(1) O Caminho de Kumano é um local sagrado de peregrinação no Japão, considerado tão importante quanto o Caminho de Santiago na Espanha. (2) A autora enterrou mais de cem de suas pinturas ao longo de 800km do Caminho de Kumano como parte de sua prática espiritual. (3) Ela experimentou práticas espirituais como o Shugêndo, que envolve disciplinar o corpo através da natureza, e sentiu que sua alma encontrou paz após nove dias de trabalho físico e espiritual no local
O Caminho de Kumano é um local sagrado de peregrinação
1. O
34 • REVISTA O GLOBO• 5 DE FEVEREIRO DE 2012
convidado
Colunista
Divulgação
Christina Oiticica*
‘‘
Caminho de fé
Sempre tive muita fé, muita devoção e considerada impura. Foi quando, na mesma
muito respeito às religiões. Em minhas buscas noite, ela teve um sonho com a divindade de
por aprendizado e crescimento, passei por Kumano, que lhe disse: “Como poderia o Deus
experiências incríveis, como o convite para que se mistura ao pó sofrer por causa de sua
enterrar minhas obras no Caminho Sagrado obstrução mensal?” O templo é a casa de
O Caminho de de Kumano, no Japão.
A origem de tudo se deu quando ainda
todos. Ali hoje existe um Oji. Os Oji, na
tradição xintoísta, são pedaços do Deus
Kumano é um morava próximo a Lourdes, nos Pirineus Fran-
ceses. Caminhava, orava e pintava nos bos-
maior, e suas imagens — normalmente re-
presentadas por pedras — estão espalhadas
ques, e foi aí que iniciei o processo de enterrar pelo caminho para proteger os peregrinos.
local sagrado de telas para que a natureza interferisse. Creio Enquanto pintava e enterrava as telas no
que a natureza está intimamente ligada a Deus Japão, um monge xintoísta me deu um es-
‘‘
peregrinação
tão importante
como o Caminho
de Santiago.
Em ambos, a
natureza e a fé
impõem o ritmo
e a seus mistérios. Por isso, anos depois de
minha peregrinação por Santiago de Com-
postela, retornei para deixar enterrados mais
de cem quadros durante dois anos ao longo de
800 quilômetros.
O Caminho de Kumano é um local sagrado
de peregrinação tão importante para o Orien-
te como o Caminho de Santiago é importante
para o Ocidente. Em ambos, a natureza e a fé
impõem o ritmo.
Meu trabalho foi recebido com muita na-
turalidade e respeito no Japão, porque é
tradição dos monges das montanhas de Ya-
mabushi enterrarem seus sutras e objetos
abençoados nestes locais.
Muitas fábulas rondam Kumano. Meu guia
pelho e disse que todas as vezes em que me
olhasse estaria vendo meu coração. Nos tem-
plos xintoístas não existem imagens nos al-
tares. Num deles, há uma janela pela qual
vemos uma cachoeira grandiosa e sagrada, a
Nachi-no Õtaki Falls.
Descobri em Kumano algumas práticas es-
pirituais: o Shugêndo — “o caminho da arte de
acumulação de experiência” — é a relação de
amor e dor, que disciplina o corpo para
aceitar tudo que a natureza tem para oferecer.
O único exercício de Shugêndo que me atrevi
a fazer foi encostar a coluna vertebral numa
árvore. Assim, nossas energias e nossos es-
píritos se comunicariam. Ali também deixei
pedidos, em pequenos papéis amarrados nos
contou, durante a nossa caminhada, a história galhos, para que eles se realizem.
de uma peregrina que estava no período Foram nove dias de muito trabalho para o
menstrual e, por isso, não poderia entrar no corpo e também para a alma. Voltei exausta. O
templo de Taisha, em Hongu, porque era corpo muito cansado, mas a alma em paz.
*ChristinaOiticicaéartistaplástica