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O FIM DO TRABALHO, UM MITO DESMOBILIZADOR
Publicado no CEPAT Informa nº 44/1998
O sociólogo Robert Castel, diretor de estudos do Centro de Movimentos Sociais na Escola de Altos Estudos Sociais de Paris, é
autor do livro As Metamorfoses da Questão Social. Uma crônica do salário, Ed. Vozes, 1998.
Ele se posiciona contra os que diagnosticam o fim do trabalho e mostra como este constitui sempre o modo dominante de
inserção social. Segundo ele, é no quadro da renovação da sociedade salarial que se deve pensar a luta atual contra o
desemprego e a precarização.
O presente texto está sendo publicado num livro coletivo, Le Monde du Travail
e no Le Monde Diplomatique de setembro de 1998, p.24-25.
Os subtítulos são nossos.
Interrogar-se sobre a centralidade do trabalho, é, em grande parte, fazer um diagnóstico sobre a mudança e o futuro
da sociedade salarial. Pois é neste tipo de formação social que o trabalho, sob a forma de emprego, tem ocupado uma
posição hegemônica. Não somente porque o emprego assalariado era largamente majoritário, Mas também porque
ele era a matriz de uma condição social estável que associava ao trabalho as garantias e os direitos.
Sociedade Salarial
Pudemos falar de "sociedade salarial" a partir do momento em que as prerrogativas prioritariamente relacionadas
com o trabalho salarial protegiam contra os principais riscos sociais, não somente os trabalhadores e suas famílias,
mas também os não-assalariados e a quase totalidade dos não ativos. Este era o núcleo do "compromisso social" que
culmina no começo dos anos 70, num certo equilíbrio, certamente conflitual e frágil, entre o econômico e o social,
isto é, entre o respeito das condições necessárias para produzir as riquezas e a exigência de proteger aqueles que as
produzem.
Que é feito disso, hoje? Todos estamos de acordo na constatação que assistimos, depois de vinte anos, à degradação
deste tipo de regulação. Mas qual é a amplidão desta degradação? Podemos afirmar, como se tornou moda, que nós
estamos quase "saindo" da sociedade salarial? (1
)
Nestes últimos anos podemos e devemos falar de uma desagregação da sociedade salarial. Mas a estrutura deste tipo
de sociedade se mantém (ou se mantinha) enquanto que seu sistema de regulações se fragiliza. Trata-se de uma
conseqüência maior da prioridade que começa ser dada, a partir do começo dos anos 70, aos imperativos da
rentabilidade econômica e à apologia da empresa pensada como a única fonte da riqueza social. Os direitos e a
proteção do trabalho são, desde então, percebidos como obstáculos ao imperativo categórico da competitividade.
Sociedade Salarial desestabilizada
A primeira conseqüência destas orientações não consiste, no entanto, no desmantelamento da sociedade salarial. Pois
a desagregação da sociedade salarial se caracteriza pelo aparecimento de novos riscos tornando a relação de trabalho
aleatória. Seguramente, o primeiro risco é o desemprego. Mas há outros riscos que provêm da proliferação de
contratos de trabalho "atípicos": de duração limitada, de tempo parcial, interinos etc. O desemprego de massa e a
precarização das relações de trabalho que se agravam no decorrer da década seguinte, são as duas grandes
manifestações de uma desestabilização profunda das regulações da sociedade salarial.
É necessário, portanto, atualizar, hoje, esta avaliação, e talvez revisá-la. Duas características, pelo menos, parecem
atestar um agravamento da situação. Com a mundialização das trocas, está claro que a hegemonia crescente do
capital financeiro internacional ataque frontalmente os regimes de proteção do trabalho construídos no quadro dos
Estados-nação. Paralelamente, as mudanças tecnológicas em curso parecem questionar a própria natureza da relação
salarial. No limite, a figura do prestador de serviços que negocia ele mesmo, com todos os riscos e perigos, suas
condições de emprego, substitui aquela do trabalhador assalariado inscrito em sistemas de regulação coletiva.
Horror Econômico: discurso catastrofista
Estas constatações alimentam desde algum tempo os discursos catastrofistas sobre o "horror econômico"2
e o fim do
"trabalho assalariado". O diagnóstico da desagregação da sociedade salarial teria que ser substituído pela constatação
do seu desabamento. Esta formação social não teria sido mais do que um parênteses de algumas décadas, que deveria
ser contado já entre os lucros e as perdas da história. Conseqüência prática e política: é tempo de se desfazer desta
1
Sobre esta discussão cf. CEPAT Informa no. 36/1998, p. 16-22.
2
Aqui o autor, certamente, se refere ao livro Horror Econômico de V. Forrester, publicado pela Ed. Unesp, 1997.
referência portadora de nostalgias passadas para começar a construir outros suportes de reconhecimento e de coesão
sociais.
Mas aqui há uma precipitação. Os defensores destas posições juntam duas séries de afirmações que dão curto-
circuito: a constatação, justa, que as relações de trabalho e as relações com o trabalho são cada vez mais
problemáticas; e a extrapolação, falsa, que a importância do trabalho se esfacela inelutavelmente.
86% de Assalariados na França
Primeiramente, mantendo-nos aos fatos e às cifras, o trabalho, e, em primeiro lugar, o trabalho assalariado, continua
a ocupar o lugar central na estrutura social francesa. A proporção dos assalariados na população ativa é exatamente a
mesma (86%) que na metade dos anos 70. Melhor: em 1998, havia no setor privado 155.000 assalariados a mais que
em 1997, ou seja, um aumento de 1,2% em um ano. Nunca se contou, na França, com tantos assalariados quanto
hoje. Curioso "fim do assalariamento"!
Igualmente é uma aventura afirmar que o tempo de trabalho e o investimento no trabalho têm substancialmente
diminuído desde a "crise". Certamente, os empregos novos correspondem, muitas vezes, às ocupações frágeis, de
tempo parcial, enquanto que muitos empregos de tempo pleno são destruídos. Mas as situações de sobre-trabalho
parecem se multiplicar. O desemprego não suprimiu as horas extraordinárias.
Quanto ao investimento no trabalho, as formas novas de emprego exigem muitas vezes uma mobilização maior dos
trabalhadores que a relação salarial clássica. Temos denunciado, e com justiça, a "alienação" do trabalhador na
relação salarial de tipo taylorista. O discurso empresarial moderno exige outra coisa e fortemente, uma disposição
constante e, no limite, uma conversão total à empresa. O medo ser demitido acentua ainda mais este tipo de
sobredeterminação da relação com o trabalho. Sofrimento em relação ao trabalho e angústia de perder seu emprego
são dois componentes atuais importantes da relação com o trabalho".
Procura desesperada pelo Trabalho
Quanto à ausência de trabalho experimentado sob a forma de desemprego, ela é o contrário de um distanciar-se do
trabalho. Basta escutar os desempregados cuja existência inteira é desestabilizada pela perda de um emprego. A
maioria, sobretudo os que já trabalharam, procuram desesperadamente um trabalho, um "emprego de verdade".
Outros, é verdade, especialmente entre os jovens que nunca chegaram a ter um emprego, buscam "outra coisa".
Fazem biscate e alguns bicos daqui e acolá, podendo acontecer que algumas vezes inovem. Mas o custo disto não
permite que se faça disso um modelo de um destino que desejaríamos partilhar com todos e que anteciparia um
futuro melhor. A vida dos que "procuram um emprego, que na melhor das hipóteses é problemática e na pior das
hipóteses é desesperadora", mostra que a importância do trabalho é tanto maior quanto mais ele falta.
Fim do Assalariado? É uma contra-verdade.
Falar de desaparecimento, ou mesmo de fim do assalariado, representa, portanto, do ponto de vista quantitativo, uma
pura contra-verdade. Falar da perda da centralidade do trabalho repousa sobre uma enorme confusão que assimila o
fato de que o emprego perdeu a sua consistência com o julgamento de valor de que ele perdeu importância. A
"grande transformação" que aconteceu nos últimos vinte anos, não é que há menos assalariados, mas – e esta
transformação é decisiva – que aumentou enormemente o número de assalariados precários, ameaçados de
desemprego. A relação com o trabalho também foi profundamente afetada. Mas é sempre sobre o trabalho, que se
tem ou que não se tem, que é precário ou seguro, que continua a se jogar o destino da grande maioria de nossos
contemporâneos.
A Hegemonia do Mercado
É em relação com um diagnóstico deste tipo que é preciso se confrontar, em vez de imaginar ou sonhar de qual será o
lugar e natureza do trabalho em dez ou vinte anos, pois seria necessário ser profeta para o saber. A questão de fundo,
então, torna-se a seguinte: é preciso ou não renunciar a fazer, hoje, do trabalho a frente principal das lutas para
promover amanhã um futuro melhor? A renúncia de fazer do trabalho um desafio estratégico representa um grave
erro, e isto por uma razão decisiva: a importância fundamental do mercado e o problema crucial que coloca a sua
crescente hegemonia do ponto de vista da coesão social.
Podemos ser tentados a relativizar a importância do trabalho. Mas não podemos relativizar a importância do
mercado. Pelo contrário, sua hegemonia se impõe à medida do enfraquecimento das regulações do trabalho. É o que
se observa todos os dias: as instituições do capitalismo financeiro internacional, como o FMI e o Banco Mundial,
ocupam cada vez mais o lugar das instituições jurídico-políticas dos Estados-nações. Ora não se pode pensar um
futuro da civilização sem a presença do mercado.
O Mercado não cria Laço Social
A promoção do mercado é contemporânea da promoção da modernidade a partir do século 18, no momento da saída
de uma sociedade "holista" dominada por relações de dependência entre os homens. Ela é inseparável do surgimento
de uma sociedade de indivíduos e, é necessário ousar dizer, que ela teve uma função progressiva. Mas o mercado não
cria laço social e ele destrói as formas pré-industriais de solidariedade. Isto explica porque os homens, para viverem
positivamente a modernidade continuando a "fazer sociedade" foram desafiados a aceitar o mercado procurando
domesticá-lo. Isto se deu recusando a anarquia do liberalismo e a regressão às formas pré-modernas de Gemeinschaft
(comunidade). A história social mostra com muitas evidências que foram as regulações sociais construídas a partir do
trabalho que promoveram esta domesticação relativa do mercado cujo ápice foi o compromisso da sociedade salarial.
Sociedade toda ela Mercado
Abandonar a frente do trabalho é se arriscar a renunciar à possibilidade de regular o mercado e se encontrar não mais
numa sociedade de mercado (onde nós estamos desde muito tempo), mas numa sociedade tornada mercado de cima
abaixo, inteiramente atravessada pelas exigências a-sociais do mercado. Face a este cenário do pior, quais são os
possíveis suportes para domesticar o mercado?
O certo e o incerto
A extrema dificuldade da conjuntura é que se, por um lado, vemos que a relação salarial clássica está profundamente
abalada, não vemos o que a poderia substituir na sua globalidade enquanto solução credível capaz de suportar os
sistemas de regulação coletivos capazes de afrontar a desregulação imposta pelo mercado. Vemos a multiplicação de
formas degradadas de emprego e também a emergência de iniciativas muito interessantes no setor não mercantil ou à
margem do mercado. Mas elas riscam constituir-se de caso isolados fora do mercado, espécie de reservas protegidas
do mercado, mas sem influência sobre ele. Ora, a hegemonia do mercado ameaça o laço social de maneira geral,
destruindo as relações coletivas de solidariedade.
É possível construir ou reconstruir regulações coletivas não fundadas sobre uma organização coletiva do trabalho,
que não estejam inscritas num regime geral de emprego? Não falta o discurso sobre a cidadania social, mas fazem,
cruelmente, faltam as práticas que lhe dêem um conteúdo real, para que ao menos se mantenha uma definição um
pouco mais exigente da cidadania. Por isso, renunciar de buscar articular esta cidadania com o trabalho, é se arriscar
de deixar o certo pelo incerto.
Pretender que as regulações do trabalho representem ainda a principal garantia da coesão social expõe-me à crítica de
permanecer cego às virtualidades esperançosas de um futuro livre das constrições que dominam a "civilização do
trabalho". Mas é preciso recusar esta oposição entre o futuro e o passado, da utopia libertadora e da fixação sobre as
constrições obsoletas e compreender que existem dois tipos de utopias. Algumas utopias, como aquela do fim do
trabalho, se refugiam no futuro porque elas não esperam mais nada do presente. A utopia arrisca tornar-se, então, o
"sol de um mundo sem sol", que deixa o mundo como está.
Entretanto, o presente é nosso único ponto de apoio para a nossa ação. E se é verdade que o trabalho é sempre a casa
que determina a configuração da existência social da maior parte de nossos contemporâneos, a exigência de combater
a degradação do seu regime permanece o principal imperativo político, a "utopia" daqueles que não se pretendem
dobrar aos ditames dos fatos.
Atualizar o Direito do Trabalho
Não se trata de algo insignificante. Trata-se de atualizar o direito do trabalho para que a necessidade de aceitar uma
maior flexibilidade dos empregos não seja pagada com uma maior precariedade; promover uma redução substancial
dos tempos de trabalho afim de redistribuir o trabalho e a proteção social a ele relacionado, de outra forma do que
por meio do desemprego; consolidar uma cobertura universal dos riscos sociais, inclusive dos novos riscos que são o
risco-precariedade e o risco-desemprego etc.
Enunciar estes imperativos é suficiente para ver que eles não se colocam na perspectiva da conservação do passado
ou da gestão do existente. É necessário antes temer que eles são muito ambiciosos se temos em conta o poder das
estratégias de desregulamentação implementadas pelo capitalismo financeiro internacional. Mas o futuro guarda uma
margem de imprevisibilidade e o pior não é o que certamente acontecerá. Daí que estas orientações são canteiros
abertos aos quais podem se associar todos aqueles que diagnosticam que nossa sociedade está doente de trabalho, o
melhor remédio não é prematuramente fazer o seu enterro.

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  • 1. O FIM DO TRABALHO, UM MITO DESMOBILIZADOR Publicado no CEPAT Informa nº 44/1998 O sociólogo Robert Castel, diretor de estudos do Centro de Movimentos Sociais na Escola de Altos Estudos Sociais de Paris, é autor do livro As Metamorfoses da Questão Social. Uma crônica do salário, Ed. Vozes, 1998. Ele se posiciona contra os que diagnosticam o fim do trabalho e mostra como este constitui sempre o modo dominante de inserção social. Segundo ele, é no quadro da renovação da sociedade salarial que se deve pensar a luta atual contra o desemprego e a precarização. O presente texto está sendo publicado num livro coletivo, Le Monde du Travail e no Le Monde Diplomatique de setembro de 1998, p.24-25. Os subtítulos são nossos. Interrogar-se sobre a centralidade do trabalho, é, em grande parte, fazer um diagnóstico sobre a mudança e o futuro da sociedade salarial. Pois é neste tipo de formação social que o trabalho, sob a forma de emprego, tem ocupado uma posição hegemônica. Não somente porque o emprego assalariado era largamente majoritário, Mas também porque ele era a matriz de uma condição social estável que associava ao trabalho as garantias e os direitos. Sociedade Salarial Pudemos falar de "sociedade salarial" a partir do momento em que as prerrogativas prioritariamente relacionadas com o trabalho salarial protegiam contra os principais riscos sociais, não somente os trabalhadores e suas famílias, mas também os não-assalariados e a quase totalidade dos não ativos. Este era o núcleo do "compromisso social" que culmina no começo dos anos 70, num certo equilíbrio, certamente conflitual e frágil, entre o econômico e o social, isto é, entre o respeito das condições necessárias para produzir as riquezas e a exigência de proteger aqueles que as produzem. Que é feito disso, hoje? Todos estamos de acordo na constatação que assistimos, depois de vinte anos, à degradação deste tipo de regulação. Mas qual é a amplidão desta degradação? Podemos afirmar, como se tornou moda, que nós estamos quase "saindo" da sociedade salarial? (1 ) Nestes últimos anos podemos e devemos falar de uma desagregação da sociedade salarial. Mas a estrutura deste tipo de sociedade se mantém (ou se mantinha) enquanto que seu sistema de regulações se fragiliza. Trata-se de uma conseqüência maior da prioridade que começa ser dada, a partir do começo dos anos 70, aos imperativos da rentabilidade econômica e à apologia da empresa pensada como a única fonte da riqueza social. Os direitos e a proteção do trabalho são, desde então, percebidos como obstáculos ao imperativo categórico da competitividade. Sociedade Salarial desestabilizada A primeira conseqüência destas orientações não consiste, no entanto, no desmantelamento da sociedade salarial. Pois a desagregação da sociedade salarial se caracteriza pelo aparecimento de novos riscos tornando a relação de trabalho aleatória. Seguramente, o primeiro risco é o desemprego. Mas há outros riscos que provêm da proliferação de contratos de trabalho "atípicos": de duração limitada, de tempo parcial, interinos etc. O desemprego de massa e a precarização das relações de trabalho que se agravam no decorrer da década seguinte, são as duas grandes manifestações de uma desestabilização profunda das regulações da sociedade salarial. É necessário, portanto, atualizar, hoje, esta avaliação, e talvez revisá-la. Duas características, pelo menos, parecem atestar um agravamento da situação. Com a mundialização das trocas, está claro que a hegemonia crescente do capital financeiro internacional ataque frontalmente os regimes de proteção do trabalho construídos no quadro dos Estados-nação. Paralelamente, as mudanças tecnológicas em curso parecem questionar a própria natureza da relação salarial. No limite, a figura do prestador de serviços que negocia ele mesmo, com todos os riscos e perigos, suas condições de emprego, substitui aquela do trabalhador assalariado inscrito em sistemas de regulação coletiva. Horror Econômico: discurso catastrofista Estas constatações alimentam desde algum tempo os discursos catastrofistas sobre o "horror econômico"2 e o fim do "trabalho assalariado". O diagnóstico da desagregação da sociedade salarial teria que ser substituído pela constatação do seu desabamento. Esta formação social não teria sido mais do que um parênteses de algumas décadas, que deveria ser contado já entre os lucros e as perdas da história. Conseqüência prática e política: é tempo de se desfazer desta 1 Sobre esta discussão cf. CEPAT Informa no. 36/1998, p. 16-22. 2 Aqui o autor, certamente, se refere ao livro Horror Econômico de V. Forrester, publicado pela Ed. Unesp, 1997.
  • 2. referência portadora de nostalgias passadas para começar a construir outros suportes de reconhecimento e de coesão sociais. Mas aqui há uma precipitação. Os defensores destas posições juntam duas séries de afirmações que dão curto- circuito: a constatação, justa, que as relações de trabalho e as relações com o trabalho são cada vez mais problemáticas; e a extrapolação, falsa, que a importância do trabalho se esfacela inelutavelmente. 86% de Assalariados na França Primeiramente, mantendo-nos aos fatos e às cifras, o trabalho, e, em primeiro lugar, o trabalho assalariado, continua a ocupar o lugar central na estrutura social francesa. A proporção dos assalariados na população ativa é exatamente a mesma (86%) que na metade dos anos 70. Melhor: em 1998, havia no setor privado 155.000 assalariados a mais que em 1997, ou seja, um aumento de 1,2% em um ano. Nunca se contou, na França, com tantos assalariados quanto hoje. Curioso "fim do assalariamento"! Igualmente é uma aventura afirmar que o tempo de trabalho e o investimento no trabalho têm substancialmente diminuído desde a "crise". Certamente, os empregos novos correspondem, muitas vezes, às ocupações frágeis, de tempo parcial, enquanto que muitos empregos de tempo pleno são destruídos. Mas as situações de sobre-trabalho parecem se multiplicar. O desemprego não suprimiu as horas extraordinárias. Quanto ao investimento no trabalho, as formas novas de emprego exigem muitas vezes uma mobilização maior dos trabalhadores que a relação salarial clássica. Temos denunciado, e com justiça, a "alienação" do trabalhador na relação salarial de tipo taylorista. O discurso empresarial moderno exige outra coisa e fortemente, uma disposição constante e, no limite, uma conversão total à empresa. O medo ser demitido acentua ainda mais este tipo de sobredeterminação da relação com o trabalho. Sofrimento em relação ao trabalho e angústia de perder seu emprego são dois componentes atuais importantes da relação com o trabalho". Procura desesperada pelo Trabalho Quanto à ausência de trabalho experimentado sob a forma de desemprego, ela é o contrário de um distanciar-se do trabalho. Basta escutar os desempregados cuja existência inteira é desestabilizada pela perda de um emprego. A maioria, sobretudo os que já trabalharam, procuram desesperadamente um trabalho, um "emprego de verdade". Outros, é verdade, especialmente entre os jovens que nunca chegaram a ter um emprego, buscam "outra coisa". Fazem biscate e alguns bicos daqui e acolá, podendo acontecer que algumas vezes inovem. Mas o custo disto não permite que se faça disso um modelo de um destino que desejaríamos partilhar com todos e que anteciparia um futuro melhor. A vida dos que "procuram um emprego, que na melhor das hipóteses é problemática e na pior das hipóteses é desesperadora", mostra que a importância do trabalho é tanto maior quanto mais ele falta. Fim do Assalariado? É uma contra-verdade. Falar de desaparecimento, ou mesmo de fim do assalariado, representa, portanto, do ponto de vista quantitativo, uma pura contra-verdade. Falar da perda da centralidade do trabalho repousa sobre uma enorme confusão que assimila o fato de que o emprego perdeu a sua consistência com o julgamento de valor de que ele perdeu importância. A "grande transformação" que aconteceu nos últimos vinte anos, não é que há menos assalariados, mas – e esta transformação é decisiva – que aumentou enormemente o número de assalariados precários, ameaçados de desemprego. A relação com o trabalho também foi profundamente afetada. Mas é sempre sobre o trabalho, que se tem ou que não se tem, que é precário ou seguro, que continua a se jogar o destino da grande maioria de nossos contemporâneos. A Hegemonia do Mercado É em relação com um diagnóstico deste tipo que é preciso se confrontar, em vez de imaginar ou sonhar de qual será o lugar e natureza do trabalho em dez ou vinte anos, pois seria necessário ser profeta para o saber. A questão de fundo, então, torna-se a seguinte: é preciso ou não renunciar a fazer, hoje, do trabalho a frente principal das lutas para promover amanhã um futuro melhor? A renúncia de fazer do trabalho um desafio estratégico representa um grave erro, e isto por uma razão decisiva: a importância fundamental do mercado e o problema crucial que coloca a sua crescente hegemonia do ponto de vista da coesão social. Podemos ser tentados a relativizar a importância do trabalho. Mas não podemos relativizar a importância do mercado. Pelo contrário, sua hegemonia se impõe à medida do enfraquecimento das regulações do trabalho. É o que se observa todos os dias: as instituições do capitalismo financeiro internacional, como o FMI e o Banco Mundial, ocupam cada vez mais o lugar das instituições jurídico-políticas dos Estados-nações. Ora não se pode pensar um futuro da civilização sem a presença do mercado.
  • 3. O Mercado não cria Laço Social A promoção do mercado é contemporânea da promoção da modernidade a partir do século 18, no momento da saída de uma sociedade "holista" dominada por relações de dependência entre os homens. Ela é inseparável do surgimento de uma sociedade de indivíduos e, é necessário ousar dizer, que ela teve uma função progressiva. Mas o mercado não cria laço social e ele destrói as formas pré-industriais de solidariedade. Isto explica porque os homens, para viverem positivamente a modernidade continuando a "fazer sociedade" foram desafiados a aceitar o mercado procurando domesticá-lo. Isto se deu recusando a anarquia do liberalismo e a regressão às formas pré-modernas de Gemeinschaft (comunidade). A história social mostra com muitas evidências que foram as regulações sociais construídas a partir do trabalho que promoveram esta domesticação relativa do mercado cujo ápice foi o compromisso da sociedade salarial. Sociedade toda ela Mercado Abandonar a frente do trabalho é se arriscar a renunciar à possibilidade de regular o mercado e se encontrar não mais numa sociedade de mercado (onde nós estamos desde muito tempo), mas numa sociedade tornada mercado de cima abaixo, inteiramente atravessada pelas exigências a-sociais do mercado. Face a este cenário do pior, quais são os possíveis suportes para domesticar o mercado? O certo e o incerto A extrema dificuldade da conjuntura é que se, por um lado, vemos que a relação salarial clássica está profundamente abalada, não vemos o que a poderia substituir na sua globalidade enquanto solução credível capaz de suportar os sistemas de regulação coletivos capazes de afrontar a desregulação imposta pelo mercado. Vemos a multiplicação de formas degradadas de emprego e também a emergência de iniciativas muito interessantes no setor não mercantil ou à margem do mercado. Mas elas riscam constituir-se de caso isolados fora do mercado, espécie de reservas protegidas do mercado, mas sem influência sobre ele. Ora, a hegemonia do mercado ameaça o laço social de maneira geral, destruindo as relações coletivas de solidariedade. É possível construir ou reconstruir regulações coletivas não fundadas sobre uma organização coletiva do trabalho, que não estejam inscritas num regime geral de emprego? Não falta o discurso sobre a cidadania social, mas fazem, cruelmente, faltam as práticas que lhe dêem um conteúdo real, para que ao menos se mantenha uma definição um pouco mais exigente da cidadania. Por isso, renunciar de buscar articular esta cidadania com o trabalho, é se arriscar de deixar o certo pelo incerto. Pretender que as regulações do trabalho representem ainda a principal garantia da coesão social expõe-me à crítica de permanecer cego às virtualidades esperançosas de um futuro livre das constrições que dominam a "civilização do trabalho". Mas é preciso recusar esta oposição entre o futuro e o passado, da utopia libertadora e da fixação sobre as constrições obsoletas e compreender que existem dois tipos de utopias. Algumas utopias, como aquela do fim do trabalho, se refugiam no futuro porque elas não esperam mais nada do presente. A utopia arrisca tornar-se, então, o "sol de um mundo sem sol", que deixa o mundo como está. Entretanto, o presente é nosso único ponto de apoio para a nossa ação. E se é verdade que o trabalho é sempre a casa que determina a configuração da existência social da maior parte de nossos contemporâneos, a exigência de combater a degradação do seu regime permanece o principal imperativo político, a "utopia" daqueles que não se pretendem dobrar aos ditames dos fatos. Atualizar o Direito do Trabalho Não se trata de algo insignificante. Trata-se de atualizar o direito do trabalho para que a necessidade de aceitar uma maior flexibilidade dos empregos não seja pagada com uma maior precariedade; promover uma redução substancial dos tempos de trabalho afim de redistribuir o trabalho e a proteção social a ele relacionado, de outra forma do que por meio do desemprego; consolidar uma cobertura universal dos riscos sociais, inclusive dos novos riscos que são o risco-precariedade e o risco-desemprego etc. Enunciar estes imperativos é suficiente para ver que eles não se colocam na perspectiva da conservação do passado ou da gestão do existente. É necessário antes temer que eles são muito ambiciosos se temos em conta o poder das estratégias de desregulamentação implementadas pelo capitalismo financeiro internacional. Mas o futuro guarda uma margem de imprevisibilidade e o pior não é o que certamente acontecerá. Daí que estas orientações são canteiros abertos aos quais podem se associar todos aqueles que diagnosticam que nossa sociedade está doente de trabalho, o melhor remédio não é prematuramente fazer o seu enterro.