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O balanço fiscal como Tatbestand na tributação do lucro empresarial
Filipe de Vasconcelos Fernandes1
Universidade de Lisboa, Faculdade de Direito
RESUMO
A expressão “balanço fiscal” refere-se, simultaneamente, aos elementos que integram a relação de
dependência parcial existente entre Direito Fiscal e Contabilidade e, bem assim, ao conjunto de correções
que podem incidir sobre o balanço comercial, para efeito da determinação do lucro tributável em sede de
IRC.
De acordo com a tese defendida, o balanço fiscal é um momento normativo autónomo, no que à dinâmica
de apuramento do IRC diz respeito. Efetivamente, com a generalização do mecanismo de autoliquidação
– que tem por base uma competência privada do sujeito passivo, para o exercício da liquidação – passa a
existir uma necessidade progressivamente maior de introduzir normas valorativas especiais, que
estabeleçam limites específicos ao exercício da discricionariedade contabilística, num momento em que o
próprio Direito Contabilístico é cada vez mais composto por princípios.
Em síntese, a conformidade constitucional das valorações especiais dependerá, não só dos fins
subjacentes à respetiva aplicação, pautados por presunções relativas à existência de discricionariedade
contabilística, como igualmente pela preservação que continuam a dever a uma tributação das empresas
de acordo com o respetivo lucro real, tal como enunciada nos termos do artigo 104.º, n.º2, da Constituição
da República Portuguesa (“CRP”).
Palavras-chave: Tributação das Empresas; IRC; Balanço Fiscal; Tatbestand.
1
Assistente Convidado na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Mestre em Direito Fiscal.
Consultor na Vieira de Almeida & Associados.
§1. Uma redefinição do princípio da tributação das empresas pelo lucro real
Tal como já constara na versão originária da Constituição da República Portuguesa
(“CRP”), dispõe o atual artigo 104.º n.º 22
que a tributação das empresas deverá incidir,
fundamentalmente, sobre o respetivo rendimento real3
- entendendo-se este último, no
que ao IRC diz respeito, pelo lucro real efetivamente obtido.
O referido artigo 104.º n.º 2 é um dos preceitos constitucionais que, versando sobre
matéria fiscal, melhor tem resistindo às diversas fontes de erosão do texto
constitucional, mantendo-se intacto desde a primeira versão da CRP. Para além deste
aspeto preliminar, existem ainda razões adicionais que, em nosso entender,
incrementam a importância do referido preceito, para uma plena compreensão dos
alicerces do sistema de tributação das empresas.
Desde logo, saliente-se a circunstância de a inscrição constitucional do artigo 104.º n.º2
ter por base uma “reação constituinte” ao modelo de tributação das empresas que
resultou da Reforma Fiscal de 1929, o de uma tributação pelo lucro normal – modelo ao
qual a Reforma Fiscal de 1958-1963 não conseguiu, pelo menos de forma linear,
colocar termo, por razões expostas, de forma clarividente, por Teixeira Ribeiro4
.
Por outro lado, trata-se igualmente de um preceito que incorpora um debate doutrinário
relativamente esquecido até ao momento, e que muito deve ao labor científico de
Teixeira Ribeiro, o autor que, desde o final dos anos 30 do Século XX, se vinha
insurgindo contra as debilidades técnicas de uma tributação pelo lucro normal (mesmo
que acabasse por reconhecer, de forma circunstancial, as vantagens que aquele modelo
poderia oferecer, atendendo às debilidades da economia nacional, entre as décadas de 30
e 60 do Século XX).
Por todo este conjunto de fatores parece justificar-se a tão abundante jurisprudência,
tanto fiscal como constitucional, sobre este o princípio da tributação das empresas pelo
2
Perante um tão elevado número de referências que, pela natureza do presente escrito, serão dirigidas
ao artigo 104.º n.º2 da Constituição da República Portuguesa, para não cair em excesso, omitir-se-ão
em muitos casos as abreviaturas “CRP” ou “Constituição”.
3
Sobre o referido princípio constitucional, em termos gerais, Cfr. José Guilherme Xavier de Basto, «A
Constituição e o Sistema Fiscal», Revista de Legislação e Jurisprudência, 138, 2009, pp. 271-284; «O
princípio da tributação do rendimento real e a Lei Geral Tributária», Fiscalidade, nº 5, Janeiro 2001,
pp. 5-21; José Casalta Nabais, «O quadro constitucional da tributação das empresas», Nos 25 Anos
da Constituição da República Portuguesa de 1976, Lisboa, AAFDL, 2001; «Alguns aspetos da
tributação das empresas» in Estudos de Direito Fiscal, Volume II, pp. 357-406; «Ainda fará sentido o
art.º 104.º da Constituição?», Cadernos de Justiça Tributária, 1, Julho-Setembro 2013, pp. 34 e ss.;
M.H. Freitas Pereira, «A extensão do conceito de lucro tributável», in Colóquio sobre o Sistema Fiscal
- Comemoração do XX Aniversário do Centro de Estudos Fiscais, Lisboa 1984.
4
Cfr. J.J. Teixeira Ribeiro, «A contra-reforma fiscal», Boletim de Ciências Económicas, Volume XII,
1969, pp. 115 e ss..
lucro real. Importa, por isso, traçar um breve enquadramento sobre a génese daquele
preceito constitucional, bem como a do modelo de tributação das empresas que
comporta.
Desde logo, tanto a inscrição do referido preceito constitucional como os alicerces
dogmáticos da sua construção teórica muito devem ao labor de Teixeira Ribeiro que, já
nas respetivas Lições de Finanças de 1935-19365
, dedicara uma parte considerável ao
tratamento de uma (suposta) tributação das empresas pelo lucro real, por oposição ao
que resultara da Reforma Fiscal de 1929, onde fora generalizado o modelo de tributação
das empresas pelo lucro normal. Recorde-se que a opção da referida Reforma Fiscal de
1929, da autoria de António de Oliveira Salazar, recaiu sobre um modelo de tributação
das empresas pelo respetivo lucro normal, opção que significou uma drástica inflexão
face ao percurso que vinha sendo trilhado, na sequência da Reforma Fiscal de 19226
.
Ora, com a Reforma Fiscal de 1988-1989 – muito mais do que com a Reforma Fiscal de
1958-1963, pelas razões elencadas por Teixeira Ribeiro7
– ocorreu uma alteração
estrutural no sistema de administração dos impostos, que muito importa para a
definição dos termos em que deve ser perspetivado o atual sistema de tributação das
empresas. De facto, mais do que uma alteração quanto ao conceito de rendimento fiscal
adotado, está agora em causa, não só um sistema de administração privada dos
impostos, mas também o reconhecimento, por parte do legislador, de que existe uma
competência de uso privativo do sujeito passivo, para efetuar a liquidação.
Em termos gerais, aos atos praticados pelos sujeitos passivos em sede de autoliquidação
corresponde agora uma definitividade substancial8
, mesmo admitindo uma dimensão
condicional da sua forma, atenta a tutela de legalidade da Administração que, em
momento algum, se poderia cingir a uma “atividade de caixa”. Ao mesmo tempo,
procuraremos extrair as consequências normativas mais relevantes de uma competência
de uso privativo de que as empresas dispõem para a determinação dos respetivos lucro e
matéria coletável, como base para a atribuição de uma dupla natureza ao artigo 104.º
5
Cfr. J.J. Teixeira Ribeiro, «Lições de Finanças – Em Harmonia com as Preleções do Professor
Doutor José Joaquim Teixeira Ribeiro ao Curso do III Ano Jurídico de 1935-1936», Livraria do
Castelo – Editora, Coimbra 1936.
6
Preâmbulo ao Decreto 16:731, de 13 de Abril de 1929.
7
Cfr. J.J. Teixeira Ribeiro, «A contra-reforma fiscal», Boletim de Ciências Económicas, Volume XII,
1969, pp. 115 e ss
8
Cfr. José Casalta Nabais, «Direito Fiscal», cit., pp. 302 e ss.
n.º2: não só como direito subjetivo mas, igualmente, como um dever constitucional,
acessoriamente conexo ao dever fundamental de pagar impostos9
.
É em função do perímetro traçado pela competência de uso privativo de que os sujeitos
passivos atualmente dispõem que procuraremos delimitar a expressão normativa dos
atos privados de liquidação, bem como fundamentar uma leitura atualista do artigo 104.º
n.º2.
Trata-se de uma leitura que tem inequívoco acolhimento na lei fiscal. Recorde-se que,
nos termos do art.º 82º, nº 1, da LGT, a competência para a avaliação direta é da
Administração e, nos casos de autoliquidação, do sujeito passivo10
. De igual forma, face
ao disposto no art.º 84º, nº 2, da mesma LGT, o sujeito passivo que proceda à
autoliquidação deve esclarecer, quando solicitado pela Administração, os critérios
utilizados e a sua aplicação na determinação dos valores que declarou.
Resulta daquele conjunto de normas que, por expressa indicação legal, quem faz a
autoliquidação é o sujeito passivo. Logo, mesmo que não se trate de um ato exclusivo
do mesmo, dado que pode também ser praticado pelo substituto ou pelo responsável
tributário, à sua utilização subjaz uma competência de uso privativo, de modo algum
prejudicada pela existência de deveres de cooperação ou pela ocorrência de correções, a
efetuar por parte da Administração.
Tanto assim é que, a partir do momento em que ocorre uma intervenção corretiva da
Administração, ou do próprio legislador, relativamente a um aspeto fulcral para a
tributação das empresas, se deve equacionar a natureza da tributação pelo lucro real
enquanto direito subjetivo, pois apenas nos referidos momentos se expressa a sua
dimensão enquanto direito de proteção.
Antes disso, o que existe é um verdadeiro dever constitucional, de exercício da
atividade quantificadora em conformidade ao lucro real, que a lei fiscal sanciona através
de um mecanismo “premial”, com a ausência de uma intervenção corretiva pela
9
Sobre a matéria dos deveres constitucionais e deveres fundamentais, sem prejuízo da bibliografia
citada, Cfr. Peter Badura, «Grundpflichten als verfassungsrechtliche Dimension», DV, Vol. 97, 1982,
pp. 861-872. Com outras referências relevantes, Cfr. Santiago Varela Diaz, «La Idea de Deber
Constitucional», REDC, Año 2, No. 4, Enero-Abril 1982, pp. 69-90; Gregorio Peces-Barba Martínez,
«Los Deberes Fundamentales», Doxa, 4, 1987, pp. 329-341; Francisco Rubio Llorente, «Deberes
Constitcionales», REDC, Año 21, Num 62, Mayo-Agosto 2001, pp. 11-56.
10
Naturalmente que, como bem esclareceu o STA, “a autoliquidação não é um acto exclusivo do
contribuinte, podendo o mesmo também ser praticado pelo substituto ou pelo responsável.
Substituto ou responsável nos termos da lei”. Cfr. AcSTA de 15-02-2006, Processo 026622, 2.ª
Secção [Almeida Lopes].
Administração ou ainda com sanções fiscais “impróprias”, que cada vez mais
proliferam por toda a normatividade fiscal.
De acordo com o exposto, procuraremos demonstrar que, por intermédio da
generalização do mecanismo de autoliquidação, o artigo 104.º n.º 2 sofreu uma alteração
de sentido que importa convocar, de forma a oferecer uma interpretação atualista do
texto constitucional e que, perante a remissão que dele se deduz para a ação
concretizadora do legislador ordinário, em nada prejudica a unidade constitucional e os
limites possíveis do respetivo texto.
Em conformidade com o exposto, pretenderemos demonstrar que a interpretação
oferecida, tanto por doutrina e jurisprudência a respeito do artigo 104.º n.º2, assumindo
este último como um direito subjetivo, assentava no pressuposto de uma interposição da
atividade administrativa ou “administrativização”11
da liquidação.
No atual modelo relacional entre sujeitos passivos e Administração, esta intervenção
ocorrerá a posteriori, relativamente à autoliquidação. De tal forma, como regra geral,
presume-se que o contribuinte efetuou a autoliquidação de acordo com critérios idóneos
face aos valores reais e se exija à Administração que fundamente a sua intervenção em
omissões, erros de imputação e mensuração ou ainda na aplicação de uma norma
valorativa especial, atenuando oportunidades de arbitragem suscitadas pela
discricionariedade contabilística ou pela própria hipertrofia normativa.
A adoção desta posição terá ainda consequências muito significativas de um ponto de
vista dogmático. Por recurso a uma terminologia de Teoria do Direito, tal exige que
acrescentemos à distinção entre normas de competência pública e privada a categoria
das normas de conduta, assumindo o relevo destas últimas como limite imanente ao
exercício da competência das empresas na atividade quantificadora.
Da interpretação atualista que propomos, o artigo 104.º n.º2 tem como destinatário
imediato, ao nível do respetivo âmbito de estatuição, as próprias empresas. Como tal,
não obstante a competência que assiste a cada empresa para conformar o resultado
contabilístico, exigir-se-á que a intervenção corretiva da Administração se adeque
igualmente a um exercício conforme, de entre outros, a uma tributação pelo lucro real, o
que significa que a interpretação das normas valorativas especiais se transforma numa
questão de conformidade constitucional face ao artigo 104.º n.º2.
11
Cfr. José Casalta Nabais, «Direito Fiscal», cit., p. 302.
Exemplo da metodologia que seguiremos verificar-se-á em diversos exemplos ao longo
da presente investigação, sendo exemplo paradigmático a necessidade de calibrar as
intervenções corretivas por parte da Administração consoante seja mais ou menos
vinculada a margem de liberdade conformadora relativa a cada segmento do resultado
contabilístico.
Esta posição parece-nos especialmente reforçada quanto se impõe uma referência ao
balanço fiscal como um verdadeiro Tatbestand – no sentido a que se lhe referiu, entre
nós, Saldanha Sanches e, na doutrina alemã, de entre outros, Joachim Schulze-
Osterloh12
– traçado, de entre outros, pelos caracteres típicos que presidem à existência
de uma noção compreensiva de lucro e que, apenas quando a lei fiscal o exigir,
divergirá daquele que é foi o lucro real efetivo.
Ora, um dos caracteres do balanço fiscal é precisamente o das normas definitórias a que
nos referiremos, as quais que se encarregam de estabelecer a noção de lucro “oficial” a
que se deve vincular a atividade quantificadora e, bem assim, as intervenções da própria
Administração Fiscal.
§1.1 A relação de dependência parcial entre Direito Fiscal e Direito Contabilístico
O atual regime fiscal de tributação das empresas, maxime em IRC, repousa sobre um
conceito jurídico unitário de rendimento. Efetivamente, neste domínio, “o rendimento
deverá, como condição prévia à sua utilização”13
, a qual tanto poderá ocorrer por parte
dos sujeitos passivos como pela Administração ou Tribunais, “ser objeto de recepção
pelo pensamento jurídico e dotado do grau de precisão necessária para que possa ser
um instrumento de aplicação”14
.
Naturalmente que o conceito de rendimento adotado pela legislação fiscal não poderá
corresponder a um puro empréstimo conceptual proveniente do reduto económico,
mesmo que aí encontre as suas raízes mais profundas e tal se não possa ignorar, até por
ser cada vez mais premente o recurso casuístico a elementos e técnicas de análise
económica, como auxiliares interpretativos da lei fiscal. Por isso, deve entender-se o
rendimento como um conceito jurídico adequado às finalidades prosseguidas pela lei
fiscal e, mais latamente, como expressão de uma adequação a toda a juridicidade, algo
12
Cfr. Joachim Schulze-Osterloh, «Die Steuerbilanz als Tatbestandsmerkmal im Einkommen und
Körperschaftsteuergesetz» in Werner Doralt, «Probleme des Steuerbilanzrechts», DStJG Band 14,
Verlag Dr. Otto Schmidt KG, Köln 1991, pp. 123 e ss.
13
Cfr. J.L. Saldanha Sanches, «O Conceito de Rendimento no IRS», Fiscalidade, 7-8, 2001, p. 34.
14
Cfr. J.L. Saldanha Sanches, «O Conceito de Rendimento no IRS», cit., p. 34.
particularmente atual pela circunstância de, subjacente às normas fiscais se encontrar
uma prerrogativa de “transformação de conceitos”15
.
No Direito Fiscal Português, podemos encontrar uma alusão à importância de tal
prerrogativa de transformação de conceitos no Manual de Alberto Xavier. Nas palavras
do ilustre Professor, “a preocupação de ajustar a realidade tradicional de um conceito
à perspetiva do Direito Fiscal, não é tarefa que a lei tenha delegado no intérprete,
antes ela se arroga diretamente esse poder de adaptação ou transformação”16
.
Todavia, não será de estranhar que na passagem do rendimento bruto para o rendimento
líquido, o sistema de tributação das empresas – que, como se viu, conta com expressa
menção constitucional17
– dependa de uma valoração previamente imputável ao sujeito
passivo, agora colocado numa posição central para autoavaliar a respetiva capacidade
contributiva, com base na qual cumpre, simultaneamente, os seus deveres declarativos e
de pagamento de imposto.
Para além do referido, e como bem alertou Saldanha Sanches, o conceito de rendimento
tributável é composto por duas dimensões distintas: por um lado, “mediante a inclusão
de todas as receitas que irão fazer parte do rendimento tal como a lei o define”18
; por
outro lado, “de um modo negativo, depois de efectuadas todas as exclusões de
tributação que se encontram previstas na lei”19
. Ora, para que ao nível da tributação das
empresas seja possível a concretização de um rendimento tributável (sob a forma de
lucro tributável) torna-se necessário que a lei fiscal possa, em certos casos, derrogar a
própria lei comercial, no modo como define o lucro tributável, de forma distinta do
lucro distribuível aos sócios20
.
15
Cfr. Alberto Xavier, «Manual de Direito Fiscal», cit., p. 181.
16
Cfr. Alberto Xavier, «Manual de Direito Fiscal», cit., p. 181.
17 Em nosso entender, o referido preceito constitucional não tem uma dimensão exclusivamente
programática, como alguma doutrina para apologizar. Pelo contrário, entendemos que lhe está
subjacente: (i) a obrigatoriedade de existência de tributação das empresas; e (ii) a obrigatoriedade de
existência de um imposto sobre as sociedades. Também nos parece ser esse o entendimento que
perfilhou Teixeira Ribeiro, ao referir que “quando a Constituição fala na tributação das empresas, não
tem em mente um imposto sobre o rendimento de todas elas, mas apenas sobre o rendimento das
empresas societárias. O que significa irmos ter, ao lado do imposto de rendimento pessoal, um
imposto sobre sociedades”. Sobre este aspeto, Cfr. J.J. Teixeira Ribeiro, «As Opções Fiscais da
Constituição» in «A Reforma Fiscal», Coimbra Editora Limitada, 1989, pp. 197-198.
18
Cfr. J.L. Saldanha Sanches, «Manual de Direito Fiscal», cit., p. 219.
19
Cfr. J.L. Saldanha Sanches, «Manual de Direito Fiscal», cit., p. 219.
20
Cfr. J.L. Saldanha Sanches, «Manual de Direito Fiscal», cit., p. 368.
§1.2 Da prestação de contas à força normativa do Direito Contabilístico
A matéria da prestação de contas tem expresso reconhecimento no artigo 65.º do Código
das Sociedades Comerciais, onde se dispõe que “os membros da administração devem
elaborar e submeter aos órgãos competentes da sociedade o relatório de gestão, as
contas do exercício e demais documentos de prestação de contas previstos na lei,
relativos a cada exercício anual”. Está em causa, como recorda Nina Aguiar, a ancestral
“obrigação mercantil de manter contabilidade organizada e de prestar contas”21
. Por
outro lado, como vem sendo reconhecido pela jurisprudência nacional, a prestação de
contas corresponde a uma expressão particular do dever de informar22
, devendo mesmo
ser entendido “não como um simples dever de informação sobre o objecto do direito de
outrem, mas como obrigação de informação detalhada das receitas e despesas
efectuadas, acompanhada da justificação e documentação de todos os actos de que é
uso exigir e guardar documento”23
.
De igual forma, o próprio STJ já reconheceu igualmente que a “obrigação de prestação
de contas é estruturalmente uma obrigação de informação, que existe sempre que o
titular de um direito tenha dúvida fundada acerca da sua existência ou do seu conteúdo
e outrem esteja em condições de prestar as informações necessárias (…) e cujo fim é o
de estabelecer o montante das receitas cobradas e das despesas efectuadas, de modo a
obter-se a definição de um saldo e a determinar a situação de crédito ou de débito”24
.
Efetivamente, é da obrigação de prestação de contas que partem as valorações que irão
enfermar o conteúdo do balanço fiscal, o que leva mesmo alguns autores alemães a
dirigir expressas referências aos “princípios do balanço como padrões adequados de
tributação”25
.
Cingindo-nos ao caso português, a relação entre lucro contabilístico e lucro fiscal
repousa sobre um modelo designado de conexão formal, nos termos do qual o
apuramento do lucro está vinculado, não apenas às normas contabilísticas mas, de igual
forma, às próprias opções contabilísticas efetuadas no balanço comercial26
, o que
21
Cfr. Nina Aguiar, «O Direito Fiscal perante as Normas Contabilísticas: Uma Abordagem
Metodológica» in Paulo Otero/Fernando Araújo/João Taborda da Gama, «Estudos em Memória do
Prof. Doutor J.L. Saldanha Sanches», Volume IV, Coimbra Editora 2011, p. 1023.
22
Tal como previsto nos termos do artigo 573.º do Código Civil.
23
AcTR Coimbra de 14-05-2013, Processo 9-B/1991.C1 [Henrique Antunes].
24
AcSTJ de 09-02-2006, Processo 05B4061 [Araújo Barros].
25
Cfr. Heinz-Jürgen Pezzer, «Bilanzierungsprinzipien als sachgerechte Maßstäbe der Besteuerung» in
Werner Doralt (Hrsg.), «Probleme des Steuerbilanzrechts», DStJG, Band 14, Verlag Dr. Otto Schmidt
KG, Köln 1991, pp. 3 e ss.
26
Cfr. Nina Aguiar, «Modelos normativos de relação entre lucro tributário e contabilidade comercial»,
Fiscalidade, Núm. 13/14, 2003, pp. 39-49.
naturalmente inclui casos em que as normas contabilísticas comportam margens de
discricionariedade27
.
A referida conexão formal, que para a generalidade dos autores acarreta mesmo a ideia
de um balanço único (“Einheitsbilanz”), tem subjacentes dois corolários essenciais:
(i) Em primeiro lugar, uma regra geral de prévia inscrição contabilística de cada
componente do resultado do exercício.
Está em causa a primazia de um elemento formal atribuído à técnica contabilística para
mensurar as componentes do resultado, de acordo com um critério de imputação
temporal linear aos perímetros comercial e fiscal. Significa, por isso, que se trata de um
domínio em que a normação fiscal vincula a própria normação comercial, muito em
particular o domínio da prestação de contas, já que as os gastos ou rendimentos da
empresa deverão ser considerados tendo por base normas originariamente fiscais e
invariantes face ao destinatário em causa28
, seja o sócio em relação à correta definição
do lucro distribuível seja a própria empresa, enquanto sujeito passivo, face à correta
determinação do conteúdo da autoliquidação de imposto.
Nos referidos termos, uma vez que qualquer variação patrimonial positiva corresponde a
um crescimento do património e uma variação patrimonial negativa a uma diminuição:
note-se que a lógica do regime de imputação temporal tem por base a comparação entre
a situação patrimonial entre dois momentos distintos, correspondendo cada parcela de
lucro ao acréscimo e o prejuízo, genericamente considerados, à diminuição.
(ii) Em segundo lugar, a excecionalidade dos desvios à conexão formal, assim como dos
desvios à remissão para as normas contabilísticas.
No modelo adotado no ordenamento jurídico português, a lei fiscal assume que a
determinação do lucro tributável se encaixa numa prévia valoração contabilística,
reportando ao Direito Comercial a função de disciplinar o sistema de prestação de
contas.
Somente a posteriori ocorrerão alguns ajustamentos ou correções, por aplicação de
normas valorativas especiais, exclusivamente pertencentes ao perímetro fiscal. A
existência destas valorações especiais deve-se ao facto do Direito Fiscal reclamar a
tutela de fins específicos, que poderão mesmo exigir a redução da margem de
apreciação subjacente às opções concedidas pelas normas contabilísticas e que tem nos
27
Cfr. Nina Aguiar, «Modelos normativos de relação entre lucro tributário e contabilidade comercial»,
cit., pp. 42 e ss.
28
Cfr. J.L. Saldanha Sanches, «Manual de Direito Fiscal», cit., p. 374.
sujeitos passivos os seus últimos beneficiários. Daí que, como referia Saldanha Sanches
“as normas criadas pelo Código do IRC para a tributação das empresas segundo a sua
contabilidade têm, como sentido fundamental, criar limites às faculdades de escolha do
decisor contabilístico”29
.
Assim, a relação entre o Direito Fiscal e o Direito Contabilístico, quanto ao apuramento
do lucro tributável, obedece a uma relação de dependência parcial30
, na qual o resultado
contabilístico é a base e ponto de partida para a determinação do lucro tributável, sendo
submetido a ajustamentos extra contabilísticos, de ordem positiva e negativa, tendo em
vista o apuramento definitivo do resultado fiscal. Ora, é um facto que a dita conexão
formal encontra justificação na tributação pelo lucro real, ou não fosse o resultado
contabilístico o representante mais fidedigno da realidade, correspondendo o depósito
sobre o balanço contabilístico o mecanismo que, pese embora reflexamente, melhor
cumpre as exigências da capacidade contributiva31
num contexto em que a quantificação
é exercida pelas próprias empresas.
Ao ter entendido que o resultado contabilístico apurado para efeitos comerciais é o que
melhor exprime aproximação ao lucro real, desde que salvaguardada a prerrogativa de
adequação do balanço comercial às finalidades específicas da lei fiscal, o que mais não
é senão retomar a prerrogativa de transformação e adaptação de conceitos a que se
referida Alberto Xavier32
.
Como consequência da consagração do princípio da tributação das empresas pelo lucro
real, temos, assim, uma ampla atribuição de poderes de fiscalização à Administração, ao
mesmo tempo que se assume que as suas intervenções corretivas têm agora natureza
excecional. É que, existindo um direito subjetivo a uma tributação pelo lucro real, este
direito apenas poderá ser restringido se existirem razões bastantes para tal, mas não
eliminado o seu núcleo fundamental, onde se incluem pressuposições de ordem técnica,
contabilísticas, como forma de expressar a competência valorativa de que os sujeitos
passivos dispõem no reduto contabilístico, numa posição de primazia face à
Administração.
29
Cfr. J.L. Saldanha Sanches, «Manual de Direito Fiscal», cit., p. 374.
30
Cfr. Gaspare Falsitta, «Manuale di Diritto Tributário - Parte Speciale», Il Sistema delle Imposte in
Itália, Cedam 2014, pp. 165 e ss.
31
Cfr. Clotilde Celorico Palma, «Algumas Considerações sobre as Relações entre a Contabilidade e a
Fiscalidade», in Paulo Otero/Fernando Araújo/João Taborda da Gama, «Estudos em Memória do
Prof. Doutor J.L. Saldanha Sanches», Volume IV, Coimbra 2011, pp. 634 e ss.
32
Cfr. Alberto Xavier, «Manual de Direito Fiscal», cit., pp. 181 e ss.
Daqui resulta uma hétero-vinculação da qual decorre que as decisões legislativas (e
administrativas) que regulamentam e limitam os espaços privados de decisão na
elaboração do balanço têm obrigatoriamente que levar a uma obtenção do lucro real, o
que perfaz das próprias normas fiscais que estabelecem remissões para a Contabilidade,
assim como correções ao resultado contabilístico, verdadeiras normas fiscais de direção
(“Lenkungsnormen”).
Em conformidade, aquando da quantificação do imposto, impende sobre legislador e
Administração uma obrigação de resultado, que se concretiza numa distribuição justa
dos encargos tributários, a qual conta com uma hétero-vinculação adicional: a
circunstância de a Administração se encontrar subordinada ao lucro real efetivo, para tal
encontrando-se vinculada aos corolários que expressamente decorrem do referido
princípio.
Como sabemos, tributar o lucro real significa atingir a matéria coletável realmente
auferida pelo sujeito passivo e não o rendimento que este poderia ter obtido, em
condições normais de exploração, independentemente das condições concretas em que
desenvolveu a sua atividade, como postularia da tributação pelo lucro normal33
.
A realidade a que se chama “balanço fiscal” é, pois, uma ficção, um balanço comercial
corrigido, suportado, de um ponto de vista informativo, pelo mesmo sistema de recolha
e registo de informação que vai conduzir ao balanço comercial, passando a ter como
destinatários, não os sócios ou acionistas e os que têm relações operacionais com esta,
mas o sujeito passivo ou a Administração, que o vão utilizar como instrumento de
quantificação do imposto.
Efetivamente, a lei parte do balanço comercial para, através de valorações especiais,
construir um “balanço fiscal”34
. Ora, a influência do Direito Fiscal na elaboração das
regras contabilísticas, caso seja contrária aos fins e princípios contabilísticos, constitui
uma violação da lei e princípios contabilísticos, nomeadamente o princípio da imagem
fiel, colocando-se a questão inversa àquela que resulta do artigo 104.º n.º 2, a de saber
quais os limites impostos ao próprio Direito Fiscal no que concerne às restrições
efetuadas a interesses da Contabilidade por intermédio daquelas valorações especiais.
33
Cfr. Clotilde Celorico Palma, «Algumas Considerações sobre as Relações entre a Contabilidade e a
Fiscalidade», cit., pp. 646 e ss.
34
Sobre as opções do legislador português neste domínio, Cfr. M.H. Freitas Pereira, «A base tributável
do IRC», Ciência e Técnica Fiscal n.º 360, Out/Dez 1990; Teresa Veiga de Faria, «O Conceito de
Rendimento no Imposto sobre as Pessoas Colectivas», Fisco n.º 1, 1987.
Em nosso entender, não deixam de existir limitações impostas à restrição dos interesses
do Direito Contabilístico, de tal forma que é necessário proceder a uma interpretação do
princípio da tributação pelo lucro real em conformidade ao Direito Europeu, no que
concerne à recente Diretiva 2013/34/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho,
relativa às demonstrações financeiras anuais, às demonstrações financeiras consolidadas
e aos relatórios conexos de certas formas de empresas.
No respetivo artigo 4.º n.3, da referida Diretiva, prescreve-se agora que:
“3. As demonstrações financeiras anuais devem dar uma imagem verdadeira e
apropriada dos elementos do ativo e do passivo, da posição financeira e dos resultados
da empresa. Sempre que a aplicação da presente diretiva não seja suficiente para dar
uma imagem verdadeira e apropriada dos elementos do ativo e do passivo, da posição
financeira e dos resultados da empresa, devem ser prestadas nas notas às
demonstrações financeiras as informações adicionais necessárias para cumprir aquele
requisito”.
Embora princípio da “imagem fiel” não esteja consagrado expressamente no SNC,
designadamente ao nível da respetiva Estrutura Conceptual, pode concluir-se que
reveste a natureza de um princípio geral de Direito Contabilístico, conforme a nossa
ordem jurídico-constitucional e fiscal os reconhece e acaba por acolher de forma
determinante, para a determinação do lucro tributável.
Para além de que determinadas normas fiscais podem assim ser considerados normas
contabilísticas, no sentido de normas jurídicas que exprimem ou concretizam princípios
contabilísticos: princípios que se tornam vinculativos para as empresas pela sua
transformação em normas jurídicas, isto é, pela sua positivação35
: veja-se o caso da
especialização de exercícios, atualmente constante no artigo 18.º, n.º1, do CIRC.
De tal forma, o conceito de lucro tributável acolhido entre nós, é, assim, o resultado de
uma complexa e minuciosa previsão normativa, permitindo ao balanço fiscal torna-se
um Tatbestand, por intermédio do qual o ordenamento jurídico acolhe grande número
de conceitos extraídos das técnicas e práticas contabilísticas36
, mas sem abdicar da
construção de um pressuposto normativo de incidência especificamente fiscal.
A relevância fiscal do resultado contabilístico não deixa de implicar projeção para o
domínio fiscal dos princípios a que obedece a determinação daquele resultado, tratando-
se de uma verdadeira imposição que julgamos decorrer do próprio artigo 104.º n.º2. É
35
Cfr. J.L. Saldanha Sanches, «Manual de Direito Fiscal», cit., p. 279.
36
Cfr. J.L. Saldanha Sanches, «Manual de Direito Fiscal», cit., p. 269.
certo que o apelo a estes princípios nem sempre é feito de forma explícita pela lei fiscal
como sucede entre nós, mas esse facto não diminui a sua importância como parâmetros
conformadores do lucro tributável.
Nestes termos se pode concluir com Freitas Pereira que “devem tomar-se como
pressupostos que o legislador não podia desconhecer. Pode dizer-se, com efeito que, na
falta de disposição expressa em contrário, o lucro tributável é determinado de acordo
com os princípios contabilísticos, às vezes qualificados como geralmente aceites ou
então, como sucede entre nós, denominados de ‘sãos princípios de contabilidade’, o
que explica a importância fundamental de que se reveste o seu conhecimento.”37
Manifesta-se assim a influência da Contabilidade sobre o Direito Fiscal no que respeita
à assimilação, pelo próprio sistema fiscal, da generalidade dos comandos contabilísticos
de valoração qualitativa e quantitativa dos elementos que compõem o acervo
empresarial.
A eleição do modelo de dependência parcial com realidade subjacente ao apuramento da
matéria coletável implica uma sobrevalorização desta última, através de atribuição de
um grau de imperatividade acrescida para o próprio sujeito passivo, verificando-se a
tutela da verdade contabilística por intermédio do sistema fiscal38
.
Em nosso entender, a Administração só terá legitimidade para desconsiderar o balanço
ou os registos contabilísticos que nele se incluam, total ou parcialmente, desde que
fundamente tal desconsideração com o disposto na lei fiscal e, derivadamente, no
próprio artigo 104.º n.º2, caso se considere que o lucro apresentado não representa uma
imagem fiel da empresa39
e que nessa base se encontra um exercício extravagante da
discricionariedade contabilística, desde que para tal existam valorações especiais
adequadas. Caso contrário, encontramo-nos perante meros juízos discricionários que,
tendo ocorrido no reduto contabilístico, são preclusivos para efeitos fiscais.
37
Cfr. M. H. Freitas Pereira, «A periodização do lucro tributável», cit., pp. 60-61.
38
Cfr. Tomás Cantista Tavares, «Da Relação de Dependência Parcial entre a Contabilidade e o Direito
Fiscal na Determinação do Rendimento Tributável das Pessoas Colectivas: Algumas Reflexões ao
Nível dos Custos», cit., p. 92.
39
Tal como refere António Moura Portugal, “os preceitos da lei fiscal que impõem correcções ao
balanço comercial têm uma natureza ‘excecional’, pelo menos face à regra de aceitação do balanço
comercial. São desvios conscientes e desejados pelo legislador fiscal, tendo como único fito a
obtenção do lucro tributável.” Cfr. António Moura Portugal, «A Dedutibilidade dos Custos na
Jurisprudência Fiscal», cit., p. 83.
§2. A autoliquidação e a relação jurídico-fiscal
Os primórdios conceptuais de um modelo de ato tributário constitutivo remontam aos
contributos da doutrina jus-publicista alemã do final do Século XIX, com particular
destaque para o papel de Otto Mayer e, por esta via, à relação de total dependência do
Direito Fiscal face ao Direito Administrativo e à Ciência das Finanças, que perdurou até
à publicação do Manual de Albert Hensel, na Alemanha40
.
É exemplo paradigmático o conceito de “Gewaltverhältnis”, alicerçado na ideia de uma
relação jurídica constituída por intervenções públicas cujo controle recairia apenas sobre
uma versão rígida do princípio da legalidade41
, sem a devida contabilização do peso que
caberia à tutela dos direitos fundamentais dos administrados. Ora, como é atualmente
reconhecido, esta realidade alterou-se muito substancialmente, muito por força do
advento do constitucionalismo moderno e o respetivo influxo que ofereceu ao Direito
Fiscal, caracterizado pela primazia da tutela da confiança e proteção dos direitos
fundamentais42
.
Atendendo às consequências de tal advento e em face das vicissitudes propiciadas pela
alteração das estruturas de suporte administrativo subjacentes ao cumprimento do dever
de pagamento de imposto, assim como aos deveres de cooperação associados, o
moderno Direito Fiscal deixou de repousar numa relação jurídica de autoridade na qual
se manifestaria, a se, o interesse público subjacente à satisfação das necessidades
financeiras do Estado e demais entidades públicas, tal como consagrado nos termos do
artigo 103.º n.º1 da CRP. Também o referido interesse público, que continua a ser o
pressuposto normativo do sistema fiscal, assistiu a uma alteração do seu próprio valor
posicional, integrando-se agora numa lógica de concordância face aos sistemas de
direitos e deveres fundamentais entretanto surgidos, atendendo a que estes últimos
passaram a encarregar os particulares e empresas de um verdadeiro status activus, na
decorrência do qual são agora chamados a desempenhar funções que anteriormente
equivaliam a competências de uso privativo da Administração.
40
Não obstante a relevância de outras obras, até mesmo os Grundriss des Finanzrechts de Franz von
Myrbach-Rheinfeld, foi com a primeira edição do Steuerrecht de Albert Hensel que, em 1924, se
iniciou, não só a sistematização científica do moderno Direito Fiscal de raiz continental, como
igualmente a elucidação da importância subjacente à conexão entre o Direito Fiscal e o Direito
Constitucional, na estruturação de um sistema fiscal típico de um Estado Moderno.
41
Cfr. Maria Teresa Soler Roch, «Tax Administration Vs. Taxpayer – A New Deal?», WTJ, No. 3
(Volume 4), 2012, p. 282.
42
Dando nota atualizada do conjunto de princípios jurídico-constitucionais relevantes em Direito Fiscal,
de natureza formal e material, Cfr. Ana Paula Dourado, «Direito Fiscal», cit., pp. 115-248.
Concretização ímpar desta realidade, o sistema de autoliquidação, trouxe um impacto
muito significativo para a conceptualização do facto tributário, emergindo agora um
impacto muito relevante para a reconceptualização do dever fundamental de pagar
impostos, na medida em que a sua concretização depende acessoriamente de um outro
dever, imputável a cada empresa, o de concretizar a atividade quantificadora em
conformidade com o respetivo lucro real.
Uma vez que a competência para a mensuração do lucro imputável a cada exercício
passou a caber ao sujeito passivo, que se serve da Contabilidade para conhecer a
valoração exata do respetivo lucro, é igualmente sobre ele que passa a recair um ónus de
participação ativa na determinação de um lucro que se presume constitucionalmente
conforme, ou seja, do dito lucro real. Daí que, com o sistema de autoliquidação, passa a
recair sobre os sujeitos passivos um dever, acessoriamente conexo ao dever fundamental
de pagar impostos, de procederem a uma quantificação correspondente ao lucro real
efetivamente obtido.
Como vimos antecipando, esta perspetiva exige uma interpretação atualista do artigo
104.º n.º2, atendendo ao facto de este último preceito ter sido sucessivamente entendido
como a consagração de um direito subjetivo, o que de modo algum pretendemos colocar
em causa. Simplesmente, o espaço normativo em que se expressa, enquanto direito
subjetivo, alterou-se face à dinâmica da tributação das empresas: de um modelo em que
ao ato tributário cabia a concretização da obrigação jurídico-tributária principal de
pagamento de imposto passou-se a um outro em que a intervenção da Administração
ocorre a posteriori e apenas a título incidental ou subsidiário, ou não recaísse sobre as
próprias empresas uma tarefa de interpretação da lei contabilística extremamente
relevante. De tal forma que, para efeitos de conformidade constitucional do Direito
Contabilístico aplicável, aquela interpretação “privada” não deixa de vincular as
intervenções da Administração, pois a ela aderindo efetua uma concordância com a
conduta do sujeito passivo, viabilizando que o pagamento de imposto possa ter ocorrido
tendo por base um verdadeiro ato privado de liquidação.
Tal como decorre atualmente do disposto no artigo 16.º n.º1 do CIRC43
, a
autoliquidação tem por base um ato de liquidação privada efetuado por um particular,
43
Todavia, note-se que o n.º2 do referido preceito tem uma importância igualmente considerável. Aí se
estipula que, apenas quando falte a declaração do sujeito passivo, “compete” à Administração a
determinação da matéria coletável. Quer isto dizer que, por regra, não só existe uma declaração do
sujeito passivo como também uma competência exclusiva deste último para determinar a matéria
colectável (sujeita, claro está, a eventuais intervenções corretivas por parte da Administração).
seja ele o sujeito passivo ou não, entendendo-se como tal todo aquele que não será, para
todos os efeitos, uma autoridade pública44
.
Na realidade, não só a determinação quantitativa da dívida de imposto por parte do
sujeito passivo é uma atividade com natureza idêntica à efetuada pela Administração45
como tem por base uma competência de uso privativo que aquela última deve respeitar,
por se inserir num sistema de administração privada (parcial) dos impostos.
Como já referimos, da generalização do sistema de autoliquidação, que ocorreu na
sequência da Reforma Fiscal de 1988-1989, foi autonomizado um ato privado de
liquidação, sob a égide de uma competência exclusivamente privada, assim como o
caráter meramente eventual de um ato tributário “público”, outrora dotado de dimensão
constitutiva. De facto, mesmo que se possa afirmar que existe sempre uma intervenção
da Administração, facto é que nem toda se converte num ato tributário46
, pois na
maioria dos casos está apenas em causa a confirmação do juízo valorativo efetuado pelo
sujeito passivo.
Em face do exposto, a autoliquidação pode agora considerar-se autonomamente face ao
clássico ato tributário, legitimando um reposicionamento da sua importância nos
quadros conceptuais do moderno Direito Fiscal, motivada pelo facto de a atividade
quantificadora, caracterizada pela aplicação de normas de incidência com base em
elementos contabilísticos prévios, ser agora praticada pelos sujeitos passivos, deixando
para a Administração uma tarefa “defensiva” de preservação da legalidade, consagrada
através de uma prerrogativa de intervenção corretiva, a posteriori.
Sem prejuízo das funções de controlo de que a Administração continua a dispor, assim
como da competência que preserva para proceder à homologação da liquidação efetuada
pelo sujeito passivo, que decorre da sua aceitação e subsequente pagamento de
imposto47
, a atividade quantificadora é agora predominantemente privada.
Está em causa, por isso, uma devolução de poderes (ou descentralização institucional)
inerente à evolução do moderno Direito Fiscal. Perante a massificação das relações
económicas privadas e a complexificação dos critérios de mensuração financeira que
proliferam por todo o Direito Contabilístico, o Direito Fiscal efetuou a concessão de
44
Cfr. Lourenço Vilhena de Freitas, «A Autoliquidação: contributo para uma análise da sua Natureza
Jurídica», Ciência e Técnica Fiscal, nº 405, 2002, pp. 15 e ss.
45
Cfr. Ana Paula Dourado, «A Natureza Jurídica da Autoliquidação», Separata da Revista Jurídica da
Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1988, p. 180.
46
Sobre alguns apontamentos pioneiros no “vis-à-vis” entre a autoliquidação e o ato tributário, Cfr. Ana
Paula Dourado, «A Natureza Jurídica da Autoliquidação», cit., pp. 179-191.
47
Cfr. José Casalta Nabais, «Direito Fiscal», cit., p. 302.
uma prerrogativa de administração de impostos aos particulares48
, detentores de uma
capacidade de avaliação da sua própria liquidez patrimonial incomparavelmente
superior, atendendo, não só, às flutuações de ordem temporal a que aquela se encontra
sujeita, bem como ao aumento das especificidades técnicas que, em muitos casos,
impediriam a Administração de particularizar, ainda que em termos típicos, as
circunstâncias de cada sujeito passivo, no ato de liquidação.
Aos atos praticados pelos sujeitos passivos, em sede de autoliquidação, corresponde
agora uma definitividade substancial49
, mesmo assumindo uma dimensão condicional
da sua forma, atenta a natural tutela de legalidade da Administração que, em momento
algum, se poderia cingir a uma mera “atividade de caixa”.
Segundo cremos, trata-se de uma leitura que tem pleno acolhimento legal. Recorde-se
que, nos termos do art.º 82º, nº 1, da LGT, a competência para a avaliação direta é da
Administração e, nos casos de autoliquidação, exclusivamente do sujeito passivo.
De igual forma, de acordo com o disposto no art.º 84º nº 2 da mesma LGT, o sujeito
passivo que proceda à autoliquidação deve esclarecer, apenas e só quando solicitado
pela Administração, os critérios utilizados e a sua aplicação na determinação dos
valores que declarou. Resulta do citado conjunto de normas que, por expressa indicação
legal, quem faz a autoliquidação é o sujeito passivo. Logo, mesmo que a autoliquidação
não seja um ato exclusivo do mesmo, na medida em que pode também ser praticado
pelo substituto ou pelo responsável tributário, à sua utilização subjaz uma competência
de uso privativo, em nada prejudicada pela existência de deveres de cooperação ou pela
ocorrência de correções, a efetuar por parte da Administração.
É um facto que, já anteriormente à criação do IRC, se verificavam expressões parcelares
de recurso à autoliquidação, como forma de atribuição de uma participação ativa aos
sujeitos passivos, relativamente à maximização de eficiência do sistema fiscal e, com
esta, o próprio interesse público, que cada vez mais se compadece com imperativos de
simplificação e praticabilidade, aos quais o moderno Direito Fiscal não é, de modo
algum, alheio. Razão pela qual, recorrendo à classificação oferecida por Tipke, nos
parece inequívoco que a autoliquidação se integra conjunto mais vasto das normas
fiscais de simplificação (“Vereinfachungszwecknormen”50
).
48
Cfr. José Casalta Nabais, «Direito Fiscal», cit., pp. 327-332.
49
Cfr. José Casalta Nabais, «Direito Fiscal», pp. 302 e ss.
50
Cfr. Klaus Tipke, «Die Steuerrechtsordnung», cit., p. 80.
§3. O balanço fiscal como Tatbestand
Em sede de IRC, a concretização do conceito de lucro, tal como definido nos termos do
disposto no artigo 3.º n.º 2 do CIRC51
, é largamente influenciada pela designada relação
de dependência parcial existente entre Direito Fiscal e Direito Contabilístico. Tal
comprova-se, desde logo, pelo caráter incondicional que preside à alusão ao resultado
contabilístico, nos termos do artigo 17.º n.º1 do CIRC, onde se prescreve que “[o] lucro
tributável das pessoas coletivas e outras entidades mencionadas na alínea a) do n.º 1
do artigo 3.º é constituído pela soma algébrica do resultado líquido do período e das
variações patrimoniais positivas e negativas verificadas no mesmo período e não
refletidas naquele resultado, determinados com base na contabilidade e eventualmente
corrigidos nos termos deste Código”.
Todavia, mesmo existindo “um processo contabilístico de determinação do lucro”52
, as
referências que a lei fiscal emana autonomamente não se revestem de importância
menor. Afinal, são valorações especiais das componentes do resultado, face às
valorações efetuadas nos termos do Direito Contabilístico53
.
Pode, por isso, antever-se na confluência entre os resultados contabilístico e fiscal a
possibilidade de este último oferecer valorações especiais, expressamente legitimadas
pela lei fiscal e que decorrem da sua autonomia valorativa, relativamente a conceitos e
valorações efetuados à luz de outros parâmetros jurídico-normativos, tal como sucede,
neste caso, em relação ao Direito Contabilístico. Em conformidade, tal como o próprio
nome indica, são valorações autonomamente emanadas no seio da quantificação
(“Steuerbemessungsgrundlage”54
), que decorrem da existência de um núcleo normativo
a partir do qual é recortado o conceito de lucro.
Como referimos no início do presente escrito, a primeira manifestação da referida
relação de dependência parcial parte da própria lei fiscal, ao pressupor uma identidade
de princípio entre lucro contabilístico e lucro tributável. De tal forma, a expressão
51
Aí se prescreve que “ (…) o lucro consiste na diferença entre os valores do património líquido no fim
e no início do período de tributação, com as correções estabelecidas neste Código”.
52
Cfr. J.L. Saldanha Sanches, «Manual de Direito Fiscal», cit., pp. 371 e ss.
53
Cfr. Joachim Schulze-Osterloh, «Die Steuerbilanz als Tatbestandsmerkmal im Einkommen-und
Körperschaftsteuergesetz», in Werner Doralt (Hrsg.), «Probleme des Steuerbilanzrechts», DStJG
Band 14, Verlag Dr. Otto Schmidt KG, Köln 1991, pp. 124 e ss. Ainda com relevo, sobre a mesma
matéria, Cfr. Brigitte Knobe-Keuk, «Bilanz-und Unternehmenssteuerrecht», Otto Schmidt Verlag,
1993, pp. 257 e ss.; Gaspare Falsitta, «Il bilancio di ezercizio delle impresse, Interrelazioni tra diritto
civile e tributário», Giuffrè 1985, pp. 5 e ss; S. La Rosa, «Le Norme Generali sui Rapporti tra
Bilancio e Dichiarazione» in Victor Ukmar (Coord.), «Il Reditto di Impresa nel Nuovo Testo Único»,
Pádua 1988, pp. 594 e ss.
54
Que, no caso da lei alemã, ao nível da tributação do rendimento empresarial, se pode encontrar no § 7
da KStG.
contabilístico-fiscal deste último lucro começa por legitimar uma expressa referência ao
balanço fiscal enquanto Tatbestand55
. Efetivamente, a valoração de que depende a
incidência de imposto é concretizada, para efeitos contabilísticos, na sequência do
vínculo formal existente entre balanço comercial e “balanço fiscal”56
, entendendo por
este último o conjunto de operações levadas a cabo, a título definitivo, por parte do
autor material da quantificação, que irá antecipar a tributação. Ou seja, está em causa o
próprio sujeito passivo que pode, em circunstâncias normais, antecipar quanto virá a
pagar de imposto,57
não só porque conhece os factos que determinam a sua estimativa
como também porque lhe caberá efetuar a liquidação, em termos que dispensem uma
intervenção corretiva por parte da Administração.
Tal não significa que se possa limitar a uma mera verificação dos valores declarados58
e,
como tal, que a sua margem interpretativa, bem como as necessidades de tipificação
cada vez mais importantes em face de imperativos de praticabilidade e simplicidade,
não sejam limites imanentes à capacidade de antecipação ou prognose dos sujeitos
55
Na literatura alemã, Cfr. K. Tipke/J. Lang, «Steuerrecht», 22. Auflage, Otto Schmidt, 2015, pp. 303 e
ss.; Brigitte Knobbe-Keuk, «Bilanz-und Unternehmensteuerrecht», pp. 21 e ss.; Joachim Schulze-
Osterloh, « Verfassungsrechtliche Grenzen der bilanzsteuerrechtlichen Gesetzgebung - Nettoprinzip,
Maßgeblichkeitsgrundsatz, Rückstellungen, Gewinnrealisierung», in Jürgen Pelka (Hrsg.), «Europa-
und verfassungsrechtliche Grenzender Unternehmensbesteuerung», DStJG Band 23, Verlag Dr. Otto
Schmidt KG, Köln 2000, pp. 67-79; Heinz-Jürgen Pezzer, «Bilanzierungsprinzipien als sachgerechte
Maßstäbe der Besteuerung», Werner Doralt (Hrsg.) «Problemes des Steuerbilanzrecht»s, DStJG 14,
Verlag Dr. Otto Schmidt KG, Köln 1991, pp. 20 e ss.; Franz Wassermeyer, «Die Maßgeblichkeit der
Handelsbilanz für die Steuerbilanz und die Umkehr dieses Grundsatzes», pp. 29 e ss.;Wolfgang Schön
«International Accounting Standards – A „Starting Point“ for a Common European Tax Base?»,
IBFD 2004, pp. 430 e ss.. Por seu turno, na literatura italiana, Cfr. Gaspare Falsitta, «Il bilancio di
ezercizio delle impresse, Interrelazioni tra diritto civile e tributário», Giuffrè 1985; «Il problema dei
rapporti tra bilancio civile e bilancio fiscale nel progetto di reforma della imposta sulla società
(IRES)», RDT, I, 2003, pp. 922 e ss; S. La Rosa, «Le norme generale sui rapporti tra bilancio e
dichiarazione (art. 75 commi 3,4,6,76, comma 6)» in Il reddito d’impresa nel nuoro Teste Unico,
Cedam 1988, pp. 581 e ss. Na literatura espanhola, Cfr. Pedro Herrera Molina, «Capacidad
económica y sistema fiscal, Análisis del ordenamiento español a la luz del Derecho alemán», cit., pp.
409 e ss; Enrique Ortiz Calle, «El Regímen Jurídico Tributario de las Amortizaciones en el Impuesto
sobre Sociedades», Colex 2001, pp. 25-29. Já na literatura nacional, especificamente sobre o tema Cfr.
J.L. Saldanha Sanches, «Problemas Jurídicos da Contabilidade» in AA.VV, AB VNO AD OMNES,
75 Anos da Coimbra Editora 1920-1995, Coimbra Editora 1998, pp. 475 e ss.; António Moura
Portugal, «A Dedutibilidade dos Custos na Jurisprudência Fiscal Portuguesa», cit., pp. 111 e ss;
Fernando Castro Silva, «A caminho da autonomia do balanço fiscal?» in J.L. Saldanha Sanches/J.
Taborda da Gama/Francisco de Sousa Câmara (Org.), «O Direito do Balanço e as Normas
Internacionais de Relato Financeiro», Coimbra Editora 2007, pp. 247 e ss.; Nina Aguiar, «Income
taxation and Accounting: Conceptual Tools for Comparing European Systems», Rivista di Diritto e
Pratica Tributaria, Cedam/Kluwer, Padua, Núm. 3, 2009, pp. 1291-130.
56
Cfr. António Moura Portugal, «A Dedutibilidade os Custos na Jurisprudência Fiscal Portuguesa»,
cit., pp. 111 e ss.
57
Cfr. J.L. Saldanha Sanches, «Sobre a Hipótese de um Imposto sobre o Património das Empresas» in
«Estudos de Direito Contabilístico e Fiscal», Coimbra Editora, Coimbra 2000, p. 73.
58
Cfr. J.L. Saldanha Sanches, «Manual de Direito Fiscal», cit., p. 372.
passivos, regra geral concretizada pela estimativa a que nos referimos, particularmente
importante no domínio da dedutibilidade de gastos.
Em conformidade, deverá atribuir-se a este último momento uma carga normativa
específica, integrado no “balanço fiscal”59
a que se referia Saldanha Sanches, como
veículo concretizador “dos objetivos fiscais”60
face ao balanço comercial, do qual se
autonomiza por intermédio de valorações fiscais que, sem se refletirem nos juízos
contabilísticos prévios, conferem ao aplicador da lei fiscal a possibilidade de oferecer
uma valoração distinta da proveniente do reduto contabilístico.
Correspondendo a uma especificidade da legislação fiscal61
, o dito balanço fiscal
corresponde a uma prerrogativa de adaptação de sentido do resultado contabilístico e
com este, do próprio conceito de balanço comercial (e respetivas componentes), que é
um conceito tipicamente comercial, à perspetiva do Direito Fiscal62
.
Como já anteriormente frisara António Moura Portugal, o balanço fiscal engloba, por
isso, “numa mesma realidade a declaração periódica de rendimentos (…) e o balanço
comercial, contendo aquela as específicas correções introduzidas no balanço comercial
por via das imposições da lei fiscal”63
. Assim, está em causa uma correta valoração dos
rendimentos e gastos, à luz do enfoque pretendido pelo princípio da capacidade
contributiva64
e, com este, ao lucro real que, para além de ser um direito subjetivo tem
ainda uma dimensão simétrica, a partir da qual se constitui como dever, o de não
proceder a manipulações de valor, sobretudo nos domínios em que existe maior espaço
de decisão para a respetiva determinação, a efetuar de acordo com a respetiva inscrição
contabilística, propiciando uma redução da matéria coletável65
.
É um facto que a existência de um balanço fiscal, no contexto do atual enquadramento
dogmático da relação jurídico-tributária, exige que se atribua ao Direito Contabilístico
59
Cfr. J.L. Saldanha Sanches, «A Quantificação da Obrigação Tributária – Deveres de Cooperação,
Autoavaliação e Avaliação Administrativa», cit., p. 366. Ainda, muito em particular, sobre o referido
tema, Cfr. Nina Aguiar, «Lucro tributável e contabilidade na jurisprudência dos tribunais tributários
superiores», Revista Fiscal, 2, 2008, p. 7-17.
60
Cfr. J.L. Saldanha Sanches, «A Quantificação da Obrigação Tributária – Deveres de Cooperação,
Autoavaliação e Avaliação Administrativa», cit., p. 366; Nina Aguiar, «O Direito Fiscal perante as
Normas Contabilísticas: uma abordagem metodológica» in Paulo Otero/Fernando Araújo/João
Taborda da Gama (Org.), «Estudos em Memória do Professor Doutor José Luís Saldanha Sanches»,
Volume 4, Coimbra Editora 2011, pp. 1021 -1063.
61
Cfr. Andres Baèz Moreno, «Normas Contables e Impuesto sobre Sociedades», Editorial Aranzadi,
2005, pp. 116 e ss.
62
Cfr. Alberto Xavier, «Manual de Direito Fiscal», Volume I, p. 181.
63
Cfr. António Moura Portugal, «A Dedutibilidade dos Custos na Jurisprudência Fiscal Portuguesa»,
cit., p. 86 [Nota n.º 164),
64
Cfr. Andrés Baèz Moreno, «Normas Contables e Impuesto sobre Sociedades», cit., pp. 116 e ss.
65
Cfr. J.L. Saldanha Sanches, «Manual de Direito Fiscal», cit., p. 372.
uma dimensão normativa autónoma, da qual decorre uma aptidão reconhecida à técnica
contabilística para valorar, em termos efetivos e atuais, as flutuações de liquidez
patrimonial de cada empresa.
Caso se acrescente a importância ocupada pelas especificidades valorativas inseridas
pela lei fiscal, o balanço fiscal acaba mesmo por se integrar no antecedente do artigo
104.º n.º2, do qual decorre um critério de autoavaliação da capacidade contributiva das
empresas e, ao mesmo tempo, uma vinculação da conduta subjacente à quantificação de
imposto.
Na atualidade, assiste-se à atribuição de um papel autónomo à ação das empresas para a
determinação da respetiva capacidade contributiva, o que exige uma necessária
reconceptualização da relação jurídico-tributária, durante muito tempo entendida
enquanto prerrogativa de autoridade atribuída à Administração, representando a
indisponibilidade do “interesse fiscal”66
e um modelo de ato tributário eminentemente
constitutivo, típico da ancestral influência do Direito Administrativo.
§3.1 A conceção de Saldanha Sanches e o Tatbestand de Schulze-Osterloh
A existência de um balanço fiscal e a sua elevação a Tatbestand já foi objeto de
significativos contributos doutrinais, com particular destaque para os provenientes das
doutrinas italiana67
e alemã68
que, entre nós, encontraram um acolhimento muito
considerável na obra de Saldanha Sanches69
.
De entre os referidos contributos destaque-se o de Joachim Schulze-Osterloh que, de
forma reiterada, se tem pronunciado a respeito do balanço fiscal como um verdadeiro
Tatbestand em matéria de tributação do rendimento, incluindo-se neste último domínio
a tributação das empresas70
. O Tatbestand a que se refere Schulze-Osterloh integra uma
dualidade de referências, simultaneamente oferecidas pela lei fiscal: por um lado, casos
em que o referido Tatbestand não é objeto de alusão expressa e se torna um critério
66
Cfr. Enrico de Mita, «Interesse Fiscale e Tutela del Contribuente», cit., pp. 391 e ss.
67
Cfr. Gaspare Falsitta, «Il bilancio di exercizio delle imprese, Interrelazioni tra diritto civile e
tributário», cit., pp. 3 e ss.. Ainda com referências importantes no direito italiano, Cfr. Guido
Piccinelli, «Il bilancio di esercizio nella normativa tributaria», CEDAM 2000.
68
Cfr. Joachim Schulze-Osterloh, «Die Steuerbilanz als Tatbestandsmerkmal im Einkommen und
Körperschaftsteuergesetz», cit., pp. 123 e ss.
69
Cfr. J.L. Saldanha Sanches, «A Quantificação da Obrigação Tributária – Deveres de Cooperação,
Autoavaliação e Avaliação Administrativa», cit., pp. 231 e ss.
70
Cfr. Joachim Schulze-Osterloh, «Die Steuerbilanz als Tatbestandsmerkmal im Einkommen und
Körperschaftsteuergesetz», cit., p. 137.
normativo não-escrito71
e, por outro lado, casos em que as respetivas prescrições surgem
em moldes explícitos, necessariamente escritos72
, como em nosso entender é o caso do
artigo 17.º n.º1 do CIRC e da respetiva componente definitória.
Ainda a este respeito, é o próprio Schulze-Osterloh a reconhecer as particularidades do
primeiro caso, dado que o facto tributário poderá afinal repousar sobre caracteres não
escritos ou, pelo menos, num conjunto-tipo de critérios não expressamente
formulados73
. Segundo entendemos, é da existência do referido Tatbestand que se pode
derivar a carga normativa do dever que imputamos às empresas, à luz de uma
interpretação atualista do artigo 104.º n.º 2: embora acessoriamente ligado ao dever
fundamental de pagar impostos, o dever em causa tem uma relativa autonomia, já que
encontra o seu espaço de intervenção num momento anterior ao do cumprimento do
pagamento de imposto.
Por ser dotado de uma autonomia face ao dever de pagamento de imposto, poderá
inclusive ter associadas sanções fiscais imanentes à estrutura da lei fiscal74
, sendo disso
exemplo a sujeição a tributação autónoma das despesas não-documentadas ou a
impossibilidade de acesso ao reporte de prejuízos, num ano em que o lucro tenha sido
determinado por recurso a métodos indiretos.
Por esta via se comprova que o valor normativo do balanço fiscal, independentemente
de corresponder ou não a um balaço comercial corrigido, condiciona todo o exercício da
atividade quantificadora e, assim, o resultado final da própria liquidação.
Pressupondo uma correta valoração da base tributável, que tenha por objeto um
princípio de uniformidade (“aplicação da mesma medida na determinação da matéria
coletável”75
) o cumprimento do dever fundamental de pagar impostos exige que a
autoliquidação tenha como pressuposto o lucro efetivamente obtido, ou seja, o lucro
real. Refira-se, aliás, que a generalidade das empresas (societárias) começa por proceder
ao cálculo do lucro que pode ser distribuído aos sócios, momento que é acompanhado
71
Cfr. Joachim Schulze-Osterloh, «Die Steuerbilanz als Tatbestandsmerkmal im Einkommen und
Körperschaftsteuergesetz», cit., p. 137.
72
Cfr. Joachim Schulze-Osterloh, «Die Steuerbilanz als Tatbestandsmerkmal im Einkommen und
Körperschaftsteuergesetz», cit., p. 137.
73
Cfr. Joachim Schulze-Osterloh, «Die Steuerbilanz als Tatbestandsmerkmal im Einkommen und
Körperschaftsteuergesetz», cit., p. 137.
74
Diferentemente do que sucede com as sanções relativas ao incumprimento de deveres conexos com a
prestação tributária que, como nota Ana Paula Dourado, encontram expresso reconhecimento no
Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT). Cfr. Ana Paula Dourado, «Direito Fiscal», cit., pp.
97 e ss.
75
Cfr. Heinz-Jürgen Pezzer, «Bilanzierungsprinzipien als sachgerechte Maßstäbe der Besteuerung»,
cit., pp. 6 e ss.
pela determinação do resultado que vier a ser declarado e que se diferenciará daquele
primeiro, na medida em que da lei fiscal resultem especiais valorações que o imponham.
Caso se atente no reflexo que a discricionariedade contabilística pode ter na fidelização
ao lucro real, quando cabe aos próprios sujeitos passivos interpretar corretamente as
normas valorativas especiais das quais decorrem limitações àquela discricionariedade,
regra geral expurgada para efeitos fiscais, facilmente se compreende que a quantificação
do lucro por recurso à utilização de técnicas contabilísticas é uma área de necessária
confluência entre o Direito Comercial e o Direito Fiscal76
, mas sem que fique colocada
em causa qualquer uma das distintas pretensões a que se referem.
Em conformidade, recairá sobre as empresas o exercício da quantificação em
conformidade com o prescrito na parte final do artigo 17.º n.º1 do CIRC, na qual se
encontra uma referência “escrita” ao balanço fiscal, permitindo que o mesmo se
constitua como Tatbestand, ou seja, possa ou não excluir, ou até mesmo alterar,
realidades quantificadas no balanço comercial que lhe serve de pressuposto e, dessa
forma, influir decisivamente numa capacidade mínima de antecipação do montante de
imposto a pagar, por parte do sujeito passivo.
É por intermédio deste Tatbestand que se poderá justificar que, na generalidade dos
casos, já não se possa admitir a exequibilidade de um balanço único (“Einheitsbilanz”),
que impossibilitaria uma relação de independência entre a interpretação da lei fiscal e a
interpretação da lei contabilística, exigida por conformidade ao próprio artigo 104.º n.º2
da CRP. O que não significa, claro está, que, nos casos em que ao balanço comercial
não sejam efetuadas quaisquer correções nos termos da lei fiscal, não se possa falar
daquele primeiro como Tatbestand de imposto, pois é nisso que materialmente se torna.
Não obstante, por continuarmos a atribuir à intervenção da lei fiscal uma carga
normativa autónoma, que decorre da autonomia interpretativa do Direito Fiscal face aos
demais ramos de Direito, como o Direito Comercial e o Direito Contabilístico,
continuamos a assumir que a natureza do balanço comercial, enquanto Tatbestand de
imposto, será meramente incidental, não descaracterizando o balanço fiscal, nos termos
a que ao mesmo nos vimos referindo. Até porque, refira-se, a relação de conexão formal
a que nos referimos no presente ponto de análise é, efetivamente, entre Direito Fiscal e
76
Cfr. Joachim Schulze-Osterloh, «Verdeckte Gwinnneausschüttungen in Grenzgebiet zwischen
Handels-und Steuerrecht», StuW, 2, 1994, pp. 132 e ss. Com particular relevo neste domínio, Cfr. A.
Lobo Xavier/Ângela Coelho, «Lucro Obtido no Exercício, Lucro no Balanço e Lucro Distribuível»,
RDE, VIII, 2 1982, pp. 269 e ss.
Direito Contabilístico, sem prejuízo das relações que este último possa revelar face ao
Direito Comercial, para outros propósitos.
§3.2. O conteúdo do balanço fiscal como Tatbestand
Estamos em condições de apresentar o conteúdo do referido balanço fiscal, procurando
averiguar qual o respetivo impacto ao nível da determinação do facto tributário de
imposto. As conexões existentes entre o processo de determinação do lucro tributável e
o Direito Contabilístico são da mais diversa índole, sendo a mais pertinente a que
respeita à exigência constitucional de uma tributação das empresas conforme a um lucro
real que, por seu turno, assume uma pressuposição de identidade face ao lucro
contabilístico.
Não obstante assumir tal pressuposição, a lei fiscal prescinde de uma dependência total
face ao resultado contabilístico, condição necessária à existência de intervenções
suscetíveis de fazer do balanço fiscal uma realidade (quase sempre) distinta do dito
balanço comercial, constituindo-se como critério típico de incidência de imposto ou
Tatbestand.
Se referimos que o lucro deve ser considerado um conceito normativo ou convencional,
que tem subjacente uma valoração do legislador relativamente aos instrumentos mais
adequados para a distribuição dos encargos tributários das empresas77
, não podemos
concordar inteiramente com Saldanha Sanches quando o referido Professor refere que
“o balanço fiscal tem como destinatário a Administração Fiscal, que o vai utilizar como
instrumento de quantificação do imposto”78
. Ao invés, o balanço fiscal tem agora como
destinatário imediato o próprio sujeito passivo, ao qual caberá uma interpretação da lei
contabilística e da lei fiscal in abstracto, ou seja, “prévia e independente da “aplicação
do direito que a solicitasse”79
, inclusive devendo efetuar as demais correções exigidas
pela lei fiscal e às quais o artigo 17.º do CIRC faz expressa referência.
Trata-se de uma primazia competencial dos sujeitos passivos sobre a Administração,
tanto no que se refere à determinação do lucro tributável como ainda no que se refere às
demais correções a efetuar por expressa menção da lei fiscal, tarefa essencial à
determinação da matéria coletável, sob o pressuposto de uma fidelização à matéria
coletável real, assumindo que deixou de fazer sentido entender esta última como
77
Cfr. J.L. Saldanha Sanches, «Manual de Direito Fiscal», cit., p. 371.
78
Cfr. J.L. Saldanha Sanches, «Manual de Direito Fiscal», cit., p. 373.
79
Cfr. A. Castanheira Neves, «O Actual Problema Metodológico da Interpretação Jurídica», cit., p.
290.
expressão de uma simples “intervenção autoritária da Administração par afastar
valores declarados pelo contribuinte”80
.
É esta circunstância que nos permite afirmar que, no momento atual, a intervenção da
Administração já não integra a quantificação strictu sensu, pese embora nela se possa
repercutir, tanto no recurso à tipificação como nas intervenções de natureza corretiva.
Vejamos agora os elementos constitutivos do balanço fiscal enquanto Tatbestand, em
conformidade à perspetiva que procuramos delimitar.
§3.2.1 As normas definitórias como normas de incidência em sentido amplo
De acordo com a tese que procuramos estabelecer, o primeiro elemento que caracteriza
o balanço fiscal enquanto Tatbestand de imposto, são as designadas normas definitórias,
responsáveis por traçar o perfil compreensivo dos conceitos cujo recorte operacional se
revela essencial à expressão normativa do lucro real, em particular o conceito de lucro
tributável.
Um exemplo concreto do que se verifica ocorrer nos termos do prescrito pelo artigo 17.º
n.º1 do CIRC, em cujos termos o mesmo lucro tributável é composto pela “soma
algébrica do resultado líquido do período e das variações patrimoniais positivas e
negativas verificadas no mesmo período e não refletidas naquele resultado,
determinados com base na contabilidade e eventualmente corrigidos”. Trata-se de um
enunciado definitório expresso, do qual se retira a estrutura típica a que sujeitos
passivos, Administração e os Tribunais se encontram vinculados, no que se refere ao
facto tributário de imposto: um conceito de lucro tributável “oficial” e hétero-
vinculante, incompatível com inovações definitórias casuísticas e desprovidas de
eficácia externa, essenciais a uma tributação das empresas alicerçada num imperativo de
generalidade, como é exigível por um imperativo de tributação pelo lucro real.
Relativamente à natureza das normas definitórias, é imprescindível atentar no seminal
contributo de Heinrich Rickert81
. Este autor referiu-se expressamente à definição como
“o processo de pensamento da formação do conceito, sem referência à transmissão de
pensamentos, como instrumento e auxiliar da exposição científica”82
, vindo a concluir
80
Cfr. J.L. Saldanha Sanches, «A Quantificação da Obrigação Tributária – Deveres de Cooperação,
Autoavaliação e Avaliação Administrativa», cit., pp. 99.
81
Cfr. Heinrich Rickert, «Zur Lehre Von Der Definition», 1888, pp. 23 e ss.
82
Cfr. Heinrich Rickert, «Zur Lehre Von Der Definition», cit., p. 33.
que a definição, como determinação conceptual, “tem que formar os conceitos de tal
forma que, a partir destes, se possa construir um sistema de juízos semelhante”83
.
Já sobre as definições jurídicas Heinrich Rickert concluiu que, dada a subjacente
vontade legislativa, deveriam “definir com precisão e finura os conceitos utilizados nas
proposições jurídicas”84
, uma vez que “a proposição jurídica não pode aplicar-se antes
dos fenómenos da realidade que lhe estão subordinados”85
. Foi esta circunstância que
levou o mesmo autor a sintetizar que “os conceitos utilizados nas proposições jurídicas
têm que estar compostos de elementos ou notas tais que qualquer fenómeno, ao qual
queira ligar o legislador uma consequência determinada, possa ser compreendido com
certeza ao abrigo do conceito que forma parte da proposição jurídica
correspondente”86
.
Enveredando agora pela exploração da importância jurídico-normativa das definições,
particularmente explorado por Alchourrón e Bulygin, começamos por analisar em que
medida poderiam albergar, expressa ou tacitamente, normas de conduta87
. E referimo-lo
porque entendemos que algumas normas definitórias existentes no CIRC resultam em
normas de conduta, que acabam por modelar diretamente a atividade quantificadora, de
tal sendo exemplo paradigmático o artigo 17.º n.º1 do CIRC.
De facto, inerente àquele preceito está uma norma de conduta que serve de suporte ao
artigo 104.º, n.º 2 da CRP, enquanto dever acessoriamente conexo ao dever fundamental
de pagar impostos, especificamente consignado ao domínio da quantificação. Voltemos
então ao que havíamos referido a respeito das normas definitórias.
A conceção de Alchourrón e Bulygin parte do pressuposto de que uma norma
definitória obriga a utilizar uma certa definição, daí resultando que a norma definitória
e a definição nunca seriam a mesma realidade88
. Convocando estas considerações para
a presente análise resultaria que a tributação do rendimento continua a ser influenciada
por uma série de elementos estruturais que, encontrando-se estabelecidos ao nível da
previsão das regras de incidência, não só afetariam a coleta de imposto, como se
83
Cfr. Heinrich Rickert, «Zur Lehre Von Der Definition», cit., p. 33.
84
Cfr. Heinrich Rickert, «Zur Lehre Von Der Definition», cit., pp. 43-44.
85
Cfr. Heinrich Rickert, «Zur Lehre Von Der Definition», cit., pp. 43-44.
86
Cfr. Heinrich Rickert, «Zur Lehre Von Der Definition», cit., pp. 44 e ss.
87
Cfr. Carlos E. Alchourrón/Engenio Bulygin, «Definiciones y Normas», cit., p. 441.
88
Cfr. Carlos E. Alchourrón/Eugenio Bulygyn, «Definiciones y Normas», cit., p. 441.
repercutiriam de forma decisiva na valoração que incide sobre quaisquer ganhos ou
encargos89
, bem como despesas ou gastos.
Reitere-se que pelos elementos definitórios referimo-nos ao iter conceptual presente na
lei fiscal no qual o legislador procede ao esclarecimento do significado normativo de
conceitos aos quais o texto constitucional não atribuiu qualquer significação expressa
mas que se revela determinante para a compreensão do seu pleno sentido, sobretudo
sabendo que o sentido literal das normas fiscais tem uma importância acrescida face ao
que sucede noutros ramos jurídicos: a multiplicidade de intérpretes desconhecedores da
linguagem jurídica que pretendem ter acesso àquele que é o seu sentido prescritivo é
evidente, na medida em que os impostos se impõem como um custo a suportar para a
generalidade dos agentes económicos e, por isso, exigem aquilo que Larenz denominou
por “mínimo de compreensibilidade geral”90
.
Nos domínios em que cada empresa entra em contacto direto com as normas fiscais que
lhe surte aplicação, é um dado pressuposto que os termos aí empregues e pertencentes à
linguagem jurídica são parte da linguagem natural, mesmo que se utilizem nesta última
com menor precisão91
, o que acresce maior importância às componentes definitórias
existentes na legislação fiscal.
Na medida em que o intérprete terá um acesso imediato à normatividade fiscal, da qual
necessita para se poder orientar num ambiente social e económico institucionalizado, a
linguagem da lei não pode afastar-se do próprio uso linguístico geral, ao ponto de se
tornar um reduto exclusivamente técnico. De onde resulta que a inclusão de conceitos
com uma natureza predominantemente técnica exigirá, de forma redobrada, que a sua
definição possa adequar-se a esse primeiro momento de contacto com as prescrições
que, em matéria fiscal, têm a generalidade dos intérpretes como destinatários.
Como garantir uma uniformidade compreensiva a respeito de um conceito como o de
“lucro” que, para além ter sentido pré-constitucional, não é objeto de qualquer “adenda”
constitucional sobre aquele que deverá ser o respetivo significado jurídico?
Perante o silêncio conceptual do texto constitucional, é ao primado do legislador
ordinário que cabe a concretização do modelo de tributação das empresas a que alude o
n.º 2 do artigo 104.º, e se essa liberdade de conformação foi consagrada pela negativa,
89
Cfr. Karl-Heinrich Friauf, «Verfassungsrechtliche Anforderungen an die Gesetzgebung über die
Steuern vom Einkommen und vom Ertrag» in «Steuerrecht und Verfassungsrecht», DStJG 12, 1989,
pp. 12 e ss.
90
Cfr. Karl Larenz, «Metodologia do Ciência do Direito», cit., p. 451.
91
Cfr. Karl Larenz, «Metodologia da Ciência do Direito», cit., p. 451.
pelo próprio legislador constituinte, deverá também corresponder-lhe a delimitação
prévia do significado constitucional que deve presidir àqueles conceitos: o rendimento
e, sobretudo, o lucro, à luz de uma carga normativa totalmente autónoma.
Num contexto em que os sujeitos passivos são cada vez mais chamados a desempenhar
importantes funções em contexto fiscal que outrora eram atribuídas à Administração,
revela-se adequado suscitar a influência do discurso de Habermas face à expressão da
ação comunicativa no processo de obtenção de acordos entre sujeitos linguística e
interactivamente competentes92
, como é o caso da Administração e dos sujeitos passivos
que com ela cooperam.
Tal significa que os elos comunicacionais gerados entre sujeitos passivos e
Administração pressupõem a aceitação de um elo de validade que só pode ser garantido
por um “acordo” ou “entendimento comum”. Semelhante acordo terá o significado
mínimo nos termos do qual dois sujeitos, linguística e interactivamente competentes,
entenderão de forma idêntica determinadas expressão linguísticas93
, onde se incluirão os
elementos definitórios constates na lei e essenciais à compreensão do âmbito de
incidência objetiva dos impostos.
Ao estabelecer que, para efeitos fiscais, o lucro tributável é definido através de uma
remissão condicionada para o resultado contabilístico, o legislador procedeu a uma
integração do texto constitucional, ou seja, procedeu à integração de uma “lacuna
conceptual” entendida enquanto modalidade específica de lacuna de lei, com reflexo
para a concretização do modelo de tributação das empresas constitucionalmente
consagrado.
Trata-se de uma circunstância plenamente justificada. Ao determinar a competência do
legislador para proceder àquele desenvolvimento conceptual, o texto constitucional tão
pouco esclareceu em que deveria consistir o iter essencial desse desenvolvimento,
apenas que o seu resultado deveria fazer coincidir a tributação das empresas com o
respetivo lucro real. De facto, poderá não estar em causa a ausência de um dispositivo
aplicável ao caso concreto mas sim um critério apto a determinar que norma aplicar e de
que forma o legislador acabará por condicionar o próprio juízo de conformidade à CRP,
incluindo uma condicionante imposição, à Administração: a de lhe ser vedado o recurso
a inovações conceptuais-definitórias em matéria de incidência (inovações definitórias),
92
Cfr. Jürgen Habermas, «Theorie des kommunikativen Handelns», Band II, cit., p. 368.
93
Cfr. Jürgen Habermas, «Theorie des kommunikativen Handelns», Band II, cit., p. 393.
perspetivada enquanto limite material à tipificação94
, já que aquelas definições se
integram na estrutura essencial dos impostos e, como tal, excluem-se à criação ex novo
via administrativa. Vejamos as justificações que presidem a tal vedação.
Desde logo, porque tal poderia corresponder a uma forma implícita de recurso a um
método de tributação indireta95
que, como se sabe, apenas será conforme a uma
tributação pelo lucro real se for considerada a título subsidiário.
Por outro lado, porque se revela crucial para a antecipação da própria quantificação de
imposto, que agora ocorre por parte dos sujeitos passivos, a componente definitória das
normas de incidência deverá integrar um mínimo de densidade exigível às leis fiscais, e
que decorre do princípio da legalidade.
A questão que suscitamos não está no grau de indeterminação de um conceito como o
de lucro, que remete para a determinação do perímetro da “auréola”96
do próprio
conceito, antes recai na localização legal do seu “núcleo”97
que, embora seja objeto de
referência constitucional, vê prolongando o seu universo referencial para lá do domínio
estritamente formal da CRP, fazendo com que à componente da lei fiscal responsável
pelo enunciado das normas definitórias possa ser atribuído um estatuto materialmente
constitucional, incluindo-as mesmo na respetiva incidência em sentido amplo e, assim,
no Tatbestand sistemático de imposto98
.
Concretizemos, em termos práticos, as consequências do que acima procurámos
evidenciar, com alguns exemplos em que as referidas normas definitórias adquirem
relevo:
(i) O primeiro exemplo diz respeito ao próprio conceito de lucro, tal como enunciado
para efeitos do disposto nos termos do artigo 17.º n.º1 do CIRC. Trata-se de um
conceito que, determinado a atividade quantificadora, por intermédio da qual ocorre
uma tributação conforme ao lucro real, se vincula a uma definição carregada de
normatividade.
94
Sobre os limites à tipificação, Cfr. J.L. Saldanha Sanches, «A Quantificação da Obrigação
Tributária», pp. 138 e ss.; Ana Paula Dourado, «O Princípio da Legalidade Fiscal, Tipicidade,
Conceitos Jurídicos Indeterminados e Margem de Livre Apreciação», cit., pp. 709 e ss.. Ainda com
relevo, em termos gerais, Cfr. Ralf P. Schenke, «Die Rechtsfindung im Steuerrecht», cit., pp. 151 e
ss.; Joachim Englisch, «Wettbewerbsgleicheit im grenzüberschreitenden Handel», Jus Publicum 174,
Mohr Siebeck, Tübingen 2008, 159 e ss.; Heike Jochum, «Grundfragen des Steuerrechts: Eine
verfassungsrechtliche und methodische Einführung für Lehre und Praxi»s, Mohr Siebeck, 2012, pp.
70 e ss.
95
Cfr. Ana Paula Dourado, «O Princípio da Legalidade Fiscal, Tipicidade, Conceitos Jurídicos
Indeterminados e Margem de Livre Apreciação», cit., p. 709.
96
Cfr. Philip Heck, «Interpretação da Lei e Jurisprudência dos Interesses», cit., pp. 203 e ss.
97
Cfr. Philip Heck, «Interpretação da Lei e Jurisprudência dos Interesses», cit., pp. 203 e ss.
98
Cfr. Ana Paula Dourado, «Direito Fiscal», cit., p. 99.
(ii) O segundo exemplo é o do artigo 15.º do CIRC, que tem como pressuposto o
conceito de lucro definido nos termos do artigo 17.º n.º1 do mesmo CIRC.
Efetivamente, a ordem estabelecida no artigo 15.º, que pressupõe uma interconexão com
o próprio artigo 17.º, não é arbitrária, seguindo uma teleologia - a designada “teleologia
operante” que é pressuposto da lei fiscal – que se poderá esquematizar na fórmula
matéria coletável igual à subtração de lucro tributável, seguida de prejuízos e benefícios
fiscais.
De tal forma, apurada a base do imposto, há que considerar os prejuízos e ainda os
benefícios fiscais, pois só após estas operações se consegue obter a matéria coletável
líquida, à qual será aplicada a respetiva taxa para a determinação do quantitativo de
imposto em divida. Trata-se de uma lógica patente nas diversas fórmulas de
determinação da matéria coletável, quer se trate de entidades residentes que exerçam ou
não, a título principal uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola, quer
se trate de entidades não residentes, desde que disponham de estabelecimento estável
em território português99
.
Como referimos, a enumeração do art.º 15º não é arbitrária, nem pode ficar na
disponibilidade do sujeito passivo, antes é fixada imperativamente e em termos
sequenciais, ou seja, hétero-vinculantes, não podendo aquele escolher o exercício em
que deduz os prejuízos, de forma a não inviabilizar a dedução dos benefícios fiscais.100
Refira-se que, quer no âmbito do Código da Contribuição Industrial, quer do CIRC, a
razão da obrigatoriedade da ordem de dedução dos prejuízos de exercícios anteriores,
previamente à dedução dos benefícios fiscais, é a mesma, ou seja, primeiro deduzem-se
os prejuízos, e restando lucro tributável, seguidamente deduzem-se os benefícios
fiscais101
.
Assim, não sendo suficiente o lucro tributável para a dedução de prejuízos e de
benefícios fiscais, apenas se deduzem os prejuízos, não podendo o sujeito passivo fazer
qualquer opção quanto a essa ordem de dedução102
, pois se o fizesse, estaria em causa
uma total desfragmentação do valor do lucro do exercício, ou seja, do próprio lucro real.
É o que justifica, pois, a inclusão do balanço fiscal no Tatbestand sistemático de
imposto que, como refere Ana Paula Dourado, “está relacionado com a arrumação e
99
AcSTA de 30-06-2010, Processo n.º 059/10, 2.ª Secção [Pimenta do Vale].
100
AcSTA de 30-06-2010, Processo n.º 059/10, 2.ª Secção [Pimenta do Vale].
101
AcSTA de 17-12-2014, Processo n.º 0612/14, 2.ª Secção [Aragão Seia].
102
AcSTA de 17-12-2014, Processo n.º 0612/14, 2.ª Secção [Aragão Seia].
juridificação da relação de imposto, e permite uma linguagem comum do Direito
Fiscal”103
.
Resulta do exposto que as normas definitórias são normas utilizadas para o significado
de expressões em sentido técnico-jurídico, atualmente encontrando nos sujeitos passivos
o destinatário mais frequente e que delas se servem para parametrizar a sua atividade
interpretativa, bem como a própria atividade quantificadora, na medida em que acabam
por se confundir, num sistema de autoliquidação.
A característica essencial das normas definitórias, face a uma definição não-normativa,
reside no facto de o significado atribuído ser o que a lei utiliza, regra geral por
intermédio de um modal deôntico implícito, o da permissão, para que os diversos
intervenientes participem, com êxito, nos vários processos de comunicação de caráter
jurídico. Todavia, quando essa definição é o meio que a lei utiliza para que os referidos
agentes não só possam participar naquele processo de comunicação, mas o façam de
determinada forma, o modal implícito passa a ser o da obrigatoriedade e aquela norma
definitória passa a integrar, contrariamente ao que defendem Alchourrón e Bulygin,
uma norma de conduta: precisamente o que sucede relativamente aos sujeitos passivos,
face ao conceito de lucro, conceito cuja componente definitória condiciona de forma
decisiva a atividade quantificadora, como uma norma de conduta suscetível de
valoração por parte da Administração.
§3.2.2 As normas valorativas especiais ou balanço fiscal strictu sensu
É inequívoco que a existência de valorações especiais, corresponde a uma erosão da
relação de dependência parcial existente entre Direito Fiscal e Direito Contabilístico,
todavia motivada por um imperativo constitucional de tributação das empresas pelo
lucro real. De facto, trata-se de uma erosão que é cada vez mais aprofundada pela
proliferação de normas valorativas especiais, legitimando a imposição de uma série de
dúvidas à designada teoria da unidade do balanço, no quadro de um mais amplo quadro
de redefinição da referida relação de dependência parcial104
.
É particularmente impressivo que se note, ao falamos de normas valorativas especiais,
que está em causa a expressão diferenciadora da valoração fiscal face à valoração
contabilística. Por isso refere António Moura Portugal que “o balanço fiscal assume e
103
Cfr. Ana Paula Dourado, «Direito Fiscal», cit., p. 99.
104
Cfr. Tomás Cantista Tavaes, «IRC e Contabilidade – Da Realização ao Justo Valor», cit., p. 188 e ss.
representa estas correcções [extracontabilísticas], motivadas por finalidades próprias
do Direito Fiscal, tendo como destinatário único o Fisco”105
.
Não pode atualmente ignorar-se que as referidas correções deverão incluir-se na própria
atividade quantificadora, o que significa que os primeiros destinatários da sua prescrição
são os próprios sujeitos passivos. Ao repousar numa expressa remissão para o Direito
Contabilístico, a lei fiscal procede a uma receção da técnica contabilística, atribuindo-
lhe os efeitos de uma inclusão na normatividade fiscal, sob o espetro de uma relação de
dependência parcial106
que cabe aos sujeitos passivos respeitar e oferecer concretização.
A consagração desta “regra técnica”107
decorre de uma circunstância interpretativa que
requer algum cuidado analítico. Se efetivamente o legislador pretendeu que as suas
palavras fossem entendidas num sentido distinto da sua utilização comum, deveria
indicar qual seria esse sentido108
e não o fez, assumindo que o sentido em causa é regra
geral, o contabilístico, ao remeter expressamente para o lucro, tal como apurado
contabilisticamente.
De todo o modo, o legislador não se cinge à dependência contabilística relevada pela lei
fiscal, estabelecendo uma considerável margem de intervenção desta última para
introduzir juízos e critérios especificamente adequados aos interesses aos quais se
encontra a lei fiscal se encontra vinculada, o que cada vez mais coloca em causa a
hipótese de um balanço unitário (“Einheitsbilanz”), sem mitigação ou suscetibilidade
de intervenção autónoma da lei fiscal, o veículo privilegiado de suporte da carga
normativa do conceito de lucro, enquanto realidade eminentemente convencional.
Verificada a existência de um princípio de conexão formal entre Direito Fiscal e Direito
Contabilístico, a “prerrogativa de transformação de conceitos”109
a que cedo se referiu
Alberto Xavier não surte efeito automático em relação aos conceitos contabilísticos,
apenas se concretiza na medida em que tal se verifique necessário à prossecução de
105
Cfr. António Moura Portugal, «A Dedutibilidade dos Custos na Jurisprudência Fiscal Portuguesa»,
cit., p. 85 [Nota n.º 164].
106
Cfr. Tomás de Castro Cantista Tavares, «Da Relação de Dependência Parcial entre a Contabilidade e
o Direito Fiscal na Determinação do Rendimento Tributável das Pessoas Coletivas: Algumas
Reflexões ao Nível dos Custos», cit., p. 93; Nina Aguiar, «Lucro Tributável e Contabilidade na
Jurisprudência dos Tribunais Superiores», Revista Fiscal, Num. 2, Fevereiro 2008, pp. 7-17. Já na
literatura alemã, Cfr. Heinz-Jürgen Pezzer, «Bilanzierungsprinzipien als sachgerechte Maßstäbe der
Besteuerung», cit., pp. 20 e ss.; Franz Wassermeyer, «Die Maßgeblichkeit der Handelsbilanz für die
Steuerbilanz und die Umkehr dieses Grundsatzes», cit., pp. 29 e ss.
107
Pronunciando-se expressamente sobre as referidas regras técnicas, Santiago Nino qualifica-as como
“[regras] que indicam um meio para alcançar determinado fim”. Assim, Cfr. Carlos Santiago Nino,
«Introdución al Análisis del Derecho», cit., p. 68.
108
Cfr. Carlos E. Alchourrón/Eugenio Bulygin, «Definiciones y Normas», cit., p. 447.
109
Cfr. Alberto Xavier, «Manual de Direito Fiscal», Volume I, cit., p. 181.
finalidades especificamente fiscais. Está em causa, portanto, uma prioridade da técnica
contabilística como vetor de determinação do valor fiscal de cada facto ou operação e,
assim, a primazia de uma interpretação jurídica da lei contabilística que, apenas quando
uma especial valoração ou teleologia fiscal o imponham, faça distanciar o interesse
fiscal do próprio interesse contabilístico, expresso numa divergência valorativa.
Trata-se de encontrar subjacente à relação de dependência parcial entre Direito Fiscal e
Direito Contabilístico um princípio de dependência classificatória inerente à
composição do lucro contabilístico, pois para que este possa assumir-se como um
pressuposto constitutivo do lucro tributável é necessário que ocorra uma prévia
subsunção do acervo fático relevante face ao normativo contabilístico aplicável110
, o
SNC, subsunção que pressuporá sempre uma correta interpretação da lei contabilística.
Daqui resulta uma relação de total independência, ou dependência inversa, das
qualificações operadas pela lei fiscal face à valoração contabilística, quando entre elas
se verificam diferenças de ordem valorativa consideradas relevantes de um ponto de
vista fiscal: qualquer tipo de qualificação fiscal nunca representará uma alteração na
valoração e qualificação contabilísticas.
Tal aplica-se quer aos casos em que existe uma exceção à conexão formal como, de
igual forma, aos casos em que existe uma exceção à relação de dependência parcial
entre Direito Fiscal e Direito Contabilístico. Como tal, a prescrição de um modelo da
tributação das empresas ao lucro real evidencia um claro reconhecimento da lei fiscal
relativamente à competência dos sujeitos passivos perante a respetiva condição
enquanto destinatário de deveres constitucionais em matéria de impostos.
De entre um semelhante conjunto de deveres, evidencia-se particularmente o dever de
efetuar uma quantificação conforme ao lucro real, ou seja, existe um dever de auto-
tributação pelo lucro real, que, para além de acarretar deves de cooperação para com a
Administração, condiciona e determina os contornos da conduta valorativa subjacente à
quantificação de imposto.
Imputando à esfera de competências privadas uma responsabilidade em assegurar os
interesses a que a lei fiscal se subordina, cabe aos sujeitos passivos o exercício da
autoliquidação, em conformidade àquele que foi o lucro real efetivo, o que permite uma
explicação normativamente adequada para o caráter meramente eventual de uma
intervenção corretiva da Administração: serão tão mais amplas quanto esteja em causa a
110
Cfr. J.L. Saldanha Sanches, «A Quantificação da Obrigação Tributária», cit., p. 200.
possibilidade de eleger entre “diversas alternativas de ação”111
no domínio
contabilístico-fiscal, fazendo com que esteja em causa uma verdadeira
discricionariedade contabilística, algo que, em nosso entender, continua a explicar as
reservas continuamente levantadas quanto ao recurso ao justo valor.
A vinculação ao lucro real representa um outro pressuposto de que parte a lei fiscal: o
de que cada empresa é uma unidade jurídica autossuficiente, que não sofre a influência
de fatores externos, solucionando individualmente os conflitos de valoração
contabilístico-fiscal que forem desencadeados no seu interior e que, por isso mesmo,
respeitem à sua esfera de interesses. Verifica-se, assim, a existência de uma verdadeira
autopoiese subjacente ao artigo 104.º n.º2, na medida em que sempre se pressuporá por
lucro real no lucro apresentado pelo sujeito passivo, através da respetiva declaração-
liquidação112
. Está, por isso, em causa um modelo de autodeterminação da capacidade
contributiva que encontra concretização na competência das empresas para
determinarem o seu lucro real, não podendo a Administração deixar de se vincular a um
procedimento cujo impulso agora a ultrapassa, nem que este último se refira a uma
omissão, ou exercício menos diligente, relativamente à própria atividade quantificadora.
É igualmente, por isso, que as intervenções desta última serão levadas a posteriori e na
medida em que visem promover a concretização do interesse público (ou dos interesses
públicos) aos quais se vincula, devendo imiscuir-se de qualquer intervenção na
liberdade e autonomia de gestão fiscal da empresa.
À mercê da existência de um balanço fiscal, nomeadamente no que respeita à sua
componente escrita, a lei fiscal incorpora “as normas contabilísticas com toda a sua
indeterminação, flexibilidade ou discricionariedade”113
sendo que, nesta
indeterminação reside, inevitavelmente, uma margem para o sujeito passivo manipular o
seu lucro e, mais especificamente, a base tributável que lhe subjaz114
.
No entanto, perante a existência de um número muito considerável de incentivos à
fidelidade ao lucro real – desde a elaboração obrigatória das contas por um técnico de
contas e auditadas por um órgão de fiscalização, os quais se tornam responsáveis,
juntamente com os administradores da empresa, por obrigações fiscais que por sua
culpa tenham deixado de ser cumpridas, até à respetiva apresentação em sede de
111
Cfr. Martin Borowski, «La Restricción de los Derechos Fundamentales», REDC, Año 20, Num. 59,
Mayo-Agosto 2000, p. 34.
112
Cfr. Nina Aguiar, «A Lei Fiscal e os Juízos Contabilísticos Discricionários», cit., p. 304.
113
Cfr. Nina Aguiar, «A Lei Fiscal e os Juízos Contabilísticos Discricionários», cit., p. 308.
114
Cfr. Nina Aguiar, «A Lei Fiscal e os Juízos Contabilísticos Discricionários», cit., p. 308.
assembleia geral115
– a lei fiscal acaba por aceitar que os juízos discricionários
efetuados contabilisticamente são conformes àquele ideário, ou seja, refletem um
exercício da competência valorativa dos sujeitos passivos preclusivo no contexto de
uma auto-tributação pelo lucro real.
Os casos em que o conceito de lucro tributável não segue as prescrições da relação de
dependência parcial existente entre normas fiscais e normas contabilísticas justificam-se
em face da existência daquilo a que Nina Aguiar se refere como “normas valorativas
especiais”116
ou que Tomás Cantista Tavares designa como “normas de ajuste”117
.
Comece por se adiantar que rejeitamos a tese de acordo de que as normas valorativas
especiais são meros afloramentos dos designados princípios contabilísticos geralmente
aceites (“Generally Accepted Accounting Principles”), pois vemos nas mesmas um
agregado normativo fiscal que modela a estatuição do artigo 17.º n.º1 do CIRC em
conformidade com uma determinação do valor fiscal compatível com o lucro real, o que
aliás justifica que, em nosso entender, estejam necessariamente incluídas na reserva de
lei fiscal, para efeitos do disposto no artigo 103.º n.º 2 da CRP.
Tal deve-se a um conjunto vasto e heterógeno de motivações. De todo o modo, aquela
que mais nos interessa neste momento prende-se com o facto de, ao se integrarem na
quantificação, tornam-se dispositivos que os sujeitos passivos devem conhecer e aplicar
devidamente, reconhecendo-se, por isso que, à semelhança de outros elementos
essenciais da lei fiscal, condicionam de forma determinante a sua capacidade de
entendimento e previsão, relativamente ao montante de imposto a pagar. As referidas
normas valorativas especiais poderão dividir-se em três grandes categorias que,
doravante, passaremos a analisar, na especialidade.
§3.2.2.1 As normas de mensuração fiscal como Fisckalzwecknormen
Seguidamente, focar-nos-emos nas normas de mensuração fiscal
(“Fisckalzwecknormen”)118
, ou seja, normas com propósito essencialmente creditício,
que têm por vocação atingir o desiderato principal da generalidade dos sistemas de
tributação, a maximização na obtenção de receita.
115
Cfr. Nina Aguiar, «A Lei Fiscal e os Juízos Contabilísticos Discricionários», cit., p. 310.
116
Cfr. Nina Aguiar, «A Lei Fiscal e os Juízos Contabilísticos Discricionários», cit., p. 310.
117
Cfr. Tomás Cantista Tavares, «IRC e Contabilidade – Da Realização ao Justo Valor», cit., pp. 181-
183.
118
Cfr. Klaus Tipke, «Die Steuerrechtsordnung», cit., p. 77.
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Balanço fiscal como Tatbestand na tributação do lucro empresarial

  • 1. O balanço fiscal como Tatbestand na tributação do lucro empresarial Filipe de Vasconcelos Fernandes1 Universidade de Lisboa, Faculdade de Direito RESUMO A expressão “balanço fiscal” refere-se, simultaneamente, aos elementos que integram a relação de dependência parcial existente entre Direito Fiscal e Contabilidade e, bem assim, ao conjunto de correções que podem incidir sobre o balanço comercial, para efeito da determinação do lucro tributável em sede de IRC. De acordo com a tese defendida, o balanço fiscal é um momento normativo autónomo, no que à dinâmica de apuramento do IRC diz respeito. Efetivamente, com a generalização do mecanismo de autoliquidação – que tem por base uma competência privada do sujeito passivo, para o exercício da liquidação – passa a existir uma necessidade progressivamente maior de introduzir normas valorativas especiais, que estabeleçam limites específicos ao exercício da discricionariedade contabilística, num momento em que o próprio Direito Contabilístico é cada vez mais composto por princípios. Em síntese, a conformidade constitucional das valorações especiais dependerá, não só dos fins subjacentes à respetiva aplicação, pautados por presunções relativas à existência de discricionariedade contabilística, como igualmente pela preservação que continuam a dever a uma tributação das empresas de acordo com o respetivo lucro real, tal como enunciada nos termos do artigo 104.º, n.º2, da Constituição da República Portuguesa (“CRP”). Palavras-chave: Tributação das Empresas; IRC; Balanço Fiscal; Tatbestand. 1 Assistente Convidado na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Mestre em Direito Fiscal. Consultor na Vieira de Almeida & Associados.
  • 2. §1. Uma redefinição do princípio da tributação das empresas pelo lucro real Tal como já constara na versão originária da Constituição da República Portuguesa (“CRP”), dispõe o atual artigo 104.º n.º 22 que a tributação das empresas deverá incidir, fundamentalmente, sobre o respetivo rendimento real3 - entendendo-se este último, no que ao IRC diz respeito, pelo lucro real efetivamente obtido. O referido artigo 104.º n.º 2 é um dos preceitos constitucionais que, versando sobre matéria fiscal, melhor tem resistindo às diversas fontes de erosão do texto constitucional, mantendo-se intacto desde a primeira versão da CRP. Para além deste aspeto preliminar, existem ainda razões adicionais que, em nosso entender, incrementam a importância do referido preceito, para uma plena compreensão dos alicerces do sistema de tributação das empresas. Desde logo, saliente-se a circunstância de a inscrição constitucional do artigo 104.º n.º2 ter por base uma “reação constituinte” ao modelo de tributação das empresas que resultou da Reforma Fiscal de 1929, o de uma tributação pelo lucro normal – modelo ao qual a Reforma Fiscal de 1958-1963 não conseguiu, pelo menos de forma linear, colocar termo, por razões expostas, de forma clarividente, por Teixeira Ribeiro4 . Por outro lado, trata-se igualmente de um preceito que incorpora um debate doutrinário relativamente esquecido até ao momento, e que muito deve ao labor científico de Teixeira Ribeiro, o autor que, desde o final dos anos 30 do Século XX, se vinha insurgindo contra as debilidades técnicas de uma tributação pelo lucro normal (mesmo que acabasse por reconhecer, de forma circunstancial, as vantagens que aquele modelo poderia oferecer, atendendo às debilidades da economia nacional, entre as décadas de 30 e 60 do Século XX). Por todo este conjunto de fatores parece justificar-se a tão abundante jurisprudência, tanto fiscal como constitucional, sobre este o princípio da tributação das empresas pelo 2 Perante um tão elevado número de referências que, pela natureza do presente escrito, serão dirigidas ao artigo 104.º n.º2 da Constituição da República Portuguesa, para não cair em excesso, omitir-se-ão em muitos casos as abreviaturas “CRP” ou “Constituição”. 3 Sobre o referido princípio constitucional, em termos gerais, Cfr. José Guilherme Xavier de Basto, «A Constituição e o Sistema Fiscal», Revista de Legislação e Jurisprudência, 138, 2009, pp. 271-284; «O princípio da tributação do rendimento real e a Lei Geral Tributária», Fiscalidade, nº 5, Janeiro 2001, pp. 5-21; José Casalta Nabais, «O quadro constitucional da tributação das empresas», Nos 25 Anos da Constituição da República Portuguesa de 1976, Lisboa, AAFDL, 2001; «Alguns aspetos da tributação das empresas» in Estudos de Direito Fiscal, Volume II, pp. 357-406; «Ainda fará sentido o art.º 104.º da Constituição?», Cadernos de Justiça Tributária, 1, Julho-Setembro 2013, pp. 34 e ss.; M.H. Freitas Pereira, «A extensão do conceito de lucro tributável», in Colóquio sobre o Sistema Fiscal - Comemoração do XX Aniversário do Centro de Estudos Fiscais, Lisboa 1984. 4 Cfr. J.J. Teixeira Ribeiro, «A contra-reforma fiscal», Boletim de Ciências Económicas, Volume XII, 1969, pp. 115 e ss..
  • 3. lucro real. Importa, por isso, traçar um breve enquadramento sobre a génese daquele preceito constitucional, bem como a do modelo de tributação das empresas que comporta. Desde logo, tanto a inscrição do referido preceito constitucional como os alicerces dogmáticos da sua construção teórica muito devem ao labor de Teixeira Ribeiro que, já nas respetivas Lições de Finanças de 1935-19365 , dedicara uma parte considerável ao tratamento de uma (suposta) tributação das empresas pelo lucro real, por oposição ao que resultara da Reforma Fiscal de 1929, onde fora generalizado o modelo de tributação das empresas pelo lucro normal. Recorde-se que a opção da referida Reforma Fiscal de 1929, da autoria de António de Oliveira Salazar, recaiu sobre um modelo de tributação das empresas pelo respetivo lucro normal, opção que significou uma drástica inflexão face ao percurso que vinha sendo trilhado, na sequência da Reforma Fiscal de 19226 . Ora, com a Reforma Fiscal de 1988-1989 – muito mais do que com a Reforma Fiscal de 1958-1963, pelas razões elencadas por Teixeira Ribeiro7 – ocorreu uma alteração estrutural no sistema de administração dos impostos, que muito importa para a definição dos termos em que deve ser perspetivado o atual sistema de tributação das empresas. De facto, mais do que uma alteração quanto ao conceito de rendimento fiscal adotado, está agora em causa, não só um sistema de administração privada dos impostos, mas também o reconhecimento, por parte do legislador, de que existe uma competência de uso privativo do sujeito passivo, para efetuar a liquidação. Em termos gerais, aos atos praticados pelos sujeitos passivos em sede de autoliquidação corresponde agora uma definitividade substancial8 , mesmo admitindo uma dimensão condicional da sua forma, atenta a tutela de legalidade da Administração que, em momento algum, se poderia cingir a uma “atividade de caixa”. Ao mesmo tempo, procuraremos extrair as consequências normativas mais relevantes de uma competência de uso privativo de que as empresas dispõem para a determinação dos respetivos lucro e matéria coletável, como base para a atribuição de uma dupla natureza ao artigo 104.º 5 Cfr. J.J. Teixeira Ribeiro, «Lições de Finanças – Em Harmonia com as Preleções do Professor Doutor José Joaquim Teixeira Ribeiro ao Curso do III Ano Jurídico de 1935-1936», Livraria do Castelo – Editora, Coimbra 1936. 6 Preâmbulo ao Decreto 16:731, de 13 de Abril de 1929. 7 Cfr. J.J. Teixeira Ribeiro, «A contra-reforma fiscal», Boletim de Ciências Económicas, Volume XII, 1969, pp. 115 e ss 8 Cfr. José Casalta Nabais, «Direito Fiscal», cit., pp. 302 e ss.
  • 4. n.º2: não só como direito subjetivo mas, igualmente, como um dever constitucional, acessoriamente conexo ao dever fundamental de pagar impostos9 . É em função do perímetro traçado pela competência de uso privativo de que os sujeitos passivos atualmente dispõem que procuraremos delimitar a expressão normativa dos atos privados de liquidação, bem como fundamentar uma leitura atualista do artigo 104.º n.º2. Trata-se de uma leitura que tem inequívoco acolhimento na lei fiscal. Recorde-se que, nos termos do art.º 82º, nº 1, da LGT, a competência para a avaliação direta é da Administração e, nos casos de autoliquidação, do sujeito passivo10 . De igual forma, face ao disposto no art.º 84º, nº 2, da mesma LGT, o sujeito passivo que proceda à autoliquidação deve esclarecer, quando solicitado pela Administração, os critérios utilizados e a sua aplicação na determinação dos valores que declarou. Resulta daquele conjunto de normas que, por expressa indicação legal, quem faz a autoliquidação é o sujeito passivo. Logo, mesmo que não se trate de um ato exclusivo do mesmo, dado que pode também ser praticado pelo substituto ou pelo responsável tributário, à sua utilização subjaz uma competência de uso privativo, de modo algum prejudicada pela existência de deveres de cooperação ou pela ocorrência de correções, a efetuar por parte da Administração. Tanto assim é que, a partir do momento em que ocorre uma intervenção corretiva da Administração, ou do próprio legislador, relativamente a um aspeto fulcral para a tributação das empresas, se deve equacionar a natureza da tributação pelo lucro real enquanto direito subjetivo, pois apenas nos referidos momentos se expressa a sua dimensão enquanto direito de proteção. Antes disso, o que existe é um verdadeiro dever constitucional, de exercício da atividade quantificadora em conformidade ao lucro real, que a lei fiscal sanciona através de um mecanismo “premial”, com a ausência de uma intervenção corretiva pela 9 Sobre a matéria dos deveres constitucionais e deveres fundamentais, sem prejuízo da bibliografia citada, Cfr. Peter Badura, «Grundpflichten als verfassungsrechtliche Dimension», DV, Vol. 97, 1982, pp. 861-872. Com outras referências relevantes, Cfr. Santiago Varela Diaz, «La Idea de Deber Constitucional», REDC, Año 2, No. 4, Enero-Abril 1982, pp. 69-90; Gregorio Peces-Barba Martínez, «Los Deberes Fundamentales», Doxa, 4, 1987, pp. 329-341; Francisco Rubio Llorente, «Deberes Constitcionales», REDC, Año 21, Num 62, Mayo-Agosto 2001, pp. 11-56. 10 Naturalmente que, como bem esclareceu o STA, “a autoliquidação não é um acto exclusivo do contribuinte, podendo o mesmo também ser praticado pelo substituto ou pelo responsável. Substituto ou responsável nos termos da lei”. Cfr. AcSTA de 15-02-2006, Processo 026622, 2.ª Secção [Almeida Lopes].
  • 5. Administração ou ainda com sanções fiscais “impróprias”, que cada vez mais proliferam por toda a normatividade fiscal. De acordo com o exposto, procuraremos demonstrar que, por intermédio da generalização do mecanismo de autoliquidação, o artigo 104.º n.º 2 sofreu uma alteração de sentido que importa convocar, de forma a oferecer uma interpretação atualista do texto constitucional e que, perante a remissão que dele se deduz para a ação concretizadora do legislador ordinário, em nada prejudica a unidade constitucional e os limites possíveis do respetivo texto. Em conformidade com o exposto, pretenderemos demonstrar que a interpretação oferecida, tanto por doutrina e jurisprudência a respeito do artigo 104.º n.º2, assumindo este último como um direito subjetivo, assentava no pressuposto de uma interposição da atividade administrativa ou “administrativização”11 da liquidação. No atual modelo relacional entre sujeitos passivos e Administração, esta intervenção ocorrerá a posteriori, relativamente à autoliquidação. De tal forma, como regra geral, presume-se que o contribuinte efetuou a autoliquidação de acordo com critérios idóneos face aos valores reais e se exija à Administração que fundamente a sua intervenção em omissões, erros de imputação e mensuração ou ainda na aplicação de uma norma valorativa especial, atenuando oportunidades de arbitragem suscitadas pela discricionariedade contabilística ou pela própria hipertrofia normativa. A adoção desta posição terá ainda consequências muito significativas de um ponto de vista dogmático. Por recurso a uma terminologia de Teoria do Direito, tal exige que acrescentemos à distinção entre normas de competência pública e privada a categoria das normas de conduta, assumindo o relevo destas últimas como limite imanente ao exercício da competência das empresas na atividade quantificadora. Da interpretação atualista que propomos, o artigo 104.º n.º2 tem como destinatário imediato, ao nível do respetivo âmbito de estatuição, as próprias empresas. Como tal, não obstante a competência que assiste a cada empresa para conformar o resultado contabilístico, exigir-se-á que a intervenção corretiva da Administração se adeque igualmente a um exercício conforme, de entre outros, a uma tributação pelo lucro real, o que significa que a interpretação das normas valorativas especiais se transforma numa questão de conformidade constitucional face ao artigo 104.º n.º2. 11 Cfr. José Casalta Nabais, «Direito Fiscal», cit., p. 302.
  • 6. Exemplo da metodologia que seguiremos verificar-se-á em diversos exemplos ao longo da presente investigação, sendo exemplo paradigmático a necessidade de calibrar as intervenções corretivas por parte da Administração consoante seja mais ou menos vinculada a margem de liberdade conformadora relativa a cada segmento do resultado contabilístico. Esta posição parece-nos especialmente reforçada quanto se impõe uma referência ao balanço fiscal como um verdadeiro Tatbestand – no sentido a que se lhe referiu, entre nós, Saldanha Sanches e, na doutrina alemã, de entre outros, Joachim Schulze- Osterloh12 – traçado, de entre outros, pelos caracteres típicos que presidem à existência de uma noção compreensiva de lucro e que, apenas quando a lei fiscal o exigir, divergirá daquele que é foi o lucro real efetivo. Ora, um dos caracteres do balanço fiscal é precisamente o das normas definitórias a que nos referiremos, as quais que se encarregam de estabelecer a noção de lucro “oficial” a que se deve vincular a atividade quantificadora e, bem assim, as intervenções da própria Administração Fiscal. §1.1 A relação de dependência parcial entre Direito Fiscal e Direito Contabilístico O atual regime fiscal de tributação das empresas, maxime em IRC, repousa sobre um conceito jurídico unitário de rendimento. Efetivamente, neste domínio, “o rendimento deverá, como condição prévia à sua utilização”13 , a qual tanto poderá ocorrer por parte dos sujeitos passivos como pela Administração ou Tribunais, “ser objeto de recepção pelo pensamento jurídico e dotado do grau de precisão necessária para que possa ser um instrumento de aplicação”14 . Naturalmente que o conceito de rendimento adotado pela legislação fiscal não poderá corresponder a um puro empréstimo conceptual proveniente do reduto económico, mesmo que aí encontre as suas raízes mais profundas e tal se não possa ignorar, até por ser cada vez mais premente o recurso casuístico a elementos e técnicas de análise económica, como auxiliares interpretativos da lei fiscal. Por isso, deve entender-se o rendimento como um conceito jurídico adequado às finalidades prosseguidas pela lei fiscal e, mais latamente, como expressão de uma adequação a toda a juridicidade, algo 12 Cfr. Joachim Schulze-Osterloh, «Die Steuerbilanz als Tatbestandsmerkmal im Einkommen und Körperschaftsteuergesetz» in Werner Doralt, «Probleme des Steuerbilanzrechts», DStJG Band 14, Verlag Dr. Otto Schmidt KG, Köln 1991, pp. 123 e ss. 13 Cfr. J.L. Saldanha Sanches, «O Conceito de Rendimento no IRS», Fiscalidade, 7-8, 2001, p. 34. 14 Cfr. J.L. Saldanha Sanches, «O Conceito de Rendimento no IRS», cit., p. 34.
  • 7. particularmente atual pela circunstância de, subjacente às normas fiscais se encontrar uma prerrogativa de “transformação de conceitos”15 . No Direito Fiscal Português, podemos encontrar uma alusão à importância de tal prerrogativa de transformação de conceitos no Manual de Alberto Xavier. Nas palavras do ilustre Professor, “a preocupação de ajustar a realidade tradicional de um conceito à perspetiva do Direito Fiscal, não é tarefa que a lei tenha delegado no intérprete, antes ela se arroga diretamente esse poder de adaptação ou transformação”16 . Todavia, não será de estranhar que na passagem do rendimento bruto para o rendimento líquido, o sistema de tributação das empresas – que, como se viu, conta com expressa menção constitucional17 – dependa de uma valoração previamente imputável ao sujeito passivo, agora colocado numa posição central para autoavaliar a respetiva capacidade contributiva, com base na qual cumpre, simultaneamente, os seus deveres declarativos e de pagamento de imposto. Para além do referido, e como bem alertou Saldanha Sanches, o conceito de rendimento tributável é composto por duas dimensões distintas: por um lado, “mediante a inclusão de todas as receitas que irão fazer parte do rendimento tal como a lei o define”18 ; por outro lado, “de um modo negativo, depois de efectuadas todas as exclusões de tributação que se encontram previstas na lei”19 . Ora, para que ao nível da tributação das empresas seja possível a concretização de um rendimento tributável (sob a forma de lucro tributável) torna-se necessário que a lei fiscal possa, em certos casos, derrogar a própria lei comercial, no modo como define o lucro tributável, de forma distinta do lucro distribuível aos sócios20 . 15 Cfr. Alberto Xavier, «Manual de Direito Fiscal», cit., p. 181. 16 Cfr. Alberto Xavier, «Manual de Direito Fiscal», cit., p. 181. 17 Em nosso entender, o referido preceito constitucional não tem uma dimensão exclusivamente programática, como alguma doutrina para apologizar. Pelo contrário, entendemos que lhe está subjacente: (i) a obrigatoriedade de existência de tributação das empresas; e (ii) a obrigatoriedade de existência de um imposto sobre as sociedades. Também nos parece ser esse o entendimento que perfilhou Teixeira Ribeiro, ao referir que “quando a Constituição fala na tributação das empresas, não tem em mente um imposto sobre o rendimento de todas elas, mas apenas sobre o rendimento das empresas societárias. O que significa irmos ter, ao lado do imposto de rendimento pessoal, um imposto sobre sociedades”. Sobre este aspeto, Cfr. J.J. Teixeira Ribeiro, «As Opções Fiscais da Constituição» in «A Reforma Fiscal», Coimbra Editora Limitada, 1989, pp. 197-198. 18 Cfr. J.L. Saldanha Sanches, «Manual de Direito Fiscal», cit., p. 219. 19 Cfr. J.L. Saldanha Sanches, «Manual de Direito Fiscal», cit., p. 219. 20 Cfr. J.L. Saldanha Sanches, «Manual de Direito Fiscal», cit., p. 368.
  • 8. §1.2 Da prestação de contas à força normativa do Direito Contabilístico A matéria da prestação de contas tem expresso reconhecimento no artigo 65.º do Código das Sociedades Comerciais, onde se dispõe que “os membros da administração devem elaborar e submeter aos órgãos competentes da sociedade o relatório de gestão, as contas do exercício e demais documentos de prestação de contas previstos na lei, relativos a cada exercício anual”. Está em causa, como recorda Nina Aguiar, a ancestral “obrigação mercantil de manter contabilidade organizada e de prestar contas”21 . Por outro lado, como vem sendo reconhecido pela jurisprudência nacional, a prestação de contas corresponde a uma expressão particular do dever de informar22 , devendo mesmo ser entendido “não como um simples dever de informação sobre o objecto do direito de outrem, mas como obrigação de informação detalhada das receitas e despesas efectuadas, acompanhada da justificação e documentação de todos os actos de que é uso exigir e guardar documento”23 . De igual forma, o próprio STJ já reconheceu igualmente que a “obrigação de prestação de contas é estruturalmente uma obrigação de informação, que existe sempre que o titular de um direito tenha dúvida fundada acerca da sua existência ou do seu conteúdo e outrem esteja em condições de prestar as informações necessárias (…) e cujo fim é o de estabelecer o montante das receitas cobradas e das despesas efectuadas, de modo a obter-se a definição de um saldo e a determinar a situação de crédito ou de débito”24 . Efetivamente, é da obrigação de prestação de contas que partem as valorações que irão enfermar o conteúdo do balanço fiscal, o que leva mesmo alguns autores alemães a dirigir expressas referências aos “princípios do balanço como padrões adequados de tributação”25 . Cingindo-nos ao caso português, a relação entre lucro contabilístico e lucro fiscal repousa sobre um modelo designado de conexão formal, nos termos do qual o apuramento do lucro está vinculado, não apenas às normas contabilísticas mas, de igual forma, às próprias opções contabilísticas efetuadas no balanço comercial26 , o que 21 Cfr. Nina Aguiar, «O Direito Fiscal perante as Normas Contabilísticas: Uma Abordagem Metodológica» in Paulo Otero/Fernando Araújo/João Taborda da Gama, «Estudos em Memória do Prof. Doutor J.L. Saldanha Sanches», Volume IV, Coimbra Editora 2011, p. 1023. 22 Tal como previsto nos termos do artigo 573.º do Código Civil. 23 AcTR Coimbra de 14-05-2013, Processo 9-B/1991.C1 [Henrique Antunes]. 24 AcSTJ de 09-02-2006, Processo 05B4061 [Araújo Barros]. 25 Cfr. Heinz-Jürgen Pezzer, «Bilanzierungsprinzipien als sachgerechte Maßstäbe der Besteuerung» in Werner Doralt (Hrsg.), «Probleme des Steuerbilanzrechts», DStJG, Band 14, Verlag Dr. Otto Schmidt KG, Köln 1991, pp. 3 e ss. 26 Cfr. Nina Aguiar, «Modelos normativos de relação entre lucro tributário e contabilidade comercial», Fiscalidade, Núm. 13/14, 2003, pp. 39-49.
  • 9. naturalmente inclui casos em que as normas contabilísticas comportam margens de discricionariedade27 . A referida conexão formal, que para a generalidade dos autores acarreta mesmo a ideia de um balanço único (“Einheitsbilanz”), tem subjacentes dois corolários essenciais: (i) Em primeiro lugar, uma regra geral de prévia inscrição contabilística de cada componente do resultado do exercício. Está em causa a primazia de um elemento formal atribuído à técnica contabilística para mensurar as componentes do resultado, de acordo com um critério de imputação temporal linear aos perímetros comercial e fiscal. Significa, por isso, que se trata de um domínio em que a normação fiscal vincula a própria normação comercial, muito em particular o domínio da prestação de contas, já que as os gastos ou rendimentos da empresa deverão ser considerados tendo por base normas originariamente fiscais e invariantes face ao destinatário em causa28 , seja o sócio em relação à correta definição do lucro distribuível seja a própria empresa, enquanto sujeito passivo, face à correta determinação do conteúdo da autoliquidação de imposto. Nos referidos termos, uma vez que qualquer variação patrimonial positiva corresponde a um crescimento do património e uma variação patrimonial negativa a uma diminuição: note-se que a lógica do regime de imputação temporal tem por base a comparação entre a situação patrimonial entre dois momentos distintos, correspondendo cada parcela de lucro ao acréscimo e o prejuízo, genericamente considerados, à diminuição. (ii) Em segundo lugar, a excecionalidade dos desvios à conexão formal, assim como dos desvios à remissão para as normas contabilísticas. No modelo adotado no ordenamento jurídico português, a lei fiscal assume que a determinação do lucro tributável se encaixa numa prévia valoração contabilística, reportando ao Direito Comercial a função de disciplinar o sistema de prestação de contas. Somente a posteriori ocorrerão alguns ajustamentos ou correções, por aplicação de normas valorativas especiais, exclusivamente pertencentes ao perímetro fiscal. A existência destas valorações especiais deve-se ao facto do Direito Fiscal reclamar a tutela de fins específicos, que poderão mesmo exigir a redução da margem de apreciação subjacente às opções concedidas pelas normas contabilísticas e que tem nos 27 Cfr. Nina Aguiar, «Modelos normativos de relação entre lucro tributário e contabilidade comercial», cit., pp. 42 e ss. 28 Cfr. J.L. Saldanha Sanches, «Manual de Direito Fiscal», cit., p. 374.
  • 10. sujeitos passivos os seus últimos beneficiários. Daí que, como referia Saldanha Sanches “as normas criadas pelo Código do IRC para a tributação das empresas segundo a sua contabilidade têm, como sentido fundamental, criar limites às faculdades de escolha do decisor contabilístico”29 . Assim, a relação entre o Direito Fiscal e o Direito Contabilístico, quanto ao apuramento do lucro tributável, obedece a uma relação de dependência parcial30 , na qual o resultado contabilístico é a base e ponto de partida para a determinação do lucro tributável, sendo submetido a ajustamentos extra contabilísticos, de ordem positiva e negativa, tendo em vista o apuramento definitivo do resultado fiscal. Ora, é um facto que a dita conexão formal encontra justificação na tributação pelo lucro real, ou não fosse o resultado contabilístico o representante mais fidedigno da realidade, correspondendo o depósito sobre o balanço contabilístico o mecanismo que, pese embora reflexamente, melhor cumpre as exigências da capacidade contributiva31 num contexto em que a quantificação é exercida pelas próprias empresas. Ao ter entendido que o resultado contabilístico apurado para efeitos comerciais é o que melhor exprime aproximação ao lucro real, desde que salvaguardada a prerrogativa de adequação do balanço comercial às finalidades específicas da lei fiscal, o que mais não é senão retomar a prerrogativa de transformação e adaptação de conceitos a que se referida Alberto Xavier32 . Como consequência da consagração do princípio da tributação das empresas pelo lucro real, temos, assim, uma ampla atribuição de poderes de fiscalização à Administração, ao mesmo tempo que se assume que as suas intervenções corretivas têm agora natureza excecional. É que, existindo um direito subjetivo a uma tributação pelo lucro real, este direito apenas poderá ser restringido se existirem razões bastantes para tal, mas não eliminado o seu núcleo fundamental, onde se incluem pressuposições de ordem técnica, contabilísticas, como forma de expressar a competência valorativa de que os sujeitos passivos dispõem no reduto contabilístico, numa posição de primazia face à Administração. 29 Cfr. J.L. Saldanha Sanches, «Manual de Direito Fiscal», cit., p. 374. 30 Cfr. Gaspare Falsitta, «Manuale di Diritto Tributário - Parte Speciale», Il Sistema delle Imposte in Itália, Cedam 2014, pp. 165 e ss. 31 Cfr. Clotilde Celorico Palma, «Algumas Considerações sobre as Relações entre a Contabilidade e a Fiscalidade», in Paulo Otero/Fernando Araújo/João Taborda da Gama, «Estudos em Memória do Prof. Doutor J.L. Saldanha Sanches», Volume IV, Coimbra 2011, pp. 634 e ss. 32 Cfr. Alberto Xavier, «Manual de Direito Fiscal», cit., pp. 181 e ss.
  • 11. Daqui resulta uma hétero-vinculação da qual decorre que as decisões legislativas (e administrativas) que regulamentam e limitam os espaços privados de decisão na elaboração do balanço têm obrigatoriamente que levar a uma obtenção do lucro real, o que perfaz das próprias normas fiscais que estabelecem remissões para a Contabilidade, assim como correções ao resultado contabilístico, verdadeiras normas fiscais de direção (“Lenkungsnormen”). Em conformidade, aquando da quantificação do imposto, impende sobre legislador e Administração uma obrigação de resultado, que se concretiza numa distribuição justa dos encargos tributários, a qual conta com uma hétero-vinculação adicional: a circunstância de a Administração se encontrar subordinada ao lucro real efetivo, para tal encontrando-se vinculada aos corolários que expressamente decorrem do referido princípio. Como sabemos, tributar o lucro real significa atingir a matéria coletável realmente auferida pelo sujeito passivo e não o rendimento que este poderia ter obtido, em condições normais de exploração, independentemente das condições concretas em que desenvolveu a sua atividade, como postularia da tributação pelo lucro normal33 . A realidade a que se chama “balanço fiscal” é, pois, uma ficção, um balanço comercial corrigido, suportado, de um ponto de vista informativo, pelo mesmo sistema de recolha e registo de informação que vai conduzir ao balanço comercial, passando a ter como destinatários, não os sócios ou acionistas e os que têm relações operacionais com esta, mas o sujeito passivo ou a Administração, que o vão utilizar como instrumento de quantificação do imposto. Efetivamente, a lei parte do balanço comercial para, através de valorações especiais, construir um “balanço fiscal”34 . Ora, a influência do Direito Fiscal na elaboração das regras contabilísticas, caso seja contrária aos fins e princípios contabilísticos, constitui uma violação da lei e princípios contabilísticos, nomeadamente o princípio da imagem fiel, colocando-se a questão inversa àquela que resulta do artigo 104.º n.º 2, a de saber quais os limites impostos ao próprio Direito Fiscal no que concerne às restrições efetuadas a interesses da Contabilidade por intermédio daquelas valorações especiais. 33 Cfr. Clotilde Celorico Palma, «Algumas Considerações sobre as Relações entre a Contabilidade e a Fiscalidade», cit., pp. 646 e ss. 34 Sobre as opções do legislador português neste domínio, Cfr. M.H. Freitas Pereira, «A base tributável do IRC», Ciência e Técnica Fiscal n.º 360, Out/Dez 1990; Teresa Veiga de Faria, «O Conceito de Rendimento no Imposto sobre as Pessoas Colectivas», Fisco n.º 1, 1987.
  • 12. Em nosso entender, não deixam de existir limitações impostas à restrição dos interesses do Direito Contabilístico, de tal forma que é necessário proceder a uma interpretação do princípio da tributação pelo lucro real em conformidade ao Direito Europeu, no que concerne à recente Diretiva 2013/34/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, relativa às demonstrações financeiras anuais, às demonstrações financeiras consolidadas e aos relatórios conexos de certas formas de empresas. No respetivo artigo 4.º n.3, da referida Diretiva, prescreve-se agora que: “3. As demonstrações financeiras anuais devem dar uma imagem verdadeira e apropriada dos elementos do ativo e do passivo, da posição financeira e dos resultados da empresa. Sempre que a aplicação da presente diretiva não seja suficiente para dar uma imagem verdadeira e apropriada dos elementos do ativo e do passivo, da posição financeira e dos resultados da empresa, devem ser prestadas nas notas às demonstrações financeiras as informações adicionais necessárias para cumprir aquele requisito”. Embora princípio da “imagem fiel” não esteja consagrado expressamente no SNC, designadamente ao nível da respetiva Estrutura Conceptual, pode concluir-se que reveste a natureza de um princípio geral de Direito Contabilístico, conforme a nossa ordem jurídico-constitucional e fiscal os reconhece e acaba por acolher de forma determinante, para a determinação do lucro tributável. Para além de que determinadas normas fiscais podem assim ser considerados normas contabilísticas, no sentido de normas jurídicas que exprimem ou concretizam princípios contabilísticos: princípios que se tornam vinculativos para as empresas pela sua transformação em normas jurídicas, isto é, pela sua positivação35 : veja-se o caso da especialização de exercícios, atualmente constante no artigo 18.º, n.º1, do CIRC. De tal forma, o conceito de lucro tributável acolhido entre nós, é, assim, o resultado de uma complexa e minuciosa previsão normativa, permitindo ao balanço fiscal torna-se um Tatbestand, por intermédio do qual o ordenamento jurídico acolhe grande número de conceitos extraídos das técnicas e práticas contabilísticas36 , mas sem abdicar da construção de um pressuposto normativo de incidência especificamente fiscal. A relevância fiscal do resultado contabilístico não deixa de implicar projeção para o domínio fiscal dos princípios a que obedece a determinação daquele resultado, tratando- se de uma verdadeira imposição que julgamos decorrer do próprio artigo 104.º n.º2. É 35 Cfr. J.L. Saldanha Sanches, «Manual de Direito Fiscal», cit., p. 279. 36 Cfr. J.L. Saldanha Sanches, «Manual de Direito Fiscal», cit., p. 269.
  • 13. certo que o apelo a estes princípios nem sempre é feito de forma explícita pela lei fiscal como sucede entre nós, mas esse facto não diminui a sua importância como parâmetros conformadores do lucro tributável. Nestes termos se pode concluir com Freitas Pereira que “devem tomar-se como pressupostos que o legislador não podia desconhecer. Pode dizer-se, com efeito que, na falta de disposição expressa em contrário, o lucro tributável é determinado de acordo com os princípios contabilísticos, às vezes qualificados como geralmente aceites ou então, como sucede entre nós, denominados de ‘sãos princípios de contabilidade’, o que explica a importância fundamental de que se reveste o seu conhecimento.”37 Manifesta-se assim a influência da Contabilidade sobre o Direito Fiscal no que respeita à assimilação, pelo próprio sistema fiscal, da generalidade dos comandos contabilísticos de valoração qualitativa e quantitativa dos elementos que compõem o acervo empresarial. A eleição do modelo de dependência parcial com realidade subjacente ao apuramento da matéria coletável implica uma sobrevalorização desta última, através de atribuição de um grau de imperatividade acrescida para o próprio sujeito passivo, verificando-se a tutela da verdade contabilística por intermédio do sistema fiscal38 . Em nosso entender, a Administração só terá legitimidade para desconsiderar o balanço ou os registos contabilísticos que nele se incluam, total ou parcialmente, desde que fundamente tal desconsideração com o disposto na lei fiscal e, derivadamente, no próprio artigo 104.º n.º2, caso se considere que o lucro apresentado não representa uma imagem fiel da empresa39 e que nessa base se encontra um exercício extravagante da discricionariedade contabilística, desde que para tal existam valorações especiais adequadas. Caso contrário, encontramo-nos perante meros juízos discricionários que, tendo ocorrido no reduto contabilístico, são preclusivos para efeitos fiscais. 37 Cfr. M. H. Freitas Pereira, «A periodização do lucro tributável», cit., pp. 60-61. 38 Cfr. Tomás Cantista Tavares, «Da Relação de Dependência Parcial entre a Contabilidade e o Direito Fiscal na Determinação do Rendimento Tributável das Pessoas Colectivas: Algumas Reflexões ao Nível dos Custos», cit., p. 92. 39 Tal como refere António Moura Portugal, “os preceitos da lei fiscal que impõem correcções ao balanço comercial têm uma natureza ‘excecional’, pelo menos face à regra de aceitação do balanço comercial. São desvios conscientes e desejados pelo legislador fiscal, tendo como único fito a obtenção do lucro tributável.” Cfr. António Moura Portugal, «A Dedutibilidade dos Custos na Jurisprudência Fiscal», cit., p. 83.
  • 14. §2. A autoliquidação e a relação jurídico-fiscal Os primórdios conceptuais de um modelo de ato tributário constitutivo remontam aos contributos da doutrina jus-publicista alemã do final do Século XIX, com particular destaque para o papel de Otto Mayer e, por esta via, à relação de total dependência do Direito Fiscal face ao Direito Administrativo e à Ciência das Finanças, que perdurou até à publicação do Manual de Albert Hensel, na Alemanha40 . É exemplo paradigmático o conceito de “Gewaltverhältnis”, alicerçado na ideia de uma relação jurídica constituída por intervenções públicas cujo controle recairia apenas sobre uma versão rígida do princípio da legalidade41 , sem a devida contabilização do peso que caberia à tutela dos direitos fundamentais dos administrados. Ora, como é atualmente reconhecido, esta realidade alterou-se muito substancialmente, muito por força do advento do constitucionalismo moderno e o respetivo influxo que ofereceu ao Direito Fiscal, caracterizado pela primazia da tutela da confiança e proteção dos direitos fundamentais42 . Atendendo às consequências de tal advento e em face das vicissitudes propiciadas pela alteração das estruturas de suporte administrativo subjacentes ao cumprimento do dever de pagamento de imposto, assim como aos deveres de cooperação associados, o moderno Direito Fiscal deixou de repousar numa relação jurídica de autoridade na qual se manifestaria, a se, o interesse público subjacente à satisfação das necessidades financeiras do Estado e demais entidades públicas, tal como consagrado nos termos do artigo 103.º n.º1 da CRP. Também o referido interesse público, que continua a ser o pressuposto normativo do sistema fiscal, assistiu a uma alteração do seu próprio valor posicional, integrando-se agora numa lógica de concordância face aos sistemas de direitos e deveres fundamentais entretanto surgidos, atendendo a que estes últimos passaram a encarregar os particulares e empresas de um verdadeiro status activus, na decorrência do qual são agora chamados a desempenhar funções que anteriormente equivaliam a competências de uso privativo da Administração. 40 Não obstante a relevância de outras obras, até mesmo os Grundriss des Finanzrechts de Franz von Myrbach-Rheinfeld, foi com a primeira edição do Steuerrecht de Albert Hensel que, em 1924, se iniciou, não só a sistematização científica do moderno Direito Fiscal de raiz continental, como igualmente a elucidação da importância subjacente à conexão entre o Direito Fiscal e o Direito Constitucional, na estruturação de um sistema fiscal típico de um Estado Moderno. 41 Cfr. Maria Teresa Soler Roch, «Tax Administration Vs. Taxpayer – A New Deal?», WTJ, No. 3 (Volume 4), 2012, p. 282. 42 Dando nota atualizada do conjunto de princípios jurídico-constitucionais relevantes em Direito Fiscal, de natureza formal e material, Cfr. Ana Paula Dourado, «Direito Fiscal», cit., pp. 115-248.
  • 15. Concretização ímpar desta realidade, o sistema de autoliquidação, trouxe um impacto muito significativo para a conceptualização do facto tributário, emergindo agora um impacto muito relevante para a reconceptualização do dever fundamental de pagar impostos, na medida em que a sua concretização depende acessoriamente de um outro dever, imputável a cada empresa, o de concretizar a atividade quantificadora em conformidade com o respetivo lucro real. Uma vez que a competência para a mensuração do lucro imputável a cada exercício passou a caber ao sujeito passivo, que se serve da Contabilidade para conhecer a valoração exata do respetivo lucro, é igualmente sobre ele que passa a recair um ónus de participação ativa na determinação de um lucro que se presume constitucionalmente conforme, ou seja, do dito lucro real. Daí que, com o sistema de autoliquidação, passa a recair sobre os sujeitos passivos um dever, acessoriamente conexo ao dever fundamental de pagar impostos, de procederem a uma quantificação correspondente ao lucro real efetivamente obtido. Como vimos antecipando, esta perspetiva exige uma interpretação atualista do artigo 104.º n.º2, atendendo ao facto de este último preceito ter sido sucessivamente entendido como a consagração de um direito subjetivo, o que de modo algum pretendemos colocar em causa. Simplesmente, o espaço normativo em que se expressa, enquanto direito subjetivo, alterou-se face à dinâmica da tributação das empresas: de um modelo em que ao ato tributário cabia a concretização da obrigação jurídico-tributária principal de pagamento de imposto passou-se a um outro em que a intervenção da Administração ocorre a posteriori e apenas a título incidental ou subsidiário, ou não recaísse sobre as próprias empresas uma tarefa de interpretação da lei contabilística extremamente relevante. De tal forma que, para efeitos de conformidade constitucional do Direito Contabilístico aplicável, aquela interpretação “privada” não deixa de vincular as intervenções da Administração, pois a ela aderindo efetua uma concordância com a conduta do sujeito passivo, viabilizando que o pagamento de imposto possa ter ocorrido tendo por base um verdadeiro ato privado de liquidação. Tal como decorre atualmente do disposto no artigo 16.º n.º1 do CIRC43 , a autoliquidação tem por base um ato de liquidação privada efetuado por um particular, 43 Todavia, note-se que o n.º2 do referido preceito tem uma importância igualmente considerável. Aí se estipula que, apenas quando falte a declaração do sujeito passivo, “compete” à Administração a determinação da matéria coletável. Quer isto dizer que, por regra, não só existe uma declaração do sujeito passivo como também uma competência exclusiva deste último para determinar a matéria colectável (sujeita, claro está, a eventuais intervenções corretivas por parte da Administração).
  • 16. seja ele o sujeito passivo ou não, entendendo-se como tal todo aquele que não será, para todos os efeitos, uma autoridade pública44 . Na realidade, não só a determinação quantitativa da dívida de imposto por parte do sujeito passivo é uma atividade com natureza idêntica à efetuada pela Administração45 como tem por base uma competência de uso privativo que aquela última deve respeitar, por se inserir num sistema de administração privada (parcial) dos impostos. Como já referimos, da generalização do sistema de autoliquidação, que ocorreu na sequência da Reforma Fiscal de 1988-1989, foi autonomizado um ato privado de liquidação, sob a égide de uma competência exclusivamente privada, assim como o caráter meramente eventual de um ato tributário “público”, outrora dotado de dimensão constitutiva. De facto, mesmo que se possa afirmar que existe sempre uma intervenção da Administração, facto é que nem toda se converte num ato tributário46 , pois na maioria dos casos está apenas em causa a confirmação do juízo valorativo efetuado pelo sujeito passivo. Em face do exposto, a autoliquidação pode agora considerar-se autonomamente face ao clássico ato tributário, legitimando um reposicionamento da sua importância nos quadros conceptuais do moderno Direito Fiscal, motivada pelo facto de a atividade quantificadora, caracterizada pela aplicação de normas de incidência com base em elementos contabilísticos prévios, ser agora praticada pelos sujeitos passivos, deixando para a Administração uma tarefa “defensiva” de preservação da legalidade, consagrada através de uma prerrogativa de intervenção corretiva, a posteriori. Sem prejuízo das funções de controlo de que a Administração continua a dispor, assim como da competência que preserva para proceder à homologação da liquidação efetuada pelo sujeito passivo, que decorre da sua aceitação e subsequente pagamento de imposto47 , a atividade quantificadora é agora predominantemente privada. Está em causa, por isso, uma devolução de poderes (ou descentralização institucional) inerente à evolução do moderno Direito Fiscal. Perante a massificação das relações económicas privadas e a complexificação dos critérios de mensuração financeira que proliferam por todo o Direito Contabilístico, o Direito Fiscal efetuou a concessão de 44 Cfr. Lourenço Vilhena de Freitas, «A Autoliquidação: contributo para uma análise da sua Natureza Jurídica», Ciência e Técnica Fiscal, nº 405, 2002, pp. 15 e ss. 45 Cfr. Ana Paula Dourado, «A Natureza Jurídica da Autoliquidação», Separata da Revista Jurídica da Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1988, p. 180. 46 Sobre alguns apontamentos pioneiros no “vis-à-vis” entre a autoliquidação e o ato tributário, Cfr. Ana Paula Dourado, «A Natureza Jurídica da Autoliquidação», cit., pp. 179-191. 47 Cfr. José Casalta Nabais, «Direito Fiscal», cit., p. 302.
  • 17. uma prerrogativa de administração de impostos aos particulares48 , detentores de uma capacidade de avaliação da sua própria liquidez patrimonial incomparavelmente superior, atendendo, não só, às flutuações de ordem temporal a que aquela se encontra sujeita, bem como ao aumento das especificidades técnicas que, em muitos casos, impediriam a Administração de particularizar, ainda que em termos típicos, as circunstâncias de cada sujeito passivo, no ato de liquidação. Aos atos praticados pelos sujeitos passivos, em sede de autoliquidação, corresponde agora uma definitividade substancial49 , mesmo assumindo uma dimensão condicional da sua forma, atenta a natural tutela de legalidade da Administração que, em momento algum, se poderia cingir a uma mera “atividade de caixa”. Segundo cremos, trata-se de uma leitura que tem pleno acolhimento legal. Recorde-se que, nos termos do art.º 82º, nº 1, da LGT, a competência para a avaliação direta é da Administração e, nos casos de autoliquidação, exclusivamente do sujeito passivo. De igual forma, de acordo com o disposto no art.º 84º nº 2 da mesma LGT, o sujeito passivo que proceda à autoliquidação deve esclarecer, apenas e só quando solicitado pela Administração, os critérios utilizados e a sua aplicação na determinação dos valores que declarou. Resulta do citado conjunto de normas que, por expressa indicação legal, quem faz a autoliquidação é o sujeito passivo. Logo, mesmo que a autoliquidação não seja um ato exclusivo do mesmo, na medida em que pode também ser praticado pelo substituto ou pelo responsável tributário, à sua utilização subjaz uma competência de uso privativo, em nada prejudicada pela existência de deveres de cooperação ou pela ocorrência de correções, a efetuar por parte da Administração. É um facto que, já anteriormente à criação do IRC, se verificavam expressões parcelares de recurso à autoliquidação, como forma de atribuição de uma participação ativa aos sujeitos passivos, relativamente à maximização de eficiência do sistema fiscal e, com esta, o próprio interesse público, que cada vez mais se compadece com imperativos de simplificação e praticabilidade, aos quais o moderno Direito Fiscal não é, de modo algum, alheio. Razão pela qual, recorrendo à classificação oferecida por Tipke, nos parece inequívoco que a autoliquidação se integra conjunto mais vasto das normas fiscais de simplificação (“Vereinfachungszwecknormen”50 ). 48 Cfr. José Casalta Nabais, «Direito Fiscal», cit., pp. 327-332. 49 Cfr. José Casalta Nabais, «Direito Fiscal», pp. 302 e ss. 50 Cfr. Klaus Tipke, «Die Steuerrechtsordnung», cit., p. 80.
  • 18. §3. O balanço fiscal como Tatbestand Em sede de IRC, a concretização do conceito de lucro, tal como definido nos termos do disposto no artigo 3.º n.º 2 do CIRC51 , é largamente influenciada pela designada relação de dependência parcial existente entre Direito Fiscal e Direito Contabilístico. Tal comprova-se, desde logo, pelo caráter incondicional que preside à alusão ao resultado contabilístico, nos termos do artigo 17.º n.º1 do CIRC, onde se prescreve que “[o] lucro tributável das pessoas coletivas e outras entidades mencionadas na alínea a) do n.º 1 do artigo 3.º é constituído pela soma algébrica do resultado líquido do período e das variações patrimoniais positivas e negativas verificadas no mesmo período e não refletidas naquele resultado, determinados com base na contabilidade e eventualmente corrigidos nos termos deste Código”. Todavia, mesmo existindo “um processo contabilístico de determinação do lucro”52 , as referências que a lei fiscal emana autonomamente não se revestem de importância menor. Afinal, são valorações especiais das componentes do resultado, face às valorações efetuadas nos termos do Direito Contabilístico53 . Pode, por isso, antever-se na confluência entre os resultados contabilístico e fiscal a possibilidade de este último oferecer valorações especiais, expressamente legitimadas pela lei fiscal e que decorrem da sua autonomia valorativa, relativamente a conceitos e valorações efetuados à luz de outros parâmetros jurídico-normativos, tal como sucede, neste caso, em relação ao Direito Contabilístico. Em conformidade, tal como o próprio nome indica, são valorações autonomamente emanadas no seio da quantificação (“Steuerbemessungsgrundlage”54 ), que decorrem da existência de um núcleo normativo a partir do qual é recortado o conceito de lucro. Como referimos no início do presente escrito, a primeira manifestação da referida relação de dependência parcial parte da própria lei fiscal, ao pressupor uma identidade de princípio entre lucro contabilístico e lucro tributável. De tal forma, a expressão 51 Aí se prescreve que “ (…) o lucro consiste na diferença entre os valores do património líquido no fim e no início do período de tributação, com as correções estabelecidas neste Código”. 52 Cfr. J.L. Saldanha Sanches, «Manual de Direito Fiscal», cit., pp. 371 e ss. 53 Cfr. Joachim Schulze-Osterloh, «Die Steuerbilanz als Tatbestandsmerkmal im Einkommen-und Körperschaftsteuergesetz», in Werner Doralt (Hrsg.), «Probleme des Steuerbilanzrechts», DStJG Band 14, Verlag Dr. Otto Schmidt KG, Köln 1991, pp. 124 e ss. Ainda com relevo, sobre a mesma matéria, Cfr. Brigitte Knobe-Keuk, «Bilanz-und Unternehmenssteuerrecht», Otto Schmidt Verlag, 1993, pp. 257 e ss.; Gaspare Falsitta, «Il bilancio di ezercizio delle impresse, Interrelazioni tra diritto civile e tributário», Giuffrè 1985, pp. 5 e ss; S. La Rosa, «Le Norme Generali sui Rapporti tra Bilancio e Dichiarazione» in Victor Ukmar (Coord.), «Il Reditto di Impresa nel Nuovo Testo Único», Pádua 1988, pp. 594 e ss. 54 Que, no caso da lei alemã, ao nível da tributação do rendimento empresarial, se pode encontrar no § 7 da KStG.
  • 19. contabilístico-fiscal deste último lucro começa por legitimar uma expressa referência ao balanço fiscal enquanto Tatbestand55 . Efetivamente, a valoração de que depende a incidência de imposto é concretizada, para efeitos contabilísticos, na sequência do vínculo formal existente entre balanço comercial e “balanço fiscal”56 , entendendo por este último o conjunto de operações levadas a cabo, a título definitivo, por parte do autor material da quantificação, que irá antecipar a tributação. Ou seja, está em causa o próprio sujeito passivo que pode, em circunstâncias normais, antecipar quanto virá a pagar de imposto,57 não só porque conhece os factos que determinam a sua estimativa como também porque lhe caberá efetuar a liquidação, em termos que dispensem uma intervenção corretiva por parte da Administração. Tal não significa que se possa limitar a uma mera verificação dos valores declarados58 e, como tal, que a sua margem interpretativa, bem como as necessidades de tipificação cada vez mais importantes em face de imperativos de praticabilidade e simplicidade, não sejam limites imanentes à capacidade de antecipação ou prognose dos sujeitos 55 Na literatura alemã, Cfr. K. Tipke/J. Lang, «Steuerrecht», 22. Auflage, Otto Schmidt, 2015, pp. 303 e ss.; Brigitte Knobbe-Keuk, «Bilanz-und Unternehmensteuerrecht», pp. 21 e ss.; Joachim Schulze- Osterloh, « Verfassungsrechtliche Grenzen der bilanzsteuerrechtlichen Gesetzgebung - Nettoprinzip, Maßgeblichkeitsgrundsatz, Rückstellungen, Gewinnrealisierung», in Jürgen Pelka (Hrsg.), «Europa- und verfassungsrechtliche Grenzender Unternehmensbesteuerung», DStJG Band 23, Verlag Dr. Otto Schmidt KG, Köln 2000, pp. 67-79; Heinz-Jürgen Pezzer, «Bilanzierungsprinzipien als sachgerechte Maßstäbe der Besteuerung», Werner Doralt (Hrsg.) «Problemes des Steuerbilanzrecht»s, DStJG 14, Verlag Dr. Otto Schmidt KG, Köln 1991, pp. 20 e ss.; Franz Wassermeyer, «Die Maßgeblichkeit der Handelsbilanz für die Steuerbilanz und die Umkehr dieses Grundsatzes», pp. 29 e ss.;Wolfgang Schön «International Accounting Standards – A „Starting Point“ for a Common European Tax Base?», IBFD 2004, pp. 430 e ss.. Por seu turno, na literatura italiana, Cfr. Gaspare Falsitta, «Il bilancio di ezercizio delle impresse, Interrelazioni tra diritto civile e tributário», Giuffrè 1985; «Il problema dei rapporti tra bilancio civile e bilancio fiscale nel progetto di reforma della imposta sulla società (IRES)», RDT, I, 2003, pp. 922 e ss; S. La Rosa, «Le norme generale sui rapporti tra bilancio e dichiarazione (art. 75 commi 3,4,6,76, comma 6)» in Il reddito d’impresa nel nuoro Teste Unico, Cedam 1988, pp. 581 e ss. Na literatura espanhola, Cfr. Pedro Herrera Molina, «Capacidad económica y sistema fiscal, Análisis del ordenamiento español a la luz del Derecho alemán», cit., pp. 409 e ss; Enrique Ortiz Calle, «El Regímen Jurídico Tributario de las Amortizaciones en el Impuesto sobre Sociedades», Colex 2001, pp. 25-29. Já na literatura nacional, especificamente sobre o tema Cfr. J.L. Saldanha Sanches, «Problemas Jurídicos da Contabilidade» in AA.VV, AB VNO AD OMNES, 75 Anos da Coimbra Editora 1920-1995, Coimbra Editora 1998, pp. 475 e ss.; António Moura Portugal, «A Dedutibilidade dos Custos na Jurisprudência Fiscal Portuguesa», cit., pp. 111 e ss; Fernando Castro Silva, «A caminho da autonomia do balanço fiscal?» in J.L. Saldanha Sanches/J. Taborda da Gama/Francisco de Sousa Câmara (Org.), «O Direito do Balanço e as Normas Internacionais de Relato Financeiro», Coimbra Editora 2007, pp. 247 e ss.; Nina Aguiar, «Income taxation and Accounting: Conceptual Tools for Comparing European Systems», Rivista di Diritto e Pratica Tributaria, Cedam/Kluwer, Padua, Núm. 3, 2009, pp. 1291-130. 56 Cfr. António Moura Portugal, «A Dedutibilidade os Custos na Jurisprudência Fiscal Portuguesa», cit., pp. 111 e ss. 57 Cfr. J.L. Saldanha Sanches, «Sobre a Hipótese de um Imposto sobre o Património das Empresas» in «Estudos de Direito Contabilístico e Fiscal», Coimbra Editora, Coimbra 2000, p. 73. 58 Cfr. J.L. Saldanha Sanches, «Manual de Direito Fiscal», cit., p. 372.
  • 20. passivos, regra geral concretizada pela estimativa a que nos referimos, particularmente importante no domínio da dedutibilidade de gastos. Em conformidade, deverá atribuir-se a este último momento uma carga normativa específica, integrado no “balanço fiscal”59 a que se referia Saldanha Sanches, como veículo concretizador “dos objetivos fiscais”60 face ao balanço comercial, do qual se autonomiza por intermédio de valorações fiscais que, sem se refletirem nos juízos contabilísticos prévios, conferem ao aplicador da lei fiscal a possibilidade de oferecer uma valoração distinta da proveniente do reduto contabilístico. Correspondendo a uma especificidade da legislação fiscal61 , o dito balanço fiscal corresponde a uma prerrogativa de adaptação de sentido do resultado contabilístico e com este, do próprio conceito de balanço comercial (e respetivas componentes), que é um conceito tipicamente comercial, à perspetiva do Direito Fiscal62 . Como já anteriormente frisara António Moura Portugal, o balanço fiscal engloba, por isso, “numa mesma realidade a declaração periódica de rendimentos (…) e o balanço comercial, contendo aquela as específicas correções introduzidas no balanço comercial por via das imposições da lei fiscal”63 . Assim, está em causa uma correta valoração dos rendimentos e gastos, à luz do enfoque pretendido pelo princípio da capacidade contributiva64 e, com este, ao lucro real que, para além de ser um direito subjetivo tem ainda uma dimensão simétrica, a partir da qual se constitui como dever, o de não proceder a manipulações de valor, sobretudo nos domínios em que existe maior espaço de decisão para a respetiva determinação, a efetuar de acordo com a respetiva inscrição contabilística, propiciando uma redução da matéria coletável65 . É um facto que a existência de um balanço fiscal, no contexto do atual enquadramento dogmático da relação jurídico-tributária, exige que se atribua ao Direito Contabilístico 59 Cfr. J.L. Saldanha Sanches, «A Quantificação da Obrigação Tributária – Deveres de Cooperação, Autoavaliação e Avaliação Administrativa», cit., p. 366. Ainda, muito em particular, sobre o referido tema, Cfr. Nina Aguiar, «Lucro tributável e contabilidade na jurisprudência dos tribunais tributários superiores», Revista Fiscal, 2, 2008, p. 7-17. 60 Cfr. J.L. Saldanha Sanches, «A Quantificação da Obrigação Tributária – Deveres de Cooperação, Autoavaliação e Avaliação Administrativa», cit., p. 366; Nina Aguiar, «O Direito Fiscal perante as Normas Contabilísticas: uma abordagem metodológica» in Paulo Otero/Fernando Araújo/João Taborda da Gama (Org.), «Estudos em Memória do Professor Doutor José Luís Saldanha Sanches», Volume 4, Coimbra Editora 2011, pp. 1021 -1063. 61 Cfr. Andres Baèz Moreno, «Normas Contables e Impuesto sobre Sociedades», Editorial Aranzadi, 2005, pp. 116 e ss. 62 Cfr. Alberto Xavier, «Manual de Direito Fiscal», Volume I, p. 181. 63 Cfr. António Moura Portugal, «A Dedutibilidade dos Custos na Jurisprudência Fiscal Portuguesa», cit., p. 86 [Nota n.º 164), 64 Cfr. Andrés Baèz Moreno, «Normas Contables e Impuesto sobre Sociedades», cit., pp. 116 e ss. 65 Cfr. J.L. Saldanha Sanches, «Manual de Direito Fiscal», cit., p. 372.
  • 21. uma dimensão normativa autónoma, da qual decorre uma aptidão reconhecida à técnica contabilística para valorar, em termos efetivos e atuais, as flutuações de liquidez patrimonial de cada empresa. Caso se acrescente a importância ocupada pelas especificidades valorativas inseridas pela lei fiscal, o balanço fiscal acaba mesmo por se integrar no antecedente do artigo 104.º n.º2, do qual decorre um critério de autoavaliação da capacidade contributiva das empresas e, ao mesmo tempo, uma vinculação da conduta subjacente à quantificação de imposto. Na atualidade, assiste-se à atribuição de um papel autónomo à ação das empresas para a determinação da respetiva capacidade contributiva, o que exige uma necessária reconceptualização da relação jurídico-tributária, durante muito tempo entendida enquanto prerrogativa de autoridade atribuída à Administração, representando a indisponibilidade do “interesse fiscal”66 e um modelo de ato tributário eminentemente constitutivo, típico da ancestral influência do Direito Administrativo. §3.1 A conceção de Saldanha Sanches e o Tatbestand de Schulze-Osterloh A existência de um balanço fiscal e a sua elevação a Tatbestand já foi objeto de significativos contributos doutrinais, com particular destaque para os provenientes das doutrinas italiana67 e alemã68 que, entre nós, encontraram um acolhimento muito considerável na obra de Saldanha Sanches69 . De entre os referidos contributos destaque-se o de Joachim Schulze-Osterloh que, de forma reiterada, se tem pronunciado a respeito do balanço fiscal como um verdadeiro Tatbestand em matéria de tributação do rendimento, incluindo-se neste último domínio a tributação das empresas70 . O Tatbestand a que se refere Schulze-Osterloh integra uma dualidade de referências, simultaneamente oferecidas pela lei fiscal: por um lado, casos em que o referido Tatbestand não é objeto de alusão expressa e se torna um critério 66 Cfr. Enrico de Mita, «Interesse Fiscale e Tutela del Contribuente», cit., pp. 391 e ss. 67 Cfr. Gaspare Falsitta, «Il bilancio di exercizio delle imprese, Interrelazioni tra diritto civile e tributário», cit., pp. 3 e ss.. Ainda com referências importantes no direito italiano, Cfr. Guido Piccinelli, «Il bilancio di esercizio nella normativa tributaria», CEDAM 2000. 68 Cfr. Joachim Schulze-Osterloh, «Die Steuerbilanz als Tatbestandsmerkmal im Einkommen und Körperschaftsteuergesetz», cit., pp. 123 e ss. 69 Cfr. J.L. Saldanha Sanches, «A Quantificação da Obrigação Tributária – Deveres de Cooperação, Autoavaliação e Avaliação Administrativa», cit., pp. 231 e ss. 70 Cfr. Joachim Schulze-Osterloh, «Die Steuerbilanz als Tatbestandsmerkmal im Einkommen und Körperschaftsteuergesetz», cit., p. 137.
  • 22. normativo não-escrito71 e, por outro lado, casos em que as respetivas prescrições surgem em moldes explícitos, necessariamente escritos72 , como em nosso entender é o caso do artigo 17.º n.º1 do CIRC e da respetiva componente definitória. Ainda a este respeito, é o próprio Schulze-Osterloh a reconhecer as particularidades do primeiro caso, dado que o facto tributário poderá afinal repousar sobre caracteres não escritos ou, pelo menos, num conjunto-tipo de critérios não expressamente formulados73 . Segundo entendemos, é da existência do referido Tatbestand que se pode derivar a carga normativa do dever que imputamos às empresas, à luz de uma interpretação atualista do artigo 104.º n.º 2: embora acessoriamente ligado ao dever fundamental de pagar impostos, o dever em causa tem uma relativa autonomia, já que encontra o seu espaço de intervenção num momento anterior ao do cumprimento do pagamento de imposto. Por ser dotado de uma autonomia face ao dever de pagamento de imposto, poderá inclusive ter associadas sanções fiscais imanentes à estrutura da lei fiscal74 , sendo disso exemplo a sujeição a tributação autónoma das despesas não-documentadas ou a impossibilidade de acesso ao reporte de prejuízos, num ano em que o lucro tenha sido determinado por recurso a métodos indiretos. Por esta via se comprova que o valor normativo do balanço fiscal, independentemente de corresponder ou não a um balaço comercial corrigido, condiciona todo o exercício da atividade quantificadora e, assim, o resultado final da própria liquidação. Pressupondo uma correta valoração da base tributável, que tenha por objeto um princípio de uniformidade (“aplicação da mesma medida na determinação da matéria coletável”75 ) o cumprimento do dever fundamental de pagar impostos exige que a autoliquidação tenha como pressuposto o lucro efetivamente obtido, ou seja, o lucro real. Refira-se, aliás, que a generalidade das empresas (societárias) começa por proceder ao cálculo do lucro que pode ser distribuído aos sócios, momento que é acompanhado 71 Cfr. Joachim Schulze-Osterloh, «Die Steuerbilanz als Tatbestandsmerkmal im Einkommen und Körperschaftsteuergesetz», cit., p. 137. 72 Cfr. Joachim Schulze-Osterloh, «Die Steuerbilanz als Tatbestandsmerkmal im Einkommen und Körperschaftsteuergesetz», cit., p. 137. 73 Cfr. Joachim Schulze-Osterloh, «Die Steuerbilanz als Tatbestandsmerkmal im Einkommen und Körperschaftsteuergesetz», cit., p. 137. 74 Diferentemente do que sucede com as sanções relativas ao incumprimento de deveres conexos com a prestação tributária que, como nota Ana Paula Dourado, encontram expresso reconhecimento no Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT). Cfr. Ana Paula Dourado, «Direito Fiscal», cit., pp. 97 e ss. 75 Cfr. Heinz-Jürgen Pezzer, «Bilanzierungsprinzipien als sachgerechte Maßstäbe der Besteuerung», cit., pp. 6 e ss.
  • 23. pela determinação do resultado que vier a ser declarado e que se diferenciará daquele primeiro, na medida em que da lei fiscal resultem especiais valorações que o imponham. Caso se atente no reflexo que a discricionariedade contabilística pode ter na fidelização ao lucro real, quando cabe aos próprios sujeitos passivos interpretar corretamente as normas valorativas especiais das quais decorrem limitações àquela discricionariedade, regra geral expurgada para efeitos fiscais, facilmente se compreende que a quantificação do lucro por recurso à utilização de técnicas contabilísticas é uma área de necessária confluência entre o Direito Comercial e o Direito Fiscal76 , mas sem que fique colocada em causa qualquer uma das distintas pretensões a que se referem. Em conformidade, recairá sobre as empresas o exercício da quantificação em conformidade com o prescrito na parte final do artigo 17.º n.º1 do CIRC, na qual se encontra uma referência “escrita” ao balanço fiscal, permitindo que o mesmo se constitua como Tatbestand, ou seja, possa ou não excluir, ou até mesmo alterar, realidades quantificadas no balanço comercial que lhe serve de pressuposto e, dessa forma, influir decisivamente numa capacidade mínima de antecipação do montante de imposto a pagar, por parte do sujeito passivo. É por intermédio deste Tatbestand que se poderá justificar que, na generalidade dos casos, já não se possa admitir a exequibilidade de um balanço único (“Einheitsbilanz”), que impossibilitaria uma relação de independência entre a interpretação da lei fiscal e a interpretação da lei contabilística, exigida por conformidade ao próprio artigo 104.º n.º2 da CRP. O que não significa, claro está, que, nos casos em que ao balanço comercial não sejam efetuadas quaisquer correções nos termos da lei fiscal, não se possa falar daquele primeiro como Tatbestand de imposto, pois é nisso que materialmente se torna. Não obstante, por continuarmos a atribuir à intervenção da lei fiscal uma carga normativa autónoma, que decorre da autonomia interpretativa do Direito Fiscal face aos demais ramos de Direito, como o Direito Comercial e o Direito Contabilístico, continuamos a assumir que a natureza do balanço comercial, enquanto Tatbestand de imposto, será meramente incidental, não descaracterizando o balanço fiscal, nos termos a que ao mesmo nos vimos referindo. Até porque, refira-se, a relação de conexão formal a que nos referimos no presente ponto de análise é, efetivamente, entre Direito Fiscal e 76 Cfr. Joachim Schulze-Osterloh, «Verdeckte Gwinnneausschüttungen in Grenzgebiet zwischen Handels-und Steuerrecht», StuW, 2, 1994, pp. 132 e ss. Com particular relevo neste domínio, Cfr. A. Lobo Xavier/Ângela Coelho, «Lucro Obtido no Exercício, Lucro no Balanço e Lucro Distribuível», RDE, VIII, 2 1982, pp. 269 e ss.
  • 24. Direito Contabilístico, sem prejuízo das relações que este último possa revelar face ao Direito Comercial, para outros propósitos. §3.2. O conteúdo do balanço fiscal como Tatbestand Estamos em condições de apresentar o conteúdo do referido balanço fiscal, procurando averiguar qual o respetivo impacto ao nível da determinação do facto tributário de imposto. As conexões existentes entre o processo de determinação do lucro tributável e o Direito Contabilístico são da mais diversa índole, sendo a mais pertinente a que respeita à exigência constitucional de uma tributação das empresas conforme a um lucro real que, por seu turno, assume uma pressuposição de identidade face ao lucro contabilístico. Não obstante assumir tal pressuposição, a lei fiscal prescinde de uma dependência total face ao resultado contabilístico, condição necessária à existência de intervenções suscetíveis de fazer do balanço fiscal uma realidade (quase sempre) distinta do dito balanço comercial, constituindo-se como critério típico de incidência de imposto ou Tatbestand. Se referimos que o lucro deve ser considerado um conceito normativo ou convencional, que tem subjacente uma valoração do legislador relativamente aos instrumentos mais adequados para a distribuição dos encargos tributários das empresas77 , não podemos concordar inteiramente com Saldanha Sanches quando o referido Professor refere que “o balanço fiscal tem como destinatário a Administração Fiscal, que o vai utilizar como instrumento de quantificação do imposto”78 . Ao invés, o balanço fiscal tem agora como destinatário imediato o próprio sujeito passivo, ao qual caberá uma interpretação da lei contabilística e da lei fiscal in abstracto, ou seja, “prévia e independente da “aplicação do direito que a solicitasse”79 , inclusive devendo efetuar as demais correções exigidas pela lei fiscal e às quais o artigo 17.º do CIRC faz expressa referência. Trata-se de uma primazia competencial dos sujeitos passivos sobre a Administração, tanto no que se refere à determinação do lucro tributável como ainda no que se refere às demais correções a efetuar por expressa menção da lei fiscal, tarefa essencial à determinação da matéria coletável, sob o pressuposto de uma fidelização à matéria coletável real, assumindo que deixou de fazer sentido entender esta última como 77 Cfr. J.L. Saldanha Sanches, «Manual de Direito Fiscal», cit., p. 371. 78 Cfr. J.L. Saldanha Sanches, «Manual de Direito Fiscal», cit., p. 373. 79 Cfr. A. Castanheira Neves, «O Actual Problema Metodológico da Interpretação Jurídica», cit., p. 290.
  • 25. expressão de uma simples “intervenção autoritária da Administração par afastar valores declarados pelo contribuinte”80 . É esta circunstância que nos permite afirmar que, no momento atual, a intervenção da Administração já não integra a quantificação strictu sensu, pese embora nela se possa repercutir, tanto no recurso à tipificação como nas intervenções de natureza corretiva. Vejamos agora os elementos constitutivos do balanço fiscal enquanto Tatbestand, em conformidade à perspetiva que procuramos delimitar. §3.2.1 As normas definitórias como normas de incidência em sentido amplo De acordo com a tese que procuramos estabelecer, o primeiro elemento que caracteriza o balanço fiscal enquanto Tatbestand de imposto, são as designadas normas definitórias, responsáveis por traçar o perfil compreensivo dos conceitos cujo recorte operacional se revela essencial à expressão normativa do lucro real, em particular o conceito de lucro tributável. Um exemplo concreto do que se verifica ocorrer nos termos do prescrito pelo artigo 17.º n.º1 do CIRC, em cujos termos o mesmo lucro tributável é composto pela “soma algébrica do resultado líquido do período e das variações patrimoniais positivas e negativas verificadas no mesmo período e não refletidas naquele resultado, determinados com base na contabilidade e eventualmente corrigidos”. Trata-se de um enunciado definitório expresso, do qual se retira a estrutura típica a que sujeitos passivos, Administração e os Tribunais se encontram vinculados, no que se refere ao facto tributário de imposto: um conceito de lucro tributável “oficial” e hétero- vinculante, incompatível com inovações definitórias casuísticas e desprovidas de eficácia externa, essenciais a uma tributação das empresas alicerçada num imperativo de generalidade, como é exigível por um imperativo de tributação pelo lucro real. Relativamente à natureza das normas definitórias, é imprescindível atentar no seminal contributo de Heinrich Rickert81 . Este autor referiu-se expressamente à definição como “o processo de pensamento da formação do conceito, sem referência à transmissão de pensamentos, como instrumento e auxiliar da exposição científica”82 , vindo a concluir 80 Cfr. J.L. Saldanha Sanches, «A Quantificação da Obrigação Tributária – Deveres de Cooperação, Autoavaliação e Avaliação Administrativa», cit., pp. 99. 81 Cfr. Heinrich Rickert, «Zur Lehre Von Der Definition», 1888, pp. 23 e ss. 82 Cfr. Heinrich Rickert, «Zur Lehre Von Der Definition», cit., p. 33.
  • 26. que a definição, como determinação conceptual, “tem que formar os conceitos de tal forma que, a partir destes, se possa construir um sistema de juízos semelhante”83 . Já sobre as definições jurídicas Heinrich Rickert concluiu que, dada a subjacente vontade legislativa, deveriam “definir com precisão e finura os conceitos utilizados nas proposições jurídicas”84 , uma vez que “a proposição jurídica não pode aplicar-se antes dos fenómenos da realidade que lhe estão subordinados”85 . Foi esta circunstância que levou o mesmo autor a sintetizar que “os conceitos utilizados nas proposições jurídicas têm que estar compostos de elementos ou notas tais que qualquer fenómeno, ao qual queira ligar o legislador uma consequência determinada, possa ser compreendido com certeza ao abrigo do conceito que forma parte da proposição jurídica correspondente”86 . Enveredando agora pela exploração da importância jurídico-normativa das definições, particularmente explorado por Alchourrón e Bulygin, começamos por analisar em que medida poderiam albergar, expressa ou tacitamente, normas de conduta87 . E referimo-lo porque entendemos que algumas normas definitórias existentes no CIRC resultam em normas de conduta, que acabam por modelar diretamente a atividade quantificadora, de tal sendo exemplo paradigmático o artigo 17.º n.º1 do CIRC. De facto, inerente àquele preceito está uma norma de conduta que serve de suporte ao artigo 104.º, n.º 2 da CRP, enquanto dever acessoriamente conexo ao dever fundamental de pagar impostos, especificamente consignado ao domínio da quantificação. Voltemos então ao que havíamos referido a respeito das normas definitórias. A conceção de Alchourrón e Bulygin parte do pressuposto de que uma norma definitória obriga a utilizar uma certa definição, daí resultando que a norma definitória e a definição nunca seriam a mesma realidade88 . Convocando estas considerações para a presente análise resultaria que a tributação do rendimento continua a ser influenciada por uma série de elementos estruturais que, encontrando-se estabelecidos ao nível da previsão das regras de incidência, não só afetariam a coleta de imposto, como se 83 Cfr. Heinrich Rickert, «Zur Lehre Von Der Definition», cit., p. 33. 84 Cfr. Heinrich Rickert, «Zur Lehre Von Der Definition», cit., pp. 43-44. 85 Cfr. Heinrich Rickert, «Zur Lehre Von Der Definition», cit., pp. 43-44. 86 Cfr. Heinrich Rickert, «Zur Lehre Von Der Definition», cit., pp. 44 e ss. 87 Cfr. Carlos E. Alchourrón/Engenio Bulygin, «Definiciones y Normas», cit., p. 441. 88 Cfr. Carlos E. Alchourrón/Eugenio Bulygyn, «Definiciones y Normas», cit., p. 441.
  • 27. repercutiriam de forma decisiva na valoração que incide sobre quaisquer ganhos ou encargos89 , bem como despesas ou gastos. Reitere-se que pelos elementos definitórios referimo-nos ao iter conceptual presente na lei fiscal no qual o legislador procede ao esclarecimento do significado normativo de conceitos aos quais o texto constitucional não atribuiu qualquer significação expressa mas que se revela determinante para a compreensão do seu pleno sentido, sobretudo sabendo que o sentido literal das normas fiscais tem uma importância acrescida face ao que sucede noutros ramos jurídicos: a multiplicidade de intérpretes desconhecedores da linguagem jurídica que pretendem ter acesso àquele que é o seu sentido prescritivo é evidente, na medida em que os impostos se impõem como um custo a suportar para a generalidade dos agentes económicos e, por isso, exigem aquilo que Larenz denominou por “mínimo de compreensibilidade geral”90 . Nos domínios em que cada empresa entra em contacto direto com as normas fiscais que lhe surte aplicação, é um dado pressuposto que os termos aí empregues e pertencentes à linguagem jurídica são parte da linguagem natural, mesmo que se utilizem nesta última com menor precisão91 , o que acresce maior importância às componentes definitórias existentes na legislação fiscal. Na medida em que o intérprete terá um acesso imediato à normatividade fiscal, da qual necessita para se poder orientar num ambiente social e económico institucionalizado, a linguagem da lei não pode afastar-se do próprio uso linguístico geral, ao ponto de se tornar um reduto exclusivamente técnico. De onde resulta que a inclusão de conceitos com uma natureza predominantemente técnica exigirá, de forma redobrada, que a sua definição possa adequar-se a esse primeiro momento de contacto com as prescrições que, em matéria fiscal, têm a generalidade dos intérpretes como destinatários. Como garantir uma uniformidade compreensiva a respeito de um conceito como o de “lucro” que, para além ter sentido pré-constitucional, não é objeto de qualquer “adenda” constitucional sobre aquele que deverá ser o respetivo significado jurídico? Perante o silêncio conceptual do texto constitucional, é ao primado do legislador ordinário que cabe a concretização do modelo de tributação das empresas a que alude o n.º 2 do artigo 104.º, e se essa liberdade de conformação foi consagrada pela negativa, 89 Cfr. Karl-Heinrich Friauf, «Verfassungsrechtliche Anforderungen an die Gesetzgebung über die Steuern vom Einkommen und vom Ertrag» in «Steuerrecht und Verfassungsrecht», DStJG 12, 1989, pp. 12 e ss. 90 Cfr. Karl Larenz, «Metodologia do Ciência do Direito», cit., p. 451. 91 Cfr. Karl Larenz, «Metodologia da Ciência do Direito», cit., p. 451.
  • 28. pelo próprio legislador constituinte, deverá também corresponder-lhe a delimitação prévia do significado constitucional que deve presidir àqueles conceitos: o rendimento e, sobretudo, o lucro, à luz de uma carga normativa totalmente autónoma. Num contexto em que os sujeitos passivos são cada vez mais chamados a desempenhar importantes funções em contexto fiscal que outrora eram atribuídas à Administração, revela-se adequado suscitar a influência do discurso de Habermas face à expressão da ação comunicativa no processo de obtenção de acordos entre sujeitos linguística e interactivamente competentes92 , como é o caso da Administração e dos sujeitos passivos que com ela cooperam. Tal significa que os elos comunicacionais gerados entre sujeitos passivos e Administração pressupõem a aceitação de um elo de validade que só pode ser garantido por um “acordo” ou “entendimento comum”. Semelhante acordo terá o significado mínimo nos termos do qual dois sujeitos, linguística e interactivamente competentes, entenderão de forma idêntica determinadas expressão linguísticas93 , onde se incluirão os elementos definitórios constates na lei e essenciais à compreensão do âmbito de incidência objetiva dos impostos. Ao estabelecer que, para efeitos fiscais, o lucro tributável é definido através de uma remissão condicionada para o resultado contabilístico, o legislador procedeu a uma integração do texto constitucional, ou seja, procedeu à integração de uma “lacuna conceptual” entendida enquanto modalidade específica de lacuna de lei, com reflexo para a concretização do modelo de tributação das empresas constitucionalmente consagrado. Trata-se de uma circunstância plenamente justificada. Ao determinar a competência do legislador para proceder àquele desenvolvimento conceptual, o texto constitucional tão pouco esclareceu em que deveria consistir o iter essencial desse desenvolvimento, apenas que o seu resultado deveria fazer coincidir a tributação das empresas com o respetivo lucro real. De facto, poderá não estar em causa a ausência de um dispositivo aplicável ao caso concreto mas sim um critério apto a determinar que norma aplicar e de que forma o legislador acabará por condicionar o próprio juízo de conformidade à CRP, incluindo uma condicionante imposição, à Administração: a de lhe ser vedado o recurso a inovações conceptuais-definitórias em matéria de incidência (inovações definitórias), 92 Cfr. Jürgen Habermas, «Theorie des kommunikativen Handelns», Band II, cit., p. 368. 93 Cfr. Jürgen Habermas, «Theorie des kommunikativen Handelns», Band II, cit., p. 393.
  • 29. perspetivada enquanto limite material à tipificação94 , já que aquelas definições se integram na estrutura essencial dos impostos e, como tal, excluem-se à criação ex novo via administrativa. Vejamos as justificações que presidem a tal vedação. Desde logo, porque tal poderia corresponder a uma forma implícita de recurso a um método de tributação indireta95 que, como se sabe, apenas será conforme a uma tributação pelo lucro real se for considerada a título subsidiário. Por outro lado, porque se revela crucial para a antecipação da própria quantificação de imposto, que agora ocorre por parte dos sujeitos passivos, a componente definitória das normas de incidência deverá integrar um mínimo de densidade exigível às leis fiscais, e que decorre do princípio da legalidade. A questão que suscitamos não está no grau de indeterminação de um conceito como o de lucro, que remete para a determinação do perímetro da “auréola”96 do próprio conceito, antes recai na localização legal do seu “núcleo”97 que, embora seja objeto de referência constitucional, vê prolongando o seu universo referencial para lá do domínio estritamente formal da CRP, fazendo com que à componente da lei fiscal responsável pelo enunciado das normas definitórias possa ser atribuído um estatuto materialmente constitucional, incluindo-as mesmo na respetiva incidência em sentido amplo e, assim, no Tatbestand sistemático de imposto98 . Concretizemos, em termos práticos, as consequências do que acima procurámos evidenciar, com alguns exemplos em que as referidas normas definitórias adquirem relevo: (i) O primeiro exemplo diz respeito ao próprio conceito de lucro, tal como enunciado para efeitos do disposto nos termos do artigo 17.º n.º1 do CIRC. Trata-se de um conceito que, determinado a atividade quantificadora, por intermédio da qual ocorre uma tributação conforme ao lucro real, se vincula a uma definição carregada de normatividade. 94 Sobre os limites à tipificação, Cfr. J.L. Saldanha Sanches, «A Quantificação da Obrigação Tributária», pp. 138 e ss.; Ana Paula Dourado, «O Princípio da Legalidade Fiscal, Tipicidade, Conceitos Jurídicos Indeterminados e Margem de Livre Apreciação», cit., pp. 709 e ss.. Ainda com relevo, em termos gerais, Cfr. Ralf P. Schenke, «Die Rechtsfindung im Steuerrecht», cit., pp. 151 e ss.; Joachim Englisch, «Wettbewerbsgleicheit im grenzüberschreitenden Handel», Jus Publicum 174, Mohr Siebeck, Tübingen 2008, 159 e ss.; Heike Jochum, «Grundfragen des Steuerrechts: Eine verfassungsrechtliche und methodische Einführung für Lehre und Praxi»s, Mohr Siebeck, 2012, pp. 70 e ss. 95 Cfr. Ana Paula Dourado, «O Princípio da Legalidade Fiscal, Tipicidade, Conceitos Jurídicos Indeterminados e Margem de Livre Apreciação», cit., p. 709. 96 Cfr. Philip Heck, «Interpretação da Lei e Jurisprudência dos Interesses», cit., pp. 203 e ss. 97 Cfr. Philip Heck, «Interpretação da Lei e Jurisprudência dos Interesses», cit., pp. 203 e ss. 98 Cfr. Ana Paula Dourado, «Direito Fiscal», cit., p. 99.
  • 30. (ii) O segundo exemplo é o do artigo 15.º do CIRC, que tem como pressuposto o conceito de lucro definido nos termos do artigo 17.º n.º1 do mesmo CIRC. Efetivamente, a ordem estabelecida no artigo 15.º, que pressupõe uma interconexão com o próprio artigo 17.º, não é arbitrária, seguindo uma teleologia - a designada “teleologia operante” que é pressuposto da lei fiscal – que se poderá esquematizar na fórmula matéria coletável igual à subtração de lucro tributável, seguida de prejuízos e benefícios fiscais. De tal forma, apurada a base do imposto, há que considerar os prejuízos e ainda os benefícios fiscais, pois só após estas operações se consegue obter a matéria coletável líquida, à qual será aplicada a respetiva taxa para a determinação do quantitativo de imposto em divida. Trata-se de uma lógica patente nas diversas fórmulas de determinação da matéria coletável, quer se trate de entidades residentes que exerçam ou não, a título principal uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola, quer se trate de entidades não residentes, desde que disponham de estabelecimento estável em território português99 . Como referimos, a enumeração do art.º 15º não é arbitrária, nem pode ficar na disponibilidade do sujeito passivo, antes é fixada imperativamente e em termos sequenciais, ou seja, hétero-vinculantes, não podendo aquele escolher o exercício em que deduz os prejuízos, de forma a não inviabilizar a dedução dos benefícios fiscais.100 Refira-se que, quer no âmbito do Código da Contribuição Industrial, quer do CIRC, a razão da obrigatoriedade da ordem de dedução dos prejuízos de exercícios anteriores, previamente à dedução dos benefícios fiscais, é a mesma, ou seja, primeiro deduzem-se os prejuízos, e restando lucro tributável, seguidamente deduzem-se os benefícios fiscais101 . Assim, não sendo suficiente o lucro tributável para a dedução de prejuízos e de benefícios fiscais, apenas se deduzem os prejuízos, não podendo o sujeito passivo fazer qualquer opção quanto a essa ordem de dedução102 , pois se o fizesse, estaria em causa uma total desfragmentação do valor do lucro do exercício, ou seja, do próprio lucro real. É o que justifica, pois, a inclusão do balanço fiscal no Tatbestand sistemático de imposto que, como refere Ana Paula Dourado, “está relacionado com a arrumação e 99 AcSTA de 30-06-2010, Processo n.º 059/10, 2.ª Secção [Pimenta do Vale]. 100 AcSTA de 30-06-2010, Processo n.º 059/10, 2.ª Secção [Pimenta do Vale]. 101 AcSTA de 17-12-2014, Processo n.º 0612/14, 2.ª Secção [Aragão Seia]. 102 AcSTA de 17-12-2014, Processo n.º 0612/14, 2.ª Secção [Aragão Seia].
  • 31. juridificação da relação de imposto, e permite uma linguagem comum do Direito Fiscal”103 . Resulta do exposto que as normas definitórias são normas utilizadas para o significado de expressões em sentido técnico-jurídico, atualmente encontrando nos sujeitos passivos o destinatário mais frequente e que delas se servem para parametrizar a sua atividade interpretativa, bem como a própria atividade quantificadora, na medida em que acabam por se confundir, num sistema de autoliquidação. A característica essencial das normas definitórias, face a uma definição não-normativa, reside no facto de o significado atribuído ser o que a lei utiliza, regra geral por intermédio de um modal deôntico implícito, o da permissão, para que os diversos intervenientes participem, com êxito, nos vários processos de comunicação de caráter jurídico. Todavia, quando essa definição é o meio que a lei utiliza para que os referidos agentes não só possam participar naquele processo de comunicação, mas o façam de determinada forma, o modal implícito passa a ser o da obrigatoriedade e aquela norma definitória passa a integrar, contrariamente ao que defendem Alchourrón e Bulygin, uma norma de conduta: precisamente o que sucede relativamente aos sujeitos passivos, face ao conceito de lucro, conceito cuja componente definitória condiciona de forma decisiva a atividade quantificadora, como uma norma de conduta suscetível de valoração por parte da Administração. §3.2.2 As normas valorativas especiais ou balanço fiscal strictu sensu É inequívoco que a existência de valorações especiais, corresponde a uma erosão da relação de dependência parcial existente entre Direito Fiscal e Direito Contabilístico, todavia motivada por um imperativo constitucional de tributação das empresas pelo lucro real. De facto, trata-se de uma erosão que é cada vez mais aprofundada pela proliferação de normas valorativas especiais, legitimando a imposição de uma série de dúvidas à designada teoria da unidade do balanço, no quadro de um mais amplo quadro de redefinição da referida relação de dependência parcial104 . É particularmente impressivo que se note, ao falamos de normas valorativas especiais, que está em causa a expressão diferenciadora da valoração fiscal face à valoração contabilística. Por isso refere António Moura Portugal que “o balanço fiscal assume e 103 Cfr. Ana Paula Dourado, «Direito Fiscal», cit., p. 99. 104 Cfr. Tomás Cantista Tavaes, «IRC e Contabilidade – Da Realização ao Justo Valor», cit., p. 188 e ss.
  • 32. representa estas correcções [extracontabilísticas], motivadas por finalidades próprias do Direito Fiscal, tendo como destinatário único o Fisco”105 . Não pode atualmente ignorar-se que as referidas correções deverão incluir-se na própria atividade quantificadora, o que significa que os primeiros destinatários da sua prescrição são os próprios sujeitos passivos. Ao repousar numa expressa remissão para o Direito Contabilístico, a lei fiscal procede a uma receção da técnica contabilística, atribuindo- lhe os efeitos de uma inclusão na normatividade fiscal, sob o espetro de uma relação de dependência parcial106 que cabe aos sujeitos passivos respeitar e oferecer concretização. A consagração desta “regra técnica”107 decorre de uma circunstância interpretativa que requer algum cuidado analítico. Se efetivamente o legislador pretendeu que as suas palavras fossem entendidas num sentido distinto da sua utilização comum, deveria indicar qual seria esse sentido108 e não o fez, assumindo que o sentido em causa é regra geral, o contabilístico, ao remeter expressamente para o lucro, tal como apurado contabilisticamente. De todo o modo, o legislador não se cinge à dependência contabilística relevada pela lei fiscal, estabelecendo uma considerável margem de intervenção desta última para introduzir juízos e critérios especificamente adequados aos interesses aos quais se encontra a lei fiscal se encontra vinculada, o que cada vez mais coloca em causa a hipótese de um balanço unitário (“Einheitsbilanz”), sem mitigação ou suscetibilidade de intervenção autónoma da lei fiscal, o veículo privilegiado de suporte da carga normativa do conceito de lucro, enquanto realidade eminentemente convencional. Verificada a existência de um princípio de conexão formal entre Direito Fiscal e Direito Contabilístico, a “prerrogativa de transformação de conceitos”109 a que cedo se referiu Alberto Xavier não surte efeito automático em relação aos conceitos contabilísticos, apenas se concretiza na medida em que tal se verifique necessário à prossecução de 105 Cfr. António Moura Portugal, «A Dedutibilidade dos Custos na Jurisprudência Fiscal Portuguesa», cit., p. 85 [Nota n.º 164]. 106 Cfr. Tomás de Castro Cantista Tavares, «Da Relação de Dependência Parcial entre a Contabilidade e o Direito Fiscal na Determinação do Rendimento Tributável das Pessoas Coletivas: Algumas Reflexões ao Nível dos Custos», cit., p. 93; Nina Aguiar, «Lucro Tributável e Contabilidade na Jurisprudência dos Tribunais Superiores», Revista Fiscal, Num. 2, Fevereiro 2008, pp. 7-17. Já na literatura alemã, Cfr. Heinz-Jürgen Pezzer, «Bilanzierungsprinzipien als sachgerechte Maßstäbe der Besteuerung», cit., pp. 20 e ss.; Franz Wassermeyer, «Die Maßgeblichkeit der Handelsbilanz für die Steuerbilanz und die Umkehr dieses Grundsatzes», cit., pp. 29 e ss. 107 Pronunciando-se expressamente sobre as referidas regras técnicas, Santiago Nino qualifica-as como “[regras] que indicam um meio para alcançar determinado fim”. Assim, Cfr. Carlos Santiago Nino, «Introdución al Análisis del Derecho», cit., p. 68. 108 Cfr. Carlos E. Alchourrón/Eugenio Bulygin, «Definiciones y Normas», cit., p. 447. 109 Cfr. Alberto Xavier, «Manual de Direito Fiscal», Volume I, cit., p. 181.
  • 33. finalidades especificamente fiscais. Está em causa, portanto, uma prioridade da técnica contabilística como vetor de determinação do valor fiscal de cada facto ou operação e, assim, a primazia de uma interpretação jurídica da lei contabilística que, apenas quando uma especial valoração ou teleologia fiscal o imponham, faça distanciar o interesse fiscal do próprio interesse contabilístico, expresso numa divergência valorativa. Trata-se de encontrar subjacente à relação de dependência parcial entre Direito Fiscal e Direito Contabilístico um princípio de dependência classificatória inerente à composição do lucro contabilístico, pois para que este possa assumir-se como um pressuposto constitutivo do lucro tributável é necessário que ocorra uma prévia subsunção do acervo fático relevante face ao normativo contabilístico aplicável110 , o SNC, subsunção que pressuporá sempre uma correta interpretação da lei contabilística. Daqui resulta uma relação de total independência, ou dependência inversa, das qualificações operadas pela lei fiscal face à valoração contabilística, quando entre elas se verificam diferenças de ordem valorativa consideradas relevantes de um ponto de vista fiscal: qualquer tipo de qualificação fiscal nunca representará uma alteração na valoração e qualificação contabilísticas. Tal aplica-se quer aos casos em que existe uma exceção à conexão formal como, de igual forma, aos casos em que existe uma exceção à relação de dependência parcial entre Direito Fiscal e Direito Contabilístico. Como tal, a prescrição de um modelo da tributação das empresas ao lucro real evidencia um claro reconhecimento da lei fiscal relativamente à competência dos sujeitos passivos perante a respetiva condição enquanto destinatário de deveres constitucionais em matéria de impostos. De entre um semelhante conjunto de deveres, evidencia-se particularmente o dever de efetuar uma quantificação conforme ao lucro real, ou seja, existe um dever de auto- tributação pelo lucro real, que, para além de acarretar deves de cooperação para com a Administração, condiciona e determina os contornos da conduta valorativa subjacente à quantificação de imposto. Imputando à esfera de competências privadas uma responsabilidade em assegurar os interesses a que a lei fiscal se subordina, cabe aos sujeitos passivos o exercício da autoliquidação, em conformidade àquele que foi o lucro real efetivo, o que permite uma explicação normativamente adequada para o caráter meramente eventual de uma intervenção corretiva da Administração: serão tão mais amplas quanto esteja em causa a 110 Cfr. J.L. Saldanha Sanches, «A Quantificação da Obrigação Tributária», cit., p. 200.
  • 34. possibilidade de eleger entre “diversas alternativas de ação”111 no domínio contabilístico-fiscal, fazendo com que esteja em causa uma verdadeira discricionariedade contabilística, algo que, em nosso entender, continua a explicar as reservas continuamente levantadas quanto ao recurso ao justo valor. A vinculação ao lucro real representa um outro pressuposto de que parte a lei fiscal: o de que cada empresa é uma unidade jurídica autossuficiente, que não sofre a influência de fatores externos, solucionando individualmente os conflitos de valoração contabilístico-fiscal que forem desencadeados no seu interior e que, por isso mesmo, respeitem à sua esfera de interesses. Verifica-se, assim, a existência de uma verdadeira autopoiese subjacente ao artigo 104.º n.º2, na medida em que sempre se pressuporá por lucro real no lucro apresentado pelo sujeito passivo, através da respetiva declaração- liquidação112 . Está, por isso, em causa um modelo de autodeterminação da capacidade contributiva que encontra concretização na competência das empresas para determinarem o seu lucro real, não podendo a Administração deixar de se vincular a um procedimento cujo impulso agora a ultrapassa, nem que este último se refira a uma omissão, ou exercício menos diligente, relativamente à própria atividade quantificadora. É igualmente, por isso, que as intervenções desta última serão levadas a posteriori e na medida em que visem promover a concretização do interesse público (ou dos interesses públicos) aos quais se vincula, devendo imiscuir-se de qualquer intervenção na liberdade e autonomia de gestão fiscal da empresa. À mercê da existência de um balanço fiscal, nomeadamente no que respeita à sua componente escrita, a lei fiscal incorpora “as normas contabilísticas com toda a sua indeterminação, flexibilidade ou discricionariedade”113 sendo que, nesta indeterminação reside, inevitavelmente, uma margem para o sujeito passivo manipular o seu lucro e, mais especificamente, a base tributável que lhe subjaz114 . No entanto, perante a existência de um número muito considerável de incentivos à fidelidade ao lucro real – desde a elaboração obrigatória das contas por um técnico de contas e auditadas por um órgão de fiscalização, os quais se tornam responsáveis, juntamente com os administradores da empresa, por obrigações fiscais que por sua culpa tenham deixado de ser cumpridas, até à respetiva apresentação em sede de 111 Cfr. Martin Borowski, «La Restricción de los Derechos Fundamentales», REDC, Año 20, Num. 59, Mayo-Agosto 2000, p. 34. 112 Cfr. Nina Aguiar, «A Lei Fiscal e os Juízos Contabilísticos Discricionários», cit., p. 304. 113 Cfr. Nina Aguiar, «A Lei Fiscal e os Juízos Contabilísticos Discricionários», cit., p. 308. 114 Cfr. Nina Aguiar, «A Lei Fiscal e os Juízos Contabilísticos Discricionários», cit., p. 308.
  • 35. assembleia geral115 – a lei fiscal acaba por aceitar que os juízos discricionários efetuados contabilisticamente são conformes àquele ideário, ou seja, refletem um exercício da competência valorativa dos sujeitos passivos preclusivo no contexto de uma auto-tributação pelo lucro real. Os casos em que o conceito de lucro tributável não segue as prescrições da relação de dependência parcial existente entre normas fiscais e normas contabilísticas justificam-se em face da existência daquilo a que Nina Aguiar se refere como “normas valorativas especiais”116 ou que Tomás Cantista Tavares designa como “normas de ajuste”117 . Comece por se adiantar que rejeitamos a tese de acordo de que as normas valorativas especiais são meros afloramentos dos designados princípios contabilísticos geralmente aceites (“Generally Accepted Accounting Principles”), pois vemos nas mesmas um agregado normativo fiscal que modela a estatuição do artigo 17.º n.º1 do CIRC em conformidade com uma determinação do valor fiscal compatível com o lucro real, o que aliás justifica que, em nosso entender, estejam necessariamente incluídas na reserva de lei fiscal, para efeitos do disposto no artigo 103.º n.º 2 da CRP. Tal deve-se a um conjunto vasto e heterógeno de motivações. De todo o modo, aquela que mais nos interessa neste momento prende-se com o facto de, ao se integrarem na quantificação, tornam-se dispositivos que os sujeitos passivos devem conhecer e aplicar devidamente, reconhecendo-se, por isso que, à semelhança de outros elementos essenciais da lei fiscal, condicionam de forma determinante a sua capacidade de entendimento e previsão, relativamente ao montante de imposto a pagar. As referidas normas valorativas especiais poderão dividir-se em três grandes categorias que, doravante, passaremos a analisar, na especialidade. §3.2.2.1 As normas de mensuração fiscal como Fisckalzwecknormen Seguidamente, focar-nos-emos nas normas de mensuração fiscal (“Fisckalzwecknormen”)118 , ou seja, normas com propósito essencialmente creditício, que têm por vocação atingir o desiderato principal da generalidade dos sistemas de tributação, a maximização na obtenção de receita. 115 Cfr. Nina Aguiar, «A Lei Fiscal e os Juízos Contabilísticos Discricionários», cit., p. 310. 116 Cfr. Nina Aguiar, «A Lei Fiscal e os Juízos Contabilísticos Discricionários», cit., p. 310. 117 Cfr. Tomás Cantista Tavares, «IRC e Contabilidade – Da Realização ao Justo Valor», cit., pp. 181- 183. 118 Cfr. Klaus Tipke, «Die Steuerrechtsordnung», cit., p. 77.