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34 • REVISTA O GLOBO• 5 DE FEVEREIRO DE 2012




                                               convidado
                                                 Colunista




                                                                                                                                                                                      Divulgação
                                                                                                   Christina Oiticica*




                                                    ‘‘
                                                                   Caminho de fé
                                                                     Sempre tive muita fé, muita devoção e             considerada impura. Foi quando, na mesma
                                                                   muito respeito às religiões. Em minhas buscas       noite, ela teve um sonho com a divindade de
                                                                   por aprendizado e crescimento, passei por           Kumano, que lhe disse: “Como poderia o Deus
                                                                   experiências incríveis, como o convite para         que se mistura ao pó sofrer por causa de sua
                                                                   enterrar minhas obras no Caminho Sagrado            obstrução mensal?” O templo é a casa de
                                                  O Caminho de     de Kumano, no Japão.
                                                                     A origem de tudo se deu quando ainda
                                                                                                                       todos. Ali hoje existe um Oji. Os Oji, na
                                                                                                                       tradição xintoísta, são pedaços do Deus
                                                  Kumano é um      morava próximo a Lourdes, nos Pirineus Fran-
                                                                   ceses. Caminhava, orava e pintava nos bos-
                                                                                                                       maior, e suas imagens — normalmente re-
                                                                                                                       presentadas por pedras — estão espalhadas
                                                                   ques, e foi aí que iniciei o processo de enterrar   pelo caminho para proteger os peregrinos.
                                               local sagrado de    telas para que a natureza interferisse. Creio         Enquanto pintava e enterrava as telas no
                                                                   que a natureza está intimamente ligada a Deus       Japão, um monge xintoísta me deu um es-




                                                    ‘‘
                                                    peregrinação
                                                  tão importante
                                                como o Caminho
                                                   de Santiago.
                                                   Em ambos, a
                                                 natureza e a fé
                                                impõem o ritmo
                                                                   e a seus mistérios. Por isso, anos depois de
                                                                   minha peregrinação por Santiago de Com-
                                                                   postela, retornei para deixar enterrados mais
                                                                   de cem quadros durante dois anos ao longo de
                                                                   800 quilômetros.
                                                                     O Caminho de Kumano é um local sagrado
                                                                   de peregrinação tão importante para o Orien-
                                                                   te como o Caminho de Santiago é importante
                                                                   para o Ocidente. Em ambos, a natureza e a fé
                                                                   impõem o ritmo.
                                                                     Meu trabalho foi recebido com muita na-
                                                                   turalidade e respeito no Japão, porque é
                                                                   tradição dos monges das montanhas de Ya-
                                                                   mabushi enterrarem seus sutras e objetos
                                                                   abençoados nestes locais.
                                                                     Muitas fábulas rondam Kumano. Meu guia
                                                                                                                       pelho e disse que todas as vezes em que me
                                                                                                                       olhasse estaria vendo meu coração. Nos tem-
                                                                                                                       plos xintoístas não existem imagens nos al-
                                                                                                                       tares. Num deles, há uma janela pela qual
                                                                                                                       vemos uma cachoeira grandiosa e sagrada, a
                                                                                                                       Nachi-no Õtaki Falls.
                                                                                                                         Descobri em Kumano algumas práticas es-
                                                                                                                       pirituais: o Shugêndo — “o caminho da arte de
                                                                                                                       acumulação de experiência” — é a relação de
                                                                                                                       amor e dor, que disciplina o corpo para
                                                                                                                       aceitar tudo que a natureza tem para oferecer.
                                                                                                                       O único exercício de Shugêndo que me atrevi
                                                                                                                       a fazer foi encostar a coluna vertebral numa
                                                                                                                       árvore. Assim, nossas energias e nossos es-
                                                                                                                       píritos se comunicariam. Ali também deixei
                                                                                                                       pedidos, em pequenos papéis amarrados nos
                                                                   contou, durante a nossa caminhada, a história       galhos, para que eles se realizem.
                                                                   de uma peregrina que estava no período                Foram nove dias de muito trabalho para o
                                                                   menstrual e, por isso, não poderia entrar no        corpo e também para a alma. Voltei exausta. O
                                                                   templo de Taisha, em Hongu, porque era              corpo muito cansado, mas a alma em paz.
                                                                                                                                                 *ChristinaOiticicaéartistaplástica

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O Caminho de Kumano é um local sagrado de peregrinação

  • 1. O 34 • REVISTA O GLOBO• 5 DE FEVEREIRO DE 2012 convidado Colunista Divulgação Christina Oiticica* ‘‘ Caminho de fé Sempre tive muita fé, muita devoção e considerada impura. Foi quando, na mesma muito respeito às religiões. Em minhas buscas noite, ela teve um sonho com a divindade de por aprendizado e crescimento, passei por Kumano, que lhe disse: “Como poderia o Deus experiências incríveis, como o convite para que se mistura ao pó sofrer por causa de sua enterrar minhas obras no Caminho Sagrado obstrução mensal?” O templo é a casa de O Caminho de de Kumano, no Japão. A origem de tudo se deu quando ainda todos. Ali hoje existe um Oji. Os Oji, na tradição xintoísta, são pedaços do Deus Kumano é um morava próximo a Lourdes, nos Pirineus Fran- ceses. Caminhava, orava e pintava nos bos- maior, e suas imagens — normalmente re- presentadas por pedras — estão espalhadas ques, e foi aí que iniciei o processo de enterrar pelo caminho para proteger os peregrinos. local sagrado de telas para que a natureza interferisse. Creio Enquanto pintava e enterrava as telas no que a natureza está intimamente ligada a Deus Japão, um monge xintoísta me deu um es- ‘‘ peregrinação tão importante como o Caminho de Santiago. Em ambos, a natureza e a fé impõem o ritmo e a seus mistérios. Por isso, anos depois de minha peregrinação por Santiago de Com- postela, retornei para deixar enterrados mais de cem quadros durante dois anos ao longo de 800 quilômetros. O Caminho de Kumano é um local sagrado de peregrinação tão importante para o Orien- te como o Caminho de Santiago é importante para o Ocidente. Em ambos, a natureza e a fé impõem o ritmo. Meu trabalho foi recebido com muita na- turalidade e respeito no Japão, porque é tradição dos monges das montanhas de Ya- mabushi enterrarem seus sutras e objetos abençoados nestes locais. Muitas fábulas rondam Kumano. Meu guia pelho e disse que todas as vezes em que me olhasse estaria vendo meu coração. Nos tem- plos xintoístas não existem imagens nos al- tares. Num deles, há uma janela pela qual vemos uma cachoeira grandiosa e sagrada, a Nachi-no Õtaki Falls. Descobri em Kumano algumas práticas es- pirituais: o Shugêndo — “o caminho da arte de acumulação de experiência” — é a relação de amor e dor, que disciplina o corpo para aceitar tudo que a natureza tem para oferecer. O único exercício de Shugêndo que me atrevi a fazer foi encostar a coluna vertebral numa árvore. Assim, nossas energias e nossos es- píritos se comunicariam. Ali também deixei pedidos, em pequenos papéis amarrados nos contou, durante a nossa caminhada, a história galhos, para que eles se realizem. de uma peregrina que estava no período Foram nove dias de muito trabalho para o menstrual e, por isso, não poderia entrar no corpo e também para a alma. Voltei exausta. O templo de Taisha, em Hongu, porque era corpo muito cansado, mas a alma em paz. *ChristinaOiticicaéartistaplástica