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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA 
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS 
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA 
THIAGO PINTO LOBÃO MUNIZ DE SOUZA 
A RELAÇÃO HOMEM E NATUREZA SOB A LUZ DAS ALIENAÇÕES DA ERA MODERNA DESCRITAS POR HANNAH ARENDT 
SALVADOR, BAHIA, BRASIL 
2014
THIAGO PINTO LOBÃO MUNIZ DE SOUZA 
A RELAÇÃO HOMEM E NATUREZA SOB A LUZ DAS ALIENAÇÕES DA ERA MODERNA DESCRITAS POR HANNAH ARENDT 
Monografia apresentada ao departamento de Filosofia, do curso de graduação em Filosofia, da Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, como requisito parcial para obtenção do grau de bacharel em Filosofia. 
Orientação: Profa. Nancy Mangabeira Unger. 
SALVADOR, BAHIA, BRASIL 
2014
FICHA CATALOGRÁFICA
THIAGO PINTO LOBÃO MUNIZ DE SOUZA 
A RELAÇÃO HOMEM E NATUREZA SOB A LUZ DAS ALIENAÇÕES DA ERA MODERNA DESCRITAS POR HANNAH ARENDT 
Monografia apresentada ao departamento de Filosofia, do curso de graduação em Filosofia, da Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, como requisito parcial para obtenção do grau de bacharel em Filosofia. 
Orientação: Profa. Nancy Mangabeira Unger 
COMISSÃO EXAMINADORA: 
_____________________________________ 
Profa. Dra. Nancy Mangabeira Unger 
Universidade Federal da Bahia 
_____________________________________ 
Profa Dra Vanessa Sievers de Almeida 
Universidade Federal da Bahia 
_____________________________________ 
Prof. Dr. Mauro Castelo Branco de Moura 
Universidade Federal da Bahia 
Salvador, 29 de Julho de 2014
RESUMO 
Neste trabalho busca-se refletir o sentido e o modo da relação dos seres humanos com a natureza sob a luz das alienações humanas em relação à Terra e ao mundo, descritas por Hannah Arendt, em sua obra A condição humana. O intento fundamental deste trabalho consiste em mostrar como estas alienações – que se constituem numa dupla fuga: do homem (que está na Terra) para o universo e do mundo para dentro do homem – podem iluminar a compreensão acerca do modo com o qual os seres humanos vivenciam a sua existência mortal, natural e terrena, se posicionando em relação à Terra, à sua natureza e ao seu próprio mundo. No que concerne à alienação humana em relação à Terra e à natureza terrena, busca-se relacioná-la, em primeiro lugar, à compreensão da técnica e da tecnologia, no mundo globalizado, com o controle, manipulação e mapeamento da esfera terrestre e de sua natureza; em outro momento busca-se ligar tal alienação em relação à Terra e à natureza terrena a um ideal cientifico que passou a desencadear na natureza terrena fenômenos que lhe são externos, reprocessando e ameaçando os processos naturais. Já no que diz respeito à alienação do mundo, deseja-se mostrar, em primeiro lugar, que ela se liga diretamente à ascensão de uma sociedade industrial e produtivista e à perda da noção de um mundo público comum, o que acontece na esteira de um movimento que significa a relação homem e natureza do ponto de vista da disponibilidade, da exploração e da poluição de seus espaços; em outro momento, irá se intentar relacionar a alienação humana em relação ao mundo com o sentido da relação homem e natureza, na medida em que esta alienação acontece ao custo de os seres humanos compreenderem o real e a realidade que os circundam a partir de um traço de funcionalidade e objetificação, o que também incide na natureza, que passa a ser significada como sistema ou objeto aos quais os homens, enquanto animais racionais, arvoram-se em decifrar, controlar e prever, ancorados exclusivamente na existência de seus processos mentais subjetivos e introspectivos.
ABSTRACT 
The purpose of this document is to reflect the understanding of the relation between human being and nature with the aspect of human being alienation from the earth and the world described by Hannah Arendt in her major work, The Human Condition. The fundamental attempt is based on how the alienations – that are consisted on the double escape: from the man to the universe and from the world to the men- could enlighten the comprehension concerning about the way that the human beings experience their existence deadly, naturally and earthly, positioning themselves in relations with earth, nature and in their own world. In the concern of the human alienation from the earth and the terrain nature pursuing the link with technic and technology in a global world, with control, manipulation and mapping of the earth`s sphere in its own nature. In another moment, pursuits the bind with the alienation from the earth to an scientific ideal that unleashed in earth`s nature phenomenon that are outsourced, reprocessing and threatening the natural processes. Since what it`s concerned about the world`s alienation, its craving to show that the alienation from the world is connected with ascent of an industrial and productive society, and with the loss of the notion of a common public world. This happens simultaneously with the movement that means the relation between human being and nature in the perspective of availability, exploration and pollution of its bounders. In another moment, there will be an attempt to relate the human alienation in relation with the world carrying the sense of human being and nature, insofar the alienation to occur, it demands for the human beings to understand the real and reality from the functionality and objectness. These two concepts reflect in nature and result in a new understanding that threat the nature like a system or object that human beings, as rational animals, desire to control and predict, established exclusively in the existence of their own mental and introspective processes.
SUMÁRIO 
Introdução 1 
1 – Globalidade e continuidade terrestres – técnica, tecnologia e natureza 6 
1.1 – A descoberta das Américas e a alienação da Terra na era moderna 6 
1.2 – A globalidade e a continuidade terrestres no mundo moderno 10 
1.3 – Técnica e tecnologia na relação entre seres humanos e natureza 13 
2 – Produtivismo, consumo e desperdício: a disponibilização e exploração da natureza 20 
2.1 – A Reforma, a expropriação e o acúmulo de riquezas: a alienação do mundo 20 
2.2 – A natureza enquanto disponível e a perda do mundo comum 29 
3 – As descobertas telescópicas de Galileu, a alienação da Terra e a relação homem-natureza 37 
3.1 – O ponto arquimediano e a ascensão do homo faber 37 
3.2 – A dimensão da relação homem e natureza do ponto de vista da moderna ciência natural 45 
3.3 – A dúvida cartesiana e a transferência do ponto arquimediano para dentro do homem 53 
Considerações finais 64 
Bibliografia 71
1 
Introdução 
Ao pensar a condição humana em seu tempo, bem como o que os seres humanos estão fazendo, Hannah Arendt, em A Condição Humana, considera alguns acontecimentos: a globalidade, a continuidade e a arremetida da velocidade no planeta Terra, a ascensão de uma sociedade do desperdício e do consumo, e o desenvolvimento da física quântica com seus pressupostos, instrumentos e experiências. Estes acontecimentos que despontam no mundo à época da pensadora (o mundo moderno) possuem uma relação fundamental com três eventos que se deram no limiar da era moderna, determinando o caráter desta época: a descoberta das Américas e a exploração de toda a Terra; a Reforma que, expropriando as propriedades eclesiásticas e monásticas, desencadeou o duplo processo de expropriação individual e acúmulo de riqueza social; e as descobertas telescópicas de Galileu, abrindo caminho para o desenvolvimento de uma nova ciência que considera a natureza da Terra do ponto de vista do universo. 
Esta relação fundamental não acontece por meio de uma cadeia de causalidade, pois se trata de uma relação entre eventos. A relação se estabelece na medida em que estes três eventos, que acontecem no limiar entre o mundo pré-moderno e o mundo da era moderna, continuam a se desenrolar em continuidade no mundo moderno, o que é experimentado com a globalidade e continuidade terrestres, com a sociedade do desperdício e do consumo, e com os adventos e inventos trazidos com o desenvolvimento da física quântica. Por isso, para Arendt, há uma relação direta entre a descoberta das Américas e a globalidade ou continuidade terrestres, entre a Reforma, e sua consequente expropriação, e a sociedade do consumo e do desperdício, entre as descobertas telescópicas de Galileu e o despontar das físicas atômica e quântica. Por outro lado, os três eventos que determinaram o caráter da era moderna se interligam por que manifestam, cada um à sua maneira, fenômenos de alienação do homem em relação à Terra ou ao mundo. Como não poderia deixar de ser, estas alienações, experimentadas por aqueles homens da era moderna com estes eventos, também se manifestam no mundo à época da pensadora, o mundo moderno, em alguns de seus acontecimentos. 
Num primeiro intento, este trabalho irá mostrar o que são, e o que significaram, as alienações da Terra e do mundo, tais como pensadas por Arendt, e que se manifestam com os três eventos que determinaram o caráter da era moderna, se prolongando até os tempos do
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mundo moderno. Considerando tais alienações experimentadas nestes três eventos do limiar da era moderna, bem como seus prolongamentos em acontecimentos do mundo moderno, está se buscando refletir a questão central deste trabalho: em que dimensão e sentido acontece, hoje em dia, a relação entre os seres humanos e a natureza? Esta é uma questão muito ampla e que abrange as nossas noções de humanidade, de natureza, de Terra e de mundo, perpassando, ainda, as concepções de vida, de existência, de ciência, de linguagem e de técnica. Ao questionarmos a relação entre seres humanos e natureza, sob a luz das alienações da Terra e do mundo disparadas com os eventos iniciais da era moderna descritos por Arendt, e que se dão ainda no mundo moderno, se está investigando o sentido e a significância que atribuímos a tal relação nos tempos atuais, bem como a partir de quais dimensões, pressupostos e condições acontece tal relação. Qual a atmosfera que permeia a atual relação entre os seres humanos e a natureza? 
Investigar pelo sentido e dimensão da relação entre seres humanos e natureza é pensar acerca da própria condição existencial humana que se dá compartilhada e, em certos níveis, em dependência necessária com a natureza, no sentido da totalidade de tudo que existe por si e sem intervenção humana e de tudo que os homens criam a partir dela ou artificialmente. Esta é a outra questão central deste trabalho: em que sentido experimentamos e refletimos, enquanto seres humanos, a condição existencial de sermos seres vivos e finitos, terrenos e terráqueos, dependentes, e ao mesmo tempo integrantes, dos elementos e ciclos vivos e não vivos da natureza? Em relação à condição existencial humana – de estarmos vivos sobre a terra e na natureza, nascendo e desaparecendo neste planeta e para este mundo – pode-se atribuir-lhe sentido num viés de acolhimento e preservação ou de recusa e superação, quando se reflete o sentido atual da nossa relação com a natureza. Observamos, hoje em dia, a humanidade agindo em relação à natureza de um modo que a preserva e a acolhe como condição inalienável para a existência da própria vida, humana ou não, ou o que presenciamos atualmente é a negação, por parte de nós, desta condição que nos é evidente? 
Os fenômenos de alienação distinguidos por Arendt (do homem em relação à Terra e do homem em relação ao mundo) nos auxiliam na compreensão da questão acerca do sentido da relação dos seres humanos com a natureza, pois se ligam a dois movimentos: a alienação dos homens em relação à Terra e ao mundo pode lançar os seres humanos numa postura de recusa de sua condição evidente de ser um ser vivo terreno e finito, em dependência inexorável com a
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natureza, com a Terra e com o mundo; bem como para acima ou para fora da Terra, do mundo e da natureza, como se os seres humanos pudessem compreender e tratar a natureza, a Terra e o mundo como estando situados além, exteriores ou alheios aos mesmos, isto é, de um ponto de vista que não depende em grau algum das condições fundamentais e vitais oferecidas por estes. Mostraremos, neste trabalho, como estas alienações podem ser relacionadas à questão do sentido da relação dos homens com a natureza. Mais precisamente: como o sentido desta relação entre homem e natureza pode ser pensado nos dias atuais a partir do que a autora designa por fenômenos de alienação, estes que marcaram a mentalidade e a condição existencial humanas no alvorecer de uma nova era e que se prolongaram até os tempos atuais. 
Estamos também partindo do pressuposto de que a relação dos seres humanos com a natureza, de um modo geral e global, alcançou nos dias de hoje um momento crítico, isto é, um momento que exige reflexão acerca do que já foi feito e de decisão acerca do que ainda há por se fazer. A dimensão na qual acontece a atual relação entre seres humanos e natureza é profundamente marcada pelo controle, posse e domínio, pela exploração, poluição e degradação, pela objetificação, utilitarização e distanciamento dos seres humanos em relação à natureza. Mas não se trata, no que diz respeito a este trabalho, de atribuir às alienações determinantes da era moderna, e aos seus desdobramentos no mundo moderno, as causas por estarmos situados nessa dimensão e nesta atmosfera de relação com a natureza. Trata-se de investigar como os fenômenos de alienação identificados por Hannah Arendt nos auxiliam a pensar, iluminando a nossa compreensão, o sentido da atual relação que estabelecemos com a natureza, com a vida, com a Terra e com o mundo, bem como o modo com o qual compreendemos e experimentamos a própria condição humana de sermos seres viventes da natureza, arraigados à terra e habitantes deste planeta, capazes de erigir tecnologias, sociedades e civilizações inteiras, ou de destruir todo o globo. 
Seguindo neste caminho, esse trabalho passará por três momentos. No primeiro momento, a reflexão será acerca do que significou, para Arendt, a alienação humana em relação à Terra enquanto planeta e morada, vivenciada no alvorecer da era moderna com o evento da descoberta das Américas, e que se prolonga nos tempos do mundo moderno (os tempos de Arendt) com a globalidade e a continuidade que passaram a grassar pelo orbe terrestre. Na medida em que a globalidade e a continuidade terrestres, apontadas pela autora como acontecimentos e prolongamentos da era moderna no mundo moderno, podem ser relacionadas
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à expansão das técnicas e da informatização, das tecnologias e da globalização, no nosso tempo, é que podemos refletir o sentido, tingido pelo controle, exploração e produtivismo, da relação entre os seres humanos e a natureza da Terra, ou entre estes e a própria Terra, sentido tal que pode ser melhor compreendido a partir de um fenômeno de alienação do homem em relação à Terra. 
No segundo momento, a reflexão se dará acerca do que significou, no início da era moderna, a alienação no sentido de um mundo interior manifestada pela Reforma e que acabou por desencadear um duplo processo: de expropriação individual e de acúmulo ascendente de riqueza social. Na medida em que esta alienação se prolonga nos tempos do mundo moderno e é sentida com a ascensão de uma sociedade do desperdício e do consumo exacerbados, como descreve Arendt, busca-se pensar o sentido da atual relação entre seres humanos e natureza, que, sob a égide da alienação do mundo e da perda da noção de um mundo comum, alicerça-se na compreensão de que a natureza se constitui como fonte inesgotável de recursos disponíveis para a nossa manipulação e como reservatório de produtos e subprodutos, naturais ou artificiais, das atividades humanas. A ascensão de uma sociedade do desperdício e do consumo, que se relaciona primariamente com a Reforma, e com as subsequentes expropriações e acúmulo de riquezas, expressa uma alienação dos seres humanos em relação ao mundo que lhe é comum, e à natureza que lhes é morada terrestre, pois o desperdício, a destruição, o produtivismo e o consumo exacerbados, nas sociedades industriais, se dão na esteira da exploração, manipulação, disponibilização e reprocessamento de elementos da natureza, com a extinção de suas espécies e com a poluição ou aniquilação de seus espaços. 
No terceiro momento, irá se refletir o significado das descobertas telescópicas de Galileu, a respectiva alienação da Terra que se manifesta com este evento, e, por fim, a reação epocal a tais descobertas, que foi a moderna filosofia da dúvida inaugurada por René Descartes, com a respectiva alienação do mundo que lhe é inerente. Para a autora, as descobertas de Galileu com um instrumento significam duas concepções: uma nova concepção física do mundo, na qual o homem passa a tratar a Terra e a natureza terrena de um ponto exterior e distanciado em relação às mesmas (o ponto arquimediano), o que incide nas ciências com o relativismo, com a transformação dos sentidos das noções de “universal” e de “absoluto”, com a ascensão da álgebra moderna e a sua respectiva redução das ciências à matemática; e, ainda, a moderna concepção do homem como fazedor ou fabricador de instrumentos (o homo faber), estes que
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devem auxiliá-lo a capturar e a flagrar os fenômenos da natureza e do universo, enquanto processos em suas experiências, tornando possível reproduzi-los em algum lugar com intermédio de outros instrumentos. 
Esta alienação em relação à Terra e à natureza terrena, manifestada nestas duas novas concepções que, para Arendt, modificam e determinam o caráter da era moderna, se prolonga nos tempos do mundo moderno através dos pressupostos e inventos da física quântica e atômica, na medida em que ao homem tornou-se possível reproduzir na natureza terrena eventos que não ocorrem da mesma maneira nela, a risco de ameaçá-la, com o auxílio de instrumentos e aparelhagens que possuem influência direta nos dados captados e medidos, e, ainda, quando a própria ciência tornou-se sustentada por uma linguagem matemática simbólica que encerra afirmações que já não podem ser reconvertidas em palavras e que são invenções da mente humana fechada e isolada em relação ao mundo. Esta alienação em relação à natureza terrena e à Terra (bem como a alienação do mundo experimentada através da dúvida cartesiana) nos auxiliarão a compreender o sentido da relação entre seres humanos e natureza quando se pensa a natureza como objeto, sistema ou mecanismo que é isolado, controlado e utilizado por nós, decifrado por instrumentos e descrito por leis matemáticas que obedecem a padrões, modelos e símbolos criados pela própria mente, esta que já se encontra fechada dentro de si mesma.
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Capítulo 1 – Globalidade e continuidade terrestres – técnica, tecnologia e natureza. 
1.1 - A descoberta das Américas e a alienação da Terra na era moderna. 
Nos diz Hannah Arendt, no capítulo sexto1 de A condição humana, que: 
no limiar da era moderna há três grandes eventos que lhe determinaram o caráter: a descoberta da América e a subsequente exploração de toda a Terra; a Reforma que, expropriando as propriedades eclesiásticas e monásticas, desencadeou o duplo processo de expropriação individual e acúmulo de riqueza social; e a invenção do telescópio, ensejando o desenvolvimento de uma nova ciência que considera a natureza da Terra do ponto de vista do universo. Não são eventos modernos tal como os conhecemos desde a Revolução Francesa; e, embora não possam ser explicados por alguma corrente de causalidade, como nenhum evento pode sê-lo, continuam a desenrolar-se ainda hoje em perfeita continuidade na qual podemos identificar precedentes e predecessores. Nenhum deles tem o caráter peculiar de uma explosão de correntes subterrâneas que, ganhando alento às ocultas, irrompessem subitamente (ARENDT, 2007, p. 260). 
A autora prossegue declarando que os personagens ligados a estes eventos (os navegadores e exploradores, Lutero e Galileu) pertencem ainda a um mundo pré-moderno, pois não se encontra em nenhum deles o espírito de sensação de novidade e veemência ante os seus feitos, tal como se pode observar, desde o século XVII, em certos autores, cientistas e filósofos. Estes personagens que foram precursores e não eram revolucionários, ainda tinham seus motivos e intenções arraigados fortemente à tradição. Refletindo a significância destes eventos, Arendt considera que a descoberta de continentes e oceanos desconhecidos foi o evento mais espetacular em relação ao mais inquietante (sentido na cisão do cristianismo ocidental através da Reforma), e ao menos percebido de todos (a introdução, na multiplicidade de utensílios humanos, de um novo instrumento).2 
O evento que originalmente possuiu o menor impacto, por ter sido o menos percebido de todos, representado pelo primeiro passo experimental do homem na direção da exploração e descoberta do universo, é que vem ganhando impulso e força cada vez maiores. Este impulso crescente se dá ao custo de eclipsar não só a expansão da terra habitada (contida unicamente 
1 “Nesse capítulo, Hannah Arendt mostrou que os três eventos que marcaram o início da modernidade – a descoberta dos novos continentes, a invenção do telescópio por Galileu e a Reforma – já continham os ingredientes do processo de alienação que se intensificaria nos séculos seguintes” (JARDIM, 2011, p. 35). 
2 ARENDT, 2007. p. 261.
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pelos limites do próprio globo), mas também o processo econômico de acúmulo de riquezas, aparentemente ilimitado.3 
A descoberta de novos continentes e oceanos possibilitou aos seres humanos o conhecimento de novas civilizações, o acesso e a exploração de recursos naturais ainda desconhecidos, a invenção e o aperfeiçoamento de instrumentos, mapas e meios de transporte. A Terra que antes ainda possuía um continente inteiro desconhecido, pôde ser descoberta e vislumbrada em sua amplidão e imensidão, e pontos que antes se situavam a uma distância incomensurável e desconhecida pelos humanos, passaram a compor, em mapas, regiões as quais se poderia ter realmente acesso, através de viagens que, em alguns casos, nunca acabaram. De certa maneira, a descoberta de novos continentes e oceanos liga-se à expansão da velocidade por sobre a Terra, pois as distâncias entre pontos do globo haviam sido encurtadas mediante a conquista humana das navegações às longas distâncias em torno da Terra. 
Para Arendt, “a descoberta do planeta, o mapeamento de suas terras e o levantamento cartográfico de seus mares levaram muitos anos e só agora estão chegando ao fim” (ARENDT, 2007, p.262). Prossegue a autora declarando que, mesmo que se possa vislumbrar um encurtamento das distâncias terrestres ou uma escalada da velocidade, através do que significou a descoberta e exploração de novos continentes e oceanos, os navegadores e exploradores do início da era moderna não se lançaram ao mar imbuídos com estes propósitos, ou seja: 
eles se fizeram ao mar para ampliar a Terra, não para reduzi-la a uma bola; e quando atenderam ao chamado de terras distantes, não tinham intenção alguma de abolir a distância. Só agora, com nosso conhecimento retrospectivo, podemos ver o óbvio: nada que possa ser medido permanece imenso; toda medição reúne pontos distantes e, portanto, estabelece proximidade onde antes havia distância (ARENDT, 2007, p. 262). 
Aos exploradores e circunavegadores terrestres dos estágios iniciais da era moderna revelaram-se a imensidão e a multiplicidade da Terra e de suas paisagens, bem como a capacidade e engenho humanos de dominar seus artefatos e de se sobrepor ao seu ambiente terreno em vistas de seus interesses. Por isso, à descoberta dos novos continentes e oceanos também pode-se associar o aperfeiçoamento da capacidade humana de medição e localização geográfica, bem como o conhecimento acerca da estrutura, constituição e dinâmica de seu 
3 ARENDT, 2007, p. 262.
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próprio planeta. Refletindo o que significou a descoberta de um novo continente e de novos oceanos, no limiar da era moderna, Arendt situa que “precisamente no instante em que se descobriu a imensidão do espaço terrestre, começou o famoso apequenamento do globo” (ARENDT, 2007, p. 262). 
Um fato relevante pensado pela autora acerca do significado deste apequenamento ou avizinhamento do globo é que os mapas e as cartas de navegação das primeiras etapas da era moderna anteciparam-se às invenções técnicas com as quais todo o espaço terrestre se tornou próximo e pequeno. Por isso, afirma Arendt que “antes que aprendêssemos a dar a volta ao mundo, a circunscrever em dias e horas a esfera da morada humana, já havíamos trazido o globo à nossa sala de estar, para tocá-lo com as mãos e fazê-lo girar diante dos olhos” (ARENDT, 2007. p. 263). Assim podemos pensar que a descoberta de novos continentes e oceanos foi proporcionada ao homem a partir do aprimoramento de sua capacidade de representação e medição da realidade, através de mapas e cartas de localização espacial sobre a Terra, ao mesmo tempo em que, aos olhos daqueles exploradores e viajantes iniciais, a Terra se revelava como esfera da morada humana comum e interligada, entre latitudes e longitudes, por meio de novas rotas e possibilidades de caminhos. 
Antes do encolhimento do espaço e da abolição da distância por meio de ferrovias, navios e aviões, deu-se o encolhimento infinitamente maior e mais eficaz resultante da capacidade de observação da mente humana, cujo uso de números, símbolos e modelos pode condensar e diminuir a escala da distância física da Terra a um tamanho compatível com os sentidos naturais e a compreensão do corpo humano (ARENDT, 2007. pp. 262-263). 
Arendt salienta que a questão da capacidade de observação da mente humana está ligada propriamente à natureza desta, pois esta capacidade de observação somente funciona quando ocorre um desvencilhamento de qualquer envolvimento e preocupação do homem em relação ao que está perto de si, retirando-o, por assim dizer, a uma distância de tudo que o circunda.4 
4 Ao passo que na física clássica, em ascensão no século XVII, a interação dos objetos e dos instrumentos de medida pôde ser desprezada ou compensada, estabelecendo um distanciamento e uma independência entre os fenômenos observados e o observador, bem como entre os fenômenos e os instrumentos de medida, na física quântica, a física do século XX, que possibilitou também o surgimento da era atômica e que está em voga e aperfeiçoamento, a neutralidade e a independência entre o observador e os objetos físicos descritos, ou entre aquele e seus instrumentos, não pode ser alcançada nem realizada, pois há uma impossibilidade de qualquer separação nítida entre o comportamento dos objetos atômicos e a interação com os instrumentos de medida que servem para definir as condições em que os fenômenos aparecem (Ver em: BOHR, 1995, p. 51; p. 91). Assim, ainda que a mente humana necessite se distanciar infinitamente do que deseja medir para fazê-lo com mais precisão, esta pretensão é frustrada pelos próprios postulados da física contemporânea, estabelecendo assim uma ambiguidade e
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“Quanto maior a distância entre o homem e o seu ambiente, o mundo ou a terra, mais ele pode observar e medir, e menos espaço mundano e terreno lhe restará” (ARENDT, 2007. p. 263). É devido a este motivo que o evento da descoberta das Américas manifesta uma fenômeno de alienação humana em relação à Terra, pois as circunavegações terrestres (que dispararam o apequenamento do globo, a escalada da velocidade e o encurtamento das distâncias, ao mesmo tempo em que propiciaram a descoberta e a exploração da imensidão e da esfera terrestres) deram-se na esteira do aperfeiçoamento de mapas e cartas e, portanto, da capacidade de observação, precisão, representação e alheamento da mente humana. 
O fato de que o apequenamento definitivo da Terra foi consequência da invenção do aeroplano, isto é, de ter o homem deixado inteiramente a superfície da Terra, como que simboliza o fenômeno geral de que qualquer diminuição de distâncias terrestres só pode ser conquistada ao preço de colocar-se uma distância definitiva entre o homem e a Terra, de aliená-lo do seu ambiente imediato e terreno (ARENDT, 2007, p. 263). 
Desta maneira, podemos pensar que esta alienação do homem em relação ao seu ambiente, terreno ou mundano, se dá em dois sentidos: no primeiro, ela ocorre na medida em que se dão o avizinhamento do globo com as circunavegações (com o encurtamento de distâncias) e o seu apequenamento definitivo com a invenção do aeroplano (com o salto do homem acima da superfície terrestre); no segundo, ela acontece em relação à própria capacidade de observação da mente humana, na medida em que para observar e precisar as suas medições necessita alhear-se e distanciar-se do seu ambiente imediato, terreno ou mundano. 
uma complementaridade entre o sujeito observador que mede e o objeto a ser medido. Com este exemplo que pertence à evolução das ideias das ciências físicas, queremos ilustrar a inalienável interdependência entre a capacidade de observação da mente humana e o que se deseja observar, o que acabou por negar o ideal do saber científico da era moderna, da mente de um observador neutro e distanciado dos fenômenos aos quais deseja interpretar e conhecer.
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1.2 - A globalidade e a continuidade terrestres no mundo moderno. 
Para Arendt, o evento da descoberta de novos continentes e oceanos que marca o alvorecer da era moderna, - sob o signo do apequenamento do globo, da escalada da velocidade, do encolhimento resultante da capacidade de observação da mente humana e, finalmente, da alienação da Terra, - prolonga-se no seu tempo (no mundo moderno) pois: 
só agora o homem tomou plena posse de sua morada mortal e enfeixou os horizontes infinitos, tentadora e ameaçadoramente abertos a todas as eras anteriores, para formar um globo cujos majestosos contornos e detalhes geográficos ele conhece como as linhas da própria mão. Precisamente no instante em que se descobriu a imensidão do espaço terrestre, começou o famoso apequenamento do globo, até que, em nosso mundo (que, embora resulte da era moderna, não é de modo algum idêntico ao mundo da era moderna), cada homem é tanto habitante da Terra como habitante de seu país. Os homens vivem agora num todo global e contínuo, no qual a noção de distância, inerente até mesmo à mais perfeita contiguidade de dois pontos, cedeu ante a furiosa arremetida da velocidade (ARENDT, 2007. p. 262). 
Em sua interpretação dos eventos da tradição humana, Hannah Arendt refere-se ao mundo da era, ou época, modernas e ao mundo moderno. Para ela, o seu mundo (o mundo moderno) não é de modo algum idêntico ao mundo da era moderna, embora se possa ainda identificar naquele os prolongamentos de alienações que se dispararam e se transformaram desde o alvorecer deste. O que ocorre é: 
[...] a divisão entre a época moderna – que surge com as Ciências Naturais no século XVII, atinge seu clímax político nas revoluções do século XVIII e desenrola suas implicações gerais após a Revolução Industrial do século XIX – e o mundo do século XX, que veio à existência através da cadeia de catástrofes deflagrada pela Primeira Guerra Mundial (ARENDT, 1997, p. 54). 
No mundo moderno, a globalidade e a continuidade se relacionam, para a autora, com a maximização crescente do mapeamento e detalhamento de mares e continentes, bem como com a noção de que a morada humana comum é uma esfera interconectada, cujos contornos, meandros e fenômenos se podem observar, medir e, com alguma probabilidade, até prever. O fato que leva a autora a afirmar que no mundo moderno cada homem é habitante da Terra como de seu país, tem íntima relação com: a transformação da noção de humanidade, esta que torna- se uma entidade realmente tangível; com a depressão e a prosperidade que tornaram-se
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fenômenos globais; e com o declínio dos estados nacionais europeus.5 A partir de então, “as sociedades circunscritas pelos estados nacionais começam a ser substituídas pela humanidade, e o planeta substitui o restrito território do Estado” (ARENDT, 2007, p. 269). 
Refletindo a globalidade e a continuidade em seu mundo moderno, Arendt salienta que neste a noção de distância cedeu ante à conquista e expansão da velocidade que, por assim dizer, acabou por conquistar até o espaço sideral. 
A velocidade conquistou o espaço; e, ainda que este processo de conquista encontre seu limite na barreira inexpugnável da presença simultânea do mesmo corpo em dois lugares diferentes, eliminou a importância da distância, pois nenhuma parcela significativa da vida humana – anos, meses ou mesmo semanas – é agora necessária para que se atinja qualquer ponto da Terra (ARENDT, 2007, p. 262). 
Diante destes acontecimentos, pode-se aludir ao fato descrito pela autora acerca do lançamento e da permanência, em 1957, do satélite soviético Sputinik 1. Para ela, a reação imediata e espontânea a este evento foi um alívio – e não a alegria e a satisfação pelo triunfo, ou o orgulho e o assombro ante a engenhosidade e eficiência humanas – em relação ao primeiro “passo para libertar o homem de sua prisão na terra”. Esta declaração feita à época por um repórter norte-americano, refletia, sem a motivação direta, o que havia sido gravado no obelisco fúnebre de um dos maiores cientistas da Rússia: “a humanidade não permanecerá para sempre presa à terra”.6 
Desta maneira, se no germinar da era moderna as circunavegações terrestres manifestaram uma alienação humana em relação à Terra (no sentido do apequenamento do globo, do encolhimento da capacidade de observação da mente humana e com o encurtamento das distâncias), estes eventos se prolongaram até o mundo moderno, no qual a alienação humana em relação à Terra se dá na medida em que o aeroplano é inventado, com a eliminação da importância da distância na Terra, com a conquista do espaço pela velocidade e, finalmente, com a globalidade e continuidade terrestres que passaram a grassar por sobre o planeta. O fato de que a velocidade conquistou o espaço, com os adventos de uma era aeroespacial, para Arendt, sinaliza algo que até então, na história da humanidade, não havia acontecido. O que nos põe a refletir acerca do que significou a conquista do espaço sideral para a condição humana de 
5 ARENDT, 2007, p. 269. 
6 ARENDT, 2007, p. 9.
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existir enquanto ser vivo terreno e terrestre e que, ao mesmo tempo, rompeu, de certa maneira, com os limites de sua própria morada e condição natural,7 em direção ao espaço universal desconhecido, tendo lançado neste um artefato que “pôde permanecer nos céus durante algum tempo; e lá ficou, movendo-se no convívio dos astros como se estes o houvessem provisoriamente admitido em sua sublime companhia” (ARENDT, 2007, p. 9). 
[...] Ninguém na história da humanidade jamais havia concebido a terra como prisão para o corpo dos homens nem demonstrado tanto desejo de ir, literalmente, daqui à Lua. Devem a emancipação e a secularização da era moderna, que tiveram início com um afastamento, não necessariamente de Deus, mas de um deus que era o Pai dos homens no céu, terminar com um repúdio ainda mais funesto de uma terra que era a Mãe de todos os seres vivos sob o firmamento? (ARENDT, 2007, p. 10). 
7 “A grande ilusão da nossa “era espacial” é que podemos escapar às consequências terrestres da nossa arrogância deixando o planeta-mãe e trocando-o por pequenos mundos substitutos de nossa própria fabricação ou por distantes corpos celestes, alguns dos quais ainda por descobrir” (EHRENFELD, 1992, p. 94).
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1.3 - Técnica e tecnologia na relação entre seres humanos e natureza. 
Podemos pensar que a globalidade e a continuidade terrestres, descritas por Arendt, podem ser associadas à expansão da técnica e da tecnologia8, na medida em que estas estão ligadas à maximização da velocidade no tempo e à minimização das distâncias no planeta e no espaço.9 
Nos diz Milton Santos que: 
o período histórico atual vai permitir o que nenhum outro período ofereceu ao homem, isto é, a possibilidade de conhecer o planeta extensiva e aprofundadamente. Isto nunca existiu antes, e deve-se, exatamente, aos progressos da ciência e da técnica (melhor ainda, aos progressos da técnica devidos aos progressos da ciência) (SANTOS, 2000, p.16). 
O mundo no qual vivemos hoje é integrado por redes de circulação de bens naturais, artificias e virtuais para a exploração e o consumo humano, bem como por canais de informação interligados em múltiplas dimensões, fazendo circular dados (os quais apenas parcelas da população possuem acesso direto) entorno do globo com eficácia e precisão em frações de segundos, de acordo com interesses pré-estabelecidos. As circulações de capitais, bens, serviços, discursos, pessoas e informações acontecem no nosso mundo de uma maneira cada vez mais veloz, globalizada e aperfeiçoada, sob o alicerce da técnica e da tecnologia. Para o pensador brasileiro, isto se deve ao fato de que a aliança entre técnica e ciência reforçou o elo já existente entre ciência e produção, como podemos ler. 
As épocas se distinguem pelas formas de fazer, isto é, pelas técnicas. Os sistemas técnicos envolvem formas de produzir energia, bens e serviços, formas de relacionar os homens entre eles, formas de informação, formas de discurso e interlocução. O casamento da técnica e da ciência, longamente preparado desde o século XVIII, veio a reforçar a relação que desde então se esboçava entre ciência e produção. Em sua versão atual como tecnociência, 
8 “O evento inaugural da modernidade – a descoberta dos novos continentes – apontava a direção a ser tomada pelo desenvolvimento da técnica, que conduziria o homem até muito longe de sua morada terrena, em um movimento acelerado de encurtamento das distâncias” (JARDIM, 2011, p. 55). 
9 “Em nossa época, o que é representativo do Sistema de técnicas atual é a chegada da técnica da informação, por meio da cibernética, da informática, da eletrônica. Ela vai permitir duas grandes coisas: a primeira é que as diversas técnicas existentes passam a se comunicar entre elas. A técnica da informação assegura esse comércio, que antes não era possível. Por outro lado ela tem um papel determinante sobre o uso do tempo, permitindo, em todos os lugares, a convergência dos momentos, assegurando a simultaneidade das ações e, por conseguinte, acelerando o processo histórico” [...] “Na história da humanidade é a primeira vez que tal conjunto de técnicas envolve o planeta como um todo e faz sentir, instantaneamente, sua presença” (SANTOS, 2000, pp. 12-13).
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está situada a base material e ideológica em que se fundam o discurso e a prática da globalização (SANTOS, 2006, p. 115). 
Nós humanos, nesta condição atual, nos tornamos responsáveis e dependentes de toda técnica e tecnologia, no que diz respeito à realização e permanência da nossa vida na Terra, e à preservação e equilíbrio dos elementos vivos e não vivos da natureza, que nos fornecem condicionantes vitais para nossa existência e permanência na terra.10 O questionamento acerca do que significa, atualmente, o grassar da técnica e da tecnologia por sobre o globo – em ressonância com o que nos diz Arendt acerca da globalidade e continuidade terrestres; ou em direção à globalização e ao elo inseparável entre ciência e produção, como nos explica Milton Santos – se entrelaça intimamente com o sentido e a vivência que atribuímos à nossa relação com a realidade e a natureza que nos circunda e integra aos processos biofísicos naturais, e à terra. Sob a perspectiva de que técnica e tecnologia estão a favor do movimento humano de controlar, explorar e utilizar a natureza da terra a fim de realizar empenhos científicos e produtivistas11, em qual dimensão e em qual sentido se situa a relação entre seres humanos e natureza? 
Esta perspectiva lança os seres humanos para uma relação de usufruto, controle e exploração incessantes da natureza ou para uma dimensão na qual estes compreendem a sua existência em equilíbrio e compartilhamento com a natureza, e a sua humanidade no sentido de preservar e acolher a natureza - como ser e filho da terra - com todos os adventos, inventos e eventos que as técnicas e as tecnologias lhes assomam? 
As palavras de Milton Santos podem iluminar a questão. 
Esse período técnico-científico da história permite ao homem não apenas utilizar o que encontra na natureza: novos materiais são criados nos 
10 “Filho da terra, não poderia o homem aparecer se gases deletérios infestassem a atmosfera terrestre como sucede com a de outros planetas, se a terra não tivesse armazenado reservas gasosas, que subiriam à superfície pelas crateras dos vulcões, se os primeiros seres vivos não libertassem oxigênio com o auxílio do sol, se a atmosfera não fosse véu protector contra influências exteriores mortíferas, se uma imensa quantidade de água dos oceanos, mares e da atmosfera num ciclo permanente não abeberasse a terra, se a energia do sol não visitasse o homem como seu filho, se este não permanecesse preso dos liames da sua primeira dependência vegetal e do azoto ou dependência microbiana” (PEREIRA, 1992, p. 5). 
11 “Essa união entre técnica e ciência vai dar-se sob a égide do mercado. E o mercado, graças exatamente à ciência e a técnica, torna-se um mercado global. A ideia de ciência, a ideia de tecnologia e a ideia de mercado global devem ser encaradas conjuntamente e desse modo podem oferecer uma nova interpretação à questão ecológica, já que as mudanças que ocorrem na natureza também se subordinam a essa lógica” (SANTOS, 2006, p. 159).
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laboratórios como um produto da inteligência do homem, e precedem a produção dos objetos. Até a nossa geração utilizávamos os materiais que estavam a nossa disposição. Mas a partir de agora podemos conceber os objetos que desejamos utilizar e então produzimos a matéria-prima indispensável à sua fabricação. Sem isso não teria sido possível fazer os satélites que fotografam o planeta a intervalos regulares, permitindo uma visão mais completa e detalhada da Terra (SANTOS, 2000, p. 16). 
Entretanto, o que mais se pode dizer acerca de técnica e tecnologia? Sob a luz de que interpretações podemos continuar refletindo a questão que envolve seres humanos, natureza, técnica e tecnologia? Hannah Arendt nos diz que “como frequentemente ocorre com os eventos históricos, parece que as verdadeiras implicações da tecnologia, isto é, da substituição de instrumentos e utensílios por máquinas, só vieram à luz em seu derradeiro estágio, com o advento da automação” (ARENDT, 2007, p. 160). A pensadora indica três principais estágios do desenvolvimento da tecnologia desde o início da era moderna. O primeiro estágio se deu com a invenção da máquina a vapor, levando à revolução industrial, estágio caracterizado pela imitação e o uso de processos e de forças naturais para finalidades humanas, que ainda não diferiam do uso antigo das forças da água e do vento; por isso, neste estágio, “a novidade não era o princípio da máquina a vapor, mas sim a descoberta e o uso das minas de carvão que deveriam alimentá-la” (ARENDT, 2007, p. 161). 
O segundo estágio foi caracterizado principalmente pelo uso da eletricidade que continua a determinar o atual desenvolvimento técnico. Este estágio é profundamente marcado pelo fato de os homens não mais precisarem “usar material tal como a natureza o fornece, matando processos naturais, interrompendo-os ou imitando-os”, e sim pelo fato de que passaram a ““criar”, por assim dizer, isto é, a desencadear processos naturais nossos que jamais teriam ocorrido sem nós”. Isto, para a autora, implica em que estamos “canalizando as forças elementares da natureza para o próprio mundo”. 
Pois agora já não usamos material tal como a natureza o fornece, matando processos naturais, interrompendo-os ou imitando-os. Em todos esses casos, alteramos e desnaturalizamos a natureza para nossos próprios fins mundanos, de sorte que o mundo ou o artifício humano, de um lado, e a natureza, de outro, passam a ser duas entidades nitidamente separadas. Hoje, passamos a “criar”, por assim dizer, isto é, a desencadear processos naturais nossos que jamais teriam ocorrido sem nós; e, ao invés de defender cuidadosamente o artifício humano contra as forças elementares da natureza, mantendo-as o mais possível à parte do mundo feito pelo homem, canalizamos essas forças, juntamente com o seu poder elementar, para o próprio mundo (ARENDT, 2007, p. 161).
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Já a partir daqui podemos pensar como o desenvolvimento da tecnologia, tal como interpretado pela autora, tensiona nitidamente o mundo (ou o artifício humano), de um lado, e a natureza (ou a terra), de outro. A partir de um distanciamento e desenraizamento, a relação entre homem e natureza vai ganhando o seu sentido no viés da exploração e do controle, bem como no da satisfação de interesses humanos frente à própria condição viva e perene da natureza entorno de nós. Este distanciamento, para nossas reflexões, pode sinalizar uma recusa da própria condição existencial humana de ser terreno e terráqueo, mortal e vivente; isto é, sinaliza uma alienação humana em relação à Terra e à sua natureza. 
O terceiro e mais recente estágio de desenvolvimento da tecnologia foi a automação, que embora sendo seu ponto culminante, permanece ao largo do impacto que o surgimento da era atômica e de uma tecnologia baseada nas descobertas nucleares podem causar. Enquanto que a atual tecnologia “canaliza forças naturais para o mundo do artifício humano”, “a tecnologia do futuro pode vir a consistir em canalizar forças universais do cosmos que nos rodeia para a natureza da Terra” (ARENDT, 2007, p.163). 
Neste caso, já não se trataria de desencadear e liberar processos elementares naturais, mas de manusear na Terra e na vida de todos os dias energias e forças que só ocorrem fora da Terra, no universo – o que já é feito, mas somente nos laboratórios de pesquisas dos físicos nucleares [...] Resta ver se essas técnicas futuras transformarão o reino da natureza, tal como o conhecemos desde o começo de nosso mundo, na mesma medida – ou mais – que a atual tecnologia alterou a própria mundanidade do artifício humano (ARENDT, 2007, p. 163). 
Aqui podemos sentir a dimensão na qual, para a autora, pode se estabelecer a relação entre seres humanos (e seus artifícios e fabricações no mundo) e a natureza terrena, quando se está sob o domínio da tecnologia nuclear e da era atômica. Se com a automação, os homens canalizam forças e energias naturais para o mundo do artificio humano, o que pode acontecer adiante é a destruição plena de toda a vida orgânica da Terra.12 
Ao pensar “a discussão de todo o problema da tecnologia, isto é, da transformação da vida e do mundo pela introdução da máquina...” (ARENDT, 2007, p. 164) a autora alude a uma distinção entre os “processos naturais” e os “produtos de mãos humanas”, a partir do que ela 
12 ARENDT, 2007, p. 163.
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considera um significado autêntico da palavra natureza.13 No momento em que os homens estão canalizando, desencadeando e manuseando processos na Terra que somente ocorrem fora da natureza terrena (como se pudessem se situar num ponto exterior à natureza, alienados de seu ambiente terrestre, natural e mundano), ocorre também o movimento de projetar e impor no modo de sua produção (a automação: na qual a diferença entre operação e produto, ou a precedência do produto sobre a operação, deixam de existir14) o próprio movimento cíclico da natureza – no qual a existência da coisa natural não é separada mas, de certa forma, idêntica ao processo através do qual ela passa a existir. 
Ao contrário dos produtos de mãos humanas, que devem ser feitos passo a passo e para os quais o processo de fabricação é inteiramente distinto da existência da coisa fabricada, a existência da coisa natural não é separada mas, de certa forma, idêntica ao processo através do qual ela passa a existir: a semente contém e, em certo sentido, já é a árvore, e a árvore deixa de viver se o processo de crescimento através do qual passou a existir for interrompido. Se os olharmos contra o pano de fundo das finalidades humanas, que têm um começo determinado pela vontade e um fim definido, estes processos assumem caráter de automatismo (ARENDT, 2007, p. 164). 
Ao refletir acerca do que significou o desenvolvimento da tecnologia e suas reverberações na relação entre homem e natureza, do ponto de vista da fabricação e da condição humana do trabalho e do labor, a autora é levada a pensar o sentido da própria relação que se estabelece entre os seres humanos e as máquinas. Para ela, em seu tempo, essa discussão se concentra exacerbadamente “no serviço ou desserviço que as máquinas prestam aos homens. A premissa é que toda ferramenta e todo utensílio destina-se basicamente a tornar mais fácil a vida do homem e menos doloroso o labor humano” (ARENDT, 2007. p. 164). Desta maneira, a qualidade do instrumento enquanto tal é concebida exclusivamente num sentido antropocêntrico. Ela ressalta os motivos pelos quais considera que a questão relevante à relação entre homens e máquinas, afastando-se de um sentido antropocêntrico, não é a de que se somos senhores ou escravos de nossas máquinas. 
Mas a qualidade de instrumento que possuem as ferramentas e os utensílios relacionam-se muito mais intimamente com o objeto que eles se destinam a produzir, e o seu mero “valor humano” limita-se ao uso que deles faz o animal 
13 “É característico de todos os processos naturais o fato de existirem sem o auxílio do homem, e de que as coisas naturais não são “feitas”, mas vêm a ser por si mesmas o que são. É este sentido também o significado autêntico de nossa palavra “natureza”, quer a derivemos da raiz latina nasci, nascer, ou formos buscá-la em sua origem grega, physis, que vem de phyein, surgir de alguma coisa, aparecer por si mesmo” (ARENDT, 2007, p. 163). 
14 ARENDT, 2007, p. 164.
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laborans. Em outras palavras, o homo faber, o fazedor de instrumentos, inventou utensílios e ferramentas para construir um mundo, e não – pelo menos não originalmente – para servir ao processo vital humano. Assim, a questão não é tanto se somos senhores ou escravos de nossas máquinas, mas se estas ainda servem ao mundo e às coisas do mundo ou se, pelo contrário, elas e seus processos automáticos passaram a dominar e até mesmo a destruir o mundo e as coisas (ARENDT, 2007, p. 164). 
Neste sentido, é que técnica e tecnologia não dizem respeito exclusivamente aos utensílios, máquinas, satélites e microships, que são produções de mãos humanas. Em relação aos nossos dias, pode-se indagar se nos tornamos, necessariamente e absolutamente, dependentes de nossos objetos técnicos e tecnológicos, que estão imersos e em atividade nestas interligações informatizadas e contínuas que cobrem todo o globo; ou se estes estão em sua plena “evolução natural”, a serviço do bem e da proteção, a partir de prerrogativas comuns e que interessam a todos os homens, da vida, da natureza e da humanidade. Cabe ainda outra questão mais fundamental: se dependemos ou não, inexoravelmente, de nossas invenções, uma vez que elas existem, a partir de qual modo e sentido os seres humanos se relacionam com as técnicas e tecnologias mundiais em nossos dias atuais?15 
Para onde estas técnicas e tecnologias podem direcionar a humanidade em suas gerações, bem como para onde, se significadas e vivenciadas de tais maneiras, apontam o sentido e o modo de relação entre homem, terra, e natureza? Não se pretende associar à técnica e à tecnologia males que são frutos do engenho humano e que passaram a destruir e a ameaçar o planeta. Com estas questões se está investigando pela postura e relação dos seres humanos ante e com os seus inventos técnicos e tecnológicos, bem como com os adventos, possibilidades e melhorias aos quais podem-se associar. A questão fundamental reside no fato de para o homem abrir-se a possibilidade de, no vigor das técnicas e das tecnologias, passar a compreender o sentido da sua existência na natureza terrena proporcionalmente ao seu poder de controlá-la, decodificá-la e utilizá-la. 
Para iluminar a nossa reflexão sobre esta questão, podemos ler as palavras inicias de Emmanuel Carneiro Leão, em um de seus ensaios, no qual ele nos indica: “algumas consequências previsíveis a que o progresso de reprocessamento estaria arrastando o mundo 
15 “A nossa crença no controle ambiental, avizinhando-se da onipotência, é reforçada por repetidas demonstrações do poder imenso mas dirigido com precisão que podemos mobilizar contra as forças da natureza. Entre as mais avançadas das nossas tecnologias de controle está a utilização da energia solar para substituir alguns usos da eletricidade gerada convencionalmente” (EHRENFELD, 1992, p. 35).
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sem terra da técnica total” (LEÃO, 2010, p. 103); bem como, “três conjunturas que hoje ameaçam a Linguagem da terra, se a primeira esvazia as línguas naturais, e a segunda nega a originalidade do trabalho, a terceira reduz a economia à mera produtividade” (LEÃO, 2010, p. 107). 
A terra é mais antiga do que o homem e a história. Por isso a terra não pode ter nem lugar, nem data, nem certidão de nascimento. O homem é mais antigo do que o mundo e a técnica. O mundo e a técnica têm lugar e data marcada, possuem certidão de nascimento. Por isso a técnica pretende submeter o homem com a tecnologia, dirigindo a história e substituindo a terra pelo mundo. Técnica aqui, nestas colocações de pensamento, não é sinônimo de instrumentação, nem de um sistema mecânico, elétrico ou eletrônico de ferramentas, nem um conjunto de procedimentos, de meios e modos de fazer. Técnica é uma vigência universal e o vigor de um comportamento unidimensionalizante. As máquinas, os equipamentos, os aparelhos não podem escravizar o homem! Só o homem pode escravizar o homem! Por isso a técnica vai reduzindo progressivamente os níveis de relacionamento dos homens com o real e recolhendo a totalidade do real a um padrão único de realização, a saber: à realização controlada, reprocessada e sistematizada do real (LEÃO, 2010, p. 100).
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Capítulo 2 – Produtivismo, consumo e desperdício: a “disponibilização” e a exploração da natureza. 
2.1 – A Reforma, a expropriação e o acúmulo de riquezas, e a alienação do mundo. 
A Reforma significou uma cisão para o cristianismo ocidental, um desafio diante da ortodoxia e uma ameaça à tranquilidade espiritual dos homens, na medida em que se deu com a expropriação das propriedades eclesiásticas e monásticas.16 A partir da Reforma, evento que se situa na transição de um mundo pré-moderno em direção ao mundo da era moderna, o poder e a autoridade da Igreja Católica passaram a ser contestados, pondo em ameaça a estabilidade de uma instituição que havia exercido seu domínio de maneira dominante na Europa durante toda a Idade Média. 
Para Arendt, a Reforma tem como desencadeamento um duplo processo de expropriação individual e de acúmulo de riqueza social. Tais processos desencadeados pela Reforma – o de expropriação das classes camponesas, e o de acúmulo ascendente de riquezas – relacionam-se entre si, na medida em que seus prolongamentos são sentidos e ecoam no mundo moderno. Estes prolongamentos atingem o mundo moderno na ascensão de uma sociedade do desperdício e do consumo, na qual ainda se dá o acúmulo incessante de riquezas pelos que já as possuem, e onde acontece o declínio simultâneo das esferas pública e privada, junto com o eclipse de um mundo público comum.17 
Pois o enorme acúmulo de riqueza ainda em curso na sociedade moderna, que teve início com a expropriação – o esbulho das classes camponesas que, por sua vez, foi consequência quase acidental da expropriação dos bens monásticos e da Igreja após a Reforma – jamais demonstrou grande consideração pela propriedade privada (ARENDT, 2007, p. 74). 
A Reforma, para Arendt, está intimamente ligada ao colapso do sistema feudal, pois a expropriação das classes camponesas é como consequência imprevista da expropriação de bens eclesiásticos e monásticos. 
A Reforma contribuiu, em um aspecto específico, para que o processo de alienação do mundo fosse o eixo de sustentação da história moderna. A 
16 ARENDT, 2007, pp. 260-261. 
17 ARENDT, 2007. p. 269.
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expropriação dos bens eclesiásticos ocorrida naquele momento levou ao empobrecimento de uma enorme massa de camponeses, deixados à míngua em uma situação em que, destituídos de um lugar no mundo, ficaram expostos, de mãos vazias, às conjunturas da vida, tendo apenas sua força de trabalho para vender. Essa massa serviu de mão de obra para impulsionar a Revolução Industrial, na Inglaterra e no restante da Europa, e foi abrigada, de forma mais ou menos precária, nas sociedades nacionais europeias até o século XX (JARDIM, 2011, p. 35). 
Refletindo as implicações da Reforma para a religião, bem como seus impactos no mundo da era moderna, Arendt nos diz que em todos os países protestantes, nos quais a queda da Igreja Católica havia abolido a última instituição ligada à tradição, o que ocorreu foi a perda da certeza da salvação, e não, como se poderia pensar, a crença na salvação ou na vida eterna.18 Junto com a autora, podemos pensar o que significou o impacto da Reforma para os padrões religiosos e espirituais, bem como para a compreensão do “lugar” e da conduta dos seres humanos na vida e em relação a Deus, pois a perda da certeza da salvação teve como consequência imediata “um redobrado zelo em praticar boas ações durante a vida, como se esta fosse apenas um longo período de provação” (ARENDT, 2007, p. 290). 
Para a pensadora, não se deve atribuir aos dois grandes movimentos religiosos da era moderna (a Reforma e a Contra-Reforma) a moderna perda de fé que passou a grassar entre os homens da época moderna. Esta não é de origem religiosa. Sua origem, ao contrário, está ligada ao surgimento das ciências naturais, no século XVII.19 A autora pondera ao dizer que, mesmo considerando que com a Reforma, no início da era moderna, houve “um súbito e inexplicável eclipse da transcendência, da crença de uma vida após a morte” (ARENDT, 2007, p. 265), isso não veio a conduzir os homens num interesse novo e enfático por este mundo. 
Para onde os homens haviam sido lançados sob as correntes da moderna perda de fé, ligada diretamente ao surgimento das ciências naturais no século XVII? Para a autora, dois eventos da história – o surgimento do capitalismo e as mais persistentes tendências da filosofia 
18 Hannah Arendt sinaliza que foi Max Weber quem levantou a questão da era moderna com profundidade, por ele ter apontado que, com a Reforma, o que se perdeu foi a certitudo salutis (a certeza da salvação), e não propriamente a crença numa salvação ou na vida eterna. Para ela, esta foi apenas uma das muitas certezas que se perderam com o advento da era moderna. Ver em: ARENDT, 2007, nota 34, p. 290). 
19 “Desde o surgimento das ciências naturais, no século XVII, tanto a crença quanto a descrença têm se originado na dúvida” [...] “Nosso mundo é, do ponto de vista espiritual, um mundo secular justamente por ser um mundo de dúvida” (ARENDT, 1993, p. 56).
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moderna desde Rene Descartes – demonstram que “os homens modernos não foram arremessados de volta a este mundo, mas para dentro de si mesmos” (ARENDT, 2007, p. 266). 
Quanto às tendências da filosofia, foi – “a preocupação exclusiva com o ego, em oposição à alma ou à pessoa ou ao homem em geral, uma tentativa de reduzir todas as experiências, com o mundo e com os outros seres humanos, a experiências entre o homem e si mesmo” (ARENDT, 2007, p. 266.) – que mostrou o encerramento do homem dentro de si mesmo. E quanto às origens do capitalismo, foi o fato de ser – “possível haver enorme atividade, estritamente mundana,20 sem que haja qualquer grande preocupação ou satisfação com o mundo, atividade cuja motivação mais profunda é, ao contrário, a preocupação e o cuidado com o ego” (ARENDT, 2007, p. 266) –, que mostrou o arremesso dos homens para dentro de si mesmos. Em ambos os casos, este arremesso do homem para dentro de si mesmo é acompanhado, para Arendt, de uma perda do mundo, isto é, de uma alienação humana em relação ao mundo.21 
Ao fazer referência a Max Weber, Arendt afirma que a Reforma manifestou um fenômeno de alienação na direção de um mundo interior – “que nada tem a ver, em intenção e conteúdo, com a alienação em relação à Terra, decorrente da descoberta e da posse do planeta” (ARENDT, 2007, p. 263) –, designado por Weber de “ascetismo do mundo interior”, fenômeno que, para ele, é a mais recôndita fonte da nova mentalidade capitalista. 
Para Hannah Arendt, o ponto de maior importância é que a alienação na direção de um mundo interior (ou o ascetismo do mundo interior, de Weber) não está presente somente na nova modalidade resultante das tentativas de Calvino e Lutero de restaurar a inflexível qualidade extramundana da fé cristã, mas também comparece, “em nível inteiramente diverso, na expropriação das classes camponesas, consequência imprevista da expropriação dos bens da Igreja e, como tal, o fator isolado mais importante no colapso do sistema feudal” (ARENDT, 
20 Para Arendt, a grandeza da descoberta de Max Weber residia em ele ter demonstrado que foi com a origem do capitalismo que esta atividade estritamente mundana, e ao mesmo tempo alienada do mundo, tornou-se um fato. Por isso, para ela, o que distingue a era moderna é a alienação do mundo, e não a alienação do ego, como pensou Marx. Ver em: ARENDT, 2007, p. 266. 
21 “Tudo o que espontaneamente adentra o mundo humano, ou para ele é trazido pelo esforço humano, torna-se parte integrante da condição humana. O impacto da realidade do mundo sobre a existência humana é sentido e recebido como força condicionante. A objetividade do mundo – o seu caráter de coisa ou objeto – e a condição humana complementam-se uma à outra; por ser uma existência condicionada, a existência humana seria impossível sem as coisas, e estas seriam um amontoado de artigos incoerentes, um não-mundo, se esses artigos não fossem condicionantes da existência humana” (ARENDT, 2007, p. 17).
23 
2007. p. 263). Entretanto, Arendt declara que com esta interpretação não deseja negar as descobertas de Weber acerca da enorme força que resulta quando a extramundanidade é dirigida para o mundo, o que se denota, para este, na relação que existe entre a ética de trabalho dos protestantes e a ética monástica.22 Ainda assim, para autora, “o aumento da força do homem sobre as coisas deste mundo resulta, em ambos os casos, da distância que ele coloca entre si mesmo e o mundo, ou seja, da alienação em relação ao mundo” (ARENDT, 2007, p. 264). 
A alienação do mundo para a qual Arendt deseja lançar luz diz respeito, em primeiro lugar, à expropriação das classes camponesas, no início da era moderna. Como vimos, esta expropriação se deu a partir da Reforma, quando houve a expropriação dos bens da Igreja, abolindo definitivamente o sistema feudal. Com este evento, a maioria dos camponeses encontraram-se privados de sua condição primordial de trabalho e de sobrevivência, a propriedade privada de um pedaço de terra neste mundo23: o que, para a autora, é a mais elementar condição política para a mundanidade do homem.24 No pensamento de Arendt, a perda desta condição elementar significa não exclusivamente a privação da propriedade enquanto tal, e sim, no que diz respeito à existência humana, uma destruição de seu lugar de morada e habitação no mundo. 
Antes da era moderna, que começou com a expropriação dos pobres e em seguida passou a emancipar as novas classes destituídas de propriedades, todas as civilizações tiveram por base o caráter sagrado da propriedade privada. A riqueza, ao contrário, fosse de propriedade de um indivíduo ou publicamente distribuída, nunca antes fora sagrada. Originalmente, a propriedade significava nada mais nada menos que o indivíduo possuía seu lugar em determinada parte do mundo e portanto pertencia ao corpo político, isto é, chefiava uma das famílias que, no conjunto, constituíam a esfera pública. Essa parte do mundo que tinha donos privados era tão completamente idêntica à família à qual pertencia que a expulsão do cidadão podia significar não apenas o confisco de sua propriedade mas a destruição de sua própria morada (ARENDT, 2007, p. 71). 
A conclusão de Arendt é que, “pelo mesmo motivo, a expropriação e a alienação do homem em relação ao mundo coincidem; e a era moderna, muito contra as intenções de todos os atores da peça, começou por alienar do mundo certas camadas da população” (ARENDT, 2007, p. 265). A autora ainda alerta-nos para a tendência em esquecer a importância 
22 ARENDT, 2007, p. 264. 
23 ARENDT, 2007, p. 267. 
24 ARENDT, 2007, p. 265.
24 
fundamental desta alienação para a era moderna, quando destacamos seu caráter secular, confundindo secularidade com mundanidade.25 
O que foi disparado pela expropriação das classes camponesas e pela sua subjacente alienação do mundo, no alvorecer da era moderna? Este evento, “lançou a humanidade ocidental num rumo de coisas em que toda propriedade era destruída no processo de expropriação, tudo era devorado no processo de produção, e a estabilidade do mundo era minada num constante processo de mudança” (ARENDT, 2007, p. 264). Se, por um lado, a expropriação situou o curso do mundo sob o signo da destruição e deterioração, da expropriação e produtividade, e da instabilidade e mutabilidade, por outro, 
[...] o fato de que certos grupos foram despojados de seu lugar no mundo e expostos, de mãos vazias, às conjunturas da vida, criou o original acúmulo de riqueza e a possibilidade de transformar essa riqueza em capital através do trabalho. Juntos, estes dois últimos constituíram as condições para o surgimento de uma economia capitalista. Desde o começo, séculos antes da revolução industrial, era evidente que este curso de eventos, iniciado pela expropriação e que dela se nutria, resultaria em enorme aumento da produtividade humana (ARENDT, 2007, p. 267). 
A expropriação das classes camponesas na era moderna (que permanece ligada a um fenômeno de alienação do mundo) desenrolou-se através do acúmulo ascendente de riquezas, pois “a expropriação de pessoas, a destruição de objetos e a devastação de cidades estimulam radicalmente um processo não de mera recuperação, mas de acúmulo de riqueza ainda mais rápido e eficaz” (ARENDT, 2007, p. 264). Para a autora, é o exemplo alemão do pós-guerra que demonstra este fato, pois foi na Alemanha que a “destruição pura e simples substituiu o inexorável processo de depreciação de todas as coisas mundanas, processo este que caracteriza a economia de desperdício na qual vivemos” (ARENDT, 2007, p. 264). 
Na dimensão de uma sociedade do desperdício e do consumo, tais como descritas pela pensadora, a prosperidade não acontece pela variedade e disposição de bens materiais, mas se alimenta do crescente processo de produção e consumo. O ponto fundamental apontado por Arendt quanto à questão da ascensão da sociedade do desperdício e do consumo (que também 
25 […] “como evento histórico tangível, a secularização significa apenas a separação entre Igreja e Estado, entre religião e política; e isto, do ponto de vista religioso, implica em retorno à antiga atitude cristã de dar “a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”, e não uma perda de fé e transcendência ou um novo e enfático interesse nas coisas deste mundo” (ARENDT, 2007, p. 265).
25 
se manifesta sob o signo da alienação em relação ao mundo, que, por sua vez, acompanhou a expropriação das classes camponesas, na era moderna) é que, no mundo moderno, a durabilidade dos objetos conservados ameaça o processo de reposição que alavanca o consumo,26 este que, por sua vez, acaba levando ao desperdício, pois, no intuito de tornar cada vez mais veloz o processo de reposição, os objetos tendem a ser fabricados de acordo com durabilidade e conservação limitadas. Acerca das sociedades do desperdício e do consumo do mundo moderno, diz Arendt que: “a bancarrota decorre não da destruição, mas da conservação, por que a própria durabilidade dos objetos conservados é o maior obstáculo ao processo de reposição, cuja velocidade em constante crescimento é a única coisa constante que resta onde se estabelece esse processo” (ARENDT, 2007, p. 265). 
O aumento da produtividade humana, alavancado pelo surgimento e desenvolvimento da economia capitalista, aconteceu a partir da ascensão de uma nova classe trabalhadora, que, se antes vivia para trabalhar e comer, agora já se encontrava sob as necessidades da vida, ao mesmo tempo em que permanecia alheia aos cuidados e preocupações que não decorressem do próprio processo vital.27 Ao refletir os impactos do surgimento da primeira classe de trabalhadores livres da história, Arendt diz que ocorreu a liberação da força inerente ao “labor power”28, e que, assim: “a expropriação e o acúmulo de riqueza não resultaram simplesmente em novas propriedades nem levaram a uma nova redistribuição da riqueza, mas realimentaram o processo para gerar mais expropriações, maior produtividade e mais apropriações” (ARENDT, 2007, p. 267). 
O acúmulo de capitais, então, passou a permear toda a sociedade, ocasionando um fluxo constantemente crescente de riquezas.29 O que Arendt deseja mostrar com esta afirmação é que o processo de acúmulo de capitais, - que passa a compor a conjuntura das sociedades do desperdício e do consumo no mundo moderno, trazendo consigo a perda do mundo comum, e o declínio das esferas pública e privada, - está intimamente ligado ao princípio de alienação do mundo do qual resultou, experimentado no alvorecer da era moderna “com a perda, muito mais tangível, da propriedade privada de um pedaço de terra neste mundo” (ARENDT, 2007, p. 269). Enquanto que a expropriação das classes camponesas, na era moderna, significou uma alienação 
26 ARENDT, 2007, p. 265. 
27 ARENDT, 2007, p. 267. 
28 ARENDT, 2007, p. 267. 
29 ARENDT, 2007, p. 267.
26 
em relação ao mundo no sentido de que camadas da população foram sendo expulsas de suas terras, o processo de acúmulo e infiltração de capitais significou uma alienação em relação ao mundo na medida em que só “é possível somente se o mundo e a mundanidade do homem forem sacrificados” (ARENDT, 2007, p. 268). Por isso a autora conclui que o processo de acúmulo de capitais acontece, “se a durabilidade mundana e a estabilidade não interferirem, e se todas as coisas mundanas, todos os produtos finais do processo de produção o realimentarem a uma velocidade cada vez maior” (ARENDT, 2007, p. 268). 
O que se seguiu ao processo dos fluxos ascendentes de capitais foram três estágios de alienação que são descritos pela autora. O primeiro é marcado por crueldade e miséria, e significou, através da expropriação, o despojamento de pessoas da dupla proteção da família e da propriedade.30 O segundo aconteceu quando a sociedade passou a ocupar o lugar de sujeito do novo processo vital, posição antes que fora ocupada pela família. Integrar uma classe social oferecia à pessoa a mesma proteção que antes era dada pela participação numa família, e a sociedade passou a ser “identificada com uma propriedade tangível, mas pertencente a uma coletividade de donos – o território do estado nacional – que até o seu declínio no século XX oferecia a todas as classes um substituto do lar privado, roubado à classe dos pobres” (ARENDT, 2007, p. 268). 
O começo do terceiro e último estágio do grassar destes processos de alienação humana em relação ao mundo é marcado por três acontecimentos: o declínio dos estados nacionais europeus, o encolhimento econômico e geográfico da Terra, e a transformação da humanidade numa entidade realmente existente. Neste estágio, as sociedades circunscritas pelos estados nacionais começam a ser substituídas pela humanidade, e o planeta substitui o território do estado. Arendt relaciona o eclipse de um mundo público comum (que se deu com a ascensão da sociedade do desperdício e do consumo, com o célere acúmulo de capitais, e com o declínio das esferas público e privada) com a formação da mentalidade alienada dos movimentos ideológicos de massas, ressaltando que este eclipse permanece ligado, intimamente, ao fenômeno de alienação representado pela expropriação das classes camponesas de um pedaço de terra neste mundo.31 
30 ARENDT, 2007, p. 268. 
31 ARENDT, 2007, p. 269.
27 
O eclipse de um mundo público comum, pode ser melhor compreendido quando se lança o olhar para a noção de mundo proposta por Arendt, e sua respectiva relação com o conceito de Terra, em dois momentos. 
A Terra é a própria quintessência da condição humana e, ao que sabemos, sua natureza pode ser singular no universo, a única capaz de oferecer aos seres humanos um habitat no qual eles podem mover-se e respirar sem esforço nem artifício. O mundo – artifício humano – separa a existência do homem de todo ambiente meramente animal; mas a vida, em si, permanece fora desse mundo artificial, e através da vida o homem permanece ligado a todos os outros organismos vivos (ARENDT, 2007, p.10). 
Em segundo lugar, o termo “público” significa o próprio mundo, na medida em que é comum a todos nós e diferente do lugar que nos cabe dentro dele. Este mundo, contudo, não é idêntico à terra ou à natureza como espaço limitado para o movimento dos homens e condição geral da vida orgânica. Antes, tem a ver com o artefato humano, com o produto de mãos humanas, com os negócios realizados entre os que, juntos, habitam o mundo feito pelo homem. Conviver no mundo significa essencialmente ter um mundo de coisas interposto entre os que nele habitam em comum, como uma mesa se interpõe entre os que se assentam ao seu redor; pois, como todo intermediário, o mundo ao mesmo tempo separa e estabelece uma relação entre os homens (ARENDT, 2007, p. 62). 
A partir daqui podemos perceber que a alienação do homem em relação ao mundo (experimentada na Reforma, na expropriação das classes camponesas, no acúmulo crescente de riqueza que levou ao surgimento do capitalismo, e no grassar de uma sociedade produtivista, do consumo e do desperdício, na qual ocorre uma perda do mundo público comum) sinaliza um distanciamento da condição existencial humana da mundanidade, uma perda de estabilidade e durabilidade dos artifícios e negócios (relações) humanos no mundo, e, ainda, a própria destruição, expropriação e exploração dos espaços terrestres e comuns construídos pelos humanos.32 
Expondo estas concepções, estamos buscando aclarar, no pensamento de Arendt, a relação existente entre Terra e mundo, entre a natureza e os homens, ou ainda entre os homens 
32 Podemos pensar, pelo que nos diz Arendt, que uma alienação do mundo, no que concerne às potencialidades humanas do falar e do agir, significa uma perda da possibilidade de os homens distinguirem-se uns dos outros, permanecendo apenas diferentes entre si, “pois a ação e o discurso são os modos que os seres humanos manifestam- se uns aos outros, não como meros objetos físicos, mas enquanto homens” (ARENDT, 2007, p. 189); e, ademais, “é com palavras e atos que nos inserimos no mundo humano; e esta inserção é como um segundo nascimento, no qual confirmamos e assumimos o fato original e singular do nosso aparecimento físico original” (ARENDT, 2007, p. 189).
28 
e o mundo, a fim de compreendermos o significado das alienações em relação à Terra e ao mundo, que são como espinhas dorsais de todo o desenvolvimento da era moderna até o mundo moderno. Para Arendt, o processo biológico do homem e o processo de crescimento do mundo participam, ambos, do movimento cíclico da natureza terrena.33 Hannah Arendt situa a relação entre mundo humano e natureza alicerçada em sua compreensão de crescimento e declínio, de nascimento e morte, de movimento linear e movimento cíclico. Para ela, “é somente dentro do mundo humano que o movimento cíclico da natureza se manifesta como crescimento e declínio”, pois “somente quando consideramos os produtos da natureza – determinada árvore ou determinado animal – como coisas individuais, retirando-os, com isso, do seu ambiente “natural” e colocando-os em nosso mundo, é que eles começam a ter crescimento e declínio” (ARENDT, 2007. p.109). 
33 ARENDT, 2007, p. 109.
29 
2.2 - A natureza enquanto “disponível” e a perda do mundo comum. 
De qual maneira a alienação do mundo, ou a perda do mundo público comum (descritas por Arendt com a ascensão de uma economia do desperdício, do consumo e da produtividade), pode nos auxiliar na compreensão do sentido da relação entre seres humanos e natureza, relação que passa a atribuir ao homem o lugar de explorador ou desafiador da natureza, e à natureza um sentido daquilo que está exposto para ser disponibilizado, processado e reprocessado, consumido e descartado? 
Na reflexão de Arendt, a alienação do mundo experimentada no evento das expropriações das classes camponesas, como vimos, não sinaliza apenas a perda da propriedade privada, enquanto tal, de um pedaço de terra neste mundo, mas, sobretudo, a perda do lugar humano de morar e habitar neste mundo, em um pedaço de terra.34 Esta questão pode nos impulsionar para a reflexão acerca de como compreendemos e lidamos com a morada humana na terra, com o próprio sentido da experiência que atribuímos ao nosso habitar neste mundo. De que modo estamos habitando este mundo? Isto nos leva à reflexão que se faz também acerca do sentido desta experiência no que diz respeito à relação homem e natureza. De qual modo estamos morando na natureza, em qual sentido compreendemos este morar – o nosso lugar neste mundo e na natureza? 
A alienação em relação ao mundo, disparada primeiramente com a expropriação das classes camponesas, alcança o mundo moderno com o eclipse de um mundo público comum, pois a ascensão da sociedade na qual vigora uma economia produtivista do desperdício e do consumo – onde o acúmulo de capitais se infiltrou por diversos setores e está em constante crescimento – apenas se dá se a durabilidade mundana e a estabilidade do mundo não interferirem, se o próprio mundo e a mundanidade do homem forem sacrificados.35 Nesta dimensão, os objetos mundanos, os produtos finais do processo de produção, realimentam este processo numa velocidade crescente, o que acaba por se manifestar no consumo e desperdício exacerbados. 
34 ARENDT, 2007, p. 71. 
35 ARENDT, 2007, p. 268.
30 
Se o termo “mundo”, designado por Arendt, refere-se ao artifício humano36, mas também às relações entre aqueles que juntos habitam um mundo comum criado pelos homens37, pode-se pensar que a perda do mundo público comum (com a alienação em relação ao mundo, apontadas por Arendt) é sentida com a depreciação e poluição dos espaços mundanos comuns aos homens, com a perda da durabilidade mundana e dos objetos criados pelas mãos humanas, com o esvaziamento do sentido das relações entre os homens, estas que passam a acontecer não mais pressupondo entre estes um lugar público, comum e compartilhado de vida e morada na Terra e na natureza terrena. 
Neste nível alienado de relação entre os homens e o mundo, o sentido de habitar no mundo deixa de perpassar a dimensão da partilha de um lugar próprio e ao mesmo tempo comum a todos os homens, deixando de haver reciprocidade entre lugar e homem, ou uma ressonância entre o habitat e a existência, uma vez que a própria existência humana ameaça e destrói sua morada na terra e os homens, o próprio mundo. A experiência da preservação do mundo acontece noutro sentido, como nos diz Pereira. 
Pela participação e partilha, o lugar próprio recorta-se no lugar comum, a habitação é coabitação, intercomunicação cultural e abertura de possibilidades futuras. A harmonia associada naturalmente ao habitat é compatibilidade, reciprocidade e promoção mútua, não permite fugas delirantes mas consagra eminentemente a relação entre lugar e homem, em que o lugar com sua memória aparece como oferta de um campo de possibilidades reais para a actualização e as iniciativas da existência solidária dos homens. Dada a dimensão corpórea e cultural da morada humana, “entre o habitat e a existência deve existir uma espécie de ressonância de tal modo que no habitat a existência possa encontrar o seu próprio rosto e, reciprocamente, o habitat possa induzir na existência significações inéditas”. Isto pressupõe que a corporeidade humana como abertura à realidade cósmica é, ao mesmo tempo, receptividade perante o seu mundo natal sobre que pode agir através de percepções, acções e obras (PEREIRA, 2003, pp. 5-6). 
Pode-se pensar que a poluição e o crescimento não planejado das cidades, a depredação e subutilização de espaços públicos construídos pelos homens, o acúmulo de lixo e o seu despejamento em locais habitados pelos homens e na natureza, a acessibilidade restrita, por 
36 “A realidade e a confiabilidade do mundo humano repousam basicamente no fato de que estamos rodeados de coisas mais permanentes que a atividade pela qual foram produzidas, e potencialmente ainda mais permanentes que a vida de seus autores. A vida humana, na medida em que é criadora do mundo, está empenhada em constante processo de reificação; e o grau de mundanidade das coisas produzidas, cuja soma total constitui o artifício humano, depende de sua maior ou menor permanência neste mundo” (ARENDT, 2007, p. 107). 
37 ARENDT, 2007, p. 62.
31 
certa camada da população, a espaços urbanos com condições satisfatórias para o bem estar da vida humana, significam processos que acontecem na esteira de uma perda do sentido do mundo tal como espaço público, comum e que reúne os homens em comunidade e partilha, como lugar próprio de morada humana na natureza terrena, ao qual devemos preservar, cuidar e acolher em harmonia com a preservação da existência humana, da vida e da natureza. 
A perda da noção do mundo enquanto lugar próprio de coabitação e partilha humanas, e que está conectado e em dependência com a natureza, em meio ao que dela surge e desaparece, permanece intimamente ligada ao processo de industrialização (cuja evolução se relaciona com uma economia da produção, do consumo e do desperdício38); e este, por sua vez, liga-se à concepção da natureza enquanto fonte objetiva inesgotável de matéria prima para os empenhos e desempenhos exploradores dos homens, bem como um reservatório dos elementos artificiais ou semiartificiais que resultam das atividades industriais, produtivas e consumistas humanas. 
Filho da terra, enleado pelo que o rodeia como a mosca na teia de aranha, o homem corre perigo de morte sempre que tais laços ameaçam romper-se. Apesar desta vinculação à natureza e à vida, o ser humano tornou-se um animal que rompe o equilíbrio ecológico e, como insaciável predador, dizima sem piedade as formas de vida, que partilham com ele o planeta, aliás demasiado limitado para uma população, que avança em ritmo crescente, e continuamente empobrecido pelos gastos de energia não renováveis, que podem apressar desenlaces catastróficos. Planeta da vida, a terra convertida em matéria prima da ambição humana por uma Modernidade tricentenária é, nas sociedades industrializadas, pasto da voracidade de um consumismo, que, se fosse universalizado, a converteria irremediavelmente num planeta da morte (PEREIRA, 2003, p. 4). 
Quando da ascensão de uma sociedade industrializada e tecnológica, cuja economia se baseia no consumo e no desperdício, na produtividade e na velocidade, na perda da durabilidade e estabilidade das relações humanas e dos objetos mundanos, acontece também a ameaça à vida, à natureza e à terra, pois nos dirigimos para a natureza e seus entes na medida em que desejamos obter matéria prima para as nossas produções, processamentos e inventos, bem como quando precisamos nos livrar dos resíduos e subprodutos destas atividades, mesmo sendo eles danosos 
38 “É que a economia da produção e do consumo se contenta em multiplicar produtos, dedica-se apenas a aumentar o nível e descura da qualidade de vida, esquecendo-se de melhorar as condições e o ambiente em que se vive” [...] “Reduzindo tudo a mercadoria, a economia produtivista coisifica o homem para endeusar os produtos. Uma região já não é a comunhão do homem com a terra na unidade de uma história e de uma cultura. É apenas um produto a mais para se oferecer aos turistas das indústrias de férias e das empresas de viagens e de turismo. Os fabricados industriais se tornam os ídolos da produção total” (LEÃO, 2010, p. 109).
32 
e letais para o equilíbrio dos ecossistemas naturais da Terra e à própria terra. Esta compreensão do sentido da relação entre homem e natureza está alicerçada no que Pereira nos indica como sendo a expressão do dogma fundamental do progresso técnico-industrial, isto é, 
[...] do esquecimento da natureza quando reduzida a um objecto de persistente exploração, a uma fonte pura de matérias primas e a pasto submisso da nossa cobiça. O déficit político e ecológico aberto pelo progresso científico-técnico depende de uma concepção epistemológica unilateral, que urge transformar na sua raiz: o ideal mecanicista e a fixação antropocêntrica com olvido da alteridade da natureza e da vida, que são nossas interlocutoras e não simples reservatórios energéticos ou biológicos a explorar em ritmo exponencial (PEREIRA, 1992, p. 9). 
O eclipse de um mundo público comum, como pensa Arendt (no que diz respeito à produtividade, consumo e desperdício nas sociedades capitalistas e industriais, bem como à perda da mundanidade, da durabilidade e da estabilidade do mundo), nos faz refletir sobre o sentido da experiência e condição humanas de habitar e morar num “mundo humano”, situado com a natureza terrena e sobre a terra. O grassar de uma sociedade na qual a condição da mundanidade do homem está sendo minada pelo processo de acúmulo de riquezas que estimula o consumo, a destruição, a expropriação, a poluição, o produtivismo, a industrialização e o desperdício, direciona o sentido da relação entre homens e natureza para uma dimensão que compreende o homem e a realização de sua humanidade na proporção em que este calcula e subjuga, explora e dispõe da natureza, ao mesmo tempo em que a natureza adquire teor de dispositivo disponível, ou reservatório, para o uso e à disposição dos seres humanos. O sentido desta relação entre homens e natureza é tingido pela afirmação da força e eficiência do poderio de artifícios humanos frente à natureza e seus seres.39 
39 “A gravidade da situação que hoje atravessamos, não se deve unicamente ao fato de que temos de lidar com a ameaça da destruição de nossos recursos mais vitais: da água, do ar, das espécies vegetais e animais. O momento é grave, de modo mais essencial, por que o homem esqueceu a riqueza do que pode significar ser um ser humano. A tentativa de afirmar um poderio sem limites sobre as coisas – o projeto de estabelecer-se como tirano da vida – redunda em seu isolamento, em rompimento do diálogo com a natureza, em perda da referência da terra como abrigo. Em outro nível, este projeto está intimamente ligado aos ritmos da sociedade industrial. Cria-se a ilusão de que, embora existam desigualdades sociais evidentes demais para serem escamoteadas, todos os homens têm igual poderio sobre a natureza. Todos, até os mais subjugados, têm o poder de subjugar as forças da natureza. Assim, o desequilíbrio ecológico e a planetarização de uma sociedade que, se desenvolvendo sob a ideologia do individualismo e da pretensa igualdade de todos, caminha hoje para uma tecnocracia totalitária, são aspectos de um mesmo fenômeno” (UNGER, 2009, p. 149).
33 
A alienação do mundo apontada por Arendt, acontece em conformidade com certa compreensão do que significa, para os homens, habitar e morar num mundo de artifícios e relações humanas, ao mesmo tempo em que este é ser da natureza terrena e terrestre. Se, por um lado, a alienação do mundo impulsiona os homens para um sentido de habitar no mundo que não comporta o preservar e o compartilhar dos espaços públicos e comuns aos homens, em harmonia, respeito e ética com a natureza e seus elementos40, por outro, ela acontece ao mesmo tempo em que se dá a compreensão da natureza como reservatório de matérias primas e como objeto disponível para o cálculo, controle e exploração dos seres humanos, num grassar da sociedade industrial e produtivista que estimula o consumo, o desperdício, a poluição e a devastação da natureza. Esta relação entre o homem e a natureza também acontece ancorada em certa compreensão do lugar e postura dos seres humanos em relação à natureza terrena, por isso envolve o questionamento acerca da condição humana de ser um ser da natureza, ao mesmo tempo em que habita o mundo que é comum e fruto das atividades humanas sobre o planeta. 
Para melhor compreendermos o sentido da relação entre homens e natureza num mundo onde se dão os avanços simultâneos do produtivismo e da industrialização, da técnica e da tecnologia, da planetarização e da globalização, do consumo e do desperdício exacerbados, podemos lançar o olhar para a reflexão que Martin Heidegger faz sobre a essência da técnica moderna em um de seus ensaios. Neste, o pensador alude, em certos momentos, à relação entre homens e natureza, do ponto de vista da técnica e da essência da técnica41, numa dimensão na qual a dinâmica e o vigor destas estão a favor de um movimento de reduzir a natureza a um objeto disponível à exploração e ao uso dos homens, como se esta passasse a se manifestar ao homem enquanto pura disponibilidade, à qual o homem se propõe e dispõe ao desafio de explorar e dominar em vistas de alcançar seus interesses e finalidades. 
40 “O filósofo Martin Heidegger (1990, p.118) nos mostra que nossa palavra ética provém do grego ethos, cujo sentido originário é: morada, não no sentido de tal ou qual construção material, mas no sentido existencial e ontológico da ambiência que é própria ao ser humano, o modo de ser, de habitar, mediante o qual ele realiza sua humanidade. O sentido da ética como um conjunto de princípios que devem orientar sua vida já é um sentido derivado desta experiência originária, e a convenção já é a petrificação desta experiência viva. Sendo, portanto o sentido primeiro da ética um morar, habitar, todo morar autêntico, toda ética essencial, está ligado a um preservar. Segundo este pensador, preservar não é apenas não causar danos a alguma coisa. O preservar genuíno tem uma dimensão positiva, ativa, e acontece quando deixamos algo na paz de sua própria natureza, de sua força originária. Assim também, salvar não tem unicamente o sentido de resgatar uma coisa do perigo: salvar é restituir, ou dar condições para que ela se revele naquilo que lhe é mais próprio. Salvar realmente significa deixar-ser” (UNGER, 2009, p. 152). 
41 Para melhor compreender o sentido que o pensador atribui à técnica moderna como uma forma de des- encobrimento e à essência da técnica moderna como composição, bem como em que dimensão se situa a relação entre os seres humanos e a natureza a partir de tais compreensões, pode-se ler o seu ensaio A questão da técnica. Ver em: HEIDEGGER, 2001, pp. 11-38.
34 
O des-encobrimento que domina a técnica moderna, possui, como característica, o pôr, no sentido de explorar. Esta exploração se dá e acontece num múltiplo movimento: a energia escondida na natureza é extraída, o extraído vê-se transformado, o transformado, estocado, o estocado, distribuído, o distribuído, reprocessado [...] Quando, portanto, nas pesquisas e investigações, o homem corre atrás da natureza, considerando-a um setor de sua representação, ele já se encontra comprometido com uma forma de desencobrimento. Trata-se da forma de desencobrimento da técnica que o desafia a explorar a natureza, tomando-a por objeto de pesquisa até que o objeto desapareça no não-objeto da dis-ponibilidade [...] A essência da técnica moderna põe o homem a caminho do des-encobrimento que sempre conduz o real, de maneira mais ou menos perceptível, à dis-ponibilidade (HEIDEGGER, 2001, p. 20; p. 22; p. 27). 
Desta maneira, podemos iluminar o sentido que se atribui à relação entre homens e natureza do ponto de vista da dis-ponibilidade, do processamento, da exploração, da extração, do estoque e do consumo, numa sociedade na qual vigoram a industrialização e a poluição, a subjugação e sujeição da natureza aos interesses humanos, o desperdício e o produtivismo, e o acúmulo desenfreado de capitais que se dá em acordo com o lucro e com a satisfação dos interesses econômicos e ideológicos de certos grupos de seres humanos. 
Por outro lado, no pensamento de Martin Heidegger, o des-encobrimento explorador que domina a técnica moderna está ligado diretamente ao asseguramento e controle da natureza, uma vez que “por toda parte, assegura-se o controle. Pois o controle e a segurança constituem até as marcas fundamentais do desencobrimento explorador” (HEIDEGGER, 2001, p. 20). Se, por um lado, 
os “mortais”, que Heidegger contrapõe ao homem planetário, são aqueles que sabem habitar, morar, no sentido pleno da palavra, isto é, que sabem respeitar a Terra e seus seres, acolher e preservar, deixar o próximo ser próximo e o distante ser distante, reconhecer o sagrado, assumir a morte (UNGER, 2001, p. 125). 
Por outro, o modo de ser do homem planetário da técnica é dominado pela dimensão de um pensar que calcula, e “o mundo, sob a égide desta dimensão, aparece como um objeto, e unicamente como um objeto, a ser enquadrado, computado, controlado” (UNGER, 2001, p. 126). 
O cálculo, que domina o modo de ser do homem planetário, não designa simplesmente a prática do saber matemático, mas “um modo de
35 
comportamento” que determina todo tipo de ação e atitude desse homem. Segundo Heidegger, sua exacerbação é a atitude que só reconhece como real a ação prevista, organizada e planificada. O cálculo enquanto tal, se opõe a todo movimento espontâneo daquilo que cresce a partir de si mesmo, daquilo que se move a partir de seu crescimento intrínseco. Para ele os avanços tecnológicos resultantes da exploração da energia atômica deflagraram um movimento que se desenvolve num ritmo sempre mais acelerado, que já independe da vontade do homem (UNGER, 2001, p. 127). 
A alienação em relação ao mundo e o caráter de disponibilidade da natureza permanecem ligados ao modo com que os homens, - nas sociedades industriais do consumo e da produtividade, sugando da natureza seus recursos enquanto matéria prima, e devolvendo para ela o lixo e os materiais não biodegradáveis, tal como se faz num reservatório, - compreendem o seu habitar e o seu morar no mundo e na natureza da terra. Ao mesmo tempo em que o homem se distancia de uma dimensão de habitar o mundo preservando-o e edificando- o em harmonia com a natureza (com a poluição das cidades, com a perda da durabilidade dos bens humanos, com a depreciação dos espaços públicos que os homens têm em comum), também acontece a prevalência de um sentido para a relação homem e natureza que ressalta o caráter de disponibilidade da natureza a ser explorada, compreendendo a própria natureza humana na mesma proporção com que o homem controla, subjuga, prevê e dispõe da natureza.42 
Com isso, não se pretende, porém, negar o avanço das técnicas e das tecnologias por sobre o planeta, muito menos condená-las como males humanos a serem aniquilados e retirados a todo custo da nossa realidade mundana. Heidegger também nos auxilia na compreensão da dimensão na qual pode se situar a relação entre os seres humanos e a técnica, dimensão esta que, se reduzir os seres humanos a meros servidores da técnica e ao seu modo de se instalar sobre o mundo, poderá conduzir os homens para uma relação que não é apenas de controle e domínio sobre a natureza, mas que é, perigosamente, de asseguramento e segurança em relação à própria técnica, à ciência e aos seus desdobramentos, em relação aos próprios homens, seus vínculos e potencialidades, em relação à vida e à existência dos seres.43 
42 “A perspectiva tecnocrática futurista trata o mundo da natureza como um pano de fundo para a atividade do ser humano, visto como ápice da criação. Esta maneira de ver a relação homem/Natureza, que exerce uma profunda influência em todo o percurso civilizacional do Ocidente, encontra sua expressão máxima no lugar dado pela modernidade à técnica, como meio de o homem “vencer” e “dominar” a natureza, e “humanizar a terra”. Assim, como diria Heidegger, a técnica – que na compreensão grega é uma forma de poiesis, um lugar de revelação dos entes – se torna cada vez mais uma prática de ocultamento, à medida que o homem projeta a sombra das suas necessidades sobre toda a natureza, que não existe a não ser como objeto de uso seu” (UNGER, 1991, p. 78). 
43 “Recentemente, a ciência vem-se esforçando por tornar “artificial” a própria vida, por cortar o último laço que faz do próprio homem um filho da natureza. O mesmo desejo de fugir da prisão terrena manifesta-se na tentativa de criar a vida numa proveta [...] A questão é apenas se desejamos usar nessa direção nosso novo conhecimento
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  • 1. UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA THIAGO PINTO LOBÃO MUNIZ DE SOUZA A RELAÇÃO HOMEM E NATUREZA SOB A LUZ DAS ALIENAÇÕES DA ERA MODERNA DESCRITAS POR HANNAH ARENDT SALVADOR, BAHIA, BRASIL 2014
  • 2. THIAGO PINTO LOBÃO MUNIZ DE SOUZA A RELAÇÃO HOMEM E NATUREZA SOB A LUZ DAS ALIENAÇÕES DA ERA MODERNA DESCRITAS POR HANNAH ARENDT Monografia apresentada ao departamento de Filosofia, do curso de graduação em Filosofia, da Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, como requisito parcial para obtenção do grau de bacharel em Filosofia. Orientação: Profa. Nancy Mangabeira Unger. SALVADOR, BAHIA, BRASIL 2014
  • 4. THIAGO PINTO LOBÃO MUNIZ DE SOUZA A RELAÇÃO HOMEM E NATUREZA SOB A LUZ DAS ALIENAÇÕES DA ERA MODERNA DESCRITAS POR HANNAH ARENDT Monografia apresentada ao departamento de Filosofia, do curso de graduação em Filosofia, da Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, como requisito parcial para obtenção do grau de bacharel em Filosofia. Orientação: Profa. Nancy Mangabeira Unger COMISSÃO EXAMINADORA: _____________________________________ Profa. Dra. Nancy Mangabeira Unger Universidade Federal da Bahia _____________________________________ Profa Dra Vanessa Sievers de Almeida Universidade Federal da Bahia _____________________________________ Prof. Dr. Mauro Castelo Branco de Moura Universidade Federal da Bahia Salvador, 29 de Julho de 2014
  • 5. RESUMO Neste trabalho busca-se refletir o sentido e o modo da relação dos seres humanos com a natureza sob a luz das alienações humanas em relação à Terra e ao mundo, descritas por Hannah Arendt, em sua obra A condição humana. O intento fundamental deste trabalho consiste em mostrar como estas alienações – que se constituem numa dupla fuga: do homem (que está na Terra) para o universo e do mundo para dentro do homem – podem iluminar a compreensão acerca do modo com o qual os seres humanos vivenciam a sua existência mortal, natural e terrena, se posicionando em relação à Terra, à sua natureza e ao seu próprio mundo. No que concerne à alienação humana em relação à Terra e à natureza terrena, busca-se relacioná-la, em primeiro lugar, à compreensão da técnica e da tecnologia, no mundo globalizado, com o controle, manipulação e mapeamento da esfera terrestre e de sua natureza; em outro momento busca-se ligar tal alienação em relação à Terra e à natureza terrena a um ideal cientifico que passou a desencadear na natureza terrena fenômenos que lhe são externos, reprocessando e ameaçando os processos naturais. Já no que diz respeito à alienação do mundo, deseja-se mostrar, em primeiro lugar, que ela se liga diretamente à ascensão de uma sociedade industrial e produtivista e à perda da noção de um mundo público comum, o que acontece na esteira de um movimento que significa a relação homem e natureza do ponto de vista da disponibilidade, da exploração e da poluição de seus espaços; em outro momento, irá se intentar relacionar a alienação humana em relação ao mundo com o sentido da relação homem e natureza, na medida em que esta alienação acontece ao custo de os seres humanos compreenderem o real e a realidade que os circundam a partir de um traço de funcionalidade e objetificação, o que também incide na natureza, que passa a ser significada como sistema ou objeto aos quais os homens, enquanto animais racionais, arvoram-se em decifrar, controlar e prever, ancorados exclusivamente na existência de seus processos mentais subjetivos e introspectivos.
  • 6. ABSTRACT The purpose of this document is to reflect the understanding of the relation between human being and nature with the aspect of human being alienation from the earth and the world described by Hannah Arendt in her major work, The Human Condition. The fundamental attempt is based on how the alienations – that are consisted on the double escape: from the man to the universe and from the world to the men- could enlighten the comprehension concerning about the way that the human beings experience their existence deadly, naturally and earthly, positioning themselves in relations with earth, nature and in their own world. In the concern of the human alienation from the earth and the terrain nature pursuing the link with technic and technology in a global world, with control, manipulation and mapping of the earth`s sphere in its own nature. In another moment, pursuits the bind with the alienation from the earth to an scientific ideal that unleashed in earth`s nature phenomenon that are outsourced, reprocessing and threatening the natural processes. Since what it`s concerned about the world`s alienation, its craving to show that the alienation from the world is connected with ascent of an industrial and productive society, and with the loss of the notion of a common public world. This happens simultaneously with the movement that means the relation between human being and nature in the perspective of availability, exploration and pollution of its bounders. In another moment, there will be an attempt to relate the human alienation in relation with the world carrying the sense of human being and nature, insofar the alienation to occur, it demands for the human beings to understand the real and reality from the functionality and objectness. These two concepts reflect in nature and result in a new understanding that threat the nature like a system or object that human beings, as rational animals, desire to control and predict, established exclusively in the existence of their own mental and introspective processes.
  • 7. SUMÁRIO Introdução 1 1 – Globalidade e continuidade terrestres – técnica, tecnologia e natureza 6 1.1 – A descoberta das Américas e a alienação da Terra na era moderna 6 1.2 – A globalidade e a continuidade terrestres no mundo moderno 10 1.3 – Técnica e tecnologia na relação entre seres humanos e natureza 13 2 – Produtivismo, consumo e desperdício: a disponibilização e exploração da natureza 20 2.1 – A Reforma, a expropriação e o acúmulo de riquezas: a alienação do mundo 20 2.2 – A natureza enquanto disponível e a perda do mundo comum 29 3 – As descobertas telescópicas de Galileu, a alienação da Terra e a relação homem-natureza 37 3.1 – O ponto arquimediano e a ascensão do homo faber 37 3.2 – A dimensão da relação homem e natureza do ponto de vista da moderna ciência natural 45 3.3 – A dúvida cartesiana e a transferência do ponto arquimediano para dentro do homem 53 Considerações finais 64 Bibliografia 71
  • 8.
  • 9. 1 Introdução Ao pensar a condição humana em seu tempo, bem como o que os seres humanos estão fazendo, Hannah Arendt, em A Condição Humana, considera alguns acontecimentos: a globalidade, a continuidade e a arremetida da velocidade no planeta Terra, a ascensão de uma sociedade do desperdício e do consumo, e o desenvolvimento da física quântica com seus pressupostos, instrumentos e experiências. Estes acontecimentos que despontam no mundo à época da pensadora (o mundo moderno) possuem uma relação fundamental com três eventos que se deram no limiar da era moderna, determinando o caráter desta época: a descoberta das Américas e a exploração de toda a Terra; a Reforma que, expropriando as propriedades eclesiásticas e monásticas, desencadeou o duplo processo de expropriação individual e acúmulo de riqueza social; e as descobertas telescópicas de Galileu, abrindo caminho para o desenvolvimento de uma nova ciência que considera a natureza da Terra do ponto de vista do universo. Esta relação fundamental não acontece por meio de uma cadeia de causalidade, pois se trata de uma relação entre eventos. A relação se estabelece na medida em que estes três eventos, que acontecem no limiar entre o mundo pré-moderno e o mundo da era moderna, continuam a se desenrolar em continuidade no mundo moderno, o que é experimentado com a globalidade e continuidade terrestres, com a sociedade do desperdício e do consumo, e com os adventos e inventos trazidos com o desenvolvimento da física quântica. Por isso, para Arendt, há uma relação direta entre a descoberta das Américas e a globalidade ou continuidade terrestres, entre a Reforma, e sua consequente expropriação, e a sociedade do consumo e do desperdício, entre as descobertas telescópicas de Galileu e o despontar das físicas atômica e quântica. Por outro lado, os três eventos que determinaram o caráter da era moderna se interligam por que manifestam, cada um à sua maneira, fenômenos de alienação do homem em relação à Terra ou ao mundo. Como não poderia deixar de ser, estas alienações, experimentadas por aqueles homens da era moderna com estes eventos, também se manifestam no mundo à época da pensadora, o mundo moderno, em alguns de seus acontecimentos. Num primeiro intento, este trabalho irá mostrar o que são, e o que significaram, as alienações da Terra e do mundo, tais como pensadas por Arendt, e que se manifestam com os três eventos que determinaram o caráter da era moderna, se prolongando até os tempos do
  • 10. 2 mundo moderno. Considerando tais alienações experimentadas nestes três eventos do limiar da era moderna, bem como seus prolongamentos em acontecimentos do mundo moderno, está se buscando refletir a questão central deste trabalho: em que dimensão e sentido acontece, hoje em dia, a relação entre os seres humanos e a natureza? Esta é uma questão muito ampla e que abrange as nossas noções de humanidade, de natureza, de Terra e de mundo, perpassando, ainda, as concepções de vida, de existência, de ciência, de linguagem e de técnica. Ao questionarmos a relação entre seres humanos e natureza, sob a luz das alienações da Terra e do mundo disparadas com os eventos iniciais da era moderna descritos por Arendt, e que se dão ainda no mundo moderno, se está investigando o sentido e a significância que atribuímos a tal relação nos tempos atuais, bem como a partir de quais dimensões, pressupostos e condições acontece tal relação. Qual a atmosfera que permeia a atual relação entre os seres humanos e a natureza? Investigar pelo sentido e dimensão da relação entre seres humanos e natureza é pensar acerca da própria condição existencial humana que se dá compartilhada e, em certos níveis, em dependência necessária com a natureza, no sentido da totalidade de tudo que existe por si e sem intervenção humana e de tudo que os homens criam a partir dela ou artificialmente. Esta é a outra questão central deste trabalho: em que sentido experimentamos e refletimos, enquanto seres humanos, a condição existencial de sermos seres vivos e finitos, terrenos e terráqueos, dependentes, e ao mesmo tempo integrantes, dos elementos e ciclos vivos e não vivos da natureza? Em relação à condição existencial humana – de estarmos vivos sobre a terra e na natureza, nascendo e desaparecendo neste planeta e para este mundo – pode-se atribuir-lhe sentido num viés de acolhimento e preservação ou de recusa e superação, quando se reflete o sentido atual da nossa relação com a natureza. Observamos, hoje em dia, a humanidade agindo em relação à natureza de um modo que a preserva e a acolhe como condição inalienável para a existência da própria vida, humana ou não, ou o que presenciamos atualmente é a negação, por parte de nós, desta condição que nos é evidente? Os fenômenos de alienação distinguidos por Arendt (do homem em relação à Terra e do homem em relação ao mundo) nos auxiliam na compreensão da questão acerca do sentido da relação dos seres humanos com a natureza, pois se ligam a dois movimentos: a alienação dos homens em relação à Terra e ao mundo pode lançar os seres humanos numa postura de recusa de sua condição evidente de ser um ser vivo terreno e finito, em dependência inexorável com a
  • 11. 3 natureza, com a Terra e com o mundo; bem como para acima ou para fora da Terra, do mundo e da natureza, como se os seres humanos pudessem compreender e tratar a natureza, a Terra e o mundo como estando situados além, exteriores ou alheios aos mesmos, isto é, de um ponto de vista que não depende em grau algum das condições fundamentais e vitais oferecidas por estes. Mostraremos, neste trabalho, como estas alienações podem ser relacionadas à questão do sentido da relação dos homens com a natureza. Mais precisamente: como o sentido desta relação entre homem e natureza pode ser pensado nos dias atuais a partir do que a autora designa por fenômenos de alienação, estes que marcaram a mentalidade e a condição existencial humanas no alvorecer de uma nova era e que se prolongaram até os tempos atuais. Estamos também partindo do pressuposto de que a relação dos seres humanos com a natureza, de um modo geral e global, alcançou nos dias de hoje um momento crítico, isto é, um momento que exige reflexão acerca do que já foi feito e de decisão acerca do que ainda há por se fazer. A dimensão na qual acontece a atual relação entre seres humanos e natureza é profundamente marcada pelo controle, posse e domínio, pela exploração, poluição e degradação, pela objetificação, utilitarização e distanciamento dos seres humanos em relação à natureza. Mas não se trata, no que diz respeito a este trabalho, de atribuir às alienações determinantes da era moderna, e aos seus desdobramentos no mundo moderno, as causas por estarmos situados nessa dimensão e nesta atmosfera de relação com a natureza. Trata-se de investigar como os fenômenos de alienação identificados por Hannah Arendt nos auxiliam a pensar, iluminando a nossa compreensão, o sentido da atual relação que estabelecemos com a natureza, com a vida, com a Terra e com o mundo, bem como o modo com o qual compreendemos e experimentamos a própria condição humana de sermos seres viventes da natureza, arraigados à terra e habitantes deste planeta, capazes de erigir tecnologias, sociedades e civilizações inteiras, ou de destruir todo o globo. Seguindo neste caminho, esse trabalho passará por três momentos. No primeiro momento, a reflexão será acerca do que significou, para Arendt, a alienação humana em relação à Terra enquanto planeta e morada, vivenciada no alvorecer da era moderna com o evento da descoberta das Américas, e que se prolonga nos tempos do mundo moderno (os tempos de Arendt) com a globalidade e a continuidade que passaram a grassar pelo orbe terrestre. Na medida em que a globalidade e a continuidade terrestres, apontadas pela autora como acontecimentos e prolongamentos da era moderna no mundo moderno, podem ser relacionadas
  • 12. 4 à expansão das técnicas e da informatização, das tecnologias e da globalização, no nosso tempo, é que podemos refletir o sentido, tingido pelo controle, exploração e produtivismo, da relação entre os seres humanos e a natureza da Terra, ou entre estes e a própria Terra, sentido tal que pode ser melhor compreendido a partir de um fenômeno de alienação do homem em relação à Terra. No segundo momento, a reflexão se dará acerca do que significou, no início da era moderna, a alienação no sentido de um mundo interior manifestada pela Reforma e que acabou por desencadear um duplo processo: de expropriação individual e de acúmulo ascendente de riqueza social. Na medida em que esta alienação se prolonga nos tempos do mundo moderno e é sentida com a ascensão de uma sociedade do desperdício e do consumo exacerbados, como descreve Arendt, busca-se pensar o sentido da atual relação entre seres humanos e natureza, que, sob a égide da alienação do mundo e da perda da noção de um mundo comum, alicerça-se na compreensão de que a natureza se constitui como fonte inesgotável de recursos disponíveis para a nossa manipulação e como reservatório de produtos e subprodutos, naturais ou artificiais, das atividades humanas. A ascensão de uma sociedade do desperdício e do consumo, que se relaciona primariamente com a Reforma, e com as subsequentes expropriações e acúmulo de riquezas, expressa uma alienação dos seres humanos em relação ao mundo que lhe é comum, e à natureza que lhes é morada terrestre, pois o desperdício, a destruição, o produtivismo e o consumo exacerbados, nas sociedades industriais, se dão na esteira da exploração, manipulação, disponibilização e reprocessamento de elementos da natureza, com a extinção de suas espécies e com a poluição ou aniquilação de seus espaços. No terceiro momento, irá se refletir o significado das descobertas telescópicas de Galileu, a respectiva alienação da Terra que se manifesta com este evento, e, por fim, a reação epocal a tais descobertas, que foi a moderna filosofia da dúvida inaugurada por René Descartes, com a respectiva alienação do mundo que lhe é inerente. Para a autora, as descobertas de Galileu com um instrumento significam duas concepções: uma nova concepção física do mundo, na qual o homem passa a tratar a Terra e a natureza terrena de um ponto exterior e distanciado em relação às mesmas (o ponto arquimediano), o que incide nas ciências com o relativismo, com a transformação dos sentidos das noções de “universal” e de “absoluto”, com a ascensão da álgebra moderna e a sua respectiva redução das ciências à matemática; e, ainda, a moderna concepção do homem como fazedor ou fabricador de instrumentos (o homo faber), estes que
  • 13. 5 devem auxiliá-lo a capturar e a flagrar os fenômenos da natureza e do universo, enquanto processos em suas experiências, tornando possível reproduzi-los em algum lugar com intermédio de outros instrumentos. Esta alienação em relação à Terra e à natureza terrena, manifestada nestas duas novas concepções que, para Arendt, modificam e determinam o caráter da era moderna, se prolonga nos tempos do mundo moderno através dos pressupostos e inventos da física quântica e atômica, na medida em que ao homem tornou-se possível reproduzir na natureza terrena eventos que não ocorrem da mesma maneira nela, a risco de ameaçá-la, com o auxílio de instrumentos e aparelhagens que possuem influência direta nos dados captados e medidos, e, ainda, quando a própria ciência tornou-se sustentada por uma linguagem matemática simbólica que encerra afirmações que já não podem ser reconvertidas em palavras e que são invenções da mente humana fechada e isolada em relação ao mundo. Esta alienação em relação à natureza terrena e à Terra (bem como a alienação do mundo experimentada através da dúvida cartesiana) nos auxiliarão a compreender o sentido da relação entre seres humanos e natureza quando se pensa a natureza como objeto, sistema ou mecanismo que é isolado, controlado e utilizado por nós, decifrado por instrumentos e descrito por leis matemáticas que obedecem a padrões, modelos e símbolos criados pela própria mente, esta que já se encontra fechada dentro de si mesma.
  • 14. 6 Capítulo 1 – Globalidade e continuidade terrestres – técnica, tecnologia e natureza. 1.1 - A descoberta das Américas e a alienação da Terra na era moderna. Nos diz Hannah Arendt, no capítulo sexto1 de A condição humana, que: no limiar da era moderna há três grandes eventos que lhe determinaram o caráter: a descoberta da América e a subsequente exploração de toda a Terra; a Reforma que, expropriando as propriedades eclesiásticas e monásticas, desencadeou o duplo processo de expropriação individual e acúmulo de riqueza social; e a invenção do telescópio, ensejando o desenvolvimento de uma nova ciência que considera a natureza da Terra do ponto de vista do universo. Não são eventos modernos tal como os conhecemos desde a Revolução Francesa; e, embora não possam ser explicados por alguma corrente de causalidade, como nenhum evento pode sê-lo, continuam a desenrolar-se ainda hoje em perfeita continuidade na qual podemos identificar precedentes e predecessores. Nenhum deles tem o caráter peculiar de uma explosão de correntes subterrâneas que, ganhando alento às ocultas, irrompessem subitamente (ARENDT, 2007, p. 260). A autora prossegue declarando que os personagens ligados a estes eventos (os navegadores e exploradores, Lutero e Galileu) pertencem ainda a um mundo pré-moderno, pois não se encontra em nenhum deles o espírito de sensação de novidade e veemência ante os seus feitos, tal como se pode observar, desde o século XVII, em certos autores, cientistas e filósofos. Estes personagens que foram precursores e não eram revolucionários, ainda tinham seus motivos e intenções arraigados fortemente à tradição. Refletindo a significância destes eventos, Arendt considera que a descoberta de continentes e oceanos desconhecidos foi o evento mais espetacular em relação ao mais inquietante (sentido na cisão do cristianismo ocidental através da Reforma), e ao menos percebido de todos (a introdução, na multiplicidade de utensílios humanos, de um novo instrumento).2 O evento que originalmente possuiu o menor impacto, por ter sido o menos percebido de todos, representado pelo primeiro passo experimental do homem na direção da exploração e descoberta do universo, é que vem ganhando impulso e força cada vez maiores. Este impulso crescente se dá ao custo de eclipsar não só a expansão da terra habitada (contida unicamente 1 “Nesse capítulo, Hannah Arendt mostrou que os três eventos que marcaram o início da modernidade – a descoberta dos novos continentes, a invenção do telescópio por Galileu e a Reforma – já continham os ingredientes do processo de alienação que se intensificaria nos séculos seguintes” (JARDIM, 2011, p. 35). 2 ARENDT, 2007. p. 261.
  • 15. 7 pelos limites do próprio globo), mas também o processo econômico de acúmulo de riquezas, aparentemente ilimitado.3 A descoberta de novos continentes e oceanos possibilitou aos seres humanos o conhecimento de novas civilizações, o acesso e a exploração de recursos naturais ainda desconhecidos, a invenção e o aperfeiçoamento de instrumentos, mapas e meios de transporte. A Terra que antes ainda possuía um continente inteiro desconhecido, pôde ser descoberta e vislumbrada em sua amplidão e imensidão, e pontos que antes se situavam a uma distância incomensurável e desconhecida pelos humanos, passaram a compor, em mapas, regiões as quais se poderia ter realmente acesso, através de viagens que, em alguns casos, nunca acabaram. De certa maneira, a descoberta de novos continentes e oceanos liga-se à expansão da velocidade por sobre a Terra, pois as distâncias entre pontos do globo haviam sido encurtadas mediante a conquista humana das navegações às longas distâncias em torno da Terra. Para Arendt, “a descoberta do planeta, o mapeamento de suas terras e o levantamento cartográfico de seus mares levaram muitos anos e só agora estão chegando ao fim” (ARENDT, 2007, p.262). Prossegue a autora declarando que, mesmo que se possa vislumbrar um encurtamento das distâncias terrestres ou uma escalada da velocidade, através do que significou a descoberta e exploração de novos continentes e oceanos, os navegadores e exploradores do início da era moderna não se lançaram ao mar imbuídos com estes propósitos, ou seja: eles se fizeram ao mar para ampliar a Terra, não para reduzi-la a uma bola; e quando atenderam ao chamado de terras distantes, não tinham intenção alguma de abolir a distância. Só agora, com nosso conhecimento retrospectivo, podemos ver o óbvio: nada que possa ser medido permanece imenso; toda medição reúne pontos distantes e, portanto, estabelece proximidade onde antes havia distância (ARENDT, 2007, p. 262). Aos exploradores e circunavegadores terrestres dos estágios iniciais da era moderna revelaram-se a imensidão e a multiplicidade da Terra e de suas paisagens, bem como a capacidade e engenho humanos de dominar seus artefatos e de se sobrepor ao seu ambiente terreno em vistas de seus interesses. Por isso, à descoberta dos novos continentes e oceanos também pode-se associar o aperfeiçoamento da capacidade humana de medição e localização geográfica, bem como o conhecimento acerca da estrutura, constituição e dinâmica de seu 3 ARENDT, 2007, p. 262.
  • 16. 8 próprio planeta. Refletindo o que significou a descoberta de um novo continente e de novos oceanos, no limiar da era moderna, Arendt situa que “precisamente no instante em que se descobriu a imensidão do espaço terrestre, começou o famoso apequenamento do globo” (ARENDT, 2007, p. 262). Um fato relevante pensado pela autora acerca do significado deste apequenamento ou avizinhamento do globo é que os mapas e as cartas de navegação das primeiras etapas da era moderna anteciparam-se às invenções técnicas com as quais todo o espaço terrestre se tornou próximo e pequeno. Por isso, afirma Arendt que “antes que aprendêssemos a dar a volta ao mundo, a circunscrever em dias e horas a esfera da morada humana, já havíamos trazido o globo à nossa sala de estar, para tocá-lo com as mãos e fazê-lo girar diante dos olhos” (ARENDT, 2007. p. 263). Assim podemos pensar que a descoberta de novos continentes e oceanos foi proporcionada ao homem a partir do aprimoramento de sua capacidade de representação e medição da realidade, através de mapas e cartas de localização espacial sobre a Terra, ao mesmo tempo em que, aos olhos daqueles exploradores e viajantes iniciais, a Terra se revelava como esfera da morada humana comum e interligada, entre latitudes e longitudes, por meio de novas rotas e possibilidades de caminhos. Antes do encolhimento do espaço e da abolição da distância por meio de ferrovias, navios e aviões, deu-se o encolhimento infinitamente maior e mais eficaz resultante da capacidade de observação da mente humana, cujo uso de números, símbolos e modelos pode condensar e diminuir a escala da distância física da Terra a um tamanho compatível com os sentidos naturais e a compreensão do corpo humano (ARENDT, 2007. pp. 262-263). Arendt salienta que a questão da capacidade de observação da mente humana está ligada propriamente à natureza desta, pois esta capacidade de observação somente funciona quando ocorre um desvencilhamento de qualquer envolvimento e preocupação do homem em relação ao que está perto de si, retirando-o, por assim dizer, a uma distância de tudo que o circunda.4 4 Ao passo que na física clássica, em ascensão no século XVII, a interação dos objetos e dos instrumentos de medida pôde ser desprezada ou compensada, estabelecendo um distanciamento e uma independência entre os fenômenos observados e o observador, bem como entre os fenômenos e os instrumentos de medida, na física quântica, a física do século XX, que possibilitou também o surgimento da era atômica e que está em voga e aperfeiçoamento, a neutralidade e a independência entre o observador e os objetos físicos descritos, ou entre aquele e seus instrumentos, não pode ser alcançada nem realizada, pois há uma impossibilidade de qualquer separação nítida entre o comportamento dos objetos atômicos e a interação com os instrumentos de medida que servem para definir as condições em que os fenômenos aparecem (Ver em: BOHR, 1995, p. 51; p. 91). Assim, ainda que a mente humana necessite se distanciar infinitamente do que deseja medir para fazê-lo com mais precisão, esta pretensão é frustrada pelos próprios postulados da física contemporânea, estabelecendo assim uma ambiguidade e
  • 17. 9 “Quanto maior a distância entre o homem e o seu ambiente, o mundo ou a terra, mais ele pode observar e medir, e menos espaço mundano e terreno lhe restará” (ARENDT, 2007. p. 263). É devido a este motivo que o evento da descoberta das Américas manifesta uma fenômeno de alienação humana em relação à Terra, pois as circunavegações terrestres (que dispararam o apequenamento do globo, a escalada da velocidade e o encurtamento das distâncias, ao mesmo tempo em que propiciaram a descoberta e a exploração da imensidão e da esfera terrestres) deram-se na esteira do aperfeiçoamento de mapas e cartas e, portanto, da capacidade de observação, precisão, representação e alheamento da mente humana. O fato de que o apequenamento definitivo da Terra foi consequência da invenção do aeroplano, isto é, de ter o homem deixado inteiramente a superfície da Terra, como que simboliza o fenômeno geral de que qualquer diminuição de distâncias terrestres só pode ser conquistada ao preço de colocar-se uma distância definitiva entre o homem e a Terra, de aliená-lo do seu ambiente imediato e terreno (ARENDT, 2007, p. 263). Desta maneira, podemos pensar que esta alienação do homem em relação ao seu ambiente, terreno ou mundano, se dá em dois sentidos: no primeiro, ela ocorre na medida em que se dão o avizinhamento do globo com as circunavegações (com o encurtamento de distâncias) e o seu apequenamento definitivo com a invenção do aeroplano (com o salto do homem acima da superfície terrestre); no segundo, ela acontece em relação à própria capacidade de observação da mente humana, na medida em que para observar e precisar as suas medições necessita alhear-se e distanciar-se do seu ambiente imediato, terreno ou mundano. uma complementaridade entre o sujeito observador que mede e o objeto a ser medido. Com este exemplo que pertence à evolução das ideias das ciências físicas, queremos ilustrar a inalienável interdependência entre a capacidade de observação da mente humana e o que se deseja observar, o que acabou por negar o ideal do saber científico da era moderna, da mente de um observador neutro e distanciado dos fenômenos aos quais deseja interpretar e conhecer.
  • 18. 10 1.2 - A globalidade e a continuidade terrestres no mundo moderno. Para Arendt, o evento da descoberta de novos continentes e oceanos que marca o alvorecer da era moderna, - sob o signo do apequenamento do globo, da escalada da velocidade, do encolhimento resultante da capacidade de observação da mente humana e, finalmente, da alienação da Terra, - prolonga-se no seu tempo (no mundo moderno) pois: só agora o homem tomou plena posse de sua morada mortal e enfeixou os horizontes infinitos, tentadora e ameaçadoramente abertos a todas as eras anteriores, para formar um globo cujos majestosos contornos e detalhes geográficos ele conhece como as linhas da própria mão. Precisamente no instante em que se descobriu a imensidão do espaço terrestre, começou o famoso apequenamento do globo, até que, em nosso mundo (que, embora resulte da era moderna, não é de modo algum idêntico ao mundo da era moderna), cada homem é tanto habitante da Terra como habitante de seu país. Os homens vivem agora num todo global e contínuo, no qual a noção de distância, inerente até mesmo à mais perfeita contiguidade de dois pontos, cedeu ante a furiosa arremetida da velocidade (ARENDT, 2007. p. 262). Em sua interpretação dos eventos da tradição humana, Hannah Arendt refere-se ao mundo da era, ou época, modernas e ao mundo moderno. Para ela, o seu mundo (o mundo moderno) não é de modo algum idêntico ao mundo da era moderna, embora se possa ainda identificar naquele os prolongamentos de alienações que se dispararam e se transformaram desde o alvorecer deste. O que ocorre é: [...] a divisão entre a época moderna – que surge com as Ciências Naturais no século XVII, atinge seu clímax político nas revoluções do século XVIII e desenrola suas implicações gerais após a Revolução Industrial do século XIX – e o mundo do século XX, que veio à existência através da cadeia de catástrofes deflagrada pela Primeira Guerra Mundial (ARENDT, 1997, p. 54). No mundo moderno, a globalidade e a continuidade se relacionam, para a autora, com a maximização crescente do mapeamento e detalhamento de mares e continentes, bem como com a noção de que a morada humana comum é uma esfera interconectada, cujos contornos, meandros e fenômenos se podem observar, medir e, com alguma probabilidade, até prever. O fato que leva a autora a afirmar que no mundo moderno cada homem é habitante da Terra como de seu país, tem íntima relação com: a transformação da noção de humanidade, esta que torna- se uma entidade realmente tangível; com a depressão e a prosperidade que tornaram-se
  • 19. 11 fenômenos globais; e com o declínio dos estados nacionais europeus.5 A partir de então, “as sociedades circunscritas pelos estados nacionais começam a ser substituídas pela humanidade, e o planeta substitui o restrito território do Estado” (ARENDT, 2007, p. 269). Refletindo a globalidade e a continuidade em seu mundo moderno, Arendt salienta que neste a noção de distância cedeu ante à conquista e expansão da velocidade que, por assim dizer, acabou por conquistar até o espaço sideral. A velocidade conquistou o espaço; e, ainda que este processo de conquista encontre seu limite na barreira inexpugnável da presença simultânea do mesmo corpo em dois lugares diferentes, eliminou a importância da distância, pois nenhuma parcela significativa da vida humana – anos, meses ou mesmo semanas – é agora necessária para que se atinja qualquer ponto da Terra (ARENDT, 2007, p. 262). Diante destes acontecimentos, pode-se aludir ao fato descrito pela autora acerca do lançamento e da permanência, em 1957, do satélite soviético Sputinik 1. Para ela, a reação imediata e espontânea a este evento foi um alívio – e não a alegria e a satisfação pelo triunfo, ou o orgulho e o assombro ante a engenhosidade e eficiência humanas – em relação ao primeiro “passo para libertar o homem de sua prisão na terra”. Esta declaração feita à época por um repórter norte-americano, refletia, sem a motivação direta, o que havia sido gravado no obelisco fúnebre de um dos maiores cientistas da Rússia: “a humanidade não permanecerá para sempre presa à terra”.6 Desta maneira, se no germinar da era moderna as circunavegações terrestres manifestaram uma alienação humana em relação à Terra (no sentido do apequenamento do globo, do encolhimento da capacidade de observação da mente humana e com o encurtamento das distâncias), estes eventos se prolongaram até o mundo moderno, no qual a alienação humana em relação à Terra se dá na medida em que o aeroplano é inventado, com a eliminação da importância da distância na Terra, com a conquista do espaço pela velocidade e, finalmente, com a globalidade e continuidade terrestres que passaram a grassar por sobre o planeta. O fato de que a velocidade conquistou o espaço, com os adventos de uma era aeroespacial, para Arendt, sinaliza algo que até então, na história da humanidade, não havia acontecido. O que nos põe a refletir acerca do que significou a conquista do espaço sideral para a condição humana de 5 ARENDT, 2007, p. 269. 6 ARENDT, 2007, p. 9.
  • 20. 12 existir enquanto ser vivo terreno e terrestre e que, ao mesmo tempo, rompeu, de certa maneira, com os limites de sua própria morada e condição natural,7 em direção ao espaço universal desconhecido, tendo lançado neste um artefato que “pôde permanecer nos céus durante algum tempo; e lá ficou, movendo-se no convívio dos astros como se estes o houvessem provisoriamente admitido em sua sublime companhia” (ARENDT, 2007, p. 9). [...] Ninguém na história da humanidade jamais havia concebido a terra como prisão para o corpo dos homens nem demonstrado tanto desejo de ir, literalmente, daqui à Lua. Devem a emancipação e a secularização da era moderna, que tiveram início com um afastamento, não necessariamente de Deus, mas de um deus que era o Pai dos homens no céu, terminar com um repúdio ainda mais funesto de uma terra que era a Mãe de todos os seres vivos sob o firmamento? (ARENDT, 2007, p. 10). 7 “A grande ilusão da nossa “era espacial” é que podemos escapar às consequências terrestres da nossa arrogância deixando o planeta-mãe e trocando-o por pequenos mundos substitutos de nossa própria fabricação ou por distantes corpos celestes, alguns dos quais ainda por descobrir” (EHRENFELD, 1992, p. 94).
  • 21. 13 1.3 - Técnica e tecnologia na relação entre seres humanos e natureza. Podemos pensar que a globalidade e a continuidade terrestres, descritas por Arendt, podem ser associadas à expansão da técnica e da tecnologia8, na medida em que estas estão ligadas à maximização da velocidade no tempo e à minimização das distâncias no planeta e no espaço.9 Nos diz Milton Santos que: o período histórico atual vai permitir o que nenhum outro período ofereceu ao homem, isto é, a possibilidade de conhecer o planeta extensiva e aprofundadamente. Isto nunca existiu antes, e deve-se, exatamente, aos progressos da ciência e da técnica (melhor ainda, aos progressos da técnica devidos aos progressos da ciência) (SANTOS, 2000, p.16). O mundo no qual vivemos hoje é integrado por redes de circulação de bens naturais, artificias e virtuais para a exploração e o consumo humano, bem como por canais de informação interligados em múltiplas dimensões, fazendo circular dados (os quais apenas parcelas da população possuem acesso direto) entorno do globo com eficácia e precisão em frações de segundos, de acordo com interesses pré-estabelecidos. As circulações de capitais, bens, serviços, discursos, pessoas e informações acontecem no nosso mundo de uma maneira cada vez mais veloz, globalizada e aperfeiçoada, sob o alicerce da técnica e da tecnologia. Para o pensador brasileiro, isto se deve ao fato de que a aliança entre técnica e ciência reforçou o elo já existente entre ciência e produção, como podemos ler. As épocas se distinguem pelas formas de fazer, isto é, pelas técnicas. Os sistemas técnicos envolvem formas de produzir energia, bens e serviços, formas de relacionar os homens entre eles, formas de informação, formas de discurso e interlocução. O casamento da técnica e da ciência, longamente preparado desde o século XVIII, veio a reforçar a relação que desde então se esboçava entre ciência e produção. Em sua versão atual como tecnociência, 8 “O evento inaugural da modernidade – a descoberta dos novos continentes – apontava a direção a ser tomada pelo desenvolvimento da técnica, que conduziria o homem até muito longe de sua morada terrena, em um movimento acelerado de encurtamento das distâncias” (JARDIM, 2011, p. 55). 9 “Em nossa época, o que é representativo do Sistema de técnicas atual é a chegada da técnica da informação, por meio da cibernética, da informática, da eletrônica. Ela vai permitir duas grandes coisas: a primeira é que as diversas técnicas existentes passam a se comunicar entre elas. A técnica da informação assegura esse comércio, que antes não era possível. Por outro lado ela tem um papel determinante sobre o uso do tempo, permitindo, em todos os lugares, a convergência dos momentos, assegurando a simultaneidade das ações e, por conseguinte, acelerando o processo histórico” [...] “Na história da humanidade é a primeira vez que tal conjunto de técnicas envolve o planeta como um todo e faz sentir, instantaneamente, sua presença” (SANTOS, 2000, pp. 12-13).
  • 22. 14 está situada a base material e ideológica em que se fundam o discurso e a prática da globalização (SANTOS, 2006, p. 115). Nós humanos, nesta condição atual, nos tornamos responsáveis e dependentes de toda técnica e tecnologia, no que diz respeito à realização e permanência da nossa vida na Terra, e à preservação e equilíbrio dos elementos vivos e não vivos da natureza, que nos fornecem condicionantes vitais para nossa existência e permanência na terra.10 O questionamento acerca do que significa, atualmente, o grassar da técnica e da tecnologia por sobre o globo – em ressonância com o que nos diz Arendt acerca da globalidade e continuidade terrestres; ou em direção à globalização e ao elo inseparável entre ciência e produção, como nos explica Milton Santos – se entrelaça intimamente com o sentido e a vivência que atribuímos à nossa relação com a realidade e a natureza que nos circunda e integra aos processos biofísicos naturais, e à terra. Sob a perspectiva de que técnica e tecnologia estão a favor do movimento humano de controlar, explorar e utilizar a natureza da terra a fim de realizar empenhos científicos e produtivistas11, em qual dimensão e em qual sentido se situa a relação entre seres humanos e natureza? Esta perspectiva lança os seres humanos para uma relação de usufruto, controle e exploração incessantes da natureza ou para uma dimensão na qual estes compreendem a sua existência em equilíbrio e compartilhamento com a natureza, e a sua humanidade no sentido de preservar e acolher a natureza - como ser e filho da terra - com todos os adventos, inventos e eventos que as técnicas e as tecnologias lhes assomam? As palavras de Milton Santos podem iluminar a questão. Esse período técnico-científico da história permite ao homem não apenas utilizar o que encontra na natureza: novos materiais são criados nos 10 “Filho da terra, não poderia o homem aparecer se gases deletérios infestassem a atmosfera terrestre como sucede com a de outros planetas, se a terra não tivesse armazenado reservas gasosas, que subiriam à superfície pelas crateras dos vulcões, se os primeiros seres vivos não libertassem oxigênio com o auxílio do sol, se a atmosfera não fosse véu protector contra influências exteriores mortíferas, se uma imensa quantidade de água dos oceanos, mares e da atmosfera num ciclo permanente não abeberasse a terra, se a energia do sol não visitasse o homem como seu filho, se este não permanecesse preso dos liames da sua primeira dependência vegetal e do azoto ou dependência microbiana” (PEREIRA, 1992, p. 5). 11 “Essa união entre técnica e ciência vai dar-se sob a égide do mercado. E o mercado, graças exatamente à ciência e a técnica, torna-se um mercado global. A ideia de ciência, a ideia de tecnologia e a ideia de mercado global devem ser encaradas conjuntamente e desse modo podem oferecer uma nova interpretação à questão ecológica, já que as mudanças que ocorrem na natureza também se subordinam a essa lógica” (SANTOS, 2006, p. 159).
  • 23. 15 laboratórios como um produto da inteligência do homem, e precedem a produção dos objetos. Até a nossa geração utilizávamos os materiais que estavam a nossa disposição. Mas a partir de agora podemos conceber os objetos que desejamos utilizar e então produzimos a matéria-prima indispensável à sua fabricação. Sem isso não teria sido possível fazer os satélites que fotografam o planeta a intervalos regulares, permitindo uma visão mais completa e detalhada da Terra (SANTOS, 2000, p. 16). Entretanto, o que mais se pode dizer acerca de técnica e tecnologia? Sob a luz de que interpretações podemos continuar refletindo a questão que envolve seres humanos, natureza, técnica e tecnologia? Hannah Arendt nos diz que “como frequentemente ocorre com os eventos históricos, parece que as verdadeiras implicações da tecnologia, isto é, da substituição de instrumentos e utensílios por máquinas, só vieram à luz em seu derradeiro estágio, com o advento da automação” (ARENDT, 2007, p. 160). A pensadora indica três principais estágios do desenvolvimento da tecnologia desde o início da era moderna. O primeiro estágio se deu com a invenção da máquina a vapor, levando à revolução industrial, estágio caracterizado pela imitação e o uso de processos e de forças naturais para finalidades humanas, que ainda não diferiam do uso antigo das forças da água e do vento; por isso, neste estágio, “a novidade não era o princípio da máquina a vapor, mas sim a descoberta e o uso das minas de carvão que deveriam alimentá-la” (ARENDT, 2007, p. 161). O segundo estágio foi caracterizado principalmente pelo uso da eletricidade que continua a determinar o atual desenvolvimento técnico. Este estágio é profundamente marcado pelo fato de os homens não mais precisarem “usar material tal como a natureza o fornece, matando processos naturais, interrompendo-os ou imitando-os”, e sim pelo fato de que passaram a ““criar”, por assim dizer, isto é, a desencadear processos naturais nossos que jamais teriam ocorrido sem nós”. Isto, para a autora, implica em que estamos “canalizando as forças elementares da natureza para o próprio mundo”. Pois agora já não usamos material tal como a natureza o fornece, matando processos naturais, interrompendo-os ou imitando-os. Em todos esses casos, alteramos e desnaturalizamos a natureza para nossos próprios fins mundanos, de sorte que o mundo ou o artifício humano, de um lado, e a natureza, de outro, passam a ser duas entidades nitidamente separadas. Hoje, passamos a “criar”, por assim dizer, isto é, a desencadear processos naturais nossos que jamais teriam ocorrido sem nós; e, ao invés de defender cuidadosamente o artifício humano contra as forças elementares da natureza, mantendo-as o mais possível à parte do mundo feito pelo homem, canalizamos essas forças, juntamente com o seu poder elementar, para o próprio mundo (ARENDT, 2007, p. 161).
  • 24. 16 Já a partir daqui podemos pensar como o desenvolvimento da tecnologia, tal como interpretado pela autora, tensiona nitidamente o mundo (ou o artifício humano), de um lado, e a natureza (ou a terra), de outro. A partir de um distanciamento e desenraizamento, a relação entre homem e natureza vai ganhando o seu sentido no viés da exploração e do controle, bem como no da satisfação de interesses humanos frente à própria condição viva e perene da natureza entorno de nós. Este distanciamento, para nossas reflexões, pode sinalizar uma recusa da própria condição existencial humana de ser terreno e terráqueo, mortal e vivente; isto é, sinaliza uma alienação humana em relação à Terra e à sua natureza. O terceiro e mais recente estágio de desenvolvimento da tecnologia foi a automação, que embora sendo seu ponto culminante, permanece ao largo do impacto que o surgimento da era atômica e de uma tecnologia baseada nas descobertas nucleares podem causar. Enquanto que a atual tecnologia “canaliza forças naturais para o mundo do artifício humano”, “a tecnologia do futuro pode vir a consistir em canalizar forças universais do cosmos que nos rodeia para a natureza da Terra” (ARENDT, 2007, p.163). Neste caso, já não se trataria de desencadear e liberar processos elementares naturais, mas de manusear na Terra e na vida de todos os dias energias e forças que só ocorrem fora da Terra, no universo – o que já é feito, mas somente nos laboratórios de pesquisas dos físicos nucleares [...] Resta ver se essas técnicas futuras transformarão o reino da natureza, tal como o conhecemos desde o começo de nosso mundo, na mesma medida – ou mais – que a atual tecnologia alterou a própria mundanidade do artifício humano (ARENDT, 2007, p. 163). Aqui podemos sentir a dimensão na qual, para a autora, pode se estabelecer a relação entre seres humanos (e seus artifícios e fabricações no mundo) e a natureza terrena, quando se está sob o domínio da tecnologia nuclear e da era atômica. Se com a automação, os homens canalizam forças e energias naturais para o mundo do artificio humano, o que pode acontecer adiante é a destruição plena de toda a vida orgânica da Terra.12 Ao pensar “a discussão de todo o problema da tecnologia, isto é, da transformação da vida e do mundo pela introdução da máquina...” (ARENDT, 2007, p. 164) a autora alude a uma distinção entre os “processos naturais” e os “produtos de mãos humanas”, a partir do que ela 12 ARENDT, 2007, p. 163.
  • 25. 17 considera um significado autêntico da palavra natureza.13 No momento em que os homens estão canalizando, desencadeando e manuseando processos na Terra que somente ocorrem fora da natureza terrena (como se pudessem se situar num ponto exterior à natureza, alienados de seu ambiente terrestre, natural e mundano), ocorre também o movimento de projetar e impor no modo de sua produção (a automação: na qual a diferença entre operação e produto, ou a precedência do produto sobre a operação, deixam de existir14) o próprio movimento cíclico da natureza – no qual a existência da coisa natural não é separada mas, de certa forma, idêntica ao processo através do qual ela passa a existir. Ao contrário dos produtos de mãos humanas, que devem ser feitos passo a passo e para os quais o processo de fabricação é inteiramente distinto da existência da coisa fabricada, a existência da coisa natural não é separada mas, de certa forma, idêntica ao processo através do qual ela passa a existir: a semente contém e, em certo sentido, já é a árvore, e a árvore deixa de viver se o processo de crescimento através do qual passou a existir for interrompido. Se os olharmos contra o pano de fundo das finalidades humanas, que têm um começo determinado pela vontade e um fim definido, estes processos assumem caráter de automatismo (ARENDT, 2007, p. 164). Ao refletir acerca do que significou o desenvolvimento da tecnologia e suas reverberações na relação entre homem e natureza, do ponto de vista da fabricação e da condição humana do trabalho e do labor, a autora é levada a pensar o sentido da própria relação que se estabelece entre os seres humanos e as máquinas. Para ela, em seu tempo, essa discussão se concentra exacerbadamente “no serviço ou desserviço que as máquinas prestam aos homens. A premissa é que toda ferramenta e todo utensílio destina-se basicamente a tornar mais fácil a vida do homem e menos doloroso o labor humano” (ARENDT, 2007. p. 164). Desta maneira, a qualidade do instrumento enquanto tal é concebida exclusivamente num sentido antropocêntrico. Ela ressalta os motivos pelos quais considera que a questão relevante à relação entre homens e máquinas, afastando-se de um sentido antropocêntrico, não é a de que se somos senhores ou escravos de nossas máquinas. Mas a qualidade de instrumento que possuem as ferramentas e os utensílios relacionam-se muito mais intimamente com o objeto que eles se destinam a produzir, e o seu mero “valor humano” limita-se ao uso que deles faz o animal 13 “É característico de todos os processos naturais o fato de existirem sem o auxílio do homem, e de que as coisas naturais não são “feitas”, mas vêm a ser por si mesmas o que são. É este sentido também o significado autêntico de nossa palavra “natureza”, quer a derivemos da raiz latina nasci, nascer, ou formos buscá-la em sua origem grega, physis, que vem de phyein, surgir de alguma coisa, aparecer por si mesmo” (ARENDT, 2007, p. 163). 14 ARENDT, 2007, p. 164.
  • 26. 18 laborans. Em outras palavras, o homo faber, o fazedor de instrumentos, inventou utensílios e ferramentas para construir um mundo, e não – pelo menos não originalmente – para servir ao processo vital humano. Assim, a questão não é tanto se somos senhores ou escravos de nossas máquinas, mas se estas ainda servem ao mundo e às coisas do mundo ou se, pelo contrário, elas e seus processos automáticos passaram a dominar e até mesmo a destruir o mundo e as coisas (ARENDT, 2007, p. 164). Neste sentido, é que técnica e tecnologia não dizem respeito exclusivamente aos utensílios, máquinas, satélites e microships, que são produções de mãos humanas. Em relação aos nossos dias, pode-se indagar se nos tornamos, necessariamente e absolutamente, dependentes de nossos objetos técnicos e tecnológicos, que estão imersos e em atividade nestas interligações informatizadas e contínuas que cobrem todo o globo; ou se estes estão em sua plena “evolução natural”, a serviço do bem e da proteção, a partir de prerrogativas comuns e que interessam a todos os homens, da vida, da natureza e da humanidade. Cabe ainda outra questão mais fundamental: se dependemos ou não, inexoravelmente, de nossas invenções, uma vez que elas existem, a partir de qual modo e sentido os seres humanos se relacionam com as técnicas e tecnologias mundiais em nossos dias atuais?15 Para onde estas técnicas e tecnologias podem direcionar a humanidade em suas gerações, bem como para onde, se significadas e vivenciadas de tais maneiras, apontam o sentido e o modo de relação entre homem, terra, e natureza? Não se pretende associar à técnica e à tecnologia males que são frutos do engenho humano e que passaram a destruir e a ameaçar o planeta. Com estas questões se está investigando pela postura e relação dos seres humanos ante e com os seus inventos técnicos e tecnológicos, bem como com os adventos, possibilidades e melhorias aos quais podem-se associar. A questão fundamental reside no fato de para o homem abrir-se a possibilidade de, no vigor das técnicas e das tecnologias, passar a compreender o sentido da sua existência na natureza terrena proporcionalmente ao seu poder de controlá-la, decodificá-la e utilizá-la. Para iluminar a nossa reflexão sobre esta questão, podemos ler as palavras inicias de Emmanuel Carneiro Leão, em um de seus ensaios, no qual ele nos indica: “algumas consequências previsíveis a que o progresso de reprocessamento estaria arrastando o mundo 15 “A nossa crença no controle ambiental, avizinhando-se da onipotência, é reforçada por repetidas demonstrações do poder imenso mas dirigido com precisão que podemos mobilizar contra as forças da natureza. Entre as mais avançadas das nossas tecnologias de controle está a utilização da energia solar para substituir alguns usos da eletricidade gerada convencionalmente” (EHRENFELD, 1992, p. 35).
  • 27. 19 sem terra da técnica total” (LEÃO, 2010, p. 103); bem como, “três conjunturas que hoje ameaçam a Linguagem da terra, se a primeira esvazia as línguas naturais, e a segunda nega a originalidade do trabalho, a terceira reduz a economia à mera produtividade” (LEÃO, 2010, p. 107). A terra é mais antiga do que o homem e a história. Por isso a terra não pode ter nem lugar, nem data, nem certidão de nascimento. O homem é mais antigo do que o mundo e a técnica. O mundo e a técnica têm lugar e data marcada, possuem certidão de nascimento. Por isso a técnica pretende submeter o homem com a tecnologia, dirigindo a história e substituindo a terra pelo mundo. Técnica aqui, nestas colocações de pensamento, não é sinônimo de instrumentação, nem de um sistema mecânico, elétrico ou eletrônico de ferramentas, nem um conjunto de procedimentos, de meios e modos de fazer. Técnica é uma vigência universal e o vigor de um comportamento unidimensionalizante. As máquinas, os equipamentos, os aparelhos não podem escravizar o homem! Só o homem pode escravizar o homem! Por isso a técnica vai reduzindo progressivamente os níveis de relacionamento dos homens com o real e recolhendo a totalidade do real a um padrão único de realização, a saber: à realização controlada, reprocessada e sistematizada do real (LEÃO, 2010, p. 100).
  • 28. 20 Capítulo 2 – Produtivismo, consumo e desperdício: a “disponibilização” e a exploração da natureza. 2.1 – A Reforma, a expropriação e o acúmulo de riquezas, e a alienação do mundo. A Reforma significou uma cisão para o cristianismo ocidental, um desafio diante da ortodoxia e uma ameaça à tranquilidade espiritual dos homens, na medida em que se deu com a expropriação das propriedades eclesiásticas e monásticas.16 A partir da Reforma, evento que se situa na transição de um mundo pré-moderno em direção ao mundo da era moderna, o poder e a autoridade da Igreja Católica passaram a ser contestados, pondo em ameaça a estabilidade de uma instituição que havia exercido seu domínio de maneira dominante na Europa durante toda a Idade Média. Para Arendt, a Reforma tem como desencadeamento um duplo processo de expropriação individual e de acúmulo de riqueza social. Tais processos desencadeados pela Reforma – o de expropriação das classes camponesas, e o de acúmulo ascendente de riquezas – relacionam-se entre si, na medida em que seus prolongamentos são sentidos e ecoam no mundo moderno. Estes prolongamentos atingem o mundo moderno na ascensão de uma sociedade do desperdício e do consumo, na qual ainda se dá o acúmulo incessante de riquezas pelos que já as possuem, e onde acontece o declínio simultâneo das esferas pública e privada, junto com o eclipse de um mundo público comum.17 Pois o enorme acúmulo de riqueza ainda em curso na sociedade moderna, que teve início com a expropriação – o esbulho das classes camponesas que, por sua vez, foi consequência quase acidental da expropriação dos bens monásticos e da Igreja após a Reforma – jamais demonstrou grande consideração pela propriedade privada (ARENDT, 2007, p. 74). A Reforma, para Arendt, está intimamente ligada ao colapso do sistema feudal, pois a expropriação das classes camponesas é como consequência imprevista da expropriação de bens eclesiásticos e monásticos. A Reforma contribuiu, em um aspecto específico, para que o processo de alienação do mundo fosse o eixo de sustentação da história moderna. A 16 ARENDT, 2007, pp. 260-261. 17 ARENDT, 2007. p. 269.
  • 29. 21 expropriação dos bens eclesiásticos ocorrida naquele momento levou ao empobrecimento de uma enorme massa de camponeses, deixados à míngua em uma situação em que, destituídos de um lugar no mundo, ficaram expostos, de mãos vazias, às conjunturas da vida, tendo apenas sua força de trabalho para vender. Essa massa serviu de mão de obra para impulsionar a Revolução Industrial, na Inglaterra e no restante da Europa, e foi abrigada, de forma mais ou menos precária, nas sociedades nacionais europeias até o século XX (JARDIM, 2011, p. 35). Refletindo as implicações da Reforma para a religião, bem como seus impactos no mundo da era moderna, Arendt nos diz que em todos os países protestantes, nos quais a queda da Igreja Católica havia abolido a última instituição ligada à tradição, o que ocorreu foi a perda da certeza da salvação, e não, como se poderia pensar, a crença na salvação ou na vida eterna.18 Junto com a autora, podemos pensar o que significou o impacto da Reforma para os padrões religiosos e espirituais, bem como para a compreensão do “lugar” e da conduta dos seres humanos na vida e em relação a Deus, pois a perda da certeza da salvação teve como consequência imediata “um redobrado zelo em praticar boas ações durante a vida, como se esta fosse apenas um longo período de provação” (ARENDT, 2007, p. 290). Para a pensadora, não se deve atribuir aos dois grandes movimentos religiosos da era moderna (a Reforma e a Contra-Reforma) a moderna perda de fé que passou a grassar entre os homens da época moderna. Esta não é de origem religiosa. Sua origem, ao contrário, está ligada ao surgimento das ciências naturais, no século XVII.19 A autora pondera ao dizer que, mesmo considerando que com a Reforma, no início da era moderna, houve “um súbito e inexplicável eclipse da transcendência, da crença de uma vida após a morte” (ARENDT, 2007, p. 265), isso não veio a conduzir os homens num interesse novo e enfático por este mundo. Para onde os homens haviam sido lançados sob as correntes da moderna perda de fé, ligada diretamente ao surgimento das ciências naturais no século XVII? Para a autora, dois eventos da história – o surgimento do capitalismo e as mais persistentes tendências da filosofia 18 Hannah Arendt sinaliza que foi Max Weber quem levantou a questão da era moderna com profundidade, por ele ter apontado que, com a Reforma, o que se perdeu foi a certitudo salutis (a certeza da salvação), e não propriamente a crença numa salvação ou na vida eterna. Para ela, esta foi apenas uma das muitas certezas que se perderam com o advento da era moderna. Ver em: ARENDT, 2007, nota 34, p. 290). 19 “Desde o surgimento das ciências naturais, no século XVII, tanto a crença quanto a descrença têm se originado na dúvida” [...] “Nosso mundo é, do ponto de vista espiritual, um mundo secular justamente por ser um mundo de dúvida” (ARENDT, 1993, p. 56).
  • 30. 22 moderna desde Rene Descartes – demonstram que “os homens modernos não foram arremessados de volta a este mundo, mas para dentro de si mesmos” (ARENDT, 2007, p. 266). Quanto às tendências da filosofia, foi – “a preocupação exclusiva com o ego, em oposição à alma ou à pessoa ou ao homem em geral, uma tentativa de reduzir todas as experiências, com o mundo e com os outros seres humanos, a experiências entre o homem e si mesmo” (ARENDT, 2007, p. 266.) – que mostrou o encerramento do homem dentro de si mesmo. E quanto às origens do capitalismo, foi o fato de ser – “possível haver enorme atividade, estritamente mundana,20 sem que haja qualquer grande preocupação ou satisfação com o mundo, atividade cuja motivação mais profunda é, ao contrário, a preocupação e o cuidado com o ego” (ARENDT, 2007, p. 266) –, que mostrou o arremesso dos homens para dentro de si mesmos. Em ambos os casos, este arremesso do homem para dentro de si mesmo é acompanhado, para Arendt, de uma perda do mundo, isto é, de uma alienação humana em relação ao mundo.21 Ao fazer referência a Max Weber, Arendt afirma que a Reforma manifestou um fenômeno de alienação na direção de um mundo interior – “que nada tem a ver, em intenção e conteúdo, com a alienação em relação à Terra, decorrente da descoberta e da posse do planeta” (ARENDT, 2007, p. 263) –, designado por Weber de “ascetismo do mundo interior”, fenômeno que, para ele, é a mais recôndita fonte da nova mentalidade capitalista. Para Hannah Arendt, o ponto de maior importância é que a alienação na direção de um mundo interior (ou o ascetismo do mundo interior, de Weber) não está presente somente na nova modalidade resultante das tentativas de Calvino e Lutero de restaurar a inflexível qualidade extramundana da fé cristã, mas também comparece, “em nível inteiramente diverso, na expropriação das classes camponesas, consequência imprevista da expropriação dos bens da Igreja e, como tal, o fator isolado mais importante no colapso do sistema feudal” (ARENDT, 20 Para Arendt, a grandeza da descoberta de Max Weber residia em ele ter demonstrado que foi com a origem do capitalismo que esta atividade estritamente mundana, e ao mesmo tempo alienada do mundo, tornou-se um fato. Por isso, para ela, o que distingue a era moderna é a alienação do mundo, e não a alienação do ego, como pensou Marx. Ver em: ARENDT, 2007, p. 266. 21 “Tudo o que espontaneamente adentra o mundo humano, ou para ele é trazido pelo esforço humano, torna-se parte integrante da condição humana. O impacto da realidade do mundo sobre a existência humana é sentido e recebido como força condicionante. A objetividade do mundo – o seu caráter de coisa ou objeto – e a condição humana complementam-se uma à outra; por ser uma existência condicionada, a existência humana seria impossível sem as coisas, e estas seriam um amontoado de artigos incoerentes, um não-mundo, se esses artigos não fossem condicionantes da existência humana” (ARENDT, 2007, p. 17).
  • 31. 23 2007. p. 263). Entretanto, Arendt declara que com esta interpretação não deseja negar as descobertas de Weber acerca da enorme força que resulta quando a extramundanidade é dirigida para o mundo, o que se denota, para este, na relação que existe entre a ética de trabalho dos protestantes e a ética monástica.22 Ainda assim, para autora, “o aumento da força do homem sobre as coisas deste mundo resulta, em ambos os casos, da distância que ele coloca entre si mesmo e o mundo, ou seja, da alienação em relação ao mundo” (ARENDT, 2007, p. 264). A alienação do mundo para a qual Arendt deseja lançar luz diz respeito, em primeiro lugar, à expropriação das classes camponesas, no início da era moderna. Como vimos, esta expropriação se deu a partir da Reforma, quando houve a expropriação dos bens da Igreja, abolindo definitivamente o sistema feudal. Com este evento, a maioria dos camponeses encontraram-se privados de sua condição primordial de trabalho e de sobrevivência, a propriedade privada de um pedaço de terra neste mundo23: o que, para a autora, é a mais elementar condição política para a mundanidade do homem.24 No pensamento de Arendt, a perda desta condição elementar significa não exclusivamente a privação da propriedade enquanto tal, e sim, no que diz respeito à existência humana, uma destruição de seu lugar de morada e habitação no mundo. Antes da era moderna, que começou com a expropriação dos pobres e em seguida passou a emancipar as novas classes destituídas de propriedades, todas as civilizações tiveram por base o caráter sagrado da propriedade privada. A riqueza, ao contrário, fosse de propriedade de um indivíduo ou publicamente distribuída, nunca antes fora sagrada. Originalmente, a propriedade significava nada mais nada menos que o indivíduo possuía seu lugar em determinada parte do mundo e portanto pertencia ao corpo político, isto é, chefiava uma das famílias que, no conjunto, constituíam a esfera pública. Essa parte do mundo que tinha donos privados era tão completamente idêntica à família à qual pertencia que a expulsão do cidadão podia significar não apenas o confisco de sua propriedade mas a destruição de sua própria morada (ARENDT, 2007, p. 71). A conclusão de Arendt é que, “pelo mesmo motivo, a expropriação e a alienação do homem em relação ao mundo coincidem; e a era moderna, muito contra as intenções de todos os atores da peça, começou por alienar do mundo certas camadas da população” (ARENDT, 2007, p. 265). A autora ainda alerta-nos para a tendência em esquecer a importância 22 ARENDT, 2007, p. 264. 23 ARENDT, 2007, p. 267. 24 ARENDT, 2007, p. 265.
  • 32. 24 fundamental desta alienação para a era moderna, quando destacamos seu caráter secular, confundindo secularidade com mundanidade.25 O que foi disparado pela expropriação das classes camponesas e pela sua subjacente alienação do mundo, no alvorecer da era moderna? Este evento, “lançou a humanidade ocidental num rumo de coisas em que toda propriedade era destruída no processo de expropriação, tudo era devorado no processo de produção, e a estabilidade do mundo era minada num constante processo de mudança” (ARENDT, 2007, p. 264). Se, por um lado, a expropriação situou o curso do mundo sob o signo da destruição e deterioração, da expropriação e produtividade, e da instabilidade e mutabilidade, por outro, [...] o fato de que certos grupos foram despojados de seu lugar no mundo e expostos, de mãos vazias, às conjunturas da vida, criou o original acúmulo de riqueza e a possibilidade de transformar essa riqueza em capital através do trabalho. Juntos, estes dois últimos constituíram as condições para o surgimento de uma economia capitalista. Desde o começo, séculos antes da revolução industrial, era evidente que este curso de eventos, iniciado pela expropriação e que dela se nutria, resultaria em enorme aumento da produtividade humana (ARENDT, 2007, p. 267). A expropriação das classes camponesas na era moderna (que permanece ligada a um fenômeno de alienação do mundo) desenrolou-se através do acúmulo ascendente de riquezas, pois “a expropriação de pessoas, a destruição de objetos e a devastação de cidades estimulam radicalmente um processo não de mera recuperação, mas de acúmulo de riqueza ainda mais rápido e eficaz” (ARENDT, 2007, p. 264). Para a autora, é o exemplo alemão do pós-guerra que demonstra este fato, pois foi na Alemanha que a “destruição pura e simples substituiu o inexorável processo de depreciação de todas as coisas mundanas, processo este que caracteriza a economia de desperdício na qual vivemos” (ARENDT, 2007, p. 264). Na dimensão de uma sociedade do desperdício e do consumo, tais como descritas pela pensadora, a prosperidade não acontece pela variedade e disposição de bens materiais, mas se alimenta do crescente processo de produção e consumo. O ponto fundamental apontado por Arendt quanto à questão da ascensão da sociedade do desperdício e do consumo (que também 25 […] “como evento histórico tangível, a secularização significa apenas a separação entre Igreja e Estado, entre religião e política; e isto, do ponto de vista religioso, implica em retorno à antiga atitude cristã de dar “a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”, e não uma perda de fé e transcendência ou um novo e enfático interesse nas coisas deste mundo” (ARENDT, 2007, p. 265).
  • 33. 25 se manifesta sob o signo da alienação em relação ao mundo, que, por sua vez, acompanhou a expropriação das classes camponesas, na era moderna) é que, no mundo moderno, a durabilidade dos objetos conservados ameaça o processo de reposição que alavanca o consumo,26 este que, por sua vez, acaba levando ao desperdício, pois, no intuito de tornar cada vez mais veloz o processo de reposição, os objetos tendem a ser fabricados de acordo com durabilidade e conservação limitadas. Acerca das sociedades do desperdício e do consumo do mundo moderno, diz Arendt que: “a bancarrota decorre não da destruição, mas da conservação, por que a própria durabilidade dos objetos conservados é o maior obstáculo ao processo de reposição, cuja velocidade em constante crescimento é a única coisa constante que resta onde se estabelece esse processo” (ARENDT, 2007, p. 265). O aumento da produtividade humana, alavancado pelo surgimento e desenvolvimento da economia capitalista, aconteceu a partir da ascensão de uma nova classe trabalhadora, que, se antes vivia para trabalhar e comer, agora já se encontrava sob as necessidades da vida, ao mesmo tempo em que permanecia alheia aos cuidados e preocupações que não decorressem do próprio processo vital.27 Ao refletir os impactos do surgimento da primeira classe de trabalhadores livres da história, Arendt diz que ocorreu a liberação da força inerente ao “labor power”28, e que, assim: “a expropriação e o acúmulo de riqueza não resultaram simplesmente em novas propriedades nem levaram a uma nova redistribuição da riqueza, mas realimentaram o processo para gerar mais expropriações, maior produtividade e mais apropriações” (ARENDT, 2007, p. 267). O acúmulo de capitais, então, passou a permear toda a sociedade, ocasionando um fluxo constantemente crescente de riquezas.29 O que Arendt deseja mostrar com esta afirmação é que o processo de acúmulo de capitais, - que passa a compor a conjuntura das sociedades do desperdício e do consumo no mundo moderno, trazendo consigo a perda do mundo comum, e o declínio das esferas pública e privada, - está intimamente ligado ao princípio de alienação do mundo do qual resultou, experimentado no alvorecer da era moderna “com a perda, muito mais tangível, da propriedade privada de um pedaço de terra neste mundo” (ARENDT, 2007, p. 269). Enquanto que a expropriação das classes camponesas, na era moderna, significou uma alienação 26 ARENDT, 2007, p. 265. 27 ARENDT, 2007, p. 267. 28 ARENDT, 2007, p. 267. 29 ARENDT, 2007, p. 267.
  • 34. 26 em relação ao mundo no sentido de que camadas da população foram sendo expulsas de suas terras, o processo de acúmulo e infiltração de capitais significou uma alienação em relação ao mundo na medida em que só “é possível somente se o mundo e a mundanidade do homem forem sacrificados” (ARENDT, 2007, p. 268). Por isso a autora conclui que o processo de acúmulo de capitais acontece, “se a durabilidade mundana e a estabilidade não interferirem, e se todas as coisas mundanas, todos os produtos finais do processo de produção o realimentarem a uma velocidade cada vez maior” (ARENDT, 2007, p. 268). O que se seguiu ao processo dos fluxos ascendentes de capitais foram três estágios de alienação que são descritos pela autora. O primeiro é marcado por crueldade e miséria, e significou, através da expropriação, o despojamento de pessoas da dupla proteção da família e da propriedade.30 O segundo aconteceu quando a sociedade passou a ocupar o lugar de sujeito do novo processo vital, posição antes que fora ocupada pela família. Integrar uma classe social oferecia à pessoa a mesma proteção que antes era dada pela participação numa família, e a sociedade passou a ser “identificada com uma propriedade tangível, mas pertencente a uma coletividade de donos – o território do estado nacional – que até o seu declínio no século XX oferecia a todas as classes um substituto do lar privado, roubado à classe dos pobres” (ARENDT, 2007, p. 268). O começo do terceiro e último estágio do grassar destes processos de alienação humana em relação ao mundo é marcado por três acontecimentos: o declínio dos estados nacionais europeus, o encolhimento econômico e geográfico da Terra, e a transformação da humanidade numa entidade realmente existente. Neste estágio, as sociedades circunscritas pelos estados nacionais começam a ser substituídas pela humanidade, e o planeta substitui o território do estado. Arendt relaciona o eclipse de um mundo público comum (que se deu com a ascensão da sociedade do desperdício e do consumo, com o célere acúmulo de capitais, e com o declínio das esferas público e privada) com a formação da mentalidade alienada dos movimentos ideológicos de massas, ressaltando que este eclipse permanece ligado, intimamente, ao fenômeno de alienação representado pela expropriação das classes camponesas de um pedaço de terra neste mundo.31 30 ARENDT, 2007, p. 268. 31 ARENDT, 2007, p. 269.
  • 35. 27 O eclipse de um mundo público comum, pode ser melhor compreendido quando se lança o olhar para a noção de mundo proposta por Arendt, e sua respectiva relação com o conceito de Terra, em dois momentos. A Terra é a própria quintessência da condição humana e, ao que sabemos, sua natureza pode ser singular no universo, a única capaz de oferecer aos seres humanos um habitat no qual eles podem mover-se e respirar sem esforço nem artifício. O mundo – artifício humano – separa a existência do homem de todo ambiente meramente animal; mas a vida, em si, permanece fora desse mundo artificial, e através da vida o homem permanece ligado a todos os outros organismos vivos (ARENDT, 2007, p.10). Em segundo lugar, o termo “público” significa o próprio mundo, na medida em que é comum a todos nós e diferente do lugar que nos cabe dentro dele. Este mundo, contudo, não é idêntico à terra ou à natureza como espaço limitado para o movimento dos homens e condição geral da vida orgânica. Antes, tem a ver com o artefato humano, com o produto de mãos humanas, com os negócios realizados entre os que, juntos, habitam o mundo feito pelo homem. Conviver no mundo significa essencialmente ter um mundo de coisas interposto entre os que nele habitam em comum, como uma mesa se interpõe entre os que se assentam ao seu redor; pois, como todo intermediário, o mundo ao mesmo tempo separa e estabelece uma relação entre os homens (ARENDT, 2007, p. 62). A partir daqui podemos perceber que a alienação do homem em relação ao mundo (experimentada na Reforma, na expropriação das classes camponesas, no acúmulo crescente de riqueza que levou ao surgimento do capitalismo, e no grassar de uma sociedade produtivista, do consumo e do desperdício, na qual ocorre uma perda do mundo público comum) sinaliza um distanciamento da condição existencial humana da mundanidade, uma perda de estabilidade e durabilidade dos artifícios e negócios (relações) humanos no mundo, e, ainda, a própria destruição, expropriação e exploração dos espaços terrestres e comuns construídos pelos humanos.32 Expondo estas concepções, estamos buscando aclarar, no pensamento de Arendt, a relação existente entre Terra e mundo, entre a natureza e os homens, ou ainda entre os homens 32 Podemos pensar, pelo que nos diz Arendt, que uma alienação do mundo, no que concerne às potencialidades humanas do falar e do agir, significa uma perda da possibilidade de os homens distinguirem-se uns dos outros, permanecendo apenas diferentes entre si, “pois a ação e o discurso são os modos que os seres humanos manifestam- se uns aos outros, não como meros objetos físicos, mas enquanto homens” (ARENDT, 2007, p. 189); e, ademais, “é com palavras e atos que nos inserimos no mundo humano; e esta inserção é como um segundo nascimento, no qual confirmamos e assumimos o fato original e singular do nosso aparecimento físico original” (ARENDT, 2007, p. 189).
  • 36. 28 e o mundo, a fim de compreendermos o significado das alienações em relação à Terra e ao mundo, que são como espinhas dorsais de todo o desenvolvimento da era moderna até o mundo moderno. Para Arendt, o processo biológico do homem e o processo de crescimento do mundo participam, ambos, do movimento cíclico da natureza terrena.33 Hannah Arendt situa a relação entre mundo humano e natureza alicerçada em sua compreensão de crescimento e declínio, de nascimento e morte, de movimento linear e movimento cíclico. Para ela, “é somente dentro do mundo humano que o movimento cíclico da natureza se manifesta como crescimento e declínio”, pois “somente quando consideramos os produtos da natureza – determinada árvore ou determinado animal – como coisas individuais, retirando-os, com isso, do seu ambiente “natural” e colocando-os em nosso mundo, é que eles começam a ter crescimento e declínio” (ARENDT, 2007. p.109). 33 ARENDT, 2007, p. 109.
  • 37. 29 2.2 - A natureza enquanto “disponível” e a perda do mundo comum. De qual maneira a alienação do mundo, ou a perda do mundo público comum (descritas por Arendt com a ascensão de uma economia do desperdício, do consumo e da produtividade), pode nos auxiliar na compreensão do sentido da relação entre seres humanos e natureza, relação que passa a atribuir ao homem o lugar de explorador ou desafiador da natureza, e à natureza um sentido daquilo que está exposto para ser disponibilizado, processado e reprocessado, consumido e descartado? Na reflexão de Arendt, a alienação do mundo experimentada no evento das expropriações das classes camponesas, como vimos, não sinaliza apenas a perda da propriedade privada, enquanto tal, de um pedaço de terra neste mundo, mas, sobretudo, a perda do lugar humano de morar e habitar neste mundo, em um pedaço de terra.34 Esta questão pode nos impulsionar para a reflexão acerca de como compreendemos e lidamos com a morada humana na terra, com o próprio sentido da experiência que atribuímos ao nosso habitar neste mundo. De que modo estamos habitando este mundo? Isto nos leva à reflexão que se faz também acerca do sentido desta experiência no que diz respeito à relação homem e natureza. De qual modo estamos morando na natureza, em qual sentido compreendemos este morar – o nosso lugar neste mundo e na natureza? A alienação em relação ao mundo, disparada primeiramente com a expropriação das classes camponesas, alcança o mundo moderno com o eclipse de um mundo público comum, pois a ascensão da sociedade na qual vigora uma economia produtivista do desperdício e do consumo – onde o acúmulo de capitais se infiltrou por diversos setores e está em constante crescimento – apenas se dá se a durabilidade mundana e a estabilidade do mundo não interferirem, se o próprio mundo e a mundanidade do homem forem sacrificados.35 Nesta dimensão, os objetos mundanos, os produtos finais do processo de produção, realimentam este processo numa velocidade crescente, o que acaba por se manifestar no consumo e desperdício exacerbados. 34 ARENDT, 2007, p. 71. 35 ARENDT, 2007, p. 268.
  • 38. 30 Se o termo “mundo”, designado por Arendt, refere-se ao artifício humano36, mas também às relações entre aqueles que juntos habitam um mundo comum criado pelos homens37, pode-se pensar que a perda do mundo público comum (com a alienação em relação ao mundo, apontadas por Arendt) é sentida com a depreciação e poluição dos espaços mundanos comuns aos homens, com a perda da durabilidade mundana e dos objetos criados pelas mãos humanas, com o esvaziamento do sentido das relações entre os homens, estas que passam a acontecer não mais pressupondo entre estes um lugar público, comum e compartilhado de vida e morada na Terra e na natureza terrena. Neste nível alienado de relação entre os homens e o mundo, o sentido de habitar no mundo deixa de perpassar a dimensão da partilha de um lugar próprio e ao mesmo tempo comum a todos os homens, deixando de haver reciprocidade entre lugar e homem, ou uma ressonância entre o habitat e a existência, uma vez que a própria existência humana ameaça e destrói sua morada na terra e os homens, o próprio mundo. A experiência da preservação do mundo acontece noutro sentido, como nos diz Pereira. Pela participação e partilha, o lugar próprio recorta-se no lugar comum, a habitação é coabitação, intercomunicação cultural e abertura de possibilidades futuras. A harmonia associada naturalmente ao habitat é compatibilidade, reciprocidade e promoção mútua, não permite fugas delirantes mas consagra eminentemente a relação entre lugar e homem, em que o lugar com sua memória aparece como oferta de um campo de possibilidades reais para a actualização e as iniciativas da existência solidária dos homens. Dada a dimensão corpórea e cultural da morada humana, “entre o habitat e a existência deve existir uma espécie de ressonância de tal modo que no habitat a existência possa encontrar o seu próprio rosto e, reciprocamente, o habitat possa induzir na existência significações inéditas”. Isto pressupõe que a corporeidade humana como abertura à realidade cósmica é, ao mesmo tempo, receptividade perante o seu mundo natal sobre que pode agir através de percepções, acções e obras (PEREIRA, 2003, pp. 5-6). Pode-se pensar que a poluição e o crescimento não planejado das cidades, a depredação e subutilização de espaços públicos construídos pelos homens, o acúmulo de lixo e o seu despejamento em locais habitados pelos homens e na natureza, a acessibilidade restrita, por 36 “A realidade e a confiabilidade do mundo humano repousam basicamente no fato de que estamos rodeados de coisas mais permanentes que a atividade pela qual foram produzidas, e potencialmente ainda mais permanentes que a vida de seus autores. A vida humana, na medida em que é criadora do mundo, está empenhada em constante processo de reificação; e o grau de mundanidade das coisas produzidas, cuja soma total constitui o artifício humano, depende de sua maior ou menor permanência neste mundo” (ARENDT, 2007, p. 107). 37 ARENDT, 2007, p. 62.
  • 39. 31 certa camada da população, a espaços urbanos com condições satisfatórias para o bem estar da vida humana, significam processos que acontecem na esteira de uma perda do sentido do mundo tal como espaço público, comum e que reúne os homens em comunidade e partilha, como lugar próprio de morada humana na natureza terrena, ao qual devemos preservar, cuidar e acolher em harmonia com a preservação da existência humana, da vida e da natureza. A perda da noção do mundo enquanto lugar próprio de coabitação e partilha humanas, e que está conectado e em dependência com a natureza, em meio ao que dela surge e desaparece, permanece intimamente ligada ao processo de industrialização (cuja evolução se relaciona com uma economia da produção, do consumo e do desperdício38); e este, por sua vez, liga-se à concepção da natureza enquanto fonte objetiva inesgotável de matéria prima para os empenhos e desempenhos exploradores dos homens, bem como um reservatório dos elementos artificiais ou semiartificiais que resultam das atividades industriais, produtivas e consumistas humanas. Filho da terra, enleado pelo que o rodeia como a mosca na teia de aranha, o homem corre perigo de morte sempre que tais laços ameaçam romper-se. Apesar desta vinculação à natureza e à vida, o ser humano tornou-se um animal que rompe o equilíbrio ecológico e, como insaciável predador, dizima sem piedade as formas de vida, que partilham com ele o planeta, aliás demasiado limitado para uma população, que avança em ritmo crescente, e continuamente empobrecido pelos gastos de energia não renováveis, que podem apressar desenlaces catastróficos. Planeta da vida, a terra convertida em matéria prima da ambição humana por uma Modernidade tricentenária é, nas sociedades industrializadas, pasto da voracidade de um consumismo, que, se fosse universalizado, a converteria irremediavelmente num planeta da morte (PEREIRA, 2003, p. 4). Quando da ascensão de uma sociedade industrializada e tecnológica, cuja economia se baseia no consumo e no desperdício, na produtividade e na velocidade, na perda da durabilidade e estabilidade das relações humanas e dos objetos mundanos, acontece também a ameaça à vida, à natureza e à terra, pois nos dirigimos para a natureza e seus entes na medida em que desejamos obter matéria prima para as nossas produções, processamentos e inventos, bem como quando precisamos nos livrar dos resíduos e subprodutos destas atividades, mesmo sendo eles danosos 38 “É que a economia da produção e do consumo se contenta em multiplicar produtos, dedica-se apenas a aumentar o nível e descura da qualidade de vida, esquecendo-se de melhorar as condições e o ambiente em que se vive” [...] “Reduzindo tudo a mercadoria, a economia produtivista coisifica o homem para endeusar os produtos. Uma região já não é a comunhão do homem com a terra na unidade de uma história e de uma cultura. É apenas um produto a mais para se oferecer aos turistas das indústrias de férias e das empresas de viagens e de turismo. Os fabricados industriais se tornam os ídolos da produção total” (LEÃO, 2010, p. 109).
  • 40. 32 e letais para o equilíbrio dos ecossistemas naturais da Terra e à própria terra. Esta compreensão do sentido da relação entre homem e natureza está alicerçada no que Pereira nos indica como sendo a expressão do dogma fundamental do progresso técnico-industrial, isto é, [...] do esquecimento da natureza quando reduzida a um objecto de persistente exploração, a uma fonte pura de matérias primas e a pasto submisso da nossa cobiça. O déficit político e ecológico aberto pelo progresso científico-técnico depende de uma concepção epistemológica unilateral, que urge transformar na sua raiz: o ideal mecanicista e a fixação antropocêntrica com olvido da alteridade da natureza e da vida, que são nossas interlocutoras e não simples reservatórios energéticos ou biológicos a explorar em ritmo exponencial (PEREIRA, 1992, p. 9). O eclipse de um mundo público comum, como pensa Arendt (no que diz respeito à produtividade, consumo e desperdício nas sociedades capitalistas e industriais, bem como à perda da mundanidade, da durabilidade e da estabilidade do mundo), nos faz refletir sobre o sentido da experiência e condição humanas de habitar e morar num “mundo humano”, situado com a natureza terrena e sobre a terra. O grassar de uma sociedade na qual a condição da mundanidade do homem está sendo minada pelo processo de acúmulo de riquezas que estimula o consumo, a destruição, a expropriação, a poluição, o produtivismo, a industrialização e o desperdício, direciona o sentido da relação entre homens e natureza para uma dimensão que compreende o homem e a realização de sua humanidade na proporção em que este calcula e subjuga, explora e dispõe da natureza, ao mesmo tempo em que a natureza adquire teor de dispositivo disponível, ou reservatório, para o uso e à disposição dos seres humanos. O sentido desta relação entre homens e natureza é tingido pela afirmação da força e eficiência do poderio de artifícios humanos frente à natureza e seus seres.39 39 “A gravidade da situação que hoje atravessamos, não se deve unicamente ao fato de que temos de lidar com a ameaça da destruição de nossos recursos mais vitais: da água, do ar, das espécies vegetais e animais. O momento é grave, de modo mais essencial, por que o homem esqueceu a riqueza do que pode significar ser um ser humano. A tentativa de afirmar um poderio sem limites sobre as coisas – o projeto de estabelecer-se como tirano da vida – redunda em seu isolamento, em rompimento do diálogo com a natureza, em perda da referência da terra como abrigo. Em outro nível, este projeto está intimamente ligado aos ritmos da sociedade industrial. Cria-se a ilusão de que, embora existam desigualdades sociais evidentes demais para serem escamoteadas, todos os homens têm igual poderio sobre a natureza. Todos, até os mais subjugados, têm o poder de subjugar as forças da natureza. Assim, o desequilíbrio ecológico e a planetarização de uma sociedade que, se desenvolvendo sob a ideologia do individualismo e da pretensa igualdade de todos, caminha hoje para uma tecnocracia totalitária, são aspectos de um mesmo fenômeno” (UNGER, 2009, p. 149).
  • 41. 33 A alienação do mundo apontada por Arendt, acontece em conformidade com certa compreensão do que significa, para os homens, habitar e morar num mundo de artifícios e relações humanas, ao mesmo tempo em que este é ser da natureza terrena e terrestre. Se, por um lado, a alienação do mundo impulsiona os homens para um sentido de habitar no mundo que não comporta o preservar e o compartilhar dos espaços públicos e comuns aos homens, em harmonia, respeito e ética com a natureza e seus elementos40, por outro, ela acontece ao mesmo tempo em que se dá a compreensão da natureza como reservatório de matérias primas e como objeto disponível para o cálculo, controle e exploração dos seres humanos, num grassar da sociedade industrial e produtivista que estimula o consumo, o desperdício, a poluição e a devastação da natureza. Esta relação entre o homem e a natureza também acontece ancorada em certa compreensão do lugar e postura dos seres humanos em relação à natureza terrena, por isso envolve o questionamento acerca da condição humana de ser um ser da natureza, ao mesmo tempo em que habita o mundo que é comum e fruto das atividades humanas sobre o planeta. Para melhor compreendermos o sentido da relação entre homens e natureza num mundo onde se dão os avanços simultâneos do produtivismo e da industrialização, da técnica e da tecnologia, da planetarização e da globalização, do consumo e do desperdício exacerbados, podemos lançar o olhar para a reflexão que Martin Heidegger faz sobre a essência da técnica moderna em um de seus ensaios. Neste, o pensador alude, em certos momentos, à relação entre homens e natureza, do ponto de vista da técnica e da essência da técnica41, numa dimensão na qual a dinâmica e o vigor destas estão a favor de um movimento de reduzir a natureza a um objeto disponível à exploração e ao uso dos homens, como se esta passasse a se manifestar ao homem enquanto pura disponibilidade, à qual o homem se propõe e dispõe ao desafio de explorar e dominar em vistas de alcançar seus interesses e finalidades. 40 “O filósofo Martin Heidegger (1990, p.118) nos mostra que nossa palavra ética provém do grego ethos, cujo sentido originário é: morada, não no sentido de tal ou qual construção material, mas no sentido existencial e ontológico da ambiência que é própria ao ser humano, o modo de ser, de habitar, mediante o qual ele realiza sua humanidade. O sentido da ética como um conjunto de princípios que devem orientar sua vida já é um sentido derivado desta experiência originária, e a convenção já é a petrificação desta experiência viva. Sendo, portanto o sentido primeiro da ética um morar, habitar, todo morar autêntico, toda ética essencial, está ligado a um preservar. Segundo este pensador, preservar não é apenas não causar danos a alguma coisa. O preservar genuíno tem uma dimensão positiva, ativa, e acontece quando deixamos algo na paz de sua própria natureza, de sua força originária. Assim também, salvar não tem unicamente o sentido de resgatar uma coisa do perigo: salvar é restituir, ou dar condições para que ela se revele naquilo que lhe é mais próprio. Salvar realmente significa deixar-ser” (UNGER, 2009, p. 152). 41 Para melhor compreender o sentido que o pensador atribui à técnica moderna como uma forma de des- encobrimento e à essência da técnica moderna como composição, bem como em que dimensão se situa a relação entre os seres humanos e a natureza a partir de tais compreensões, pode-se ler o seu ensaio A questão da técnica. Ver em: HEIDEGGER, 2001, pp. 11-38.
  • 42. 34 O des-encobrimento que domina a técnica moderna, possui, como característica, o pôr, no sentido de explorar. Esta exploração se dá e acontece num múltiplo movimento: a energia escondida na natureza é extraída, o extraído vê-se transformado, o transformado, estocado, o estocado, distribuído, o distribuído, reprocessado [...] Quando, portanto, nas pesquisas e investigações, o homem corre atrás da natureza, considerando-a um setor de sua representação, ele já se encontra comprometido com uma forma de desencobrimento. Trata-se da forma de desencobrimento da técnica que o desafia a explorar a natureza, tomando-a por objeto de pesquisa até que o objeto desapareça no não-objeto da dis-ponibilidade [...] A essência da técnica moderna põe o homem a caminho do des-encobrimento que sempre conduz o real, de maneira mais ou menos perceptível, à dis-ponibilidade (HEIDEGGER, 2001, p. 20; p. 22; p. 27). Desta maneira, podemos iluminar o sentido que se atribui à relação entre homens e natureza do ponto de vista da dis-ponibilidade, do processamento, da exploração, da extração, do estoque e do consumo, numa sociedade na qual vigoram a industrialização e a poluição, a subjugação e sujeição da natureza aos interesses humanos, o desperdício e o produtivismo, e o acúmulo desenfreado de capitais que se dá em acordo com o lucro e com a satisfação dos interesses econômicos e ideológicos de certos grupos de seres humanos. Por outro lado, no pensamento de Martin Heidegger, o des-encobrimento explorador que domina a técnica moderna está ligado diretamente ao asseguramento e controle da natureza, uma vez que “por toda parte, assegura-se o controle. Pois o controle e a segurança constituem até as marcas fundamentais do desencobrimento explorador” (HEIDEGGER, 2001, p. 20). Se, por um lado, os “mortais”, que Heidegger contrapõe ao homem planetário, são aqueles que sabem habitar, morar, no sentido pleno da palavra, isto é, que sabem respeitar a Terra e seus seres, acolher e preservar, deixar o próximo ser próximo e o distante ser distante, reconhecer o sagrado, assumir a morte (UNGER, 2001, p. 125). Por outro, o modo de ser do homem planetário da técnica é dominado pela dimensão de um pensar que calcula, e “o mundo, sob a égide desta dimensão, aparece como um objeto, e unicamente como um objeto, a ser enquadrado, computado, controlado” (UNGER, 2001, p. 126). O cálculo, que domina o modo de ser do homem planetário, não designa simplesmente a prática do saber matemático, mas “um modo de
  • 43. 35 comportamento” que determina todo tipo de ação e atitude desse homem. Segundo Heidegger, sua exacerbação é a atitude que só reconhece como real a ação prevista, organizada e planificada. O cálculo enquanto tal, se opõe a todo movimento espontâneo daquilo que cresce a partir de si mesmo, daquilo que se move a partir de seu crescimento intrínseco. Para ele os avanços tecnológicos resultantes da exploração da energia atômica deflagraram um movimento que se desenvolve num ritmo sempre mais acelerado, que já independe da vontade do homem (UNGER, 2001, p. 127). A alienação em relação ao mundo e o caráter de disponibilidade da natureza permanecem ligados ao modo com que os homens, - nas sociedades industriais do consumo e da produtividade, sugando da natureza seus recursos enquanto matéria prima, e devolvendo para ela o lixo e os materiais não biodegradáveis, tal como se faz num reservatório, - compreendem o seu habitar e o seu morar no mundo e na natureza da terra. Ao mesmo tempo em que o homem se distancia de uma dimensão de habitar o mundo preservando-o e edificando- o em harmonia com a natureza (com a poluição das cidades, com a perda da durabilidade dos bens humanos, com a depreciação dos espaços públicos que os homens têm em comum), também acontece a prevalência de um sentido para a relação homem e natureza que ressalta o caráter de disponibilidade da natureza a ser explorada, compreendendo a própria natureza humana na mesma proporção com que o homem controla, subjuga, prevê e dispõe da natureza.42 Com isso, não se pretende, porém, negar o avanço das técnicas e das tecnologias por sobre o planeta, muito menos condená-las como males humanos a serem aniquilados e retirados a todo custo da nossa realidade mundana. Heidegger também nos auxilia na compreensão da dimensão na qual pode se situar a relação entre os seres humanos e a técnica, dimensão esta que, se reduzir os seres humanos a meros servidores da técnica e ao seu modo de se instalar sobre o mundo, poderá conduzir os homens para uma relação que não é apenas de controle e domínio sobre a natureza, mas que é, perigosamente, de asseguramento e segurança em relação à própria técnica, à ciência e aos seus desdobramentos, em relação aos próprios homens, seus vínculos e potencialidades, em relação à vida e à existência dos seres.43 42 “A perspectiva tecnocrática futurista trata o mundo da natureza como um pano de fundo para a atividade do ser humano, visto como ápice da criação. Esta maneira de ver a relação homem/Natureza, que exerce uma profunda influência em todo o percurso civilizacional do Ocidente, encontra sua expressão máxima no lugar dado pela modernidade à técnica, como meio de o homem “vencer” e “dominar” a natureza, e “humanizar a terra”. Assim, como diria Heidegger, a técnica – que na compreensão grega é uma forma de poiesis, um lugar de revelação dos entes – se torna cada vez mais uma prática de ocultamento, à medida que o homem projeta a sombra das suas necessidades sobre toda a natureza, que não existe a não ser como objeto de uso seu” (UNGER, 1991, p. 78). 43 “Recentemente, a ciência vem-se esforçando por tornar “artificial” a própria vida, por cortar o último laço que faz do próprio homem um filho da natureza. O mesmo desejo de fugir da prisão terrena manifesta-se na tentativa de criar a vida numa proveta [...] A questão é apenas se desejamos usar nessa direção nosso novo conhecimento