SlideShare uma empresa Scribd logo
1 de 16
Jardins
Rubem Alves
Depois de uma longa espera
consegui, finalmente, plantar o
         meu jardim.

 Tive de esperar muito tempo
  porque jardins precisam de
       terra para existir.

   Mas terra eu não tinha.

De meu, eu só tinha o sonho.
Sei que é nos sonhos que os
  jardins existem, antes de
  existirem do lado de fora.

Um jardim é um sonho que virou
 realidade, revelação de nossa
  verdade interior escondida, a
   alma nua se oferecendo ao
     deleite dos outros, sem
       vergonha alguma...
Mas os sonhos, sendo coisas belas, são coisas fracas.
Sozinhos, eles nada podem fazer: pássaros sem asas...
Os sonhos viviam dentro de mim.
Eram posse minha. Mas a terra não me pertencia.




                            O terreno ficava ao lado da minha
                              casa, apertado, sem espaço,
                                       entre muros.

                              Era baldio, cheio de lixo, mato,
                              espinhos, garrafas quebradas,
                                    latas enferrujadas.

                               Quando o sonho apertava eu
                              encostava a escada no muro e
                                    ficava espiando.
Com os olhos eu via as coisas feias. Com o nariz sentia o seu fedor.
          Era o que estava lá, a dura “realidade” presente.
                Mas a imaginação é coisa mágica.
         Tem o poder para ver e cheirar o que está ausente.




Assim, graças aos seus poderes mágicos, eu via o meu jardim ausente
              e sentia os cheiro de suas flores e ervas.
Mas um dia o inesperado
aconteceu. O terreno ficou meu.

 O meu sonho fez amor com a
   terra e o jardim nasceu.

    Não chamei paisagista.
 Paisagistas são especialistas
em jardins bonitos, mas não era
      isso que eu queria.

 Queria um jardim que falasse.

  Pois você não sabe que os
        jardins falam?
É preciso ter saudades para saber... Somente quem tem saudades entende os
                             recados dos jardins.
Não chamei um paisagista porque, por competente que fosse, ele não podia ouvir
                          os recados que eu ouvia.
As saudades dele não eram as saudades minhas.
      Até que ele poderia fazer um jardim mais bonito que o meu.




Paisagistas são especialistas em estéticas: tomam as cores e as formas
       e constroem cenários com as plantas no espaço exterior.
Mas não era bem isto que eu queria.




                        Queria o jardim dos meus
                       sonhos, aquele que existia
                      dentro de mim como saudade.

                      O que eu buscava não era a
                      estética dos espaços de fora;
                             era a poética dos
                           espaços de dentro.
Eu queria fazer ressuscitar o encanto de jardins passados,
       de felicidades perdidas, de alegrias já idas.

             “Em busca do tempo perdido...”
Uma pessoa, comentando este
 meu jeito de ser, escreveu:
 “Coitado do Rubem! Ficou
melancólico. Dele não mais se
pode esperar coisa alguma...”

       Não entendeu.

Pois melancolia é justamente
 o oposto: ficar chorando as
 alegrias perdidas, num luto
permanente, sem a esperança
   de que elas possam ser
       de novo criadas.
Aceitar como palavra final o veredito da realidade, do terreno baldio, do deserto.

Saudade é a dor que se sente quando se percebe a distância que existe entre o
                            sonho e a realidade.
Mais do que isto: é compreender que a felicidade só voltará
quando a realidade for transformada pelo sonho, quando o sonho se
                     transformar em realidade.
Entendem agora por que um paisagista seria inútil?
Para fazer o meu jardim, ele teria que ser capaz de sonhar os meus sonhos...




                                                                 Rubem
                                                                 Alves
Formatação: Christina Meirelles Neves

Mais conteúdo relacionado

Mais procurados

Mais procurados (16)

Fernando pessoa poemas fundamentais
Fernando pessoa poemas fundamentaisFernando pessoa poemas fundamentais
Fernando pessoa poemas fundamentais
 
Fernando pessoa poema
Fernando pessoa   poemaFernando pessoa   poema
Fernando pessoa poema
 
"Cansa sentir quando se pensa" - Fernando Pessoa Ortónimo
"Cansa sentir quando se pensa" - Fernando Pessoa Ortónimo"Cansa sentir quando se pensa" - Fernando Pessoa Ortónimo
"Cansa sentir quando se pensa" - Fernando Pessoa Ortónimo
 
P U R A V E R D A D E
P U R A  V E R D A D EP U R A  V E R D A D E
P U R A V E R D A D E
 
Amanha pode ser tarde
Amanha pode ser tardeAmanha pode ser tarde
Amanha pode ser tarde
 
Os versos que te dou
Os versos que te douOs versos que te dou
Os versos que te dou
 
Poemas de Fernando Pessoa
Poemas de Fernando PessoaPoemas de Fernando Pessoa
Poemas de Fernando Pessoa
 
Saudades E LembrançAs
Saudades E LembrançAsSaudades E LembrançAs
Saudades E LembrançAs
 
Toma lá poesia folhetos de promoção do concurso literário 2008-2009 - escol...
Toma lá poesia   folhetos de promoção do concurso literário 2008-2009 - escol...Toma lá poesia   folhetos de promoção do concurso literário 2008-2009 - escol...
Toma lá poesia folhetos de promoção do concurso literário 2008-2009 - escol...
 
Se houver amanha
Se houver amanhaSe houver amanha
Se houver amanha
 
10
1010
10
 
So Voce
So VoceSo Voce
So Voce
 
A Arte De Rarindra Prakarsa
A Arte De Rarindra  PrakarsaA Arte De Rarindra  Prakarsa
A Arte De Rarindra Prakarsa
 
Cinema e Video
Cinema e VideoCinema e Video
Cinema e Video
 
Monsaraz
MonsarazMonsaraz
Monsaraz
 
Monsaraz
MonsarazMonsaraz
Monsaraz
 

Destaque

Destaque (20)

Lindo Jardim
Lindo JardimLindo Jardim
Lindo Jardim
 
114931112 espiral-de-ervas
114931112 espiral-de-ervas114931112 espiral-de-ervas
114931112 espiral-de-ervas
 
Jardins renascentistas
Jardins renascentistasJardins renascentistas
Jardins renascentistas
 
3. Paisagismo - Evolução Histórica II
3. Paisagismo - Evolução Histórica II3. Paisagismo - Evolução Histórica II
3. Paisagismo - Evolução Histórica II
 
Breve histórico do paisagismo no mundo_parte 01
Breve histórico do paisagismo no mundo_parte 01Breve histórico do paisagismo no mundo_parte 01
Breve histórico do paisagismo no mundo_parte 01
 
Muito Alem do Jardim
Muito Alem do JardimMuito Alem do Jardim
Muito Alem do Jardim
 
Vamos plantar!
Vamos plantar!Vamos plantar!
Vamos plantar!
 
Cartilha agricultura urbana na pratica baixa resolução
Cartilha agricultura urbana na pratica baixa resoluçãoCartilha agricultura urbana na pratica baixa resolução
Cartilha agricultura urbana na pratica baixa resolução
 
Mosaico arara
Mosaico araraMosaico arara
Mosaico arara
 
Poema de Rubem Alves
Poema de Rubem AlvesPoema de Rubem Alves
Poema de Rubem Alves
 
Girassol
GirassolGirassol
Girassol
 
Amazing gardens around the world
Amazing gardens around the worldAmazing gardens around the world
Amazing gardens around the world
 
Amendoim ornamental
Amendoim ornamentalAmendoim ornamental
Amendoim ornamental
 
Contribuição do jbiac 2009
Contribuição do jbiac 2009Contribuição do jbiac 2009
Contribuição do jbiac 2009
 
A Europa vista do alto
A Europa vista do altoA Europa vista do alto
A Europa vista do alto
 
Jardim botânico rj
Jardim botânico   rjJardim botânico   rj
Jardim botânico rj
 
CONSERVAÇÃO DE Victoria amazonica (NYMPHEACEAE) NO JARDIM BOTÂNICO PLANTARUM
CONSERVAÇÃO DE Victoria amazonica (NYMPHEACEAE) NO JARDIM BOTÂNICO PLANTARUM CONSERVAÇÃO DE Victoria amazonica (NYMPHEACEAE) NO JARDIM BOTÂNICO PLANTARUM
CONSERVAÇÃO DE Victoria amazonica (NYMPHEACEAE) NO JARDIM BOTÂNICO PLANTARUM
 
Jardins Novo Higienópolis
Jardins Novo HigienópolisJardins Novo Higienópolis
Jardins Novo Higienópolis
 
Fotos.incriveis
Fotos.incriveisFotos.incriveis
Fotos.incriveis
 
Ensaio sobre a palavra amor
Ensaio sobre a palavra amorEnsaio sobre a palavra amor
Ensaio sobre a palavra amor
 

Mais de Amadeu Wolff

Aos filhos o que posso
Aos filhos o que possoAos filhos o que posso
Aos filhos o que possoAmadeu Wolff
 
Apresentacoes em telas e poesias
Apresentacoes em telas e poesiasApresentacoes em telas e poesias
Apresentacoes em telas e poesiasAmadeu Wolff
 
Mulheres com mais de 40
Mulheres com mais de 40Mulheres com mais de 40
Mulheres com mais de 40Amadeu Wolff
 
Museu das capelas medici
Museu das capelas mediciMuseu das capelas medici
Museu das capelas mediciAmadeu Wolff
 
Porcelana de coleccion
Porcelana de coleccionPorcelana de coleccion
Porcelana de coleccionAmadeu Wolff
 
Porcelana de coleccion 2
Porcelana de coleccion 2Porcelana de coleccion 2
Porcelana de coleccion 2Amadeu Wolff
 
Israel ou Palestina
Israel ou PalestinaIsrael ou Palestina
Israel ou PalestinaAmadeu Wolff
 
Navidad en las canteras
Navidad en las canterasNavidad en las canteras
Navidad en las canterasAmadeu Wolff
 
Arte foto de gerard hourdin
Arte foto de gerard  hourdinArte foto de gerard  hourdin
Arte foto de gerard hourdinAmadeu Wolff
 

Mais de Amadeu Wolff (20)

Italie la nuit
Italie la nuitItalie la nuit
Italie la nuit
 
Aos filhos o que posso
Aos filhos o que possoAos filhos o que posso
Aos filhos o que posso
 
Apresentacoes em telas e poesias
Apresentacoes em telas e poesiasApresentacoes em telas e poesias
Apresentacoes em telas e poesias
 
George petty
George pettyGeorge petty
George petty
 
Mulheres com mais de 40
Mulheres com mais de 40Mulheres com mais de 40
Mulheres com mais de 40
 
Museo tiflologico
Museo tiflologicoMuseo tiflologico
Museo tiflologico
 
Museu das capelas medici
Museu das capelas mediciMuseu das capelas medici
Museu das capelas medici
 
Parabens a voce
Parabens a voceParabens a voce
Parabens a voce
 
Porcelana de coleccion
Porcelana de coleccionPorcelana de coleccion
Porcelana de coleccion
 
Porcelana de coleccion 2
Porcelana de coleccion 2Porcelana de coleccion 2
Porcelana de coleccion 2
 
Israel ou Palestina
Israel ou PalestinaIsrael ou Palestina
Israel ou Palestina
 
Navidad en las canteras
Navidad en las canterasNavidad en las canteras
Navidad en las canteras
 
L'amour courtois
L'amour courtoisL'amour courtois
L'amour courtois
 
Donald zolan
Donald zolanDonald zolan
Donald zolan
 
Chocolates
ChocolatesChocolates
Chocolates
 
Artista de rua
Artista de ruaArtista de rua
Artista de rua
 
Artesãos hindus
Artesãos hindusArtesãos hindus
Artesãos hindus
 
Arte foto de gerard hourdin
Arte foto de gerard  hourdinArte foto de gerard  hourdin
Arte foto de gerard hourdin
 
Arte em pinturas
Arte em pinturasArte em pinturas
Arte em pinturas
 
A fuga do judeu
A fuga do judeuA fuga do judeu
A fuga do judeu
 

O jardim dos sonhos

  • 2. Depois de uma longa espera consegui, finalmente, plantar o meu jardim. Tive de esperar muito tempo porque jardins precisam de terra para existir. Mas terra eu não tinha. De meu, eu só tinha o sonho.
  • 3. Sei que é nos sonhos que os jardins existem, antes de existirem do lado de fora. Um jardim é um sonho que virou realidade, revelação de nossa verdade interior escondida, a alma nua se oferecendo ao deleite dos outros, sem vergonha alguma...
  • 4. Mas os sonhos, sendo coisas belas, são coisas fracas. Sozinhos, eles nada podem fazer: pássaros sem asas...
  • 5. Os sonhos viviam dentro de mim. Eram posse minha. Mas a terra não me pertencia. O terreno ficava ao lado da minha casa, apertado, sem espaço, entre muros. Era baldio, cheio de lixo, mato, espinhos, garrafas quebradas, latas enferrujadas. Quando o sonho apertava eu encostava a escada no muro e ficava espiando.
  • 6. Com os olhos eu via as coisas feias. Com o nariz sentia o seu fedor. Era o que estava lá, a dura “realidade” presente. Mas a imaginação é coisa mágica. Tem o poder para ver e cheirar o que está ausente. Assim, graças aos seus poderes mágicos, eu via o meu jardim ausente e sentia os cheiro de suas flores e ervas.
  • 7. Mas um dia o inesperado aconteceu. O terreno ficou meu. O meu sonho fez amor com a terra e o jardim nasceu. Não chamei paisagista. Paisagistas são especialistas em jardins bonitos, mas não era isso que eu queria. Queria um jardim que falasse. Pois você não sabe que os jardins falam?
  • 8. É preciso ter saudades para saber... Somente quem tem saudades entende os recados dos jardins. Não chamei um paisagista porque, por competente que fosse, ele não podia ouvir os recados que eu ouvia.
  • 9. As saudades dele não eram as saudades minhas. Até que ele poderia fazer um jardim mais bonito que o meu. Paisagistas são especialistas em estéticas: tomam as cores e as formas e constroem cenários com as plantas no espaço exterior.
  • 10. Mas não era bem isto que eu queria. Queria o jardim dos meus sonhos, aquele que existia dentro de mim como saudade. O que eu buscava não era a estética dos espaços de fora; era a poética dos espaços de dentro.
  • 11. Eu queria fazer ressuscitar o encanto de jardins passados, de felicidades perdidas, de alegrias já idas. “Em busca do tempo perdido...”
  • 12. Uma pessoa, comentando este meu jeito de ser, escreveu: “Coitado do Rubem! Ficou melancólico. Dele não mais se pode esperar coisa alguma...” Não entendeu. Pois melancolia é justamente o oposto: ficar chorando as alegrias perdidas, num luto permanente, sem a esperança de que elas possam ser de novo criadas.
  • 13. Aceitar como palavra final o veredito da realidade, do terreno baldio, do deserto. Saudade é a dor que se sente quando se percebe a distância que existe entre o sonho e a realidade.
  • 14. Mais do que isto: é compreender que a felicidade só voltará quando a realidade for transformada pelo sonho, quando o sonho se transformar em realidade.
  • 15. Entendem agora por que um paisagista seria inútil? Para fazer o meu jardim, ele teria que ser capaz de sonhar os meus sonhos... Rubem Alves