mandela com o então Presidente De Klerk em Fevereiro de 1990, dois dias antes da sua libertação luta contra o apartheid e, quando vozes dentro do ANC defendiam uma linha política intransigente, Mandela manteve um discurso apaziguador e conciliador. Sempre soube que os brancos e os negros não tinham outra escolha se não viverem juntos na África do Sul”, acrescenta este especialista francês de África, autor de vários livros sobre a África do Sul, que teve um cargo na embaixada de França no país, e conheceu Mandela. “Ele transmitia uma impressão de grande força interior e de grande bondade”, recorda. A esse propósito, lembra um traço da sua personalidade: “Para ele, até o exercício da autoridade devia ser desempenhado com amabilidade. Era um Presidente gentleman. Tinha o hábito de dizer aos seus guarda-costas: ‘Se tiverem de empurrar as pessoas, façam-no com um sorriso.’” Também o académico Guilherme Fonseca-Statter, investigador do Centro de Estudos Africanos do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE) em Lisboa, recorda “Mandela como um senhor com ‘S’ grande”. Ele estudara a fundo os seus direitos e impunha-se ao respeito de todos, incluindo os próprios guardas prisionais, sustenta o académico. Para poder partilhar com os companheiros a comida que recebia de uma amiga na prisão, partilhava primeiro com os carcereiros, conta. Da mesma forma, para conquistar o reconhecimento dos direitos do seu povo, os africanos, reconheceu os direitos do próprio povo afrikander. “Eleito em 1994, fez uma recepção e convidou todos os dignitários afrikanders, muitos deles altos representantes do regime do apartheid, como Botha. E foi tomar chá com a viúva de [Hendrik] Verwoerd que não pudera comparecer por viver longe de Pretória. “Não discriminou ninguém”, conta Guilherme Fonseca-Statter. Nem mesmo Verwoerd que tinha sido primeiro-ministro entre 1958 e 1966 quando o ANC foi banido, obrigando muitos dirigentes como Mandela a passar à clandestinidade, e quando se realizou o Julgamento de Rivonia em que Mandela e outros dirigentes do ANC enfrentaram a pena de morte por alta traição Datas 1918 Nasce em Mvezo 1942 Começa os contactos com o ANC e completa a Licenciatura em Direito contra o Estado, acabando por ser condenados a prisão perpétua. Morrer por um ideal Enquanto advogado, assumiu a sua própria defesa nesse histórico julgamento. Usou a tribuna em nome da causa da liberdade, dizendo que lutava contra a dominação branca da mesma forma que lutaria contra a dominação negra e que acalentava “o ideal de uma sociedade democrática e livre” em que todas as pessoas pudessem “viver juntas”. “É um ideal para cuja concretização espero viver”, disse. “Mas se for necessário, é um ideal pelo qual estou disposto a morrer.” Enfrentava então, no Julgamento de Rivonia em 1964, a pena capital por alta traição contra o Estado e convencera-se de que seria condenado à morte. Chegara a citar Shakespeare a esse propósito: “Aceite a morte; e a morte e a vida serão assim mais doces.” Foi condenado a prisão perpétua. E o seu nome, que muitos sul-africanos associavam a um perigoso terrorista, ficou ligado ao número de prisioneiro – 466 64. A luta era a sua vida, admite na autobiografia, onde confessa também a genuína felicidade que sentira nos raros momentos dedicados aos filhos – quando ainda estava em liberdade – ou quando teve nos braços a neta recém-nascida, da sua filha Zindzi, numa visita de ambas à prisão de Robben Island. Já em liberdade, numa entrevista à revista “Time” em Fevereiro de 1990, disse acreditar no valor da dedicação quase exclusiva à luta: “Sim, valeu a pena. Ser preso por causa das nossas convicções e estar preparado para sofrer por aquilo em que se acredita vale a pena. É uma conquista para um homem cumprir o seu dever na terra independentemente das consequências”, considerou. Nunca escondeu porém a angústia e o dilema de colocar “o bem do povo à frente do bem da família”. Na mesma entrevista, questionado sobre se sentia mágoa por ter estado preso 27 anos, respondeu: “Sim e não.” O difícil equilíbrio, nunca alcançado, entre a dedicação à família, por um lado, e à causa da libertação, por outro, perseguiu-o 1944 Casa-se com Evelyn Mase, com quem terá 4 filhos e de quem se divorcia em 1956. 1957 Casa-se com Winnie Mandela com quem terá duas filhas e de quem se divorcia em 1996 1961 Entra na clandestinidade, adopta o nome de David Motsamayi. 1962 Deixa o país para receber treino militar e recolher apoios para o ANC. Regressa e é preso por incitamento e por sair ilegalmente do país 1964 É acusado de sabotagem e condenado a prisão perpétua no Julgamento de Rivonia juntamente com sete outros destacados activistas. Entra na cadeia de Robben Island Em sua defesa, Mandela, no duplo papel de acusado e advogado, pronuncia o célebre discurso “Speech from the dock”. 1985 Rejeita a oferta do Presidente PW Botha de o libertar se ele renunciar à violência. Só virá a aceitar a libertação se todos os outros presos políticos também o forem e se o ANC deixar de ser banido. 1990 É libertado da prisão de Victor Verster perto de Paarl e pronuncia um discurso histórico 1993 Recebe o Nobel da Paz com Frederik De Klerk 1994 Vota pela primeira vez na vida e é eleito primeiro Presidente negro da África do Sul 1998 Casa-se com a moçambicana Graça Machel 1999 Abandona a vida política e a liderança do ANC no fim do mandato como Presidente 2008 Discursa no Hyde Park, em Londres, palco das comemorações do seu 90.º aniversário 2010 Aparece naquela que se pensava ser a última vez na cerimónia de encerramento do Mundial de Futebol 2013 Morreu ontem aos 95 anos, na sua casa em Joanesburgo durante toda a vida e é algo presente nas suas memórias em Nelson Mandela – Arquivo Íntimo. Mas aceitou-o como terá aceitado a defesa que fez de o ANC recorrer às armas que via como única resposta possível a dar a um regime que oprimia o seu povo. “Nunca irei lamentar a decisão que tomei em 1961, mas gostaria que um dia a minha consciência estivesse tranquila”, afirmou referindo-se à decisão tomada em 1961 de passar à clandestinidade e formar o MK (Umkhonto we Sizwe – A lança da nação) fundado em 1961, que se tornou a ala militar do ANC de que foi primeiro comandante-chefe. Sementes para a paz Da mesma forma que ousou recorrer às armas, avançou mais tarde sozinho, sem o ANC, no primeiro gesto de negociar com o Governo. Escreve várias missivas ao ministro da Justiça, Kobie Coetsee, que só depois de algum tempo dão frutos. Sem querer ser desleal para com o ANC – que tinha como princípio não dialogar com o Governo enquanto o movimento não fosse legalizado e os presos políticos libertados – Mandela transmite ao Governo o seu pensamento: as negociações eram a única saída para impedir que o país mergulhasse numa espiral de violência mútua que tornaria os objectivos da luta ainda mais difíceis de alcançar. Quando apresenta aos companheiros da luta na prisão a sua intenção de avançar, convence-os de que o importante não seria ver quem deu o primeiro passo para as conversações mas o que delas viria a resultar no futuro. Firme e persuasivo, é também ele quem convence o adversário, o Governo, de que não perderia credibilidade perante o povo ao sentar-se à mesa das negociações com o ANC, mesmo sem este renunciar à violência. “O povo compreenderá”, desde que lhe seja explicado que essa era a única solução para a paz, diz Mandela. Essas conversações viriam a resultar em 1990 na sua libertação e na dos outros presos políticos, no fim do apartheid e na realização das primeiras eleições livres na África do Sul em 1994. Nos 23 anos que viveu depois de ser libertado, além de concluir a missão, iniciada ainda na prisão, de negociar o fim do apartheid com o Governo do Partido Nacionalista, e de ser eleito primeiro Presidente negro da África do Sul, dedicou-se, depois da retirada da vida política, e através da Fundação com o seu nome, a uma nova causa – o combate e a prevenção da sida – à qual se sentia especialmente ligado. Em 2005, a morte do filho Makgatho, vítima de sida, leva Mandela a uma rara intervenção pública desde o fim do mandato presidencial em 1999. Lança um apelo para que se ponha fim ao tabu e se fale desta como de qualquer outra doença, porque só assim, diz, a sida deixará de ser fatal. Já antes tinha perdido o outro filho, mais velho, Thembekile, num desastre de carro, em 1969, quando estava preso, e uma filha pequena ainda bebé Makawize, ambos do primeiro casamento com Evelyn Mase, de quem se divorciou em 1957. Dos seis filhos que teve, acompanharam-no até ao fim dos seus dias as três filhas: Zindzi, Zenani e Makawize. E Graça Machel, viúva do primeiro Presidente da República de Moçambique Samora Machel, com quem Mandela casou em 18 de Julho de 1998, dia do 80º aniversário e que esteve diariamente a seu lado nos últimos dias no hospital. Também Winnie MadizikelaMandela, com quem foi casado quase 30 anos, esteve perto dele nestes últimos tempos em que estava doente. Na autobiografia, Mandela conta que quando viu Winnie pela primeira vez “soube que a ia amar”. Durante os anos em que esteve preso, era ela a sua confidente e, durante muito tempo, quem melhor o compreendia. A política, os métodos utilizados e a visão do rumo que devia seguir a luta acabam por separá-los. O casal divorcia-se em 1996. A solidão marcou o tempo passado na clandestinidade e, mais tarde, os quase 30 anos na prisão, de onde escreve em 1 de Outubro de 1976 uma carta a Winnie em que se lê: “Tenho momentos de felicidade em que rio sozinho ao pensar nas oportunidades e nos momentos de prazer que tive na vida.”
  • 6. VI | ESPECIAL | PÚBLICO, SEX 6 DEZ 2013 MANDELA 1918-2013 Como a “estratégia do cobertor” fez de Mandela uma inspiração para o mundo Os 27 anos passados na prisão em nome de uma causa, o fim do apartheid, reservam-lhe uma admiração e lugar únicos na História. História de como “a estratégia do cobertor” o fez dialogar com o inimigo e tornar-se uma inspiração para o mundo Joana Gorjão Henriques Q uando estava na prisão, Mandela percebeu que se tivesse frio não ia adiantar escrever uma carta ao director a queixar-se; a única pessoa que lhe poderia trazer um cobertor seria o responsável pela secção da cela onde estava. Por isso, precisava de dialogar com os carcereiros. A história foi contada pelo próprio Mandela ao jornalista sul-africano Allister Sparks, ex-director do Rand Daily Mail, e mais tarde correspondente dos jornais The Washington Post e The Observer. “Mandela começou a conhecer os carcereiros e soube que eram muito mal pagos, não tinham estudos, tendiam a ter dificuldades e como era advogado ajudou-os, deulhes conselhos de borla”, conta-nos a partir da África do Sul o autor de vários livros, como The Mind of South Africa (1991) ou Beyond the Miracle: Inside the New South Africa (2006). “Ganhou a confiança deles, conseguiu saber por que é que tinham tanto medo dos negros sul-africanos e porque eram tão violentos. Percebeu que eles tinham medo: medo do número de negros, de que a maioria negra tomasse conta do poder e de que eles, brancos, fossem os primeiros a perder o emprego e a sofrer” — e conhecê-los era conhecer também muitos outros brancos sul-africanos. Sparks foi nomeado em 1995 por Nelson Mandela para o conselho da South African Broadcasting Corporation, tornou-se o director de informação da estação em 1997, e conviveu com ele de perto. Usa a história do cobertor para chegar ao osso do que pensa ter sido o legado de um homem que teve um papel decisivo no fim de uma segregação racial de 46 anos (de 1948 a 1994 — oficialmente, com as primeiras eleições multiraciais). “A sua contribuição para a negociação de acordos foi esta capacidade de perceber a psicologia daqueles contra quem se estava a insurgir e depois encontrar um meio de anular o factor que estava a bloquear o acordo” – o medo. E repete: “A sua importância no movimento pelos direitos civis é isto, tem que se entender a psicologia do inimigo, das pessoas que estão a oprimir-nos e perceber: porque estão a oprimir-nos? Porque tendem a tornar-se violentos?” A “estratégia do cobertor”, chamemos-lhe assim, serviu-lhe então depois nos tempos de liberdade. Desenvolvendo a capacidade de se colocar no lugar dos outros e de empatizar com eles, fez “gestos simples”, segundo Sparks, cheios de simbolismo. Nisso tornou-se “muito habilidoso”. Por exemplo, decidiu ir tomar chá com Betsie Schoombie, a viúva de um dos homens por detrás da ideologia do apartheid, Hendrik Verwoerd, primeiro-ministro entre 1958 e 1966. “Visitou-a, e tornou o facto público”, sublinhado que não temia perdoá-los em nome do sucesso da paz, mesmo depois dos 27 anos passados na prisão, de onde não saiu com rancor ou amargura em 1990. Outro exemplo da estratégia do cobertor: “Chamou todos os generais da minoria branca e disse-lhes: ‘Eu nunca poderei derrubar-vos, mas vocês nunca nos conseguirão matar a todos. É melhor entendermo-nos: eu mantenho-vos nos vossos postos mas é preciso ter generais negros também’.” Mandela, o primeiro presidente negro da África do Sul, é o homem dos gestos. Não é apenas o jornalista sul-africano quem nos fala deles. Ao contrário do que aconteceu em outros casos, quando chegou ao poder em 1994 não propôs uma política de expulsão da minoria branca, lembra o italiano Livio Sansone, do departamento de Antropologia e Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade Federal da Bahia, a viver no Brasil há décadas. E, mais uma vez, soube utilizar “a política da cor” de forma inteligente, acrescenta-nos numa conversa por Skype a partir da Europa. Outro momento decisivo: quando quis manter um serviço de segurança composto por brancos. “O que foi simbólico: um presidente negro andar com um monte de polícias brancos… Ele era genial nesse aspecto. Manteve os seguranças brancos para mostrar que não tirava os brancos dos cargos deles.” Na memória de Sílvio Humberto, economista, professor e fundador do Instituto Steve Biko (nome de um activista sul-africano da luta contra o apartheid), ficou também a perseverança de um líder que demonstrou ao mundo que era possível “equilibrar a arte de fazer política com as agruras do racismo”. “Uma das primeiras coisas com que o racismo acaba é com a humanidade e fica difícil restabelecer o diálogo com alguém que não te considera humano. Mandela conseguiu equilibrar as duas coisas, fazer a transição na África do Sul e saber o momento exacto de sair e de não se perpetuar no poder.” O também vereador da cidade de Salvador repete-nos a imagem dos “gestos”: “Ele deu uma lição de fazer política com o seu exemplo, com o seu gesto. É o gesto de quem tem a mão aberta, e está disposto a estender a mão ao outro em prole da África do Sul”. E não menos importante: só saiu da prisão quando “pôde lutar de igual para igual, com dignidade”. Por isso, como diz Sparks, a África do Sul “adora-o”. “É um tesouro nacional, adorado por todas as raças no país”. A luta armada Mas Mandela passou por diversas fases na sua vida, nem todas tão conciliatórias quanto a imagem que ficou do Nobel da Paz dos últimos anos. Quando era novo, formou a ala militar do ANC (Spear of the Nation, abreviado MK). Não iria conseguir vencer uma luta por meios pacíficos, defendia. Gandhi tinha lançado a sua carreira política na África do Sul, e a sua postura era a de resistência passiva. “Mandela, na fase inicial, decidiu que enquanto se está a enfrentar um
  • 7. PÚBLICO, SEX 6 DEZ 2013 | ESPECIAL | VII THEMBA HADEBE/AFP Mandela celebra os seus 90 anos com os netos em 2008 um homem íntegro, apesar de pertencer ao Partido Nacional, e “isso deu-lhe poder”. “Teve a visão para olhar além do imediato, e de dar um passo em direcção ao outro lado. Não tenho a certeza de que qualquer outro líder tenha sido capaz de dar esse passo e de tomar os riscos que ele tomou para convencer toda a gente. É uma qualidade fantástica.” Outras qualidades, como líder: ser “muito firme”, diz Makhanya. Mas a coisa mais importante: “a sua humildade”. Isso vem do facto de Mandela não se colocar no lugar de quem dá ordens, mas de fazer a outra pessoa sentir que era tão importante quanto ele: “Podia relacionar-se com presidentes da mesma forma que se relacionava com as pessoas da rua.” Depois de ter saído da prisão e fazê-lo determinado a unir o país, Mandela não teve apenas uma liderança forte. Teve disponibilidade para perdoar, para deixar o passado para trás, e disse ainda aos sul-africanos que não deviam temer a democracia, acrescenta. O milagre da sobrevivência regime que usa armas não se podem usar meios pacíficos”, sublinha Sparks. “Mais tarde mudou a sua perspectiva, embora nunca abandonasse a estratégia militar. Enquanto estava na prisão percebeu que o braço armado que fundou podia ser um factor importante num acordo de negociação.” Por outro lado, o não abdicar da luta armada foi um risco, porque poderia eventualmente desencadear uma guerra civil, lembra-nos em conversa telefónica o jornalista sul-africano Mondli Makhanya, antigo director do The Sunday Times sul-africano. Durante as negociações com o então presidente Frederik Willem de Klerk, com quem chegou ao fim do apartheid, Mandela disse que ele era Esta capacidade invulgar de comunicação e de empatia tornou-o um símbolo, não apenas para negros mas para todos. Acima de tudo, diz Makhanya, Mandela lutou pela igualdade e pelos direitos humanos. Daí que este jornalista afirme: “Mandela não nos pertence, pertence ao mundo, é o nosso Mandela mas é também o Mandela do mundo”. Mandela é do mundo, e seria influenciado também por outros activistas do mundo. O historiador americano Clayborne Carson, escolhido pela família de Martin Luther King para editar e publicar os seus escritos, reconhece nele as influências do activista norte-americano no qual se especializou. A partir da Califórnia, Carson fala-nos da inspiração do boicote de Montgomery — em 1955, Rosa Parks recusou dar o seu lugar a um branco no autocarro (como era a regra) e desencadeou o movimento dos direitos civis liderado por King, o que levou ao fim da segregação racial nos EUA. “Na altura havia semelhanças entre as lutas nos Estados Unidos e na África do Sul”, lembra o também fundador do Instituto Martin Luther King na Universidade de Stanford, onde ensina. Aliás, quando foi aos EUA Mandela quis conhecer Rosa Parks. “Sei que ficou muito comovido, porque a via como uma pessoa crucial na luta dos afro-americanos”. Nos anos 1980 a luta contra o apartheid foi apoiada pelos afro- americanos, que fizeram protestos à porta da embaixada sul-africana em Washington D.C. e pressão para que Ronald Reagan, então presidente, adoptasse medidas contra a África do Sul, recorda. E, curiosamente, “o maior protesto em Stanford não foi nos anos 1960 mas nos 1980 contra o apartheid”, diz. “Os americanos viam Mandela como líder, mas ele estava na prisão. Conheceram-no melhor depois quando saiu.” Nos EUA Mandela é visto como alguém que fez uma “extensão internacional dos princípios de Martin Luther King” — e esses princípios são o de “um longo e paciente sofrimento”, completa Henry Gates, famoso especialista em estudos afro-americanos, professor na Universidade de Harvard. Quem sabe definir carisma, questiona retoricamente ao telefone de Cambridge, EUA, quando lhe falamos das suas características como líder. “A diferença entre King e Mandela é que nunca ninguém sonhou que King iria emergir como Presidente dos EUA e isto é diferente. Aqui nos EUA a acção política era mais um movimento moral, baseado em objecção de consciência e na tentativa de converter as cabeças e os corações dos cidadãos; no caso de Mandela foi um golpe, a tentativa de suplantar um partido por outro, e por isso resistiram tão violentamente.” Mandela nunca desistiu nem capitulou, diz o também autor de vários programas de televisão. Sobreviveu aos anos na prisão e depois “apareceu como se fosse ontem!”, lembra entusiasmado. “Todos celebrámos este homem que era um super-homem.” Gates guarda um poster original da primeira campanha política de Mandela, para o qual olha todos os dias quando acorda. Quando ele foi libertado da prisão, levou as filhas a assistir ao momento pela TV. “Na história ocidental dos negros nada é mais importante do que a sua sobrevivência e a eleição como presidente porque é um triunfo tão grande de uma oposição negra ao poder dominante”, diz. Não é por acaso que o professor fala em “sobrevivência”, como se tivesse sido um milagre. Nos EUA todos os grandes líderes do movimento dos direitos civis foram mortos: J.F. Kennedy, Malcolm X, o próprio Dr. King, como os americanos lhe chamam. “Mandela sobreviveu e dirigiu um país, é um milagre entre os negros.” Optimismo e cor da riqueza Não é como milagre que o sociólogo Éric Fassin, professor na École Normale Supérieure de Paris e especialista em temas raciais, define o legado de Mandela. Mas quase. A lição a tirar do papel de Mandela como activista pelos direitos civis resume-se numa palavra: “Optimismo”. Optimismo porque transmite a esperança, a quem está do lado do perdedor durante anos, de que pode um dia ganhar, diz-nos entre as aulas em Paris: “Aquilo que parecia ser algo que ia continuar para sempre — o apartheid — acabou. Mandela foi libertado e depois tornou-se presidente. A ideia de que, quando se está a perder, o impensável pode tornar-se viável é aplicável a todo o tipo de movimentos sociais e todas as situações. Pensemos no que se passa em Israel.” Na África do Sul, ao mesmo tempo que se lutava pelo fim do apartheid, outro movimento favorecia o separatismo negro, lembra Clayborne Carson. O que Mandela conseguiu foi não fazer do fim do apartheid Não haverá um segundo Mandela porque ele é produto de um tempo. Foi o “sonho colectivo de muitos” porque o resto do mundo também estava empenhado em abolir o apartheid “uma luta de negros contra brancos mas de brancos e negros a ultrapassarem as injustiças juntos”, algo que lhe garante ainda admiração única. “Mandela e o ANC eram consistentes a defender uma África do Sul multirracial.” Carson não tem dúvidas de que Mandela “será lembrado, ao lado de King e de Ghandi, como um dos três grandes nomes da liberdade humana e dos direitos humanos do século XX”. Aí está, então, uma segunda razão para Éric Fassin usar a palavra “optimismo”: a luta pelo fim do apartheid foi uma batalha racial, mas as expectativas eram de que iria haver uma batalha de sangue, só que isso não aconteceu. Moral da história: “Nem todas as revoluções precisam de se transformar em sangue ou numa ditadura. O exemplo que Mandela deu foi que o impensável acontece e que a nação arco-íris até certo ponto funcionou. Não significa que o racismo desapareceu, não sou naïf, mas significa que África do Sul pode ultrapassar isto.” O país após o apartheid Se a admiração pelo Mandela dos tempos da luta na prisão contra o apartheid é quase geral, já a sua postura enquanto presidente da África do Sul e o seu lado conciliatório é menos consensual. O “grande exemplo, brutal,” de alguém “tenaz, que falava muito na construção e apontava para o futuro” do Mandela da fase inicial ficou aquém das expectativas na fase posterior para o português Nuno Santos, sociólogo, conhecido como rapper Chullage e à frente de duas associações activistas, a Plataforma Gueto e a Khapaz. Envolvido com outros movimentos internacionais pela igualdade racial, e leitor de blogues de autores sul-africanos que andam na casa dos 30 anos, Nuno Santos fala de uma África do Sul onde formalmente a segregação racial acabou, mas onde na prática continuam a existir desigualdades entre brancos e negros. Há hoje uma burguesia negra sul-africana, mas “o acesso aos empregos”, por exemplo, “continua a ser altamente racializado”, as condições de vida melhoraram num par de cidades e no resto do país ainda há muitos que precisam de andar horas para buscar água potável e trabalham em “condições obscenas”, exemplifica. O sul-africano Mondli Makhanya contextualiza: os problemas raciais na África do Sul agora são muito diferentes de há 20 anos. O que Mandela conseguiu durante os cinco anos em que esteve na presidência (1994-1999) foi “algo extraordinário”: “Mudou as condições de vida de muita gente, havia pessoas que não tinham electricidade, novas casas foram construídas para quem vivia em bairros de lata, muitos passaram a ter água potável”. Mas: “Há muita coisa a fazer.” Não há separação racial nas escolas, nos bares, nos autocarros, “as pessoas relacionamse umas com as outras, ultrapassouse a barreira da cor”, e isso deve-se, considera, ao que Mandela fez durante o seu mandato: “a reconciliação, reconstrução da nação”. A nível económico confirma as informações que Nuno Santos vai recebendo da sua rede: “A maior parte do dinheiro está em mãos brancas, a classe média é predominante branca e os
  • 8. VIII | ESPECIAL | PÚBLICO, SEX 6 DEZ 2013 MANDELA 1918-2013 pobres são negros. A maioria ainda vê a cor da riqueza como branca, e a cor da pobreza como negra. Isso afecta as relações, porque as pessoas pensam: ‘Para que serve a liberdade, se não há liberdade económica?’” Para ele, “o grande desafio de agora é passar da reconciliação para um equilíbrio económico.” O QUE ELES DIZEM “Sabíamos que este dia estava a chegar. O nosso povo perdeu um pai” Jacob Zuma Presidente da África do Sul O herói do meio O filósofo alemão Hans Magnus Enzensberger descreveu Mandela como “o herói do meio” e é assim que Livio Sansone o gosta de ver. Porque tanto ele como Frederik De Klerk tiveram “a coragem de fazer um acordo contra a maioria da vontade do povo”. Havia na África do Sul quem quisesse um ajuste de contas racial, e ambos “fizeram com que isso não acontecesse. É um símbolo importante.” Depois Mandela teve ainda a coragem de se “auto-exilar” — sair da política — e dizer: “‘Fiz a minha luta, agora deixo espaço para os outros’. Há poucos como ele”, conclui Sansone. Herança e legado de Mandela como líder activista pelos direitos civis? A crença de que “é possível ter uma sociedade em que a diversidade não é considerada como problema mas como valor, um valor que tem que ser exercitado diariamente porque o racismo tem muitas armadilhas e sabemos que, às vezes, mudam-se as leis mas não a cabeça”, diz Sílvio Humberto. “É o que ele defendeu: se você é educado para odiar também pode ser educado para amar.” Resultado de um momento catártico, ícone de um sofrimento colectivo de centenas de anos, ele era único, diz Sansone. Não haverá um segundo Mandela, considera, porque ele é produto de um tempo. Foi, como lhe chama, “o sonho colectivo de muitos”, porque o resto do mundo também estava empenhado em abolir o apartheid, “algo muito injusto e anti-histórico”. Uma personagem charmosa, sedutora, meiga, Mandela é ainda “um pouco um santo”. Não tem dúvidas: “Não vejo no horizonte um líder tão charmoso quanto Mandela.” No fundo, a estratégia “do cobertor” pode ter sido eficaz, mas teve menos de estratégia no sentido cínico do termo, e mais de autenticidade. Allister Sparks lembra a singularidade do sucesso de Mandela em direcção aos opositores: “Projectava uma personalidade muito humana e calorosa até para os inimigos. Ele fazia-o de forma muito honesta. Esses gestos nunca pareciam falsos.” “Mandela deixa um extraordinário legado de universalidade que perdurará por gerações” Aníbal Cavaco Silva Presidente da República “Ele alcançou mais do que se pode esperar de qualquer homem. Não consigo imaginar a minha vida sem o exemplo de Mandela” Barack Obama Presidente dos EUA “Muitos no mundo inteiro foram influenciados pela sua luta altruísta pela dignidade, igualdade e liberdade humana” Ban Ki-moon Secretário-geral da ONU “Mandela mudou o curso da história para a sua população, para o seu país, para o seu continente, para o mundo” Durão Barroso Presidente da Comissão Europeia “Um resistente excepcional, um lutador magnífico. A incarnação da nação sul-africana” François Hollande Presidente de França O melhor de todos nós AFP Editorial N ão enterraremos nas nossas vidas um homem mais incrível e marcante do que Nelson Mandela. O verbo é intencionalmente no plural. Mandela não é da África do Sul, é do mundo. No século XX, ninguém como ele simbolizou o “homem bom”. Mandela não foi um político, foi um homem de Estado. Não foi calculista, foi visionário. Não foi rancoroso, foi magnânimo. Não foi mesquinho, foi altruísta. Não foi arrogante, foi humilde. Há dois mil anos, Cícero, ele próprio um “homem bom”, identificou as qualidades de um líder: integridade, elegância, inteligência política, coragem, moderação e generosidade. Hoje desvalorizamos alguns destes atributos. Basta pensarmos como a moderação é muitas vezes vista como uma característica dos fracos. Ou elegância, tida como superficial. Já agora, o mestre Cícero destacava ainda mais dois requisitos: saber fazer a paz com honra e acreditar que “o compromisso é fundamental para conseguir resolver as coisas”. Graça Machel disse do marido, com quem casou em 1998, que “há uma percepção um pouco romântica de Nelson Mandela, todo o mundo diz que ele foi o melhor”. É verdade, exageros humanos. É um mito, endeusado por todos, único a ver decretado um dia internacional com o seu nome pelas Nações Unidas. Mas Mandela tem essa força: emociona como homem, mas também emociona como pensador político e emociona como homem de acção. E num mesmo homem, isso é raro como raro é o oxigénio fora da Terra. Mandela é o homem dos gestos inesquecíveis. Dos gestos simbólicos que o tempo apagará da memória, como quando, já Presidente, convidou para um chá Betsie Schoombie, viúva de Hendrik Verwoerd, primeiroministro entre 1958 e 1966 e ideólogo do apartheid, ou de quando decidiu manter como Mandela a caminho do seu julgamento em 1956 segurança pessoal da presidência os polícias brancos que herdara de Frederik de Klerk. Mas é acima de tudo o homem de um gesto estrutural que os livros de História vão contar por muitos séculos: dialogou com o inimigo e conseguiu com isso mudar o regime de um país. Nos anos 1980, o apartheid era o mais injusto e aparentemente insolúvel sistema político do mundo. Mandela descreveu-o como “o maior crime da era moderna a seguir ao Holocausto”. Travou a escalada de violência e evitou a guerra civil, fez a transição na África do Sul e, ao mesmo tempo, não se perpetuou no poder, mostrando a todos, dentro e fora do país, a importância de saber sair no momento certo. Mandela uniu o seu saber inato de que a “paz tem de ser feita com honra” a um saber que aprendeu na prisão: conseguir que o cérebro domine o sangue. Nas suas palavras: “A emoção dizianos: ‘A minoria branca é o nosso inimigo, nunca devemos falar com eles.’ Mas a cabeça dizianos: ‘Se não falares com eles, o país vai explodir em chamas. Tivemos de reconciliar esse conflito. Falarmos com o inimigo foi o resultado desse domínio da mente sobre a emoção.” Mandela não fez a ponte com o inimigo sozinho. O rio tem duas margens. Do outro lado estavam Neil Barnard, chefe dos serviços secretos, e o Presidente Botha. Os três deram o passo histórico que mudou o país e deixou uma lição de reconciliação ao mundo. Barnard e Botha souberam ler a realidade e perceber que sem um acordo político o país iria devorar-se a si próprio. Mandela soube dizer que sim ao primeiro convite de diálogo secreto. Barnard soube dar dignidade ao prisioneiro com quem secretamente falava. Mandela soube exigir falar directamente com Botha. O “velho crocodilo”, símbolo mundial do racismo, soube receber Mandela com respeito e até graciosidade. Mandela falou em Afrikaans no primeiro encontro. O objectivo das nossas vidas, sempre disse Mandela, é “sermos melhores do que o melhor de nós mesmos”. Bill Clinton, o mais africano dos Presidentes americanos e cujos mandatos na Casa Branca coincidiram com os de Mandela no Tuynhuys, resumiu o que era estar com Mandela: “Se ele conseguiu fazer tudo isto, enfrentar tudo isto e mesmo assim ter um sorriso na cara e uma canção no coração, quem sou eu para me queixar?” Mandela deixa um país com futuro. Mas também um país criticado por estar a viver um “triste declínio”, com a economia a perder fôlego, a corrupção a aumentar, a desigualdade social gritante. Deixa um desafio às novas gerações. Transformar a reconciliação em prosperidade. Ninguém sabe se vão conseguir. Sabemos apenas que, como hoje citamos Cícero, em 4013 citaremos Nelson Mandela.