SlideShare uma empresa Scribd logo
1 de 1
A Noite É Muito Escura
É noite. A noite é muito escura. Numa casa a uma grande distância
Brilha a luz duma janela.
Vejo-a, e sinto-me humano dos pés à cabeça.
É curioso que toda a vida do indivíduo que ali mora, e que não sei quem é,
Atrai-me só por essa luz vista de longe.
Sem dúvida que a vida dele é real e ele tem cara, gestos, família e profissão.

Mas agora só me importa a luz da janela dele.
Apesar de a luz estar ali por ele a ter acendido,
A luz é a realidade imediata para mim.
Eu nunca passo para além da realidade imediata.
Para além da realidade imediata não há nada.
Se eu, de onde estou, só veio aquela luz,
Em relação à distância onde estou há só aquela luz.
O homem e a família dele são reais do lado de lá da janela.
Eu estou do lado de cá, a uma grande distância.
A luz apagou-se.
Que me importa que o homem continue a existir?

Alberto Caeiro, in "Poemas Inconjuntos"
Heterónimo de Fernando Pessoa

…………………………………………………………………………


                                Se Depois de Eu Morrer
          Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia,
          Não há nada mais simples
          Tem só duas datas — a da minha nascença e a da minha morte.
          Entre uma e outra cousa todos os dias são meus.

          Sou fácil de definir.
          Vi como um danado.
          Amei as cousas sem sentimentalidade nenhuma.
          Nunca tive um desejo que não pudesse realizar, porque nunca ceguei.
          Mesmo ouvir nunca foi para mim senão um acompanhamento de ver.
          Compreendi que as cousas são reais e todas diferentes umas das outras;
          Compreendi isto com os olhos, nunca com o pensamento.
          Compreender isto corri o pensamento seria achá-las todas iguais.

          Um dia deu-me o sono como a qualquer criança.
          Fechei os olhos e dormi.
          Além disso, fui o único poeta da Natureza.

Mais conteúdo relacionado

Mais procurados

Fernando Pessoa o mistério das coisas
Fernando Pessoa   o mistério das coisasFernando Pessoa   o mistério das coisas
Fernando Pessoa o mistério das coisasAmadeu Wolff
 
Fernando pessoa o mistério das coisas
Fernando pessoa   o mistério das coisasFernando pessoa   o mistério das coisas
Fernando pessoa o mistério das coisasAmadeu Wolff
 
A arte de vladimir volegov
A arte de vladimir volegovA arte de vladimir volegov
A arte de vladimir volegovrosejatoba
 
001 assombração no meu quarto
001 assombração no meu quarto001 assombração no meu quarto
001 assombração no meu quartoKlinger23
 
O livro dos mistérios da coruja
O livro dos mistérios da coruja O livro dos mistérios da coruja
O livro dos mistérios da coruja Andre Carvalho
 

Mais procurados (9)

Fernando Pessoa o mistério das coisas
Fernando Pessoa   o mistério das coisasFernando Pessoa   o mistério das coisas
Fernando Pessoa o mistério das coisas
 
Fernando pessoa o mistério das coisas
Fernando pessoa   o mistério das coisasFernando pessoa   o mistério das coisas
Fernando pessoa o mistério das coisas
 
Ao longe ao luar
Ao longe ao luarAo longe ao luar
Ao longe ao luar
 
A arte de vladimir volegov
A arte de vladimir volegovA arte de vladimir volegov
A arte de vladimir volegov
 
O Reflexo e a Sombra
O Reflexo e a SombraO Reflexo e a Sombra
O Reflexo e a Sombra
 
Poemas ms-odédemim
Poemas   ms-odédemimPoemas   ms-odédemim
Poemas ms-odédemim
 
001 assombração no meu quarto
001 assombração no meu quarto001 assombração no meu quarto
001 assombração no meu quarto
 
Estado de absurdo constante
Estado de absurdo constanteEstado de absurdo constante
Estado de absurdo constante
 
O livro dos mistérios da coruja
O livro dos mistérios da coruja O livro dos mistérios da coruja
O livro dos mistérios da coruja
 

Semelhante a A noite é muito escura

Fernando pessoapower-point-1194882549569493-5
Fernando pessoapower-point-1194882549569493-5Fernando pessoapower-point-1194882549569493-5
Fernando pessoapower-point-1194882549569493-5Sara Silva
 
Fernando Pessoa(Power Point)
Fernando Pessoa(Power Point)Fernando Pessoa(Power Point)
Fernando Pessoa(Power Point)guestbf51a0
 
Fernando Pessoa(Power Point)
Fernando Pessoa(Power Point)Fernando Pessoa(Power Point)
Fernando Pessoa(Power Point)guestcb31cc
 
Aprendendon A Olhar Com Alberto Caeiro
Aprendendon A Olhar Com Alberto CaeiroAprendendon A Olhar Com Alberto Caeiro
Aprendendon A Olhar Com Alberto CaeiroEspacoinovarte
 
Angels in caution o renascer - lo libro - cito qasveheôt
Angels in caution   o renascer - lo libro - cito qasveheôtAngels in caution   o renascer - lo libro - cito qasveheôt
Angels in caution o renascer - lo libro - cito qasveheôtOseias S S Luz
 
BIOGRAFIA DA POETISA CECILIA MEIRELES.pptx
BIOGRAFIA DA POETISA CECILIA MEIRELES.pptxBIOGRAFIA DA POETISA CECILIA MEIRELES.pptx
BIOGRAFIA DA POETISA CECILIA MEIRELES.pptxMarlene Cunhada
 
1 Aprendendo A Olhar Com Alberto Caeiro
1 Aprendendo A Olhar Com Alberto Caeiro1 Aprendendo A Olhar Com Alberto Caeiro
1 Aprendendo A Olhar Com Alberto Caeiroguest71f8245
 
Aprendendo A Olhar Com Alberto Caeiro
Aprendendo A Olhar Com Alberto CaeiroAprendendo A Olhar Com Alberto Caeiro
Aprendendo A Olhar Com Alberto Caeirovida simples
 
Alessandro d'avenia branca como o leite, vermelha como o sangue
Alessandro d'avenia   branca como o leite, vermelha como o sangueAlessandro d'avenia   branca como o leite, vermelha como o sangue
Alessandro d'avenia branca como o leite, vermelha como o sangueLudmila Moreira
 
Calendário Mensal: Agosto 2010
Calendário Mensal: Agosto 2010Calendário Mensal: Agosto 2010
Calendário Mensal: Agosto 2010Gisele Santos
 
"A Destinada" - Paula Ottoni (Cap. 1)
"A Destinada" - Paula Ottoni (Cap. 1)"A Destinada" - Paula Ottoni (Cap. 1)
"A Destinada" - Paula Ottoni (Cap. 1)paulaottoni
 
Tabacaria - Álvaro de Campos
Tabacaria - Álvaro de CamposTabacaria - Álvaro de Campos
Tabacaria - Álvaro de CamposAMLDRP
 
Angelus in caution o libro - cenário 01 - a5
Angelus in caution   o libro - cenário 01 - a5Angelus in caution   o libro - cenário 01 - a5
Angelus in caution o libro - cenário 01 - a5Oseias S S Luz
 
Angelus in caution o libro - cenário 01 - a5
Angelus in caution   o libro - cenário 01 - a5Angelus in caution   o libro - cenário 01 - a5
Angelus in caution o libro - cenário 01 - a5Oseias S S Luz
 

Semelhante a A noite é muito escura (20)

45
4545
45
 
Fernando pessoapower-point-1194882549569493-5
Fernando pessoapower-point-1194882549569493-5Fernando pessoapower-point-1194882549569493-5
Fernando pessoapower-point-1194882549569493-5
 
Fernando Pessoa(Power Point)
Fernando Pessoa(Power Point)Fernando Pessoa(Power Point)
Fernando Pessoa(Power Point)
 
Fernando Pessoa(Power Point)
Fernando Pessoa(Power Point)Fernando Pessoa(Power Point)
Fernando Pessoa(Power Point)
 
Alberto Caeiro
Alberto CaeiroAlberto Caeiro
Alberto Caeiro
 
Fernando Pessoa
Fernando  PessoaFernando  Pessoa
Fernando Pessoa
 
Aprendendon A Olhar Com Alberto Caeiro
Aprendendon A Olhar Com Alberto CaeiroAprendendon A Olhar Com Alberto Caeiro
Aprendendon A Olhar Com Alberto Caeiro
 
Angels in caution o renascer - lo libro - cito qasveheôt
Angels in caution   o renascer - lo libro - cito qasveheôtAngels in caution   o renascer - lo libro - cito qasveheôt
Angels in caution o renascer - lo libro - cito qasveheôt
 
BIOGRAFIA DA POETISA CECILIA MEIRELES.pptx
BIOGRAFIA DA POETISA CECILIA MEIRELES.pptxBIOGRAFIA DA POETISA CECILIA MEIRELES.pptx
BIOGRAFIA DA POETISA CECILIA MEIRELES.pptx
 
PINTURAS E POESIAS
PINTURAS E POESIASPINTURAS E POESIAS
PINTURAS E POESIAS
 
1 Aprendendo A Olhar Com Alberto Caeiro
1 Aprendendo A Olhar Com Alberto Caeiro1 Aprendendo A Olhar Com Alberto Caeiro
1 Aprendendo A Olhar Com Alberto Caeiro
 
Aprendendo A Olhar Com Alberto Caeiro
Aprendendo A Olhar Com Alberto CaeiroAprendendo A Olhar Com Alberto Caeiro
Aprendendo A Olhar Com Alberto Caeiro
 
A Luz e a Escuridão
A Luz e a Escuridão A Luz e a Escuridão
A Luz e a Escuridão
 
Alessandro d'avenia branca como o leite, vermelha como o sangue
Alessandro d'avenia   branca como o leite, vermelha como o sangueAlessandro d'avenia   branca como o leite, vermelha como o sangue
Alessandro d'avenia branca como o leite, vermelha como o sangue
 
Calendário Mensal: Agosto 2010
Calendário Mensal: Agosto 2010Calendário Mensal: Agosto 2010
Calendário Mensal: Agosto 2010
 
"A Destinada" - Paula Ottoni (Cap. 1)
"A Destinada" - Paula Ottoni (Cap. 1)"A Destinada" - Paula Ottoni (Cap. 1)
"A Destinada" - Paula Ottoni (Cap. 1)
 
Tabacaria - Álvaro de Campos
Tabacaria - Álvaro de CamposTabacaria - Álvaro de Campos
Tabacaria - Álvaro de Campos
 
ESCRITOS
ESCRITOSESCRITOS
ESCRITOS
 
Angelus in caution o libro - cenário 01 - a5
Angelus in caution   o libro - cenário 01 - a5Angelus in caution   o libro - cenário 01 - a5
Angelus in caution o libro - cenário 01 - a5
 
Angelus in caution o libro - cenário 01 - a5
Angelus in caution   o libro - cenário 01 - a5Angelus in caution   o libro - cenário 01 - a5
Angelus in caution o libro - cenário 01 - a5
 

A noite é muito escura

  • 1. A Noite É Muito Escura É noite. A noite é muito escura. Numa casa a uma grande distância Brilha a luz duma janela. Vejo-a, e sinto-me humano dos pés à cabeça. É curioso que toda a vida do indivíduo que ali mora, e que não sei quem é, Atrai-me só por essa luz vista de longe. Sem dúvida que a vida dele é real e ele tem cara, gestos, família e profissão. Mas agora só me importa a luz da janela dele. Apesar de a luz estar ali por ele a ter acendido, A luz é a realidade imediata para mim. Eu nunca passo para além da realidade imediata. Para além da realidade imediata não há nada. Se eu, de onde estou, só veio aquela luz, Em relação à distância onde estou há só aquela luz. O homem e a família dele são reais do lado de lá da janela. Eu estou do lado de cá, a uma grande distância. A luz apagou-se. Que me importa que o homem continue a existir? Alberto Caeiro, in "Poemas Inconjuntos" Heterónimo de Fernando Pessoa ………………………………………………………………………… Se Depois de Eu Morrer Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia, Não há nada mais simples Tem só duas datas — a da minha nascença e a da minha morte. Entre uma e outra cousa todos os dias são meus. Sou fácil de definir. Vi como um danado. Amei as cousas sem sentimentalidade nenhuma. Nunca tive um desejo que não pudesse realizar, porque nunca ceguei. Mesmo ouvir nunca foi para mim senão um acompanhamento de ver. Compreendi que as cousas são reais e todas diferentes umas das outras; Compreendi isto com os olhos, nunca com o pensamento. Compreender isto corri o pensamento seria achá-las todas iguais. Um dia deu-me o sono como a qualquer criança. Fechei os olhos e dormi. Além disso, fui o único poeta da Natureza.