Sendo a cibercultura a cultura dominante da nossa sociedade pós-massiva, é razoável supor que seus elementos influenciem os produtos desta cultura, mesmo os não-massivos, como a publicidade de moda veiculada em revistas. Partindo desta premissa, este trabalho busca verificar a presença de aspectos da cibercultura em anúncios de marcas de vestuário feminino veiculados na revista Elle, especialmente as concepções de corpo protético e remodelado. A análise, feita na edição de julho de 2010 da revista, revela a presença destas concepções nos anúncios, ainda que algumas sejam mais sutis, devido à necessidade de aceitação dos anúncios e dos produtos pelas consumidoras.
1. Corpos protéticos e corpos remodelados:
elementos da cibercultura em anúncios
publicitários de moda feminina na revista Elle.
Adriana Tulio Baggio
Faculdade Internacional de Curitiba
XXXIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação
2. Cibercultura como a cultura atual
Não se deve encarar a cibercultura como uma subcultura específica, porque
hoje ela é a nova forma da cultura (LÉVY citado por LEMOS, 2008).
Estabelecimento da cibercultura nas décadas de 1980 e 1990; os conceitos e
os elementos associados a ela passaram a fazer parte do espírito do tempo
da época. É a quarta fase da cibercultura, “caracterizada pela
popularização do ciberespaço e sua inserção na cultura
contemporânea” (LEMOS, 2008, p. 102).
“A cibercultura não se dinamiza apenas quando usuários ligam o
computador. O ciberespaço e a cultura que ele gera não se limitam ao
desktop” (SANTAELLA, 2003, p. 104).
3. A proposta
Na medida em que a cibercultura é a sociedade atual, é nesta sociedade que
diversos discursos vão buscar suas influências, inspirações e matéria-
prima, inclusive os offline.
A proposta deste trabalho é verificar a presença de temas da cibercultura,
especificamente aqueles relacionados aos pós-humanismo, em anúncios
publicitários de moda feminina veiculados na revista Elle.
4. Publicidade (discurso massivo) e cibercultura
Publicidade:
- caráter de massa, em oposição à comunicação dirigida;
- objetivo de venda;
- fenômeno ligado à indústria cultural, cujo funcionamento e existência
acaba intermediando.
Cultura digital pós-massiva x cultura industrial massiva >>> reconfiguração
e remediação, alternância entre processos massivos e pós-massivos >>>
característica da cibercultura (LEMOS, 2009).
A cibercultura como “um cenário avançado ou high-tech da cultura de
massas e da indústria cultural [...]. Na verdade, a cibercultura recicla o
folclore mercantil da era das massas, embora também veicule uma
alternativa” (RÜDIGER, 2008, p. 27).
5. Ciborgues e pós-humanos - do literal ao
metafórico
- Ciborgues míticos do cinema >> Blade Runner, Robocop;
- cyberpunk >> “corpos modificados, tatuados, perfurados, mixados de
sangue, placas de silício e circuitos metálicos” (AMARAL, 2006, p. 77);
- ciborgues da vida real >> Kevin Warwick, Wendy Carlos, Stephen Hawking
(RÜDIGER, 2008);
- neste final de século XX, somos todos ciborgues >> híbridos teorizados e
fabricados de máquina e organismo (HARAWAY, 1991).
- ciborgue real ou mitológico >> estamos no limite do corpo humano,
primeiro sinal do pós-humanismo (RÜDIGER, 2008).
6. Classificações para análise
Lucia Santaella (2003; 2004) - corpo biocibernético
Corpos protéticos: ampliação das funções sensoriais e substituição ou ampliação
das funções orgânicas.
Corpos remodelados: plásticas, tatuagens, piercing.
Cristiane Mesquita (2004) - roupa e Moda como recurso de interferência e
modificação do corpo
Próteses reais: criações que modificam o corpo, seja de forma real (meia-calça e
sutiãs com enchimento) ou metafórica (roupa com bolso para celular, que acoplaria
ao corpo um canal de comunicação permanente).
Próteses imaginárias: próteses subjetivas - conceitos e valores que a marca
transmite por meio da publicidade e que o consumidor pode “vestir” para modificar
sua auto-imagem.
Suzana Avelar (2009) - apropriação do pós-humano pela Moda
Silhuetas peculiares: possibilidades geradas pela união homem-máquina, de fato ou
em nossa imaginação, diferentes de todas as anteriormente vistas.
8. A roupa como prótese - final século XX
Quando a moda passa a integrar os elementos e processos associados ao
pós-humano, tais desenvolvimentos já se tornaram parte do nosso dia a dia.
(AVELAR, 2009, p. 139)
Uma secretária de futuro, 1988
9. Análise dos anúncios - metodologia
Elle x Vogue: popular x conceitual.
Recorte: anúncios de marcas de
vestuário feminino brasileiras.
Edição de julho 2010: 246 páginas, 33
anúncios, 8 dentro dos critérios.
Análise da representação das roupas e
dos elementos do anúncio.
10. Cenário árido e hostil (versus
campanha verão.
[imaginário ciborgue]
Macacão de formas soltas e
fluidas, comprimidas por um
largo cinto de couro marcando a
cintura: parecem deixar o corpo
livre e natural, mas há uma
remodelação da anatomia pelo
cinto largo e rígido.
Funciona como uma espécie de
espartilho ao comprimir e
estruturar o tronco.
[corpo remodelado]
11. Sugestão: despojamento,
liberdade, natureza; a marca não
coaduna com as pressões de
modelar ou modificar a anatomia
feminina.
Por outro lado: tecido revela as
formas; modelagem frouxa não
“segura”; decote inviabiliza o uso
de sutiã >> não modela nem
modifica o corpo, mas
pressupõe que ele tenha
nascido ou tenha se tornado
perfeito para poder vesti-la.
[corpo remodelado]
Técnicas corporais complexas
sugeridas pela indumentária
(MALYSSE, 2008).
12. Ambiente hostil, escuro e sombrio.
Postura tensa; vigilância e fuga
(versus campanha verão).
[imaginário ciborgue]
Cinto largo, modela a cintura; calça
jeans ajustada. [corpo remodelado]
Pulseiras largas,
pesadas.
[corpo protético]
Tatuagem;
cabelos
descoloridos.
[corpo
remodelado]
13. Romântico x agressivo:
rosto rosado; lábios suaves;
vestido claro; detalhes em crochê;
pregas e babados; cintura estilo
império; pingente de coração
versus
dreadlock; olhos marcados de
preto; sorriso irônico; pingentes
grandes e pesados; presos por
correntes grossas; cenário
“pichado”.
Estética “malvada” >> marca
Sinistra >> para boas meninas que
desejam apimentar um pouco mais
sua imagem.
[prótese imaginária]
14. Predomínio do dourado; look
ajustado, modelando o corpo
com suavidade.
Dourado parece servir para
agregar mais valor a peças de
“modinha” >> uma prótese
para a roupa, revestindo-a de
um valor superficial; uma
prótese para tornar o corpo da
consumidora mais “precioso”
e “brilhante”.
[corpo protético]
15. Simplicidade e suavidade:
vestido de algodão com
estampas pequenas, cores
suaves e debruns em verde;
cenário em tons claros; cavalo
branco.
versus
Luxo e exagero: colar de
correntes douradas; pingente
enorme em pedra. Artefato
protético, amuleto mágico, revela
a princesa que existe na
camponesa.
[corpo protético]
Debruns em verde: estruturam a
cintura e o decote.
[corpo remodelado]
16. Cenário de verão.
Tomara-que-caia de tecido elástico
e com alguma firmeza; calça jeans
ajustada, desbotada, rasgada >>
remodelam o corpo.
Calça jeans “destruída” >> jeans
cumpre função remodeladora há
muito tempo.
Gasta, mesmo sendo nova >>
sugere todas as batalhas que as
calças jeans já enfrentaram para
diminuir quadris, segurar
abdômens, levantar bumbuns.
[corpo remodelado]
17. Postura: silhueta sinuosa e
sensual, dificilmente suportável
pelo corpo humano em condições
normais.
Os braços cruzados não apenas
cobrem como levantam os seios,
reproduzindo o efeito de corsets e
espartilhos >> a proposta de uma
roupa sensual não precisa ser
ilustrada pela própria roupa.
Os braços da modelo são o
instrumento que modifica seu
corpo.
[corpo remodelado]
18. Os corpos encontrados
Imaginário ciborgue >> 2 ocorrências >> Aha (cenário árido, de guerra) e Six One
(cenário hostil, referência à Tina Turner de Mad Max).
Corpo protético >> 3 ocorrências >> Six One (pulseiras como reforço do punho),
Jô Fashion (o dourado) e Chita Brasil (colar).
Corpo remodelado >> 6 ocorrências >> Aha (cinto), Six One (cinto, cabelo
descolorido, tatuagem), Chita Brasil (debruns estruturantes), KNT Jeans (top justo e
calça jeans), Carmim (postura e braços remodelando) e Reserva Natural (corpo
perfeito potencial).
Prótese imaginária >> 1 ocorrência >> Sinistra (promessa de um estilo
“malvado”).
Silhuetas peculiares >> não estão presentes nos anúncios aqui analisados. Por
aproximação, Aha (macacão largo e bolsos enormes; modelagem menos comum
porque “engorda”).
19. Considerações e questões
Escolha de modelos específicos >> abrangência das teorias, elasticidade
do conceito de hibridização homem-máquina; parece que sempre haverá a
presença do pós-humano na moda e em sua publicidade.
Predominância do corpo remodelado >> moda buscando parte da verba
que as mulheres estão gastando com opções para interferência no corpo.
Imaginário ciborgue >> ambientes mais pessimistas não combinam com a
“alegria” da primavera/verão. Um espírito do tempo mais carregado e
desiludido, como uma narrativa cyberpunk?
Ausência de silhuetas diferentes >> moda comercial e publicidade de
massa, precisam ser aceitas pelos consumidores. Muita inovação = rejeição.
Presença de elementos da cibercultura/pós-humanismo >> diluída em
conceitos facilmente assimiláveis pelo consumidor.