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Baixar para ler offline
4   ●   SEGUNDO CADERNO                                                                            O GLOBO                                                          Domingo, 6 de novembro de 2011




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                                                                                                                                                                                     O
                                                                                                                         FIM
                   A PÁGINA MÓVEL




        H
                    á quem diga que o futuro aca-
                    bou. Ele seria, hoje, tão ou mais
                                                                         Para que sonhar
                    imediato que o presente. Chega-                      com o espaço



                                                                                                                       DO “
                    ria todos os dias na publicidade,
        no noticiário e nas vitrines, oferecido com                      sideral se o
        garantias de pronta-entrega. O tempo em
        que se sonhava (e se formulava) o futuro
                                                                         espaço virtual é                                                                      Os Jetson são
        como algo distante e admirável agora faz                         o novo barato ?                                                                       pré-História;




        FU
        parte do ontem. Ninguém mais quer saber
        do espaço sideral: o espaço virtual é bem                                                                                                              Fred Flinstone,
        mais fácil e palpável. Novas tecnologias são
        tão corriqueiras que mitologias perdidas
                                                                                                                                                               o amanhã
        num passado remoto tomam ares de novi-                                                                                                                     Rodrigo Fonseca
        dades. Toda tentativa de extrapolar recai                                                                                                   ● Confortável em sua poltrona biônica,

        na redundância. Os gênios se produzem a                                                                                                     calçado com pantufas massageadoras
                                                                                                                                                    feitas de titânio lunar, George Jetson, o
        granel e o pensamento filosófico nunca foi                                                                                                  Homer Simpson da contracultura nos
        visto com tanta desconfiança. Nesta edição                                                                                                  anos 1960, virou fóssil. Convergência
                                                                                                                                                    entre tecnologia e comportamento, ele é
        da Logo, o poeta Alexei Bueno e os jorna-                                                                                                   a relíquia de um imaginário (hoje)
        listas e escritores Rodrigo Fonseca e Luiz                                                                                                  perdido, no qual o amanhã seria a utopia
        Henriques Neto fazem digressões sobre a                                                                                                     da invenção e o sonho de transformar o
                                                                                                                                                    impossível em provável. O Sr. Jetson
        tese, a fim de dizer se ela (ou qualquer coi-                                                                                               ficaria decepcionado se topasse com a
                                                                                                                                                    ficção científica atual, que desenha o




      TU
        sa...) ainda tem futuro. (Arnaldo Bloch)
                                                                                                                                                    amanhã sem o progressismo de Julio
                                                                                                                                                    Verne ou H. G. Wells. Mesmo um filme




         “
                                                                                                                                                    sobre robôs como o recente sucesso
                                                                                                                                                    “Gigantes de aço”, com Hugh Jackman,

                                                                                                                  Obsolescência,                    estrutura seus cenários como
                                                                                                                                                    ambientação de folhetim, sem naves,

                                                                                                                  imperatrix mundi                  lasers ou odisseias no espaço.
                                                                                                                                                       O patriarca dos “Jetsons” teria a
                                                                                                                                                    sensação de estar na Bedrock de seu
                                                                                                                       Alexei Bueno                 primo pré-histórico Fred Flintstone: os
                                                                                                                                                    filmes e as séries já não pensam o futuro
                                                                                                        ● Até umas décadas atrás, todo ser          como um admirável mundo novo. Isso
                                                                                                        humano chegava ao início da juventude       não se deve a um surto catastrofista na
                                                                                                        aparelhado com o conhecimento               linha de um “Mad Max” ou de um “O
                                                                                                        cotidiano básico que o acompanharia         exterminador do futuro”, nos quais a
                                                                                                        até a morte. Graças ao capitalismo          desolação é o destino de nossa raça. A
                                                                                                        tecnológico, e à sua obsolescência em       questão é outra: na arte, a clarividência
                                                                                                        aceleração, todos nos tornamos idiotas      científica travou. Foi contagiada por uma
                                                                                                        cíclicos em prazos cada vez mais curtos.    conjuntivite dialética que embaça sua




    RO
                                                                                                           A tecnologia, que incrementa a           visão frente às otimizações ofertadas de
                                                                                                        angústia da ausência de qualquer fixidez,   bandeja pelo mundo on-line. Adicionar
                                                                                                        atinge o espúrio máximo ao afetar até a     novos “amigos” no Facebook e tuitar
                                                                                                        percepção da arte, único absoluto laico     iluminações de 140 caracteres é mais
                                                                                                        que nos restava. A ideologia do progresso   interessante para o planisfério estético do
                                                                                                        uniu-se à experiência crescente da          que esboçar hipóteses arquitetônicas e
                                                                                                        obsolescência para fazer da arte algo       civilizatórias sobre os anos que virão.
                                                                                                        semelhante à moda ou ao esporte. Ocorre        Desde “Flash Gordon” (1936), com
                                                                                                        que uma sinfonia não é um notebook,         Buster Crabbe, sempre que o planeta
                                                                                                        nem um poema um micro-ondas, mas é          embarca numa crise financeira ou numa
                                                                                                        difícil àquele tomado pela ilusão do        instabilidade política global a ficção
                                                                                                        privilégio da contemporaneidade             científica é sacudida por surtos niilistas e
                                                                                                        compreender que Picasso não é superior      ensaios sobre ruína. Basta ver a produção
                                                                                                        a Van Gogh, nem esse a Rembrandt, nem       da Guerra Fria. Nas versões de “Guerra
                                                                                                        o último a Caravaggio por terem             dos mundos” ou “O dia em que a Terra
                                                                                                        aparecido um depois do outro.               parou” feitas numa década de 1950
                                                                                                           Nunca existiu quem não tenha vivido      abafada pela dicotomia entre capitalistas
                                                                                                        na contemporaneidade, e julgar que          e comunistas, qualquer contato imediato
                                                                                                        esta atualidade é muito superior a          era um indício de hecatombe. Mas
                                                                                                        outra é a origem do pletórico uso da        mesmo nesses libelos os visitantes do
                                                                                                        palavra futuro na propaganda, como se       espaço eram retratados como emissários




    “
                                                                                                        esse tivesse que ser uma maravilha,         de uma cultura tecnicista evoluída,
                                                                                                        podendo, é óbvio, ser uma desgraça.         capazes de apontar novos caminhos.
                                                                                                        Quanto à sacralização da tecnologia,           Nos filmes de hoje, os gadgets não

                Eles são a vida, e ocupam Wall Street                                                   vale lembrar que a mesma que nos deu
                                                                                                        o antibiótico e o telefone criou a
                                                                                                                                                    pertencem mais ao terreno do
                                                                                                                                                    inalcançável. Como o cinema para
                                                                                                        torneira com célula fotoelétrica e o        massas é regido por departamentos de
                   Luiz Henriques Neto               de tudo no universo é decair, mas a vida é         secador de mãos a ar quente, estas          marketing, que pensam filmes como
                                                     cada vez mais pujante. Não os organismos           duas ornejantes agressões à dignidade       reclames publicitários tamanho GG, os
        ● Diz-se que o futuro não é mais o que       individuais, mas a vida em si. Formando            humana. Poderá perceber isso a horda        apetrechos de heróis e vilões podem
        era antigamente. Que nada. O futuro é        sistemas cada vez mais complexos, a vida           que caminha pelas ruas com a mão            ser reproduzidos com fidelidade pela
        uma invenção da modernidade. Veio            é como o sujeito presente na floresta para         colada à têmpora, na posição que já foi     indústria e adquiridos via eBay.
        junto com o progresso tecnológico. Até       ouvir a árvore cair: ela altera a                  privilégio dos que iriam estourar os           Na lógica do merchandising, a ficção
        então as pessoas viam o tempo como           inevitabilidade dos ciclos universais              miolos, empunhando um celular que           científica parou de pensar no “o que
        cíclico: um de semear, outro de colher.      trazendo organização à esterilidade da             não desce ao bolso nem durante as           aconteceria se...”. Agora, o fetiche é
        Um de nascer, outro de morrer. As            decadência e até a livre vontade de bônus,         refeições ou os velórios?                   pensar a memória. O sci-fi parou de ver
        estações se repetiam e, com sorte, o         face à inegável constatação de que somos              A obsolescência comanda tudo, o rio      as estrelas de tempos mais prósperos e
        mundo era o mesmo a cada equinócio. E,       capazes de prever a consequência de                de Heráclito transformou-se em              passou a refletir sobre a instantaneidade
        reforçando essa ideia, toda geração até      nossas ações e escolher qual a melhor.             tsunami. O tempo de olhar para si ou        do ctrl + alt + del que pode deletar as
        hoje acha que tudo no tempo deles era           Schrödinger não consegue acreditar              para o cosmos se esgarça, bêbado de         emoções. O cinema se volta para dentro,
        melhor. Inclusive o porvir.                  que essa livre vontade simplesmente se             gadgets, e qualquer solidão virou uma       seja com a doçura de “Brilho eterno de
           O tempo sempre fascinou a                 vá com a morte, mas acha ridícula a                aristocracia. A arte contemporânea, em      uma mente sem lembranças” (2004), seja
        Humanidade. Se, como diz Einstein, é         ideia de almas incorpóreas flutuando               grande parte, substituiu uma estesia        na adrenalina de “A origem” (2010), com
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        se pode caminhar em uma direção nele?        que pensamos como individualidade na               estranheza. A originalidade,                Gondry e Christopher Nolan, mostrando
        Inclusive é exatamente esta propriedade      verdade é apenas um aspecto da                     consequência incontornável, tornou-se       que o futuro é medido pelo nosso poder
        que faz do tempo o que é, sua                pluralidade, pois tudo que existe é uno.           um fim. O que vinha suprir                  de reter informações — e saudades.
        inevitabilidade (apesar das tentativas em    Uma assertiva bem perto de Deus.                   necessidades passa a gerá-las. A atual         Eles trouxeram calor para um filão
        contrário de Léo Batista e Christiane           Então não se tem nada que ficar                 obsessão com o lixo, mais do que            famoso pela frieza maquinal. Mas
        Torloni). Talvez, além de elétrons,          cobrando das novas gerações que lutem              oriunda do problema dos limites             deixaram de recorrer a cenografias
        prótons e afins, sejamos feitos também       as lutas de seus pais. Elas estão                  planetários, que só uma implosão            carregadas de suposições acerca das
        de partículas temporais que vão se           adicionando ao futuro o seu próprio                demográfica poderia resolver, é antes       potencialidades da engenharia
        perdendo com o correr dos anos, até          presente. O próprio povo da                        um epifenômeno da velocidade com            mecânica ou mesmo digital.
        que não haja mais nenhuma e chegue           contracultura acabou cantando que era              que tudo nele se transforma.                   A sci-fi engasgou num bug de si
        nossa hora. Talvez o futuro todo já tenha    como seus pais. Se essa garotada parece               Mas a aceleração, que para os deuses     mesma. Ela se pretende pé no chão
        acontecido e com nossa inata                 desorganizada, sem rumo ou direção, só             é inútil, para os mortais é a morte.        demais. E isso pode fazer com que a
        unidimensionalidade não consigamos           devemos comemorar: é por isso que                     Chegamos à hora da eterna puerícia.      História entre em parafuso. Mesmo
        apreendê-lo, condenados a percorrer          eles não são pedaços de minerais                   A pavorosa roda dos renascimentos,          exacerbando seus recursos de
        trilhas já determinadas.                     flutuando no vácuo.                                que o Buda entreviu, passou a cumprir-      totalização do pensamento, ela carece
           Ou talvez não. Talvez o povo da física       Eles estão vivos e se alimentam de              se numa única vida. A mulher da foice,      de uma arte capaz de lhe oferecer
        quântica esteja certo e cada momento         caos e desordem. Eles são Anonymous.               ultrapassada, entrega o comando da          parâmetros mais longínquos para
        esteja repleto de possibilidades abrindo     São Legião. Eles ocupam Wall Street. A             dança macabra para a obsolescência. E       pensar até onde vai o espírito humano.
        novas dimensões e realidades                 Cinelândia. Eles são — raios! — o Tea              todos correm em disparada até a             É hora de o cinema despertar do transe
        dependendo da decisão tomada. Em “O          Party. Eles são o novo. Eles são a vida.           grande usina de reciclagem, já um dia       e perceber que escapismo e alienação
        que é a vida”, Schrödinger teoriza que          Eles são o futuro.                              chamada cemitério.                          nem sempre são sinônimos.
        tudo que vive é uma máquina que se
        alimenta de entropia negativa. A tendência   Luiz Henriques Neto é jornalista e escritor        Alexei Bueno é poeta                        Rodrigo Fonseca é jornalista e escritor

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  • 1. 4 ● SEGUNDO CADERNO O GLOBO Domingo, 6 de novembro de 2011 Logo . O FIM A PÁGINA MÓVEL H á quem diga que o futuro aca- bou. Ele seria, hoje, tão ou mais Para que sonhar imediato que o presente. Chega- com o espaço DO “ ria todos os dias na publicidade, no noticiário e nas vitrines, oferecido com sideral se o garantias de pronta-entrega. O tempo em que se sonhava (e se formulava) o futuro espaço virtual é Os Jetson são como algo distante e admirável agora faz o novo barato ? pré-História; FU parte do ontem. Ninguém mais quer saber do espaço sideral: o espaço virtual é bem Fred Flinstone, mais fácil e palpável. Novas tecnologias são tão corriqueiras que mitologias perdidas o amanhã num passado remoto tomam ares de novi- Rodrigo Fonseca dades. Toda tentativa de extrapolar recai ● Confortável em sua poltrona biônica, na redundância. Os gênios se produzem a calçado com pantufas massageadoras feitas de titânio lunar, George Jetson, o granel e o pensamento filosófico nunca foi Homer Simpson da contracultura nos visto com tanta desconfiança. Nesta edição anos 1960, virou fóssil. Convergência entre tecnologia e comportamento, ele é da Logo, o poeta Alexei Bueno e os jorna- a relíquia de um imaginário (hoje) listas e escritores Rodrigo Fonseca e Luiz perdido, no qual o amanhã seria a utopia Henriques Neto fazem digressões sobre a da invenção e o sonho de transformar o impossível em provável. O Sr. Jetson tese, a fim de dizer se ela (ou qualquer coi- ficaria decepcionado se topasse com a ficção científica atual, que desenha o TU sa...) ainda tem futuro. (Arnaldo Bloch) amanhã sem o progressismo de Julio Verne ou H. G. Wells. Mesmo um filme “ sobre robôs como o recente sucesso “Gigantes de aço”, com Hugh Jackman, Obsolescência, estrutura seus cenários como ambientação de folhetim, sem naves, imperatrix mundi lasers ou odisseias no espaço. O patriarca dos “Jetsons” teria a sensação de estar na Bedrock de seu Alexei Bueno primo pré-histórico Fred Flintstone: os filmes e as séries já não pensam o futuro ● Até umas décadas atrás, todo ser como um admirável mundo novo. Isso humano chegava ao início da juventude não se deve a um surto catastrofista na aparelhado com o conhecimento linha de um “Mad Max” ou de um “O cotidiano básico que o acompanharia exterminador do futuro”, nos quais a até a morte. Graças ao capitalismo desolação é o destino de nossa raça. A tecnológico, e à sua obsolescência em questão é outra: na arte, a clarividência aceleração, todos nos tornamos idiotas científica travou. Foi contagiada por uma cíclicos em prazos cada vez mais curtos. conjuntivite dialética que embaça sua RO A tecnologia, que incrementa a visão frente às otimizações ofertadas de angústia da ausência de qualquer fixidez, bandeja pelo mundo on-line. Adicionar atinge o espúrio máximo ao afetar até a novos “amigos” no Facebook e tuitar percepção da arte, único absoluto laico iluminações de 140 caracteres é mais que nos restava. A ideologia do progresso interessante para o planisfério estético do uniu-se à experiência crescente da que esboçar hipóteses arquitetônicas e obsolescência para fazer da arte algo civilizatórias sobre os anos que virão. semelhante à moda ou ao esporte. Ocorre Desde “Flash Gordon” (1936), com que uma sinfonia não é um notebook, Buster Crabbe, sempre que o planeta nem um poema um micro-ondas, mas é embarca numa crise financeira ou numa difícil àquele tomado pela ilusão do instabilidade política global a ficção privilégio da contemporaneidade científica é sacudida por surtos niilistas e compreender que Picasso não é superior ensaios sobre ruína. Basta ver a produção a Van Gogh, nem esse a Rembrandt, nem da Guerra Fria. Nas versões de “Guerra o último a Caravaggio por terem dos mundos” ou “O dia em que a Terra aparecido um depois do outro. parou” feitas numa década de 1950 Nunca existiu quem não tenha vivido abafada pela dicotomia entre capitalistas na contemporaneidade, e julgar que e comunistas, qualquer contato imediato esta atualidade é muito superior a era um indício de hecatombe. Mas outra é a origem do pletórico uso da mesmo nesses libelos os visitantes do palavra futuro na propaganda, como se espaço eram retratados como emissários “ esse tivesse que ser uma maravilha, de uma cultura tecnicista evoluída, podendo, é óbvio, ser uma desgraça. capazes de apontar novos caminhos. Quanto à sacralização da tecnologia, Nos filmes de hoje, os gadgets não Eles são a vida, e ocupam Wall Street vale lembrar que a mesma que nos deu o antibiótico e o telefone criou a pertencem mais ao terreno do inalcançável. Como o cinema para torneira com célula fotoelétrica e o massas é regido por departamentos de Luiz Henriques Neto de tudo no universo é decair, mas a vida é secador de mãos a ar quente, estas marketing, que pensam filmes como cada vez mais pujante. Não os organismos duas ornejantes agressões à dignidade reclames publicitários tamanho GG, os ● Diz-se que o futuro não é mais o que individuais, mas a vida em si. Formando humana. Poderá perceber isso a horda apetrechos de heróis e vilões podem era antigamente. Que nada. O futuro é sistemas cada vez mais complexos, a vida que caminha pelas ruas com a mão ser reproduzidos com fidelidade pela uma invenção da modernidade. Veio é como o sujeito presente na floresta para colada à têmpora, na posição que já foi indústria e adquiridos via eBay. junto com o progresso tecnológico. Até ouvir a árvore cair: ela altera a privilégio dos que iriam estourar os Na lógica do merchandising, a ficção então as pessoas viam o tempo como inevitabilidade dos ciclos universais miolos, empunhando um celular que científica parou de pensar no “o que cíclico: um de semear, outro de colher. trazendo organização à esterilidade da não desce ao bolso nem durante as aconteceria se...”. Agora, o fetiche é Um de nascer, outro de morrer. As decadência e até a livre vontade de bônus, refeições ou os velórios? pensar a memória. O sci-fi parou de ver estações se repetiam e, com sorte, o face à inegável constatação de que somos A obsolescência comanda tudo, o rio as estrelas de tempos mais prósperos e mundo era o mesmo a cada equinócio. E, capazes de prever a consequência de de Heráclito transformou-se em passou a refletir sobre a instantaneidade reforçando essa ideia, toda geração até nossas ações e escolher qual a melhor. tsunami. O tempo de olhar para si ou do ctrl + alt + del que pode deletar as hoje acha que tudo no tempo deles era Schrödinger não consegue acreditar para o cosmos se esgarça, bêbado de emoções. O cinema se volta para dentro, melhor. Inclusive o porvir. que essa livre vontade simplesmente se gadgets, e qualquer solidão virou uma seja com a doçura de “Brilho eterno de O tempo sempre fascinou a vá com a morte, mas acha ridícula a aristocracia. A arte contemporânea, em uma mente sem lembranças” (2004), seja Humanidade. Se, como diz Einstein, é ideia de almas incorpóreas flutuando grande parte, substituiu uma estesia na adrenalina de “A origem” (2010), com apenas mais uma dimensão, por que só por aí. Acaba chegando à ideia de que o milenar pela reles criação de uma Homeros audiovisuais, como Michel se pode caminhar em uma direção nele? que pensamos como individualidade na estranheza. A originalidade, Gondry e Christopher Nolan, mostrando Inclusive é exatamente esta propriedade verdade é apenas um aspecto da consequência incontornável, tornou-se que o futuro é medido pelo nosso poder que faz do tempo o que é, sua pluralidade, pois tudo que existe é uno. um fim. O que vinha suprir de reter informações — e saudades. inevitabilidade (apesar das tentativas em Uma assertiva bem perto de Deus. necessidades passa a gerá-las. A atual Eles trouxeram calor para um filão contrário de Léo Batista e Christiane Então não se tem nada que ficar obsessão com o lixo, mais do que famoso pela frieza maquinal. Mas Torloni). Talvez, além de elétrons, cobrando das novas gerações que lutem oriunda do problema dos limites deixaram de recorrer a cenografias prótons e afins, sejamos feitos também as lutas de seus pais. Elas estão planetários, que só uma implosão carregadas de suposições acerca das de partículas temporais que vão se adicionando ao futuro o seu próprio demográfica poderia resolver, é antes potencialidades da engenharia perdendo com o correr dos anos, até presente. O próprio povo da um epifenômeno da velocidade com mecânica ou mesmo digital. que não haja mais nenhuma e chegue contracultura acabou cantando que era que tudo nele se transforma. A sci-fi engasgou num bug de si nossa hora. Talvez o futuro todo já tenha como seus pais. Se essa garotada parece Mas a aceleração, que para os deuses mesma. Ela se pretende pé no chão acontecido e com nossa inata desorganizada, sem rumo ou direção, só é inútil, para os mortais é a morte. demais. E isso pode fazer com que a unidimensionalidade não consigamos devemos comemorar: é por isso que Chegamos à hora da eterna puerícia. História entre em parafuso. Mesmo apreendê-lo, condenados a percorrer eles não são pedaços de minerais A pavorosa roda dos renascimentos, exacerbando seus recursos de trilhas já determinadas. flutuando no vácuo. que o Buda entreviu, passou a cumprir- totalização do pensamento, ela carece Ou talvez não. Talvez o povo da física Eles estão vivos e se alimentam de se numa única vida. A mulher da foice, de uma arte capaz de lhe oferecer quântica esteja certo e cada momento caos e desordem. Eles são Anonymous. ultrapassada, entrega o comando da parâmetros mais longínquos para esteja repleto de possibilidades abrindo São Legião. Eles ocupam Wall Street. A dança macabra para a obsolescência. E pensar até onde vai o espírito humano. novas dimensões e realidades Cinelândia. Eles são — raios! — o Tea todos correm em disparada até a É hora de o cinema despertar do transe dependendo da decisão tomada. Em “O Party. Eles são o novo. Eles são a vida. grande usina de reciclagem, já um dia e perceber que escapismo e alienação que é a vida”, Schrödinger teoriza que Eles são o futuro. chamada cemitério. nem sempre são sinônimos. tudo que vive é uma máquina que se alimenta de entropia negativa. A tendência Luiz Henriques Neto é jornalista e escritor Alexei Bueno é poeta Rodrigo Fonseca é jornalista e escritor