1. 32 Sábado, 21 de janeiro de 2012
OGLOBO
HISTÓRIA
Marcelo Carnaval
Imigração
seletiva
Facilitar entrada de europeus e
restringir a de negros é política
recorrente na história do país
ARTE NAIF de Portugal: quadro Descobrimentos portugueses, de Luiza Caetano, em exposição realizada no Brasil
Michel Filho Reprodução
Roberta Jansen
roberta.jansen@oglobo.com.br
F
acilitar a entrada de migrantes
europeus e dificultar ou mes-
mo impedir a de negros é uma
política recorrente na História
do Brasil, sustentam especialistas.
Ao longo da última semana, o gover-
no anunciou medidas para restrin-
gir a migração de haitianos e, ao
mesmo tempo, informou estar estu-
dando formas de facilitar a vinda de
trabalhadores qualificados proveni-
entes de países da Europa.
O projeto da Secretaria de Assun-
tos Estratégicos (SAE) da Presidên-
cia da República que visa a elaborar
uma política nacional de migração
tem por objetivo — como mostrou
reportagem publicada no GLOBO
“
no domingo passado — propor um
processo de imigração seletiva, que EM BRASILEIA, no Acre, há duas semanas, haitianos fazem fila em unidade de saúde; no início do século, espanhois chegam ao país em foto histórica
priorize a drenagem de Arquivo AP
cérebros, mas estabele-
ça limites para os estran-
geiros que chegam fugin-
do da pobreza. A ideia é
reduzir a burocracia ho-
je existente para os tra-
balhadores mais qualifi- A política de
cados. A justificativa é
econômica. Ao mesmo
branqueamento faz
tempo, o governo anun- parte da nossa
ciou a restrição à entra-
da de haitianos no país tradição
também por questões
econômicas. Serão con- JORGE DA SILVA
cedidos somente 100
vistos de trabalho por
mês, uma forma de re- Acho que seria
gular a entrada ilegal
que vinha ocorrendo. interessante,
Embora ninguém tenha
falado em raça, para es-
historicamente, se
pecialistas, há preceden- houvesse uma atitude
tes históricos que pas-
sam pela questão racial. diferente em relação
— O Brasil mantém a
coerência histórica — à entrada de negros
FAMÍLIA EUROPEIA de imigrantes em
assinala o professor de História da
Unicamp Sidney Chalhoub. — Não 1907 (acima). Ao lado, navio de
no Brasil
estou dizendo que os europeus de-
migrantes haitianos nos EUA. Abaixo, SIDNEY CHALLUB
vam ser tratados a pontapés. Mas
acolher europeus e criar embaraços japoneses chegam a São Paulo
maiores para haitianos me parece Arquivo
lamentável. Acho que todos deveri- indígenas estariam “extintos” no ís 4 mil haitianos. A maioria já teve
am ser tratados com generosidade, Brasil. Portanto, a ideia de barrar a a sua situação legalizada.
mas, se é para dar prioridade a al- entrada de africanos, ou melhor, — Dizer que 4 mil haitianos é um flu-
guém, vale lembrar que, no caso dos de negros, faz parte do processo. xo migratório é bizarro, esse número
haitianos, se trata de uma emergên- Lamentavelmente ainda tem gente é muito baixo — afirma o professor de
cia humanitária. que pensa isso hoje. Antropologia da Unicamp Omar Ri-
Em 1890, logo após a abolição da beiro Thomaz. — O Brasil recebeu no
Mais de 50 mil
escravatura, uma lei tornou livre a ano passado 50 mil estrangeiros, a
imigração, “excetuados os indíge- maioria portugueses, e isso não foi te-
estrangeiros
nas da África ou da Ásia”, os quais ma de discussão, ao contrário, foi vis-
“somente mediante autorização do to como resultado do sucesso do pa-
Congresso Nacional poderão ser ad- ís, que agora está atraindo mão de
mitidos”. Do século XVI ao XIX, cal- l O pesquisador Nei Lopes, especia- obra qualificada. Mas não sabemos
cula-se que 4,8 milhões de negros te- lista em estudos sobre os negros no sequer se esses haitianos têm qualifi-
nham sido trazidos ao Brasil como Brasil, concorda com Silva: cação. Muitos têm curso superior e
escravos. No entanto, com a proibi- — Essa ideia de "limpar", branque- técnico e são alfabetizados em dois
ção do tráfico e, depois, da própria ando, a sociedade brasileira ainda idiomas (francês e creole). Não é por-
escravidão, a ideia de receber os ne- permanece na cabeça de muita gen- que são negros que vão virar favela-
gros deixou de ser atrativa. Com is- te. Persiste, por exemplo, na propa- dos. Quem disse que não são capazes
so, abriram-se as portas para traba- ganda e na na mídia em geral, onde a de arrumar um emprego?
lhadores italianos, espanhóis e ale- presença afrodescendente é quase O historiador Sidney Challub vai
mães, num primeiro momento, e, ves, autora de “Um defeito de cor”, ro- Vargas, que, restringiu de maneira sempre vista com estranheza — afir- além, ele acha que por conta de
mais tarde, também japoneses. Os mance histórico sobre a escravidão geral a entrada de imigrantes por ma Lopes, fazendo uma ressalva. — uma dívida histórica, o Brasil, mais
portugueses, os primeiros estran- no Brasil, concorda com o colega. conta de suas políticas nacionalis- Mas hoje, felizmente, pelo que eu do que ninguém, deveria receber
geiros a chegarem por aqui, tam- — A imigração europeia se deu tas, um decreto lei estabelecia que sei, não existe nenhuma política de bem os haitianos.
bém continuaram vindo em diferen- em um momento em que começava “atender-se-á, na admissão dos Estado no sentido dessa exclusão. — Acho que seria interessante,
tes levas migratórias. a se pensar um projeto de nação pra imigrantes, à necessidade de pre- Muito pelo contrário. historicamente, se houvesse uma
— Na verdade, havia o medo de o Brasil e uma identidade para o po- servar e desenvolver, na composi- Mesmo ainda sem a entrada em atitude diferente em relação à entra-
um grande fluxo de negros america- vo brasileiro — afirmou. — Asiáti- ção étnica da população, as carac- vigor do plano para facilitar a vinda da de negros no Brasil, se o governo
nos, com o fim da guerra civil — ex- cos foram aceitos apenas porque terísticas mais convenientes da de europeus, de janeiro a setembro trabalhasse no sentido de dar opor-
plicou Challub. — Havia o interesse não houve interesse suficiente por sua ascendência europeia”. do ano passado, o Ministério do tunidade num país que sempre trou-
do governo de trazer mão de obra parte de europeus e porque esta- — A política de branqueamento Trabalho concedeu 51.353 autori- xe os negros como escravos — de-
europeia, trabalhadores brancos, vam mais próximos do ideal de faz parte da nossa tradição — sus- zações de trabalho a estrangeiros, fende Challub. — Seria uma oportu-
não negros. Era uma política clara- branqueamento do que os africa- tenta o cientista político Jorge da um aumento de 32% em relação ao nidade histórica de tratar com gene-
mente racista, que tinha por objeti- nos, mesmo assim com grande re- Silva, da Uerj. — João Baptista de mesmo período do ano anterior. rosidade negros que estão vindo
vo o branqueamento da população. serva e limitação através de cotas. Lacerda previu, em 1911, em Lon- Também de acordo com dados do agora não como escravos mas em
A pesquisadora Ana Maria Gonçal- Em 1945, no governo de Getúlio dres, que em 100 anos os negros e governo, até agora entraram no pa- busca de um trabalho. n