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Uma história sobre ventos e mares



          Igarassu, Janeiro de 2009

         Daladier Lima dos Santos




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Dedicatória



Para meus amores, Eúde, Ellen e Nicolly

       meus familiares, amigos e irmãos

   que são como Jonas no barco da vida

            a crer e esperar pelo Senhor

        de Jerusalém, de Nínive, do mar

                         e de todos nós.




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Prefácio

Num minúsculo lugar do Oriente Médio, perdido entre reinos poderosos, castelos exuberantes
e cidades esplêndidas, aconteceu uma história fascinante comigo. Soa misteriosa e complexa.
Reclama fé para que seja concebida e apreendida em qualquer tempo, época e qualquer lugar.

Ah! A leitura é a porta que abrirá a oportunidade para conhecê-la, com um pouco mais de
profundidade. Sirva-se dela como uma ponte imensa sobre realidades por vezes antagônicas,
unindo-as com suas peculiares e invejáveis características. Este relato lhes servirá como uma
tenaz a permitir pegar nas brasas frescas, recém-saídas do meu cotidiano, sem que seja
necessário queimar-se com o que de incrível representam. Remetendo-lhes no tempo e no
espaço a uma vilinha pitoresca, que foi habitada desde sempre por minha família.

Há muitos personagens por aqui, cada qual com seu trejeito particular, todos muito parecidos
com qualquer um de nós, padecendo sua própria dose de humanidade. Poderia ser você,
poderia ser um amigo, seu irmão, seu pai, sua mãe, poderia ser qualquer pessoa. Não se
desprenda do cenário, ele encerra uma pequena narração emoldurada que possui grande
significado, pois lega verdades tão cristalinas como a água que bebemos. Entretanto, ressalve-
se: ler é uma atividade delicada, mas invasiva. Retira as pessoas de seu recato e as brinda com
crescimento intelectual e espiritual. É um movimento peristáltico, ruminante, que não raro
traz sofrimento, mas ao mesmo tempo engrandece quem dele lança mão.

Não esperaria consenso, seria temerário, até mesmo proibido, à pessoas de livre arbítrio. Não
se tome, contudo, essa permissão como um convite à ignorância. Esta colocação é justificada
pela pressa que reclamamos a tudo que fazemos, e que acaba por ocultar os detalhes do que se
passa ao nosso redor. Histórias dentro de histórias são esquecidas no baú da urgência.
Esquecemos que é necessário dispensar atenção para abstrair realidades, entender os
mecanismos cognitivos, digerir a informação. O que ofereço não é uma nova versão dos fatos
que porventura o leitor conheça, mas apenas um texto de apoio, uma nova moldura
embevecida pela contemplação. Para que dentro do eventual enorme volume de informações
que se tenha, possa ser aberta uma possibilidade para apreensão dos acontecimentos narrados.
Espero que ao fim dela - que não é exatamente um fim em si mesmo, mas uma breve transição
entre realidades distintas - todos nós amadureçamos.

Tenha certeza de que cada palavra escrita estará à procura de um terreno fértil, tanto para a
imaginação de alguém, finita pela natureza limitada do sonhador, quanto para a fé, que cria
degraus eternos. Portanto, que haja deleite em compreender fatos que estão muito além do
entendimento corriqueiro, sem que para isso tenhamos de ser iluminados com alguma graça
sobrenatural, que esteja além dos horizontes possíveis. História que é realmente interessante
deve conter alguma unanimidade, não tanto em termos de definição filosófica, mas no
sentimento de saber, de compreender, mesmo que seja um pouco a cada dia da vida. Afinal,
há histórias que se assemelham a comida para o intelecto, quando as lemos nos recorre o
desejo de voltar lá todo dia para satisfazer nossa curiosidade. E sempre que o fazemos traz
respostas com certeza, mas se houver novas perguntas, elas serão mais bem formuladas e bem
embasadas do que antes.

Jonas, seu amado conservo!



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Capítulo I

Acredite-me, eu sou um profeta, como se diz em minha língua, um navi. Calma, não precisa
ter chiliques com as palavras em hebraico, vá se acostumando às citações estrangeiras já que
estamos num caso internacional. Além do mais, ninguém vai perder pontos na eternidade só
porque não sabe hebraico, não é mesmo?

Um navi é, em termos básicos e rasos, alguém investido de autoridade para falar em nome de
outrem, um porta-voz. Mas, eu não sou um profeta qualquer, do ponto de vista que não
questiona as ordens de quem o envia. Esta, aliás, é para mim uma noção um pouco desfocada,
pertencente ao senso comum da definição do termo. Sou diferente por duas razões principais:
a primeira delas é que sou, provavelmente, o único profeta surgido da Galiléia, esta parte
baixa na porção central de Israel, meu minúsculo país, que quase se perde num globo
terrestre. Esta afirmação derruba um preconceito comum por aqui, segundo o qual nenhum
profeta surgiu daí. É o tipo de idéia que se radica no imaginário popular e ganha força sem
maiores explicações. A outra é que eu me encaixo numa categoria especial, que almeja
questionamentos lógicos e logísticos sobre a missão a ser executada. Aprecio saber detalhes e
pesar suas implicações, saboreando minhas interferências enquanto avanço para o desafio a
mim proposto.

Minha sólida formação religiosa - e educacional, por extensão, pois aqui as duas necessidades
são satisfeitas ao mesmo tempo e no mesmíssimo lugar – me permite conhecer a vida sob um
prisma único. Em conseqüência, no entanto, possuo idéias pré-concebidas sobre muitas coisas
que nos cercam, acabando por me fazer pouco permeável a verdades que estão fora da minha
realidade, que não sejam abarcadas pelo meu, digamos, campo de raciocínio. Este, diga-se de
passagem, está fundamentado num rico conjunto de tradições centenárias que nos foram
legadas por nossos antepassados, algumas das quais estão registradas em nossos livros para a
posteridade. Em resumo, portanto, o que aprendi, aprendi, registro com orgulho qualitativo
sabendo de quem aprendi!

Talvez, esta necessidade de fundamentação, de certa forma peremptória, decorra do acúmulo
de informações que nós, enquanto seres pensantes e autônomos, estabelecemos como uma
prioridade vital, a velha fome por conhecimento, como se nisso consistisse nossa única razão
de ser e existir. E, de certa forma, o é, se partirmos do pressuposto que a vida é uma escola do
nascimento à morte. Porém, ressalvada a hipótese em que o ser fica comprometido se não
sabemos, este comportamento se torna paradoxal à medida que o ignorante tende a acatar tudo
com naturalidade, mas o informado, o estudado, se torna um repentino dono da verdade,
questionando todas as afirmações. Isso, a priori, não é ruim, até porque faz parte do exercício
da nossa humanidade racional, mas quando o questionamento toma um rumo sem fim, sem
propósito, então se perde a lucidez e tende-se à arrogância. Por mais contraditório que possa
parecer, sempre nos dispomos a esse desgaste voluntário, ocupando nosso intelecto numa
teimosia cíclica interminável, da qual não abrimos mão facilmente. É a situação tão bem
retratada por um de nossos sábios reis de enfado debaixo do sol.

Tenho quase certeza que você já foi capaz de vivenciar este problema com uma ou várias
pessoas do seu círculo de amizades ou, talvez - quem sabe sua modéstia pode ser colocada à
parte? - consigo mesmo. Afinal, quem nunca conheceu um amigo que procura estabelecer por
que o céu está tão distante de nós? Por que há nove (ou seria oito?) e não cem planetas no
sistema solar? Qual o sexo dos anjos? Por que fomos criados com dois olhos e não três? Por

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que não conseguimos penetrar na mente dos outros e ler seus pensamentos? Por que não
sabemos o dia de nossa morte? Por que não podemos escolher o dia de nosso nascimento, e
em qual família e local devemos nascer? Enfim, inúmeros porquês de imponderável leveza, o
tipo de informação da qual se pode tranquilamente prescindir para sobreviver sem maiores
sobressaltos, mas as pessoas fazem questão de procurar saber. Nesta ânsia incontrolada por
inquirir e compreender o que está fora de nosso alcance, o desconhecido, uns fazem grandes
descobertas, realizam progressos e acumulam conhecimentos para benefício de todos nós,
para o chamado bem comum, enquanto outros perdem a noção da realidade, tornando-se
loucos. Perde-se, inclusive, a oportunidade de aproveitar o presente.

Esta dualidade inexorável não inibe as pessoas, de forma que cada geração faz suas próprias
perguntas, algumas das quais são apenas versões aprimoradas de outras que já foram feitas
anteriormente. Perpetua-se assim o senso de que o ser humano é um curioso incessante, que
está sempre farejando os comos e porquês da vida, uma excelente e traiçoeira característica
nata já que o inexplicável nos fascina. Porém, o mecanismo funciona como uma faca que
tanto pode ser utilizada para preparar um bom bife, quanto para matar e mutilar alguém. Em
relação ao conhecimento, em alguns casos lamentavelmente, muitos estão dispostos à segunda
opção, preferindo a morte à ignorância.




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Capítulo II

Voltando ao assunto principal de nossa interação literária, é difícil lhe explicar como me
tornei um profeta. Não há fórmulas ou métodos, nunca foi criado um manual detalhado, um
conjunto de regras. O que há mais próximo disso em nossos dias é uma exigência subliminar
de que os candidatos sejam freqüentadores assíduos de uma escola especializada. É fora de
questão, porém, que muitos de nossos maiores profetas jamais freqüentaram tais lugares.
Lembro, num primeiro momento, o nome de Moisés, Daniel e Amós. Particularmente não sei
de qualquer registro de que eles tenham ali estado, mas há uma lista infindável de nomes que
se encaixam perfeitamente neste particular. Muitos dos quais, vale lembrar, totalmente
desconhecidos do leitor comum, pois eles jamais foram citados em algum de nossos livros.
Obviamente isso não desmerece o profícuo ministério que exerceram. Outrossim, um
requisito indispensável é que se receba um chamado divino, e, assim, e somente assim,
alguém se torna um arauto. Esta regra vale tanto para um quanto para o outro grupo, ou seja,
tanto para os que foram às escolas de profetas, quanto aos que não as freqüentam. Tais escolas
são lugares de treinamento, de observação, de mentoria espiritual, e trouxeram ao lume
grandes nomes do nosso povo, portanto, nada tenho contra elas. Lamento apenas que não
tenham sobrevivido aos tempos modernos e tenham sucumbido em meio às tensões dele
decorrentes. Elas foram fundadas por Samuel e seus expoentes mais conhecidos são Elias e
Eliseu. Havia escolas de profetas em várias de nossas cidades, entre elas Gibeá, Gilgal, Ramá,
Betel e Jericó. Para se ter uma idéia de sua dimensão, cem alunos profetas acompanhavam a
refeição com Eliseu, em Gilgal! Gradativamente, no entanto, perderam sua importância,
cedendo espaço após a volta do cativeiro para as sinagogas.

Como ia escrevendo, não é fácil rejeitar um chamado a ser profeta, você não pode escolher
entre ser ou não ser, eis a questão. Uma vez vocacionado, se deve assumir as funções
proféticas, que entre outros requisitos, envolvem a necessidade de estar antenado com o céu,
ansiando saber a vontade divina para as pessoas, para grupos de pessoas e para as nações.
Torna-se necessária, por conseguinte, uma vida de santidade e de perfeita comunhão.

É verdade que também há algum prazer em diferenciar-se, em destacar-se na multidão,
conquistar respeito entre seus pares como um representante divino, mas, cá pra nós, este é um
arremedo simplista, que oculta e dissimula os verdadeiros problemas e obstáculos enfrentados
por nós, que variam dos mais simples aos mais complexos.

Ao contrário do que se possa imaginar, nossa atividade não consta de um show de prédicas no
palco das cidades, um espetáculo para reunir pessoas e sermos aclamados calorosamente pelas
multidões, não somos celebridades! Sequer alguém pode se considerar um intelectual única e
exclusivamente por ser profeta. Não, não nos está reservada a oportunidade de escrever um
livro somente para demonstrar nosso saber, o livro da nossa vida, o resumo de nossa
experiência, isso está fora de cogitação, seria a meu ver muita pretensão. A realidade é que
nossos profetas escreveram seus trabalhos apenas com o intuito de que as gerações vindouras
pudessem conhecer seu conteúdo. Uma prova material do que foi dito e ficou registrado, para
que ninguém se julgue escusado de saber como nortear suas ações. Sem falar que muitos
recorreram a escribas para compilar seus materiais, ainda que isso não descaracterize as fontes
de inspiração, visto que foram ditadas e escritas exatamente como recebidas. Inclusive, se
você ler um desses livros irá perceber que é como se o profeta mesmo o tivesse produzido, vai
sentir a pena e o estilo do próprio autor.


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Bom, tem também a fama. Uma conseqüência do exercício da influência e do poder que
persegue o profeta de perto. Pode mexer com seus sentimentos, a ponto da vanglória invadir
seu coração, e aí, acabou-se toda inspiração e dignidade. Não é difícil isso acontecer, eu diria,
inclusive, que em alguns momentos da nossa história é algo rotineiro. Há muitos de nós que
eram pessoas humildes, cheias de uma graça contagiante, levavam uma vida pia e santa,
reclamavam reformas profundas para endireitar os caminhos tortuosos do nosso povo. Mas,
no auge, foram acometidos deste mal tão mesquinho, e toda graça instantânea que tinham
dilui-se em um matraqueado excêntrico que denuncia seu exagerado amor próprio e falta de
espiritualidade. Um profeta é semelhante ao perfume, quando a essência se perde são traídos
por seu cheiro.

Uma das razões principais que culminaram nessa apostasia sôfrega e delirante foi o suborno,
nem sempre em dinheiro, às vezes em posição social. Muitos foram recebidos como
empregados públicos nas cortes - sabe como é... fartura de comida e conforto, servos e servas
à disposição, tudo isso garantido com a folga dos orçamentos das casas reais - com a intenção
subliminar de que se calassem sob os meneios de seus convivas. Muitos deles foram
incapazes de perceber a manipulação a que estavam se submetendo, e, em troca de ouro e
conforto palaciano, calaram seu divino dom! No livro do Êxodo, nosso povo recebeu uma
advertência muito séria e sombria que, sábia e preventivamente, dizia assim: Também
suborno não tomarás; porque o suborno cega os que têm vista, e perverte as palavras dos
justos (Êxodo 23:8). Esta assertiva prenunciava, com grande margem de antecipação, o
horizonte anuviado que se tornou o ministério profético. Mas todos nós tendemos a esquecer
estas boas premissas, em troca do bem estar passageiro. Por momentos injustificáveis de
prazer e alegria, as pessoas se dispõem a jogar fora as bases mais caras do seu caráter.

No fundo, são oportunidades de afogar as mágoas, de pôr as máscaras, viver a fantasia,
usufruir o momento, celebrar o hedonismo em sua forma mais grotesca. O suborno presta-se a
todas essas coisas, porque cria o ambiente favorável a seu florescimento. Um triste fim,
porém, aguarda quem suborna e quem é subornado porque a farsa um dia acaba, se não for
aqui, o será na presença maravilhosa do Todo-Poderoso, diante de quem todas as coisas estão
nuas e patentes, e sob cuja luz nada se esconde. Aliás, este conceito em nossa língua é bem
mais amplo do que se imagina. Quando nossos livros dizem que alguém é reto, como o fazem
com o patriarca Jó, é porque confrontado sob a luz mais intensa e radiante, está tão
centralizado em sua conduta que não produz sombra em qualquer direção!

Pois bem, como dizia, por aqui não é raro você encontrar profetas nas mesas reais, mesmo que
sejam falsos. Somente para exemplificar o quanto este ato é corriqueiro, o rei Acabe, que
antecedeu Jeroboão II, comia com nada menos de novecentos e cinqüenta deles, e sua esposa
lhes reservava os melhores aposentos e as mais pomposas honrarias. E os que de nossa terra
não puderam ser cooptados, foram paulatinamente substituídos em número por outros trazidos
do reino do pai dela.

Portanto, a fama é dos riscos mais perigosos, mas não é o único, e serve, de certa forma, como
depurador dos que realmente querem seguir o ofício. Os sinceros a evitam e ignoram os
presentes, profetizando não apenas o que interessa, mas o que tem de ser dito.
Consequentemente, a vida se torna um pouco mais difícil para eles. É preciso compreender
que os reis desejam estar ladeados dos profetas, em primeiro lugar, porque há um temor sutil
na população sobre a mensagem divina, e em, segundo lugar, porque necessitam da aprovação
celeste às suas ações. De forma que para sair à guerra, por exemplo, consultam os profetas.
Eles o são, inclusive, para saber qual de nossas tribos deve iniciar a batalha. Ter profetas

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aliados encurtava o caminho, o problema era saber se aquela era mesmo a vontade divina, ou
apenas um apanágio de um amigo, tentando cair nas graças do soberano para obter seus
favores, ou, como se diz por aqui, achar graça, ser favorecido perante alguém. Em decorrência
disso não é surpresa algum rei morrer na guerra, por dar ouvidos a uma falsa mensagem
divina. Obviamente, o falso profeta teria o mesmo destino.

Por outro lado, se você está bem informado do que se passa aqui, sabe que profetas
verdadeiros são um saco de pancadas dos ouvintes, pois nem sempre recebem suas mensagens
de coração e mente abertos, e quando suas predições se cumprem ainda o tornam igualmente
culpado das conseqüências delas decorrentes. Como se eles fossem o autor da mensagem ou
tivessem alguma culpa no que ocorreu a partir dela. Eles são tratados como o penhor da
tragédia, e se arriscam a ficar presos até que ela ocorra, e morram, em seguida, para que
paguem com a vida a mensagem proclamada. Este é o castigo que se lhes reservam por terem
profetizado. Deveria constituir um trunfo, uma glória, um regozijo para os interlocutores
saberem das coisas com antecedência, qual a vontade divina em situações críticas, e outras
coisas que um profeta está apto a revelar, mas não é desta forma que o ofício profético é
encarado. Meu pai - que também era profeta – e muitos dos meus amigos têm colocações
parecidas com as minhas, quanto à dificuldade de desenvolver as tarefas a nós inerentes.
Apesar disso seguimos em frente, correndo todos os riscos para que a missão seja cumprida.




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Capítulo III

No íntimo, eu sei que a dificuldade principal que acomete a quem profetiza de um lado e
quem ouve do outro é lidar com a exposição da verdade. As pessoas, quase sempre, preferem
ficar engodadas em sua própria dissimulação, preferem a mentira para acalentar seus
desencantos e inseguranças, e validar seus procedimentos. Nossos sábios ilustram com uma
proposta interessante esta tensão existencial. Eles dizem que shequer, a palavra para mentira
em hebraico, é composta de três letras com uma perna apenas, igualmente emet, a palavra
hebraica para verdade, possui a mesma quantidade letras e os mesmos sinais massoréticos (a
palavra massorético vem dos massoretas, estudiosos que temiam que a pronúncia correta das
letras se perdesse e criaram um conjunto de sinais para auxílio na leitura da Torá e dos outros
livros de nosso povo), só que todas com duas pernas. Embora as duas palavras tenham os
mesmos sinais vocálicos, e a mesma quantidade de letras, são diferentes em seu significado
final. Assim, a mentira aparenta ser uma verdade, até que esta última prevaleça. A metáfora
da mentira é que ela não consegue perdurar, porque ninguém consegue ficar em pé por muito
tempo, apoiado em apenas uma das pernas. Em suma, para ser profeta não se consulta nem
carne, nem sangue, apenas se aceita o encargo, o ônus e o bônus dele decorrentes, muito mais
aquele do que este. Não há sequer um seguro de vida, e à família resta chorar quando o
profeta morre ou fica inutilizado nas circunstâncias mais descabidas.

Isto posto, tornar-se desnecessário informar que aqui não há muitos ouvidos simpáticos
quando a mensagem é de reprovação ou exortação, e devido ao pecado reinante em meus dias
tenha certeza que ela quase sempre o é. O que significa dizer que se devem esquecer as
recepções calorosas, as tapinhas de aprovação nas costas, os apertos de mão com os sorrisos
nos lábios, pois até mesmo seus amigos e familiares o desprezarão. E desprezo é um dos
presentes mínimos que poderão lhe ofertar com desdém. Muitos conterrâneos meus foram
mortos brutalmente, outros castigados duramente, ouço dizer que lhes foram feitas
barbaridades. Uns foram enclausurados em calabouços escuros, alimentados precariamente,
outros foram condenados ao degredo, sentenciados a ter a vida resumida a pouco mais que
uma vaga lembrança na história, e ainda outros foram obrigados a viver como eremitas,
porque sua aproximação das cidades, aldeias e vilas era encarada como um mau agouro.
Poucos ouvintes cuidam de se arrepender de seus pecados e conformar-se às palavras destes
emissários divinos. Em parte porque uma vida de santidade exige que renunciemos aos
desejos mais convenientes, uma mudança nem sempre bem-vinda.

Relembre-se aqui que muitas das punições impostas aos profetas verdadeiros foram
perpretadas em nome da mesma realeza da qual falamos anteriormente. Reis e nobres
perseguiram e os calaram sistematicamente por medo de suas mensagens, ou porque
contrariavam seus interesses, ou porque não permitiriam ser cooptados, preferindo a morte e o
sofrimento à conivência. Em parte sabemos que há uma preocupação generalizada de que os
atos nocivos dos monarcas sejam expostos, - aquele velho problema do qual falei
anteriormente, o medo de ser testado pela verdade! - esta é apenas uma das razões pelas quais
a classe dirigente repele os pronunciamentos proféticos contrários às suas atitudes. Mas o
povo também tem sua parcela de culpa, mesmo que seja difícil admitir esta realidade. Esta
culpa se evidencia a medida em que gradual e progressivamente as massas se tornam
participantes destes mesmos erros e se afastam da adoração verdadeira. Sacerdotes, reis e
profetas, a tríade da liderança espiritual do meu povo, deveriam conduzir o povo no caminho
correto, punindo os maus exemplos e unindo as forças populares para uma conversão genuína,
no entanto, não é isto que acontece.

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Capítulo IV

Minha narrativa até aqui procura fazer uma pequena acomodação histórica e conceitual, e,
assim, eu poderia ser tomado como um ser nostálgico, mas não adianta ficar acuado, chorando
o leite derramado. Acho uma tremenda bobagem ficar fazendo colocações semelhantes a:
Como era bom em tal tempo! Antigamente era dessa ou daquela outra forma! Foi melhor no
tempo de meu pai! Quando meu avô era vivo havia santos verdadeiros! Em tal momento, as
pessoas tinham mais prazer de ir ao templo! Sinceramente acho preferível tentar melhorar o
presente, já que este retorno ao passado é impossível, resume-se a uma lamentação
improdutiva, sem resultados práticos. Cada geração deve entender que tem melhores, mais
variadas e maiores opções de pecado e santidade, cabendo a cada um de nós escolher quais
caminhos devemos trilhar. Não digo isso ressentido, sou um resignado por minhas
atribuições, mas é que o que eu vou lhe contar exige que seu raciocínio se desprenda um
pouco, absorvendo ou relembrando conceitos esquecidos no desenvolvimento histórico da
religiosidade do meu povo. Esta volta inadiável aos primórdios serve apenas para que você se
situe nos termos do que é necessário à compreensão dos tópicos a seguir, os quais perdem o
sentido se não fizermos tal digressão. Para enfatizar a propriedade desta colocação, eu não sei
por aí, mas aqui já não há muitos profetas, e se não fosse por uma providência divina seria
uma categoria extinta, relegada ao passado de nosso povo. Talvez sejam as duras
conseqüências da missão, talvez seja desleixo, talvez seja bloqueio psicológico, mas o que
realmente ocorre é que eu conheço poucos dispostos a seguir este caminho, e os que a
despeito das dificuldades tentam, ficam a jogar as palavras ao ar. Perdem-se suas vozes em
meio à cacofonia das cidades. Em resumo, os ouvidos de além mar estão intensamente
influenciados pelos novos ventos que sopram aqui, parteiros irresponsáveis de novidades
convenientes. Se tais não sopram aí, cuidado, você pode estar com problemas no seu
anemômetro! Ou seria na biruta1?

Por falar em profetas, cidades e ventos, está em curso aqui uma adoração leve, a gosto do
freguês, aliás, tem sido assim, bem light, desde que Jeroboão, o primeiro, liderou uma revolta
que abrangeu a maior parte dos israelitas, fundando o reino do Norte, isolando Roboão, no
Sul, tornando o reino prometido dividido contra si mesmo. Não desejo me alongar nas razões
que concorreram para tal acontecimento - você poderá pesquisar sobre o assunto em livros
adequados, como as Crônicas dos Reis ou no livro das visões de Ido, o profeta (Você não tem
uma cópia deste último? Que coincidência! Eu também não tenho, estamos quites!) - mas o
motivo básico foi a falta de sensibilidade estratégica de Roboão. Um rei medíocre, cuja única
boa característica era ser descendente de Davi, o maior e melhor rei que tivemos. A julgar por
sua postura, ele achava que isso seria uma prerrogativa para legitimar os maiores abusos. O
povo vivia sobrecarregado pela obrigação de manter o luxo e a opulência da casa do rei, mas,
ao assumir o trono, contrariando todo bom senso, a promessa dele foi de aumentar a carga
tributária e obrigar seu encargo, através de castigos cruéis, nos quais, figuradamente, trilharia
as costas dos seus próprios súditos com escorpiões!

O povo, que já estava escaldado por uma inflação altíssima, provocada pelo excesso de gastos
públicos de Salomão, pai de Roboão, diante de uma promessa tão desumana – desconfio que
não deveria ser reservada nem aos animais – rejeitou seu reinado. Dez tribos e meia se
rebelaram e elegeram Jeroboão como novo rei, que, por sua vez, estabeleceu em Samaria a
capital do reino do Norte, deslocando para lá não apenas um diferencial geopolítico, como
veremos a seguir, mas todo um conjunto de ações estratégicas para desviar a atenção de seu
1
  O anemômetro é um equipamento que permite descobrir a velocidade e a força do vento. A biruta é um
instrumento que estabelece a direção do mesmo
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grupo (as tribos que haviam ficado sob seu comando) de Jerusalém. Esta divisão implicou em
muitas outras de várias ordens, em maior ou menor proporção, umas mais e outras menos
perceptíveis. Uma delas foi tomada com a nítida intenção de evitar a ida do povo judeu, que
vivia ao Norte, à adoração em Jerusalém, capital de Judá, no Sul. Foram colocados dois
bezerros de ouro, um em Dã e outro em Betel, em altares especificamente preparados. Esta
providência intensificou alguns dos problemas espirituais que se desencadearam sobre nosso
povo, não muito tempo depois. Pois, como seria previsível, os bezerros se tornaram os
catalisadores da adoração popular no reino do Norte e o nível espiritual chegou a um estado
generalizado de caos, no qual se devem incluir todas as práticas pagãs reprováveis que
existiam ao nosso redor.




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Capítulo V

Nós estávamos avisados dos perigos desse retrocesso religioso. Quando saímos do Egito,
foram nos dadas ordens severas de que não deveríamos adotar as práticas dos povos cananeus,
nem voltar as dos egípcios, com as quais alguns de nós já estavam familiarizados. Entretanto,
contrariamente aos conselhos mais ponderados, as pessoas passaram a assimilar as crenças
politeístas com suas doutrinas mais absurdas, participando ativamente dos rituais. Adoravam
o sol, a lua, as estrelas, e sacrificavam aos ídolos das nações que nos rodeiam, e como se isso
fosse pouco, sacrificavam seus próprios filhos àqueles. Voltamos, desta forma, aos tempos
dos Juízes, onde cada uma fazia o que achasse correto.

Acerca deste dramático momento da história de nosso povo, dois conterrâneos meus, Oséias e
Amós, tornaram-se proclamadores incisivos e insossos de uma desgraça iminente, que
ocorreria um pouco mais tarde. Eu os considero insossos, não por discordar das palavras
deles, aliás, até tínhamos uma fonte sobrenatural comum de inspiração, o problema é que para
ouvidos indóceis como os que encontrávamos ao nosso redor, palavras de exortação são
consideradas assim, o paladar comunicativo não encontra sabor. Pessoas indolentes, de dura
cerviz, querem mensagens afáveis, carinhosas, de exaltação particular. Aplicam filtros
comunicativos, selecionam a parte que lhes interessa, tornam os conceitos relativos para
justificar seus erros. É uma constatação crítica, que se encaixa perfeitamente no perfil básico
da nossa população. Por falar nisso, ele não muda muito na outra parte do reino, de forma que
praticamente tudo que dissemos até aqui se aplica igualmente ao reino de Judá. Pelo menos é
o que dá conta as notícias que ouço.

O rei Jeroboão II é o monarca que neste momento está a direcionar os rumos de nosso povo,
do lado norte, o que em termos político-administrativos ele o faz muito bem, uma
característica que o distingue dos demais que ocuparam o trono até agora. Décimo terceiro
desde Jeroboão I (ou décimo quarto se você contar com Tibni), estendeu as fronteiras até a
Transjordânia, o que não acontecia desde que Ben-Hadade, rei da Síria, as havia nos
bloqueado anteriormente. Como os assírios, sob o comando de Adad-Ninari, decidiram
subjugá-lo, deixando-o entretido em defender seu próprio território, nós nos aproveitamos da
oportunidade e fizemos nossa retomada. Então, alcançamos um nível excelente de
prosperidade material, que, infelizmente, não se refletia no campo espiritual. O que não é
novidade já que, quase sempre, tendemos a esquecer que toda boa dádiva desce dos céus, e,
quando isso acontece, quando não há esse reconhecimento, nossa gratidão se torna ritualista e
desprovida de sentimentos elevados, um mero sinônimo para ingratidão.

Temos, em resumo, um quadro de problemas religiosos em Israel, ao mesmo tempo em que
temos progresso material inédito, numa demonstração clara que nem sempre um coração
espiritual está rodeado de bens materiais, um ledo engano dos que buscam a prosperidade a
qualquer preço. Nesse ínterim, a Assíria veio crescendo e passa de reles aldeias confederadas
a nação que ameaça o mundo, trazendo em seu bojo uma das primeiras globalizações
qualificadas da história, assunto que retomaremos mais adiante. Os reis passam a temer seu
poderio e crueldade, ao mesmo tempo em que muitos se aliam para fugir da invasão.

A seqüência de acontecimentos que passo a narrar se misturam, quase que abruptamente - já
que não há como não entremeá-los, pois eles se intercalam entre si - no desenrolar dos fatos
que até aqui foram colocados. Tudo começou quando, certo dia, eu recebi uma ordem. Não
um chamado difuso, que poderia ser confundido de alguma forma, carente de predicados

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comunicativos, que permitisse divagações, dúvidas ou mal-entendidos. Detalhes esses que se
tornam mais interessantes à medida que havia, em meus dias, muitos com um nome igual ao
meu, e facilmente poderia ser tida como endereçada a qualquer um deles. Mas não é isso que
aconteceu. O emissor estava bem identificado e distinto, não havia ruídos, a mensagem, bem
clara e curta, me ordenava ir a Nínive, que nestes dias era uma imponente metrópole, cidade-
estado do grande reino assírio, absolutamente desconhecida para mim, exceto pelo relato de
viajantes admirados. Tais pessoas, vezes sem conta, falavam da beleza de suas construções,
enquanto passavam por aqui.

Aliás, os babilônios, os egípcios, os assírios, os gregos, os persas e medos, os hititas, os
amoritas ou amorreus, enfim, todos os impérios poderosos do Oriente Médio, tinham
construções magníficas, algumas das quais prometeram resistir ao tempo, especialmente as
pirâmides-tumbas dos faraós no Egito e os zigurates babilônicos. Os seres humanos tendem a
tais deslumbramentos e os governantes destes impérios capitalizavam sobre esta tendência, à
medida que cada um construía prédios mais imponentes do que outro, numa tentativa
camuflada de sobrepujação dos seus pares.

Uma unanimidade são os castelos, cada vez maiores, e com maior ostentação, talvez, porque
as dinastias pensassem ser eternas. Nós não fugíamos à regra geral, nosso templo era
magnífico e nossa casa real só deixava a dever aos outros no que se refere ao tamanho, tanto
que reis e rainhas de outros países vinham conhecer o arrojo de nossa arquitetura. Somente os
anos seriam capazes de demonstrar a futilidade destas providências. Aliás, neste instante já é
possível observar que muitas destas construções imponentes se tornam em ruínas sob o peso
do tempo, da guerra, das catástrofes naturais, do abandono, e por uma série de outros fatores.
Mas, deixemos as divagações e voltemos ao assunto de que vínhamos falando.




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Capítulo VI

                       Não me pergunte o leitor como ouvi a mensagem, ou seja, por qual
                       meio ela me veio, pois percepção é um dom raro, inerente à fé, um
                       ingrediente essencial para compreender a história que lhe conto, aliás,
                       será imprescindível uma boa dose dela daqui por diante. A partir desta
                       premissa poderia ser um sussurro, uma voz, um trovão, o canto de um
     Cilindro de Ciro  pássaro, uma mensagem escrita - acredite, a escrita já estava bem
                       desenvolvida! - num papiro ou pergaminho, ou numa pequena tábua de
argila, como os cilindros de Ciro, esculpida numa rocha, como as tábuas da Lei de Moisés,
poderia, enfim, me chegar de várias formas e modos. Poderia, inclusive, ser a resposta ao
pedido desesperado de um ninivita, descontente, como eu, com os rumos espirituais de sua
nação. Para ser econômico na minha descrição, simplesmente, a mensagem veio a mim. Este
vir assemelha-se a ser abraçado pelo vento, você não se dá conta de imediato nem da direção,
nem da força.

Num tempo em que os profetas recebem chamados do alto, não lhe deve custar compreender a
dinâmica deste processo, a menos que os problemas dos seus dias apaguem o brilho dos meus.
Compreenda apenas que é como acontecer um evento do destino, vem e pronto, não há como
explicar imediatamente, precisamos revisitar mentalmente a cena várias e demoradas vezes,
para que nos apercebamos dos seus detalhes, com o agravante de que cada vez que o fazemos
novas informações nos vêm. Por qual modo, portanto, não faz muita diferença, pois o
emissor, que daqui a algumas linhas você irá saber quem foi, quando transmite uma
mensagem é um problema para o receptor. Ela se agarra de tal forma ao seu ser, que não se
pode dela desvencilhar, e fica lá, impregnada no seu inconsciente, martelando na sua alma,
não dá sequer para ignorar, fazer de conta que não é com você, passar a responsabilidade para
os outros. Assim não importa se sentimos, se vimos ou se ouvimos, a mensagem vem a quem
Ele quer, e eu garanto que é mais fácil esquecer de si mesmo, do que dela.

Eu sei que se pode questionar que o cenário ao redor é de crise espiritual, conforme dizíamos
há pouco, o que num primeiro momento poderia impedir eventos desta natureza, mas não
podemos esquecer que sempre sobra a reserva técnica, os sete mil que não se dobram a Baal,
não o adoram e não o beijam. Eles estão espalhados em meio à multidão, perceptíveis apenas
por um poderoso elo que os une sobrenaturalmente. Este elo não é uma iniciação esotérica,
apenas para determinados seres elevados portadores de uma aura cósmica, uma constelação
sincrética de membros, ou coisas do tipo. Está disponível a todos quantos queiram dele
participar, bastando para isso buscá-lo de todo coração. Inclusive, é esta sintonia maravilhosa
de crer contra a esperança, em meio a aridez do deserto da vida, que permite vislumbrar fatos
como o que narro. Portanto, sempre haverá alguém a oferecer uma oportunidade para ações
sobrenaturais, a preparar um oásis no meio de um deserto espiritual.

Apenas para que você tenha uma vaga idéia de como era insistente o parto de palavras de que
falo, lembro-me que a primeira frase, quando a mensagem me veio, era: Levanta-te! Assim
mesmo, uma frase de prontidão, semelhante àquela que o comandante dá à sua tropa. Não é
que todas as vezes que eu me levantava, lembrava da ordem. Levantava da mesa, lembrava,
levantava da cama, lembrava. Enfim, quando me levantava de qualquer lugar, lembrava da
ordem a ser seguida. Já pensou na dificuldade de viver assim, acometido por uma premência
que não te larga em momento algum? É..., eu disse que ser profeta não é fácil, a ansiedade se
torna sua amiga em todas as horas - essas colocações talvez façam com que as pessoas sejam

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mais compreensivas em relação ao pedido de Elias para ver a morte, muito embora esta seja,
em última análise, uma atitude difícil de justificar.




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Capítulo VII

Como se exigiria a todo bom missionário, e também por uma questão de meticulosidade,
comecei a reunir os dados disponíveis sobre o destino acertado, coletando esparsamente o que
fosse possível encontrar, já que não existem bibliotecas por aqui. Os poucos livros que temos
discorrem, quase que exclusivamente, sobre a história e a geografia de nosso povo. A maioria
deles versa apenas sobre nossos rituais e leis, sendo livros de natureza intrinsecamente
litúrgica. Invariavelmente possuem um formato difícil de portar. São feitos de materiais que
não resistem o bastante às intempéries, muitos dos quais devem ser recopiados
periodicamente sob pena de se perderem para sempre, como, aliás, já aconteceu com alguns
deles, que não puderam ser repassados para a posteridade. Não existe papel, nem impressão
gráfica, o que quer dizer que as impressões em série devem ser esquecidas. As tintas não são
resistentes o suficiente, e os materiais existentes para se escrever sobre eles se resumem
basicamente às seguintes opções:

a) O pergaminho - feito de couro de animais. O couro era curtido e preparado para que se
   pudesse escrever sobre ele. Não é rara a aplicação da técnica do palimpsesto aos
   pergaminhos, porque estes sendo melhores para a escrita e mais duradouros, são também
   os mais caros. A técnica consiste em lixar o pergaminho, com uma pedra-pomes ou outro
   artefato semelhante, e reaproveitá-lo porque sua tinta anterior se desfigurou. Muitas vezes
   outro texto diferente, e até em outra língua, era escrito no mesmo pergaminho. Noutras
   vezes era o estilo de escrita que seria atualizado. Minha língua passou por diversos
   estágios de desenvolvimento, de forma que estamos numa era em que as letras possuem
   uma forma bem estilizada, mas antes os caracteres possuíam um formato, digamos, bem
   primitivo, diversos palimpsestos refletem estes estágios;
b) O papiro - feito a partir de plantas aquáticas desidratadas trançadas entre si como uma
   esteira, e, em seguida, lixado e untado para facilitar a escrita. Era um material originário
   do Egito e bastante utilizado pelos reis de lá;
c) A argila - na qual se deveria escrever quando ainda úmida, para depois se colocar ao sol
   ou nos fornos das olarias;
d) As pedras - nas quais se escreve em grandes ou pequenos blocos esculpindo com um
   cinzel ou algo semelhante;
e) E a madeira, idem.

A Assíria era longe, não menos que oitocentas milhas, em linha reta, a nordeste da pequena
Gate-Hêfer, minha terra, na tribo de Zebulom, próximo à Nazaré, oito quilômetros a noroeste
do Monte Tabor. Oops! Observem bem este detalhe: oitocentas milhas em linha reta! Como
todos aventureiros dos desertos das Arábias sabem, não há rotas assim por aqui, e por nenhum
canto do mundo de então. Todas as estradas - se é que podemos chamar os íngremes e mal
traçados caminhos do Oriente Médio antigo dessa forma - serpenteiam, ora por desertos e
oásis, ora por rios e montanhas, ora por qualquer outro motivo, inclusive vales e vaus de rios,
cujos trechos devem ser atravessados apenas nos períodos de seca, sob pena de afogamento.
Muitas vezes um acampamento é montado, e os animais dispersos a pastar por vários dias, até
que seja possível a travessia. Infelizmente, ainda não dominamos a tecnologia necessária à
construção de pontes, o que me seria extremamente útil no momento.

Aos viajantes resta unicamente o consolo de saber que indo assim, fazendo voltas e mais
voltas, se chega ao destino desejado. Afinal, é menos trabalhoso tomar o caminho e segui-lo,
chegando aonde se quer, do que ficar tentando consertá-lo. Certamente, neste último caso, a

                                                                                            16
solução é desaconselhável para quem quer realmente chegar a algum lugar. Adicione-se que
não havia mapas confiáveis das rotas, e, muitas vezes, cada viajante tratava de fazer o seu ou
alterar o dos outros. O alívio sobrevém do fato de sabermos que há muitas cidades que estão
nascendo ao redor destas precárias estradas, então, se torna um pouco mais fácil conseguir
orientação e hospedagem, minimizando os riscos de uma empreitada tão longa. É evidente
que não se deve esperar uma acolhida tão imediata, pois muitas destas cidades são habitadas
por estrangeiros, e nossas leis rígidas de higiene e culto nos impedem de hospedar-se com
qualquer pessoa. Pode parecer um pequeno detalhe esmerado, mas nós o levamos muito a
sério.




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Capítulo VIII

                                               Para chegar ao destino proposto pela mensagem, eu
                                               dispunha da antiga rota do caminho que segue por
                                               Damasco, ou a mais distante, pela que passa sucessivamente
                                               por Hamate, Haran e Gozan. Eu não dispunha de cavalos,
                                               nem de camelos, nem carros, que dessem cabo da distância,
                                               sem contar a dificuldade de levar guias, água, comida e
                                               companhia, e os parcos recursos que possuía mal davam
                                               para sair das bordas do Crescente Fértil.
Crescente Fértil, em destaque abrangência do
               Império Assírio  Se você não sabe do que estou falando, se dá este nome à
meia-lua, em forma de arco, onde ficam os países que terei de atravessar. É uma extensa faixa
de terra que vai do Egito ao norte da Líbia, bordejando o Mar Grande, e daí, desemboca no
Golfo Pérsico. Ela abrange quase todos os grandes e médios impérios antigos e em seu
interior floresceram algumas das mais desenvolvidas civilizações. Inclusive, nossos livros
dizem que foi naquela parte do mundo que a humanidade nasceu, já que ali estava o Éden.

Na verdade, eu me encontrava no meio deste arco, mas isto, contrariamente ao que se possa
imaginar, quer dizer que são muitos quilômetros até a terra de Ninrode. Sim..., ia esquecendo
de informar que foi este líder quem fundou Nínive, e outras cidades assírias, como Reobote-Ir,
Calá e Resen. Como já falei anteriormente, de início eles eram apenas uma comunidade de
camponeses e guerreiros rudes, que orientados pelo Código de Hamurabi, rei de Babilônia,
com quem mantinham estreitos laços fraternos, veio a se tornar uma grande potência bélica.
Em termos de porte, provavelmente, a primeira da história.

Uma excelente alternativa seria tomar um navio no porto de Jope, e ir navegando pelo Mar
Mediterrâneo, mas Nínive não é banhada pelo mar. Isto mesmo que você acabou de ouvir, ou
melhor, ler - é... percepção é assim, a gente não sabe, de imediato, se leu, se viu ou se ouviu,
ou todas estas coisas ao mesmo tempo - contrariando a noção comum, Nínive não tem porto
marítimo, nem praia, é banhada apenas por um rio, que se revolve em suas margens sinuosas,
o Tigre, também conhecido como Hidequel, um dos que banhavam o jardim do Éden, daí a
dedução do lugar ser o gênesis do mundo, captou? As cidades principais espraiam-se por suas
margens, tanto de um lado quanto do outro, dependendo intrinsecamente de suas águas, como
de resto dependem todas as nações do nosso tempo, e porque não dizer, ou escrever, todas as
nações de todos os tempos. Aliás, é bom frisar que todas grandes cidades antigas nasceram e
cresceram ao redor de rios e mares. Então, não será necessário muito esforço para deduzir que
a água é um bem básico, pois aglutina os povos vizinhos em suas fontes e caminhos, de
maneira que a dependência dela é completa e vital. Para plantação, para consumo humano e
animal, para higiene, para a preparação de alimentos, enfim para quase tudo. E ela ocorre em
pouquíssima quantidade no Crescente Fértil. Para que você tenha idéia, meu país tem pouco
mais de dois por cento do seu território com água. Esta dependência causa não poucas guerras
e há constantes ameaças de surrupiar territórios dos outros, apenas para se apoderar das fontes
e rios. Com relação à água, temos ainda um outro problema recorrente, é o acesso ao mar. Isso
é importante para os países, pois podem, utilizando barcos, navegar e vender seus produtos
excedentes, organizar uma frota com um exército que chegue mais rapidamente do que por
terra, e, assim, dominar um recurso poderoso e estratégico. Não deixa de ser um motivo
excelente para novas guerras e invasões, afinal, se uma nação não tem acesso ao mar, ela
deveria lutar por isso, e não poucas o fizeram.

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Descartada a alternativa de ir por via marítima, restava a opção de seguir por terra, mas aqui
começam as dificuldades porque no caminho entre mim e Nínive tem o perigoso deserto da
Síria. Eu teria que contorná-lo ou atravessá-lo, e, falando ou escrevendo, parece fácil, mas
para trilhá-lo a realidade é outra.

                              Atravessar o deserto significa combinar as caminhadas com os
                              horários mais adequados, para evitar o calor do dia e amenizar o frio
                              da noite, conviver com animais peçonhentos, fugir de ladrões que
                              conhecem cada palmo dele, ter guias beduínos que o conheçam da
                              mesma forma, subidas íngremes que terminam em vales profundos
 Abecedário acádico-ugarítico
                              repletos de areia e pedras, desfiladeiros perigosos, nos quais um leve
resvalo dos pés pode se traduzir numa queda mortal, além da distância, que com a soma de
todas as variáveis anteriores tende a parecer maior, cobrando um preço muito caro do corpo
de quem insiste em realizar tal proeza. Para os que acham isso pouco, ainda restam as terríveis
tempestades de areia, que ocorrem durante a primavera e o verão, dispostas a mudar o traçado
de qualquer caminho em questão de minutos, ou cobrir um acampamento inteiro, sufocando
os acampados. Era preciso ser um aventureiro e tanto para assumir tamanha façanha e chegar
vivo e inteiro ao destino. No entanto, mesmo com esse item no meu resumo mental, não
conseguia me dispor para a partida. Nem mesmo o palácio de Senaqueribe, do qual falavam
com tanta admiração, despertava minha curiosidade. Falavam em nove mil metros quadrados,
deveria ser soberbo! Eu tinha certeza que a cidade era grande por uma razão bem simples.
Minha língua costuma ser econômica nos adjetivos, e aquele que me enviava se referia a ela
como a yr hagdôlá, a grande cidade. Então, tinha de ser enorme!

Por falar em língua, um outro fator de complicação era que eu
não conhecia nenhum dos três idiomas aparentados utilizados na
Assíria, país de onde meu destino era uma das principais
cidades, ao lado de Assur, Corsabade, Arbela e Calá. Essas
línguas eram o sumério, o acádico ou acadiano e o ugarítico.
Das três, o acádico era compartilhado com os babilônios, com
quem os assírios mantinham estreitos laços culturais, inclusive
em vários momentos da história tiveram reis únicos, e de lá               Escrita cuneiforme
importaram seus códigos civis, como dissemos há pouco. Sua
escrita constava de um emaranhado primitivo de sinais, que se assemelhavam a pequenas
setas verticais e horizontais, lidos em vários sentidos, ao sabor do escriba, apesar das
indicações bem nítidas no texto sobre a direção exigida para o lermos. De certa forma, as três
línguas eram bastante parecidas. É evidente que o sistema de seiscentos caracteres fixos já
representava um progresso espetacular, diante do complicado sistema hieroglífico do Egito,
mas em qualquer dos dois casos você tinha de conhecer para poder utilizar. Mesmo que minha
língua fosse uma prima distante - o hebraico é uma língua derivada do mesmo ramo semítico -
era uma dificuldade e tanto, principalmente, se levarmos em conta a necessidade de
proficiência para falar a um povo desconhecido e ser compreendido razoavelmente. Uma
situação de resolução impossível em pouco tempo. Onde aprender ao menos uma delas? Isso
bastaria para uma comunicação eficiente? Não havia livrarias, nem livros, nem gramática
sistematizada, entrega postal, tradução simultânea, em suma, nenhuma facilidade. Sem contar
que os assírios usavam, quase exclusivamente, a argila e as pedras para escrever. Portanto, um
livro com todas as regras da língua neste formato era, digamos, pesadinho! Imagine um
dicionário? Uma enciclopédia? Um código legal?



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Se, ao menos, eu soubesse uma daquelas línguas poderia mandar uma carta, ou, quem sabe,
um pequeno recado escrito em pedra, papiro ou pergaminho. Mas as correspondências aqui
não são entregues por correios, porque eles, simplesmente, não existem. As cartas são
enviadas por intermédio de parentes e amigos, e, como é presumível, chegam atrasadas,
muitas vezes em anos, porque precisam ser repassadas de mão em mão até o destino final.
Nínive tinha pouco tempo, então, carta nem em sonho. Seria uma opção razoável, mas
ineficaz no momento. Eu creditava esse desconhecimento da língua a uma providência divina,
pois eu seria tentado a repassar esta responsabilidade às mãos de um mensageiro qualquer que
poderia chegar ou não ao destino. Não, não deveria ser assim, eu teria de ir pessoalmente.




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Capítulo IX

Como se isto não bastasse, às dificuldades se juntava o fato de que os assírios eram
politeístas, adoravam a diversos deuses, uns, mais, outros, menos, mas, vários, com certeza. O
que lhe faz deduzir, sem muito esforço, que mais um não faria diferença. Cada rei que
assumia o trono elegia sua própria divindade e a exaltava com templos e cerimônias, em
detrimento de qualquer outro. Suas principais divindades eram Assur, tido como o deus
fundador do império, Sim, o deus-lua, Shamash, o deus-sol, Istar, deusa das estrelas, e Tamuz,
seu marido. Aliás, a tendência politeísta estava bastante enraizada em toda Mesopotâmia, a
terra de entre rios, e as grandes nações da região faziam questão de ter deuses em grande
quantidade. E não só isso, os formatos variavam abundantemente, os escultores e oleiros
procuravam produzir deuses que parecessem com objetos, corpos celestes, pessoas e animais,
mesclando várias de suas características. Lá existiam deuses demais, para todos os gostos e
bolsos, inclusive os de carne e osso - do ponto de vista prático, os mais perigosos. Digo isto
porque os outros, de madeira, pau, pedra, bronze, ferro, prata, ouro, e outros materiais
nenhum mal por si mesmos poderiam fazer. Inanimados que eram não tinham poder algum, a
não ser quando utilizados pelos seus adoradores e sacerdotes para infundir algum medo, por
exemplo, nos outros. Óbvio é que muitas pessoas buscavam neles o remédio para seus males,
e a justificativa para maldições, bênçãos e outras situações, querendo com isso conceder-lhes
os créditos que não lhes eram devidos. Eu, pelo contrário, sou monoteísta radical, portanto,
via dificuldades para que eles redirecionassem este posicionamento.

Muitas dessas pessoas, é bom anotar, possuíam uma fé genuína, apesar de deslocada no objeto
de sua adoração que nada é, outros, porém, tinham a finalidade principal de engrandecer seus
próprios nomes, de alcançar algum status temporário. De qualquer forma, adorar a estes
deuses, produzidos pelas mãos humanas, é uma cegueira inominável. Mas fazer a
demonstração deste problema não é o objetivo desta história, ela ocorre a reboque dos fatos
que serão narrados, e não deixa de ser importante para nossa compreensão de como os
engodos se enraízam facilmente, e de como eu estava enrascado. Somente a história seria
capaz de mostrar como era vã esta deturpada adoração mesopotâmica. Quem sabe, mais
adiante, todos estes deuses passassem a ser apenas um registro histórico, resumidos a uma
citação num livro de arqueologia qualquer? Sem altares, sem adoradores, apenas uma
lembrança de uma civilização remota? O testemunho vivo de que somente um é verdadeiro,
os outros são como a palha que o vento dispersa.




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Capítulo X

Para complementar minha lista de pontos negativos restavam dois, um deles era o conteúdo da
profecia. Era um rolo amargo como fel, sem nenhuma tendência a se transformar em mel.
Aquele tipo de coisa que não se quer que os amigos falem de sua cidade, muito menos um
estrangeiro. Dizia: Em quarenta dias esta cidade será destruída, porque seu mal chegou até
mim! Assim, quarenta dias, secamente, nada de elogios às construções imponentes, aos
templos suntuosos, aos deuses, ao rei, promessas de prosperidade, nada de massagens no ego
ninivita, ao contrário, uma promessa de destruição. Quarenta dias era pouco mais de um mês,
um cálculo que, por sinal, diferia de país para país. Não dava para colher a plantação, não
dava para criar os filhos nascidos, sequer para esperá-los numa gravidez, era um período de
emergência. Era para ontem, para acontecer já, diferente dos sete anos egípcios de José.
Confesso que eu mesmo não ouviria uma colocação dessa natureza de coração aberto, nem
seria fácil compreender seus motivos. É mais que evidente que nós criamos um elo
psicológico muito forte com nossas cidades. É ali que nós nascemos, que crescemos, que
vivemos, que constituímos família, que criamos nossos filhos, onde residem nossos parentes,
é o local no qual convivemos com os amigos, e por estas e outras razões, mais subjetivas, há
um apego instintivo facilmente intuído. Eu tinha certeza que nenhum ninivita gostaria de
ouvir falar de destruição para um local que estava tão arraigado no inconsciente coletivo do
seu povo, muito menos que um deus desconhecido o faria, através de uma mensagem de um
profeta idem.

Utilizando a assertiva acima, todas as teorias de empatia comunicativa cairiam por terra.
Predisposição do ouvinte? Nem pensar. Quem seria levado a ouvir com condescendência uma
afirmação tão ofensiva? Eu raciocinava em cima da criação de um elo nas circunstâncias
iniciais da minha fala, nos primeiros contatos, quem sabe uma dinâmica para quebrar o gelo,
uma ilustração retórica, para depois trazer a mensagem final, mas minha mente se recusava a
percebê-lo. Já despontava por aqui um tipo de diálogo falacioso que procura exaltar o
interlocutor, que se sentindo lisonjeado é golpeado em seguida com o verdadeiro conteúdo do
que se quer dizer. Mas não era ético proceder assim, então fui impedido de utilizar este
recurso pelas minhas próprias convicções. Eu deveria ser objetivo e direto em minhas
palavras, falando o que realmente interessava.

Note-se que, em conjunto com a necessidade de proclamar o juízo que irremediavelmente iria
se abater sobre eles, havia a dificuldade adicional de informar que o pecado do povo assírio
havia subido até os céus. Qual o por quê? Por que meio? Como? De que maneira? Não me
perguntem os assírios! Eu achava difícil explicar, por exemplo, qual a razão pela qual um
determinado deus reivindicava o respeito e a adoração dos ninivitas, quando estes sequer o
conheciam e nem o listavam em seu panteão.

E, por último, mas não menos grave, eu havia aprendido, no cotidiano, a pensar que éramos
um povo exclusivo, com leis únicas, com crenças peculiares, a elite dos terráqueos.
Costumávamos nos assemelhar a uma romã, cuja casca é dura, mas o fruto é doce.
Impúnhamos esta similitude aos que procuravam nossa amizade, dizendo: rompam esta casca
e gozarão de nossa simpatia, como a interpor um enigma. Semelhante à Esfinge do Egito:
decifrem-nos ou serão devorados por nosso desprezo e não receberão nosso afeto. Sabe como
é, quando você floresce tende a esquecer a raiz, que é quem inicia a alimentação da árvore,
em outras palavras, é quem garante a seiva. Flores e frutos ocultam a verdadeira noção de
alimento e sustento, e os ramos tendem à soberba. Eu sempre ignorei a metáfora do mar da

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Galiléia. Recebendo as águas que descem do Hermon, através de seus inúmeros riachos e
corredeiras naturais, ele as passa adiante através do rio Jordão, deixando um rastro esplêndido
de água potável, vida, peixes e beleza além de beneficiar as pessoas em seu entorno e tornar
florida uma trilha árida. O Mar Morto recebe estas mesmas águas, mas as retém, tornando-se
infrutífero, num processo autofágico e destrutivo. Em outras palavras, a água, por si só, é
incapaz de fechar o ciclo de vida ali, ficando a mercê do modo pelo qual rio e mar a utilizam.
Aquilo soava como um prenúncio de desgraça para nós, e eu, como todo judeu que se preza,
preferia esquecer tal analogia. Portanto, qualquer tentativa que tendesse ao proselitismo não
era vista com bons olhos.

Nós perdíamos tempo conjeturando em cima de hipóteses tais como: E se o povo de tal país
se convertesse a nossa religião? Seríamos obrigados a rever nossas teses maniqueístas, recebê-
los em nosso templo, ensiná-los nossos rituais, transmitir-lhes nossas tradições. Não nos
parecia uma possibilidade muito simples que o judaísmo pudesse ser assimilado por qualquer
pessoa. Isso sem contarmos que a proposta nesse instante era de que uma grande cidade, de
mais de cento vinte mil pessoas, fosse convidada a fazer uma mudança tão radical.




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Capítulo XI

Comparando nossa história com a da Assíria, o que mais nos poderia assemelhar seria a
grande misericórdia que nos inundou como um tsunami, arrastando-nos através de vagas
impenetráveis para mãos eternas e invisíveis. Não desejava a mesma boa sorte e bondade para
eles. Eu não amava aquele povo a ponto de fazer um sacrifício tão grande, apenas pelo prazer
de vê-los se arrependerem e repartirem conosco nossos bens espirituais. Eu ignorava,
inclusive, que foram estrangeiros fenícios que ajudaram a construir nosso templo, imprimiram
boa parte do estilo que nossos monumentos possuíam, além dos objetos neles contidos, e
forneceram muitos dos seus materiais. Relutei em lembrar que foi o rei Hirão, quem forneceu
boa parte, senão toda, da madeira do templo e do palácio real. Até mesmo o papiro e o
pergaminho que utilizávamos para copiar nossa Tanakh, por exemplo, foram criações
importadas dos fenícios e egípcios. Além disso, dos primeiros nós importamos a escrita e o
alfabeto, e até o estilo, que sobejamente se assemelhava ao nosso. E foram estes últimos que
nos acolheram num momento de fome, muito embora tenham nos escravizado anos depois.

Ou seja, nossa dependência e importação de valores culturais estrangeiros eram muito maiores
do que poderíamos imaginar, e, portanto, nenhum mal específico poderia advir do contato
com eles, exceto, se nós mesmos nos dispuséssemos a ser influenciados, afinal, não é o que
entra que contamina o homem, mas o que sai. Este contato, por sinal, era inevitável, porque
nosso país fica numa rota de passagem entre as grandes nações do norte e o Egito, ao sul, que
viviam numa alternância sem fim de interesses que iam da guerra ao comércio, passando pela
cultura. Todo dia nosso país assiste à passagem de uma caravana advinda de um país
diferente, e nossa cegueira impedia de enxergar as vantagens deste intercâmbio. Bastava que
nos resguardássemos de quaisquer envolvimentos com as religiões destes povos - o que de
fato parece simples, mas não é - e aproveitássemos a oportunidade para anunciar a nossa, para
promover um debate espiritual saudável, para esclarecer nossas posições no assunto. Estar ali,
na encruzilhada do mundo, era uma oportunidade única, que nós desperdiçávamos de forma
voluntária e intencional todos os dias. Deveria haver algum propósito nesta providência, mas
não tínhamos qualquer interesse em descobrir qual era.

Existe uma história bem interessante entre nós que busca fazer uma analogia do
relacionamento divino com os gentios e os judeus. Ela conta que certo homem tinha dois
filhos. O mais novo, representante da ingenuidade juvenil e dos gentios, dirigiu-se a ele e
disse-lhe: Dá-me a minha parte da herança, pois desejo conhecer o mundo. O pai, apesar do
coração destroçado, repartiu a herança e deu-lha conforme seu pedido. O filho gastou toda
riqueza - que na verdade fora amealhada por seu pai - que representava sua parte na herança,
com os prazeres deste mundo, na procura por satisfazer seus desejos. Mas, mal acabara seu
dinheiro, seus amigos se afastaram, deixando-o triste e só. Nessa condição encontrou emprego
numa casa a cuidar de porcos, uma função que para nós era inaceitável. Desejou, então, voltar
à casa paterna, e para isso tomou o caminho de retorno tão logo quanto pôde. Quando ainda
vinha longe o pai, que todo dia sonhava em revê-lo, reconheceu seu caminhar, e tomado de
alegria correu ao seu encontro, o abraçou e beijou, como se nada tivesse acontecido. Mandou
que matassem o novilho cevado, pusessem nele a melhor roupa e preparassem uma grande
festa. Mas, o filho, que simbolizava o povo judeu e ficara em casa, irou-se profundamente e
argumentou com seu pai porque aquela festa nunca tinha sido feita para ele. Ao que o mesmo
retrucou: Você sempre esteve comigo, mas seu irmão estava perdido e foi achado, estava
morto e reviveu. E todos se alegraram. Nós não queríamos compreender as implicações desta
parábola para nosso cotidiano. Desfrutávamos diariamente da companhia do pai, sem nos

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darmos conta da dimensão desse relacionamento, apenas o olhávamos pelo aspecto
exclusivista, mas ele possuía outro filho, a quem por uma questão de justiça cumpria amar
como pai e a nós como irmão!

Por falar em estrangeiros, a fama guerreira dos assírios era
terrível. Para o rei, por exemplo, conquistar os países
vizinhos era uma determinação divina improrrogável, era a
missão principal para a qual eram constituídos pelos deuses,
e quando nelas morriam eles eram sumamente glorificados,
e ganhavam o direito às maiores honrarias na condução de           Alto relevo de guerra assíria
seus féretros. Os historiadores dão conta de que quando
invadiam uma cidade, montavam um requintado espetáculo macabro. Amontoavam os mortos
numa grande pilha de cadáveres para assustar as cidades e países vizinhos. Os que ficassem
vivos sofriam uma morte horrível, eram empalados, ou seja, eram espetados, pelo ânus, em
vigas de madeira, e ficavam ao sol e à chuva, até morrerem. Com certeza, era um aviso
dramático para quem passasse por ali, mas em termos de crueldade isso ainda era pouco.
Conforme as crônicas da monarquia assíria, preservadas para o futuro nas inúmeras plaquetas
de barro que os reis mandavam cunhar2 para proclamar seus feitos, um de seus reis,
Salmanazar I, capturou, certa vez, quatorze mil soldados inimigos, e, para certificar-se que o
serviriam sem reservas, tirou-lhes a visão! Eram cruéis ou não?




2
    Daí nos chegou o termo cuneiforme.
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Capítulo XII

Eles também desenvolveram um modo peculiar de enfraquecer as possíveis resistências.
Quando um país era invadido, os exércitos conduziam povos de outras nações e as faziam
habitar nas cidades conquistadas. Assim, mesclando os habitantes, praticamente eliminavam
as possibilidades de revolta. Em resumo, temos uma grande cidade, cujo histórico de maldade
de seu povo criava dificuldades para compreender a necessidade de pregar-lhe uma boa nova.
Estar sendo enviado a Nínive era uma prova do dom gratuito da bondade divina, a todos os
males noticiados o prêmio da oportunidade de misericórdia. Para mim, era uma situação
inconcebível, não julgava aquele povo merecedor de tão grande deferência.

Deus, por sua vez, não me disse como chegar, - lembram que eu sou detalhista? - nem como
me guiaria a exercer sua vontade, sequer me ofereceu um mapa. Sentia-me, desta forma,
desobrigado - puxa vida, acabei dizendo quem era o emissor da mensagem, queria deixar isso
para mais tarde. À medida que sobravam inúmeros pontos negativos, o cerco se fechava ao
meu redor obrigando-me a tomar uma iniciativa. Como não percebia nenhum motivo para
partir, fechava-me num casulo carrancudo de apropriação indébita. A mensagem não era
minha, nem era para mim, nem para meu povo, mas, eu recusava levá-la a quem de direito, e
me enchia de motivos para justificar esta decisão. Ainda que tais motivos não fossem ideais,
nem justificáveis, eu achava que poderia fazer isso, que tinha uma condição implícita de falar
apenas se eu quisesse, já que eu era o portador da mensagem. Eu saberia, mais tarde, que isso
era um grande engano.

Entretanto, o desafio continuava e da urgência da mensagem eu não conseguia fugir, ficava
sutilmente ecoando nos afazeres do dia-a-dia. Até parecia ter personalidade, se assemelhava a
ter um espinho na carne esbofeteando minha vontade, que eu insistentemente orava para que
se apartasse de mim, mas não conseguia. Decidi que deveria tomar uma atitude definitiva,
para quebrar este ciclo estressante. Uma idéia aflorou na minha mente assaltada por milhões
de pensamentos conflitantes: E se eu fugisse? Nossa história continha exemplos de pessoas
que fizeram isso, com um certo grau de sucesso. Moisés, por exemplo, quando fugiu da morte
pelas mãos de Faraó, rei do Egito. Lembra? Após matar um de seus súditos que agredira um
israelita? E Jacó, quando traiu Esaú, seu irmão, com um prato de lentilhas, e, em seguida,
enganou Isaque, seu próprio pai, com o couro de animais nos braços e pescoço? Sendo
obrigado a fugir para que seu irmão não o matasse? Ou como Elias quando matou
corajosamente tantos profetas e depois fugiu de Jezabel, mulher de Acabe?

No entanto, havia uma variável importante: Onde? Para perto não dava, já havia tentado fugir
camuflado nas ocupações cotidianas, sem sucesso. Tinha que ser para bem longe, os confins
conhecidos pelos navegantes parecia razoável, era o horizonte máximo que eu poderia divisar.
Para colocar tal plano em prática, a melhor coisa a fazer, sem dúvida, seria tomar um navio.
Passagem barata, acomodações razoáveis, opções de destino incontáveis, quem sabe alguns
parentes do ramo, ou mesmo amigos, enfim, uma decisão extremamente adequada para o
momento, uma alternativa moderna para escapar. Até surgia a possibilidade de ir a lugares
mais distantes do que eu imaginava, a partir do destino inicial, quem sabe uma conexão para a
Índia!?

Neste intento, desci a Jafa - ou Jope, desculpe a salada de nomes, mas eu precisava me
acostumar a descrever as palavras em outras línguas, se quisesse ir, obviamente, apesar de
esta ser uma possibilidade remota. Aliás, Jope, como todo porto, é um local cosmopolita,

                                                                                           26
acostumado a um palavreado entremeado de sotaques dos mais diversos cantos de nosso
planeta - e..., surpresa! Um dos destinos disponíveis era Társis, nas proximidades dos
penhascos de Gilbratar, na Espanha, praticamente no meio do Mar Mediterrâneo. O navio
seria guiado pelos experientes marinheiros fenícios, que conheciam detalhadamente aquelas
rotas marítimas. Afinal, desde tempos imemoriais, eles comerciavam com todas as cidades
costeiras da região. Imaginava que se os fenícios alcançaram o Atlântico e circunavegaram a
África, o que seria daquele pequeno passeio até Társis?

Um sentimento engraçado se apodera de nós quando estamos fugindo, parece que toda
possibilidade se torna real a nós, num momento, como se estivéssemos entorpecidos.
Inclusive, o destino se torna tão próximo que aumenta a expectativa e os passos da fuga se
tornam maiores que os de uma jornada comum. Julgo que, uma vez ou outra, todos nós
queremos fugir, seja da vida, de Deus, da juventude, das responsabilidades que nos são
impostas e/ou assumidas, do amadurecimento causado pela idade, da verdade, dos problemas,
e até de nós mesmos. Chego ao extremo de pensar que este desejo nos persegue desde que
somos pequenas crianças levadas, cujo divertimento principal é nos esconder de nossos pais,
irmãos e amigos, a esperar que nos procurem preocupados. A fuga, de certo modo não
compreendido, significa poder, o poder de fugir, de se ocultar, de simplesmente sair de cena
sem ser notado ou sendo, desaparecer da vida real para um mundo virtual somente nosso –
este mundo, aliás, presumo que se tornará mais disponível tão logo algumas grandes
descobertas aconteçam, e as pessoas possam momentaneamente fugir da realidade. Quando
não conseguimos lidar com a configuração que temos à nossa volta ou compreendê-la,
enfrentar nossos oponentes, conformar os fatos à nossa vontade, nós fugimos.

E, como podia fugir, isso dava o direito subliminar de poder diminuir Deus, razão da minha
fuga! Pequeno como era, segundo meu raciocínio obtuso, Ele ficara para trás, limitado aos
confins israelitas, quem sabe no porto, a procura de outro que fizesse meu trabalho? Aliás, Ele
sempre está a procura de alguém, para fazer alguma coisa. Eu sempre tive problemas para
compreender a dialética que envolve este gesto divino misterioso. Se Deus pode tudo, por que
precisa de nós? Por que é incapaz de fazer determinadas coisas e nos delega? Por que Ele
mesmo não ia a Nínive e anunciava sua vontade aos ninivitas? Ou falava a um profeta de lá a
mensagem que deveria ser anunciada por mim? Eu sorria matreiro, pensando em como fora
tão fácil despistá-lo, e ainda teria a oportunidade de conhecer uma nova cidade. Não poderia
ser melhor! E quanto aos ninivitas? Como saberão que sua cidade tem tão pouco tempo? Ora
essa, que se arrependam por conta própria, isto era um problema exclusivamente deles. Eu
queria distância dali, ir à Assíria, parecia um sonho esquecido numa brincadeira de criança ou
num delírio juvenil?

Convém informar que tanto a direção, quanto a distância a que eu me propora agora seguir
eram inversamente proporcionais ao destino inicial, perfeito, portanto, para minhas
pretensões. Nínive ao leste, tendendo ao norte, e Társis ao oeste, tendendo ao sul, quase que
exatamente opostos. Duvidava entre se Deus poderia me encontrar ali ou não, balançando nas
ondas, quando adormeci no porão, num torvelinho de sensações contraditórias e ambíguas,
mas, ao mesmo tempo, interessantes. Dormia o sonho dos esquecidos, dos que fazem de conta
que não viram ou ouviram, dos que juram que não sabem de nada, dos que possuem a falsa
noção de que podem omitir a verdade, dos que acham que podem até mesmo se apropriar dela
e com ela fugir para onde quiserem. Naquele navio, nem Deus poderia me alcançar, cheguei a
esta conclusão resoluto e impassível, assegurado por meu obstinado coração, um coração de
dura cerviz.


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Capítulo XIII

Nestas horas decisivas as grandes bases sobre as quais nós construímos nossas atitudes mais
éticas ruem repentinamente, e sobram apenas nossas pretensões, nossos interesses mais
infelizes. O que queremos passa a ter precedência sobre o que é correto fazer, e nós anulamos
nossa consciência, nossos ensinamentos, nossa moral, nossas virtudes mais caras, ainda que
esta sensação dure apenas alguns instantes. É um sentimento singular de liberdade perigosa,
pois, permissível que é, se torna uma arma virtual a ameaçar os outros, e acaba por se voltar
contra nós.

O navio zarpou serpenteando pelas águas, impulsionado pelo vento que suavemente inflava
suas velas. Como ia dizendo, ou escrevendo, - lá vem percepção de novo! - dormi, não sem
antes descer ao porão do navio, um lugar frio e aconchegante a um fugitivo. Ia longe, no sono
e no caminho que uma embarcação descreve em meio às águas do mar, que o sábio rei
Salomão elegeu como uma das maravilhas do mundo antigo, quando fui acordado pelo
barulhento capitão. Ele gritava, como se algo grave e terrível estivesse acontecendo. Não
encontrei os caixotes que levavam as fazendas e costumeiramente estavam a bordo.
Atarantado e procurando me equilibrar no balanço frenético do navio, de súbito me levantei,
olhando ao redor, observando que toda carga havia sido lançada nas águas, boiando em meio
a um vendaval que perdia de vista. O vento soprava, assobiando por entre ondas gigantescas,
balançando o barco a seu sabor, irreconhecível na brisa suave do momento que partimos. Era
tão forte que fazia a nau parecer uma marionete nos poderosos braços invisíveis do mar. Não
sei como é que eu não tinha acordado antes? Como eu tinha conseguido dormir em meio a
uma tão grande turbulência?

Atraindo meu olhar ele falou abruptamente:

- Que tens dormente?

Essa doeu! Logo eu, que tinha saído da pequena Gate-Hefer, uma distância de cerca de trinta
quilômetros de caminhada até Jope, e apanhado um navio para ir a Társis? Após tanto
sacrifício, era impossível ser um preguiçoso. Fugitivo, sim, mas, dorminhoco, não. Eu dormia
para fugir da pressa da missão.

- Levanta-te!

Oh! Não, de novo, não! O que eu mais queria era ficar ali, repousando naquele porão frio e
fedorento. Nada de me erguer, a expressão evocava sentimentos que eu preferia esquecer.

- Clama ao teu deus!

Esta assertiva foi um nocaute doloroso. Era inadmissível o fato de que um gentio ousara
ordenar-me clamar à última pessoa ou ser com quem eu desejaria falar! O duro é que a
colocação pressupõe que o interlocutor tenha um, e, além disso, esteja em condições de ou
precise procurá-lo. Eu olhava incrédulo para ele, estando a ponto de destratá-lo por tamanha
insolência, mas o mar vinha a nos despertar para necessidades mais urgentes, jorrando sua
língua aquosa por todos os cômodos da embarcação. Quando o porão ficou totalmente
encharcado, tornou minha letargia ali impossível, me forçando a uma retirada. À medida que
me erguia tremulando, procurando a saída para o ar livre, lenta e gradualmente uma realidade


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terrível me assaltou. Deus tinha vindo ao meu encontro, para me ensinar uma dura lição
prática de onipresença. O comandante emendou desesperado:

– Talvez se lembre Deus de nós e não pereçamos!

Ele contava que um último resquício de fé pudesse nos livrar da morte que se anunciava.
Assim nós pensamos ante as dificuldades, julgamos que fomos esquecidos, em meio às
tormentas de nossa existência, e torcemos para que Deus se lembre de nós. Fugimos dEle, e
subitamente descobrimos que dEle precisamos.

Os marinheiros jogavam o que restara das cargas do navio, murmurando ou gritando preces
aos seus deuses, conforme as crenças particulares e o estado psicológico de cada um permitia.
Era uma tarefa difícil de realizar porque as águas não davam trégua, tornando, por exemplo, o
esforço de se ficar em pé quase impossível. O que os empurrava para aquela situação é que
quando você sabe que vai morrer então tenta se apegar a tudo, num desespero eclético. Até
mesmo minha fé baseada em esteios tão legalistas, nos quais estavam firmados meus
paradigmas mais interiores, sofria com o desespero que tentava relativizá-los, buscando
tornar-me prisioneiro dos meus instintos mais primitivos. Entretanto, num pequeno relance de
consciência, observei que eles, os deuses de cada um daqueles desesperados, pareciam surdos,
pois não acalmavam a tormenta. Na verdade, eu temia que sequer Melkarte, o deus dos
marinheiros fenícios, ouvisse seus lamentos. Agora a agonia era total, diante da
impossibilidade de contatá-los. Concebo comunicação como uma via de mão dupla, onde
você interage com seu interlocutor. Se eles não podiam ouvir uma apelação tão angustiada de
seus devotados servos, talvez não tivesse ninguém do outro lado!?




                                                                                          29
Capítulo XIV

É inevitável contrapor o clamor ao Deus verdadeiro em relação aos falsos deuses das nações.
Num breve olhar retrospectivo, no âmbito sócio-antropológico, suponho que todos os povos
antigos tiveram uma fonte única de revelação, a partir de nosso pai comum, Adão. Foi dele,
creio, que todos nós descendemos, sendo em última análise uma única família – inclusive,
mais uma razão para que não tivéssemos tantos preconceitos. Disto isto, é inevitável concluir
que nossos ancestrais repassaram um legado religioso a seus descendentes, incutindo neles
seus valores mais caros e basilares. Ao longo da história, no entanto, a adoração foi
degenerando e tomando um aspecto dividido, misterioso e pragmático. Um deus único já não
satisfazia as pessoas e elas cuidaram de materializar suas preferências pessoais, de tal maneira
que o gosto particular determinasse até mesmo a fisionomia de cada um desses deuses.

Basta-nos observar como era o culto da fertilidade de Istar, e de outras deusas cananéias
semelhantes, onde, por exemplo, a prostituição ritual era permitida e cometida dentro dos
templos a elas consagrados. Sem dúvidas, a propriedade básica dos ídolos era sua adaptação
ao gosto pessoal, daí, talvez, nos derive a noção de portabilidade. Isto pode nos soar
contraditório, mas se adequa perfeitamente aos pressupostos anteriores, um deus que possa ser
carregado! O profeta Isaías sintetiza muito bem esta peculiaridade quando diz que o homem
derruba uma árvore e corta seu lenho em três partes. Com uma das partes faz uma fogueira,
para aquecer seu corpo, de outra faz fogo e cozinha seu alimento, e da última faz um deus e
adora. Era o que os marinheiros estavam a fazer agora, agarrados a seus amuletos pessoais,
representantes portáteis de suas crenças. Mas eles, repito, não estavam nem aí!

Os fenícios eram extremamente supersticiosos no que se refere ao mar, que para eles era tão
importante a ponto de darem ao deus do mar como nome o próprio substantivo, ou seja, Yam
era ao mesmo tempo a palavra fenícia – e por extensão para muitas outras línguas semíticas,
inclusive o hebraico – para o mar, e para o deus do mar. O mar para eles tinha a mesma
importância que a terra para nós, havia uma dependência umbilical, pois todo comércio
fenício estava ligado ao estado do mesmo. Portanto, aquela tormenta além de desagradável
para eles era, sobretudo, o resultado de algum erro de alguém que estava a bordo, no caso, eu!
O que, em última análise, não deixava de estar correto.

Em contraste, uma reprise das minhas horas na leitura dos livros sagrados do meu povo
tagarelava na minha mente perturbada, montando uma colcha de retalhos de idéias
sobrepostas e entremeadas de verdades absolutas, que eu era incapaz de contestar. As palavras
dos capítulos dos Salmos, - um livro litúrgico bastante utilizado em todos momentos de nossa
adoração diária - especialmente o cento e trinta e nove, dançavam com as ondas que
balouçavam o navio, e me acusavam do horizonte - se é que era possível divisar algum
naquele vendaval - como num tribunal:

- Para onde fugirei da tua face?

Deus poderia me acusar de vários pecados. Certamente o pior deles, naquele momento
angustiante, era diminuí-lo, supondo que jamais me encontraria. Aliás, é interessante observar
como ele permite que fujamos, para que, entre outras coisas, nós nos apercebamos de sua
ubiqüidade, além de poder estar em todos os lugares ao mesmo tempo, ele pode estar onde
quiser. Esta propriedade evidencia o contraponto principal de nossa condição humana, pela
facilidade com que esquecemos disso, e simplesmente fugimos. Nós fugimos porque

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queremos, e Deus nos acha quando quiser, soava trágico e cômico para mim. Em um de
nossos livros mais importantes, o Bereshit, que vocês devem conhecer como Gênesis, está
registrado como Ele havia encontrado Abraão nos carvalhais de Manre, sem código postal,
sem instrumentos de rastreamento, sem sinalização, sem rodovias, acampado no meio do
deserto, e ainda chegara a tempo de comer um churrasco! Noutro, o primeiro livro dos Reis,
também está escrito do profeta Elias, no famoso encontro na penha. Pensava que o Senhor
estava no vento, no terremoto, no fogo, mas apenas um cicio suave e tranqüilo denunciava sua
presença. As palavras perdem o sentido para sintetizar sua forma sutil de estar sempre
presente, seja aqui, seja ali, seja além, seja acolá, podemos sempre encontrá-lo.




                                                                                         31
Capítulo XV

Questionavelmente, no entanto, eu não clamei a deus algum, como faziam aqueles homens.
Isto era mais uma contradição ridícula, já que eles clamavam aos seus deuses surdos, de pau,
pedra, barro, osso, e outros materiais, todos moldados e imaginados pelas mãos humanas. Eu
condenava igualmente a adoradores e adorados, mas era incapaz de clamar a meu Deus, o
verdadeiro, que transcende toda vontade humana e até mesmo existe além dela. Não obstante
o fato de que Ele estava presente pessoalmente ali, pronto a me escutar. Esperava por uma
saída que excluísse essa possibilidade, talvez por pura vergonha, talvez porque seria
necessário um bom tempo para esclarecer as razões da minha fuga ou porque, em última
análise, eu seria obrigado a refazer o percurso e cumprir sua vontade. Eu contava com a
possibilidade de que aos trancos e barrancos, o navio encalhasse nas pedras da costa de
alguma ilha, onde eu envelhecesse sem precisar sequer voltar à minha terra!? Seria uma opção
maravilhosa, mas eu saberia mais tarde que era uma alternativa tão imponderável quanto o
ser.

Nesse ínterim, um daqueles marinheiros teve a idéia de lançar sortes, as goralôt, e aí surgiu
um grande problema para mim, que nem de longe, pelo menos até aqui, eu imaginava que ia
acontecer. Mas, antes, deixe-me descrever as sortes, o que não é uma tarefa muito fácil. Num
momento era uma pedra de uma cor específica em meio às outras cores, noutro era um ritual
no qual alguém lançava de costas um pequeno objeto, sobre um grupo de pessoas, em outro
era uma pedra, osso ou madeira marcada com uma palavra, uma letra ou um número
específico3. No Monte Sinai, Deus havia ordenado que o sacerdote portasse duas pedras: o
Urim e o Tumim, também conhecidas como Luzes e Perfeições. Que nada mais eram do que
pedras para revelar a vontade de Deus em situações complicadas, através da consulta
sacerdotal. Traduzindo em outras palavras, estas pedras seriam um exemplo supremo do que
eram as sortes. Acredita-se que as mesmas brilhassem conforme a vontade de Deus, ou uma
ou a outra, a responder sim ou não para determinadas decisões mais complexas. Enfim, era
uma seleção bem particular, na qual pouca ou nenhum dúvida restava, buscava-se uma certa
dose de isenção, com tom fatalístico. Ao que tudo indicava, no balanço do navio, seria fácil
esquivar-se, afinal uma sorte lançada num mar revolto cai em qualquer lugar, menos na minha
cabeça, pensava eu. Mas, contra minhas expectativas, a estratégia me denunciou e as sortes
caíram sobre mim.

Quando a sorte caiu sobre mim, - veja o que é comunicação, já que não houve palavra
alguma!? - meu mundo com suas trapaças desabou com ela. É interessante descobrir como
nos achamos tão fortes e somos tão fracos, ao mesmo tempo. Em nossa ambigüidade humana
podemos tudo num momento, e no instante seguinte nada mais podemos, estamos a mercê do
mar, levados de um lado para o outro pelas incongruências de nossas escolhas, que se tornam
vagas a tentar afundar nossos navios, que se sabiam insubmergíveis até seu trágico naufrágio.
Certo pensador dizia que o homem é um caniço balançando ao vento, mas que sabe que sabe,
é daí, aliás, que vem a designação científica de nossa espécie pela ciência, homo sapiens, o
que sabe. Ele continuava filosofando: O Universo todo é mais forte do que ele, mas é incapaz
de perceber seu poder. Se uma força ou evento da natureza destrói o homem, este sabe que
morre, mas aquela não sabe que mata!




3
    Na minha língua, o hebraico, as letras também são números!
                                                                                          32
O duro naquele momento, pior que a própria fuga e seu desfecho, era a constatação da minha
impotência diante da realidade. A realidade da mensagem, do chamado, do mar, do navio, da
tormenta, da verdade, nua e crua na forma tão básica, totalmente despida de amarras, que se
me apresentava. A realidade da onipotência indescritível de Deus. Se ele podia por um mar
imenso naquele estado, o que não poderia comigo? É... quando Isaías, ele de novo, diz que o
mar está na palma de suas mãos, não é brincadeira, não!

Como eu atraí a atenção deles, por conta das sortes houverem me denunciado, todos se
acercaram de mim, admirados e ao mesmo tempo com uma dose razoável de indignação,
enquanto o capitão me inquiria, rosnando as palavras ferozmente ao vento:

- Dize-nos, agora, por que causa nos sobreveio este mal?

Era uma reflexão do contraponto entre a calma da partida e a agonia do presente. Ele,
certamente, achava que eu tinha uma explicação para o incidente. O mal era uma conjuntura
dos deuses fenícios, que, curiosamente, segundo suas próprias palavras, tinham vindo a nós,
haviam nos acometido. Não parecia tão circunstancial quanto a mensagem, que inicialmente
viera a mim? Eles não sabiam que tudo aquilo advinha do único Deus capaz de tal façanha, os
outros, já disse, eram meros fantasmas de nossas idiossincrasias.

– Qual a tua ocupação?

Os marinheiros percebiam que eu estava fugindo de algum dos deuses, e, consequentemente,
teria atraído sua fúria, muito embora ainda não soubessem qual. A pergunta teria a ver com
meus afazeres diários, em que eu estava ocupado? Em fugir? Seria eu um mensageiro
fugitivo? Eles mal sabiam que suas dúvidas seriam constatadas, quando eu expusesse minha
situação. Mas o capitão não esperou nem que eu falasse, e foi logo emendando:

– E de onde vens?

– Qual a tua terra?

– E de que povo és tu?

Estas três perguntas eram a cédula de identidade do viajante dos meus dias, onde, aliás, não
existe documentos. No máximo, alguma escritura de compra e venda de bens ou acordos entre
reis e reinos, talhadas numa pedra, ou esculpidas. A maioria dos contratos e acertos são
realizados nas portas das cidades, diante de testemunhas, de preferência, diante dos mais
velhos. Em nossos dias bastam as palavras acordadas diante deste conselho para selar
compras e trocas de imóveis e animais, além de resolver assuntos mais complexos. Como ia
falando, ou escrevendo, bastava dizer de onde se vinha, qual a terra e o povo, para que
imediatamente um estereótipo se formasse na mente do interlocutor. Obviamente, era uma
generalização perigosa, que, inclusive, ceifara não poucas vidas, enquanto a outros deixara
viver. Descrever o infortúnio de ser perguntado sobre como os fatos que narrei até agora se
sucederam não foi fácil, nem o seria explicar pormenorizadamente como tudo se deu. Não
havia, porém, para onde fugir. O mar se embravecia e ameaçava engolir o navio. Respirei
fundo e solenemente declarei:

– Eu sou hebreu!


                                                                                         33
– E ao Senhor, Deus dos céus, eu temo.

– O que fez o mar e a terra seca!

Estas três declarações foram suficientes para que os marinheiros compreendessem a gravidade
da situação. Talvez, não conhecessem bem o deus do qual falava, mas pelos adjetivos dava
para se chegar a uma conclusão temerosa. Minha cédula de identidade atestava que eu
pertencia a um povo cuja referência antropológica sempre fora a de adoradores de Yavé, não
havia como esconder minha ascendência. Os fenícios sabiam há muito de nosso templo –
alguns deles haviam ajudado a construí-lo como já dissemos anteriormente - e os povos que
entravam em contato conosco conheciam nossos costumes. Então, exclamaram desesperados,
em uníssono:

– Por que nos fizeste isto?

Eu formulava uma resposta adequada, mas aquele não era o momento ideal para compartilhar
divagações. Aos homens cabia outra preocupação mais urgente:

– Que faremos a ti, para que o mar se nos acalme?

Imediatamente lhes adverti que Deus exigiria que eu fosse jogado ao mar, para que eles
pudessem sair com vida daquele incidente. Entretanto, esta possibilidade fez com que os
homens temessem muito e, num primeiro momento, a descartassem. Eu fiquei surpreso com
esta atitude porque nas religiões antigas estava arraigado o conceito de que uma vítima
deveria ser sacrificada, para acalmar um deus. A recusa deles era de fato surpreendente.

No entanto, o mar parecia ter vida própria, pois tão mais demorávamos a tomar uma
iniciativa, ia se embravecendo a ponto de toda esperança de chegar a algum porto se perder.
Os homens remavam loucamente, na esperança de alcançar a terra firme, mas pareciam estar
girando em círculos, sem progresso algum. Então, reunidos, decidiram lançar-me ao mar tão
rápido quanto possível, para salvar suas próprias vidas. Antes, porém, oraram e pediram
perdão, supondo que o curso da história toda fora uma determinação divina. Eu ainda não
havia feito isto ainda, por conta própria, porque o suicídio entre nós é algo absolutamente
reprovável. Só tomaria uma decisão tão extrema se fosse para poupar aqueles miseráveis
homens.

Nas entrelinhas do momento acontecia uma coisa curiosa, pra dizer o mínimo, pois muito
embora eu não haja pregado um longo sermão àqueles homens, eles eram capazes de
identificar as evidências de que Deus teria planos para mim, e eu não o levei a sério. Eram
capazes de crer, e isto os distingue de maneira louvável, especialmente porque os argumentos
configurados não eram muito verossímeis. Esta é uma comprovação nítida de que as ações são
mais importantes e eficientes que as palavras. Quantas vezes queremos impactar as pessoas ao
redor com uma multidão de frases de efeito, adquiridas aqui e acolá, ou com citações
aprendidas de alguém, quando na verdade os gestos possuem uma influência muito maior.

Não sei por aí, mas aqui há uma enorme carência de prática. As pessoas, algumas das quais
sábias aos seus próprios olhos, se acostumaram a teorizar, e teorizando ficam por toda a vida,
nada de prático fazem em benefício dos outros. Começam a aparecer tratados, tradições e
interpretações delas que possuem regras estáticas e padronizadas para todas as situações da
existência de uma pessoa. Afirmativas e afirmações que são tratadas como uma panacéia, um

                                                                                           34
remédio para todas as dores. Entretanto, boa parte delas é inexeqüível e impraticável, fogem
da realidade do homem comum, este que está em todos os lugares e sofrendo o efeito de
pressões diversas.

Não que eu despreze o valor do raciocínio teórico, da filosofia, do planejamento, da
estratégia, muito pelo contrário. A questão divisora de águas é que a vida se constitui num
barco com dois remos, um se chama fé e outro se chama ação. Todos os dias são
oportunidades para avançar um pouco mais no mar da vida, utilizando os dois remos. Quando
esquecemos um deles a tendência é o retrocesso ou a estagnação, a depender do tempo que
gastarmos nesse processo. Tenho a certeza que minha admissão de culpa, e a posterior
concessão em ser lançado ao mar, para salvar a embarcação da ruína, foi mil vezes mais
importante do que qualquer pregação demorada. Afinal, a fé despida das obras é morta!

Há, porém, uma outra análise a ser feita neste momento da minha história. Quando falhamos
ocultamente a extensão destas falhas é traumática para nós, mas dói apenas internamente,
entretanto, quando envolve outras pessoas, que passam a nos recriminar como se,
repentinamente, soubessem tudo sobre a vontade de Deus para nós, então a dor é muito maior.
Aquelas pessoas me olhavam, em tom de reprovação, como se quisessem dizer: Por que você
é tão bobo procurando fugir de um Deus que te acha em qualquer lugar? Por que não cumpre
sua missão? Ademais, eu, um profeta, durante toda aquela tempestade sequer orara, e, agora,
pego de surpresa, forçava homens que não temiam a meu Deus a tomar uma decisão tão,
digamos, teológica, encomendando-me à vontade de um desconhecido. Aquela seria uma
oportunidade excelente para contrapor a religião liberal fenícia com a ortodoxia judaica, mas
eu não a aproveitei, entretido que estava em solucionar a situação, e em preservar meu status
quo.

É difícil admitir, mas não havia acaso algum no fato de eu estar ali, pois mesmo quando
erramos Deus faz com que isto se torne em oportunidade para que Ele seja glorificado. Minha
ignorância penetrava a realidade daqueles homens com a intenção de também transformá-los,
mas eu não percebia isso. Quantos temas espirituais poderiam ser abordados, mas não o
foram. Passados os fatos esta foi, sem dúvida, uma das marcas profundas na minha alma.
Mas..., estamos apenas no meio da história, voltemos, pois, ao que está acontecendo a nossa
volta.




                                                                                          35
Uma história sobre ventos e mares
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Uma história sobre ventos e mares

  • 1. Uma história sobre ventos e mares Igarassu, Janeiro de 2009 Daladier Lima dos Santos 1
  • 2. Dedicatória Para meus amores, Eúde, Ellen e Nicolly meus familiares, amigos e irmãos que são como Jonas no barco da vida a crer e esperar pelo Senhor de Jerusalém, de Nínive, do mar e de todos nós. 2
  • 3. Prefácio Num minúsculo lugar do Oriente Médio, perdido entre reinos poderosos, castelos exuberantes e cidades esplêndidas, aconteceu uma história fascinante comigo. Soa misteriosa e complexa. Reclama fé para que seja concebida e apreendida em qualquer tempo, época e qualquer lugar. Ah! A leitura é a porta que abrirá a oportunidade para conhecê-la, com um pouco mais de profundidade. Sirva-se dela como uma ponte imensa sobre realidades por vezes antagônicas, unindo-as com suas peculiares e invejáveis características. Este relato lhes servirá como uma tenaz a permitir pegar nas brasas frescas, recém-saídas do meu cotidiano, sem que seja necessário queimar-se com o que de incrível representam. Remetendo-lhes no tempo e no espaço a uma vilinha pitoresca, que foi habitada desde sempre por minha família. Há muitos personagens por aqui, cada qual com seu trejeito particular, todos muito parecidos com qualquer um de nós, padecendo sua própria dose de humanidade. Poderia ser você, poderia ser um amigo, seu irmão, seu pai, sua mãe, poderia ser qualquer pessoa. Não se desprenda do cenário, ele encerra uma pequena narração emoldurada que possui grande significado, pois lega verdades tão cristalinas como a água que bebemos. Entretanto, ressalve- se: ler é uma atividade delicada, mas invasiva. Retira as pessoas de seu recato e as brinda com crescimento intelectual e espiritual. É um movimento peristáltico, ruminante, que não raro traz sofrimento, mas ao mesmo tempo engrandece quem dele lança mão. Não esperaria consenso, seria temerário, até mesmo proibido, à pessoas de livre arbítrio. Não se tome, contudo, essa permissão como um convite à ignorância. Esta colocação é justificada pela pressa que reclamamos a tudo que fazemos, e que acaba por ocultar os detalhes do que se passa ao nosso redor. Histórias dentro de histórias são esquecidas no baú da urgência. Esquecemos que é necessário dispensar atenção para abstrair realidades, entender os mecanismos cognitivos, digerir a informação. O que ofereço não é uma nova versão dos fatos que porventura o leitor conheça, mas apenas um texto de apoio, uma nova moldura embevecida pela contemplação. Para que dentro do eventual enorme volume de informações que se tenha, possa ser aberta uma possibilidade para apreensão dos acontecimentos narrados. Espero que ao fim dela - que não é exatamente um fim em si mesmo, mas uma breve transição entre realidades distintas - todos nós amadureçamos. Tenha certeza de que cada palavra escrita estará à procura de um terreno fértil, tanto para a imaginação de alguém, finita pela natureza limitada do sonhador, quanto para a fé, que cria degraus eternos. Portanto, que haja deleite em compreender fatos que estão muito além do entendimento corriqueiro, sem que para isso tenhamos de ser iluminados com alguma graça sobrenatural, que esteja além dos horizontes possíveis. História que é realmente interessante deve conter alguma unanimidade, não tanto em termos de definição filosófica, mas no sentimento de saber, de compreender, mesmo que seja um pouco a cada dia da vida. Afinal, há histórias que se assemelham a comida para o intelecto, quando as lemos nos recorre o desejo de voltar lá todo dia para satisfazer nossa curiosidade. E sempre que o fazemos traz respostas com certeza, mas se houver novas perguntas, elas serão mais bem formuladas e bem embasadas do que antes. Jonas, seu amado conservo! 3
  • 4. Capítulo I Acredite-me, eu sou um profeta, como se diz em minha língua, um navi. Calma, não precisa ter chiliques com as palavras em hebraico, vá se acostumando às citações estrangeiras já que estamos num caso internacional. Além do mais, ninguém vai perder pontos na eternidade só porque não sabe hebraico, não é mesmo? Um navi é, em termos básicos e rasos, alguém investido de autoridade para falar em nome de outrem, um porta-voz. Mas, eu não sou um profeta qualquer, do ponto de vista que não questiona as ordens de quem o envia. Esta, aliás, é para mim uma noção um pouco desfocada, pertencente ao senso comum da definição do termo. Sou diferente por duas razões principais: a primeira delas é que sou, provavelmente, o único profeta surgido da Galiléia, esta parte baixa na porção central de Israel, meu minúsculo país, que quase se perde num globo terrestre. Esta afirmação derruba um preconceito comum por aqui, segundo o qual nenhum profeta surgiu daí. É o tipo de idéia que se radica no imaginário popular e ganha força sem maiores explicações. A outra é que eu me encaixo numa categoria especial, que almeja questionamentos lógicos e logísticos sobre a missão a ser executada. Aprecio saber detalhes e pesar suas implicações, saboreando minhas interferências enquanto avanço para o desafio a mim proposto. Minha sólida formação religiosa - e educacional, por extensão, pois aqui as duas necessidades são satisfeitas ao mesmo tempo e no mesmíssimo lugar – me permite conhecer a vida sob um prisma único. Em conseqüência, no entanto, possuo idéias pré-concebidas sobre muitas coisas que nos cercam, acabando por me fazer pouco permeável a verdades que estão fora da minha realidade, que não sejam abarcadas pelo meu, digamos, campo de raciocínio. Este, diga-se de passagem, está fundamentado num rico conjunto de tradições centenárias que nos foram legadas por nossos antepassados, algumas das quais estão registradas em nossos livros para a posteridade. Em resumo, portanto, o que aprendi, aprendi, registro com orgulho qualitativo sabendo de quem aprendi! Talvez, esta necessidade de fundamentação, de certa forma peremptória, decorra do acúmulo de informações que nós, enquanto seres pensantes e autônomos, estabelecemos como uma prioridade vital, a velha fome por conhecimento, como se nisso consistisse nossa única razão de ser e existir. E, de certa forma, o é, se partirmos do pressuposto que a vida é uma escola do nascimento à morte. Porém, ressalvada a hipótese em que o ser fica comprometido se não sabemos, este comportamento se torna paradoxal à medida que o ignorante tende a acatar tudo com naturalidade, mas o informado, o estudado, se torna um repentino dono da verdade, questionando todas as afirmações. Isso, a priori, não é ruim, até porque faz parte do exercício da nossa humanidade racional, mas quando o questionamento toma um rumo sem fim, sem propósito, então se perde a lucidez e tende-se à arrogância. Por mais contraditório que possa parecer, sempre nos dispomos a esse desgaste voluntário, ocupando nosso intelecto numa teimosia cíclica interminável, da qual não abrimos mão facilmente. É a situação tão bem retratada por um de nossos sábios reis de enfado debaixo do sol. Tenho quase certeza que você já foi capaz de vivenciar este problema com uma ou várias pessoas do seu círculo de amizades ou, talvez - quem sabe sua modéstia pode ser colocada à parte? - consigo mesmo. Afinal, quem nunca conheceu um amigo que procura estabelecer por que o céu está tão distante de nós? Por que há nove (ou seria oito?) e não cem planetas no sistema solar? Qual o sexo dos anjos? Por que fomos criados com dois olhos e não três? Por 4
  • 5. que não conseguimos penetrar na mente dos outros e ler seus pensamentos? Por que não sabemos o dia de nossa morte? Por que não podemos escolher o dia de nosso nascimento, e em qual família e local devemos nascer? Enfim, inúmeros porquês de imponderável leveza, o tipo de informação da qual se pode tranquilamente prescindir para sobreviver sem maiores sobressaltos, mas as pessoas fazem questão de procurar saber. Nesta ânsia incontrolada por inquirir e compreender o que está fora de nosso alcance, o desconhecido, uns fazem grandes descobertas, realizam progressos e acumulam conhecimentos para benefício de todos nós, para o chamado bem comum, enquanto outros perdem a noção da realidade, tornando-se loucos. Perde-se, inclusive, a oportunidade de aproveitar o presente. Esta dualidade inexorável não inibe as pessoas, de forma que cada geração faz suas próprias perguntas, algumas das quais são apenas versões aprimoradas de outras que já foram feitas anteriormente. Perpetua-se assim o senso de que o ser humano é um curioso incessante, que está sempre farejando os comos e porquês da vida, uma excelente e traiçoeira característica nata já que o inexplicável nos fascina. Porém, o mecanismo funciona como uma faca que tanto pode ser utilizada para preparar um bom bife, quanto para matar e mutilar alguém. Em relação ao conhecimento, em alguns casos lamentavelmente, muitos estão dispostos à segunda opção, preferindo a morte à ignorância. 5
  • 6. Capítulo II Voltando ao assunto principal de nossa interação literária, é difícil lhe explicar como me tornei um profeta. Não há fórmulas ou métodos, nunca foi criado um manual detalhado, um conjunto de regras. O que há mais próximo disso em nossos dias é uma exigência subliminar de que os candidatos sejam freqüentadores assíduos de uma escola especializada. É fora de questão, porém, que muitos de nossos maiores profetas jamais freqüentaram tais lugares. Lembro, num primeiro momento, o nome de Moisés, Daniel e Amós. Particularmente não sei de qualquer registro de que eles tenham ali estado, mas há uma lista infindável de nomes que se encaixam perfeitamente neste particular. Muitos dos quais, vale lembrar, totalmente desconhecidos do leitor comum, pois eles jamais foram citados em algum de nossos livros. Obviamente isso não desmerece o profícuo ministério que exerceram. Outrossim, um requisito indispensável é que se receba um chamado divino, e, assim, e somente assim, alguém se torna um arauto. Esta regra vale tanto para um quanto para o outro grupo, ou seja, tanto para os que foram às escolas de profetas, quanto aos que não as freqüentam. Tais escolas são lugares de treinamento, de observação, de mentoria espiritual, e trouxeram ao lume grandes nomes do nosso povo, portanto, nada tenho contra elas. Lamento apenas que não tenham sobrevivido aos tempos modernos e tenham sucumbido em meio às tensões dele decorrentes. Elas foram fundadas por Samuel e seus expoentes mais conhecidos são Elias e Eliseu. Havia escolas de profetas em várias de nossas cidades, entre elas Gibeá, Gilgal, Ramá, Betel e Jericó. Para se ter uma idéia de sua dimensão, cem alunos profetas acompanhavam a refeição com Eliseu, em Gilgal! Gradativamente, no entanto, perderam sua importância, cedendo espaço após a volta do cativeiro para as sinagogas. Como ia escrevendo, não é fácil rejeitar um chamado a ser profeta, você não pode escolher entre ser ou não ser, eis a questão. Uma vez vocacionado, se deve assumir as funções proféticas, que entre outros requisitos, envolvem a necessidade de estar antenado com o céu, ansiando saber a vontade divina para as pessoas, para grupos de pessoas e para as nações. Torna-se necessária, por conseguinte, uma vida de santidade e de perfeita comunhão. É verdade que também há algum prazer em diferenciar-se, em destacar-se na multidão, conquistar respeito entre seus pares como um representante divino, mas, cá pra nós, este é um arremedo simplista, que oculta e dissimula os verdadeiros problemas e obstáculos enfrentados por nós, que variam dos mais simples aos mais complexos. Ao contrário do que se possa imaginar, nossa atividade não consta de um show de prédicas no palco das cidades, um espetáculo para reunir pessoas e sermos aclamados calorosamente pelas multidões, não somos celebridades! Sequer alguém pode se considerar um intelectual única e exclusivamente por ser profeta. Não, não nos está reservada a oportunidade de escrever um livro somente para demonstrar nosso saber, o livro da nossa vida, o resumo de nossa experiência, isso está fora de cogitação, seria a meu ver muita pretensão. A realidade é que nossos profetas escreveram seus trabalhos apenas com o intuito de que as gerações vindouras pudessem conhecer seu conteúdo. Uma prova material do que foi dito e ficou registrado, para que ninguém se julgue escusado de saber como nortear suas ações. Sem falar que muitos recorreram a escribas para compilar seus materiais, ainda que isso não descaracterize as fontes de inspiração, visto que foram ditadas e escritas exatamente como recebidas. Inclusive, se você ler um desses livros irá perceber que é como se o profeta mesmo o tivesse produzido, vai sentir a pena e o estilo do próprio autor. 6
  • 7. Bom, tem também a fama. Uma conseqüência do exercício da influência e do poder que persegue o profeta de perto. Pode mexer com seus sentimentos, a ponto da vanglória invadir seu coração, e aí, acabou-se toda inspiração e dignidade. Não é difícil isso acontecer, eu diria, inclusive, que em alguns momentos da nossa história é algo rotineiro. Há muitos de nós que eram pessoas humildes, cheias de uma graça contagiante, levavam uma vida pia e santa, reclamavam reformas profundas para endireitar os caminhos tortuosos do nosso povo. Mas, no auge, foram acometidos deste mal tão mesquinho, e toda graça instantânea que tinham dilui-se em um matraqueado excêntrico que denuncia seu exagerado amor próprio e falta de espiritualidade. Um profeta é semelhante ao perfume, quando a essência se perde são traídos por seu cheiro. Uma das razões principais que culminaram nessa apostasia sôfrega e delirante foi o suborno, nem sempre em dinheiro, às vezes em posição social. Muitos foram recebidos como empregados públicos nas cortes - sabe como é... fartura de comida e conforto, servos e servas à disposição, tudo isso garantido com a folga dos orçamentos das casas reais - com a intenção subliminar de que se calassem sob os meneios de seus convivas. Muitos deles foram incapazes de perceber a manipulação a que estavam se submetendo, e, em troca de ouro e conforto palaciano, calaram seu divino dom! No livro do Êxodo, nosso povo recebeu uma advertência muito séria e sombria que, sábia e preventivamente, dizia assim: Também suborno não tomarás; porque o suborno cega os que têm vista, e perverte as palavras dos justos (Êxodo 23:8). Esta assertiva prenunciava, com grande margem de antecipação, o horizonte anuviado que se tornou o ministério profético. Mas todos nós tendemos a esquecer estas boas premissas, em troca do bem estar passageiro. Por momentos injustificáveis de prazer e alegria, as pessoas se dispõem a jogar fora as bases mais caras do seu caráter. No fundo, são oportunidades de afogar as mágoas, de pôr as máscaras, viver a fantasia, usufruir o momento, celebrar o hedonismo em sua forma mais grotesca. O suborno presta-se a todas essas coisas, porque cria o ambiente favorável a seu florescimento. Um triste fim, porém, aguarda quem suborna e quem é subornado porque a farsa um dia acaba, se não for aqui, o será na presença maravilhosa do Todo-Poderoso, diante de quem todas as coisas estão nuas e patentes, e sob cuja luz nada se esconde. Aliás, este conceito em nossa língua é bem mais amplo do que se imagina. Quando nossos livros dizem que alguém é reto, como o fazem com o patriarca Jó, é porque confrontado sob a luz mais intensa e radiante, está tão centralizado em sua conduta que não produz sombra em qualquer direção! Pois bem, como dizia, por aqui não é raro você encontrar profetas nas mesas reais, mesmo que sejam falsos. Somente para exemplificar o quanto este ato é corriqueiro, o rei Acabe, que antecedeu Jeroboão II, comia com nada menos de novecentos e cinqüenta deles, e sua esposa lhes reservava os melhores aposentos e as mais pomposas honrarias. E os que de nossa terra não puderam ser cooptados, foram paulatinamente substituídos em número por outros trazidos do reino do pai dela. Portanto, a fama é dos riscos mais perigosos, mas não é o único, e serve, de certa forma, como depurador dos que realmente querem seguir o ofício. Os sinceros a evitam e ignoram os presentes, profetizando não apenas o que interessa, mas o que tem de ser dito. Consequentemente, a vida se torna um pouco mais difícil para eles. É preciso compreender que os reis desejam estar ladeados dos profetas, em primeiro lugar, porque há um temor sutil na população sobre a mensagem divina, e em, segundo lugar, porque necessitam da aprovação celeste às suas ações. De forma que para sair à guerra, por exemplo, consultam os profetas. Eles o são, inclusive, para saber qual de nossas tribos deve iniciar a batalha. Ter profetas 7
  • 8. aliados encurtava o caminho, o problema era saber se aquela era mesmo a vontade divina, ou apenas um apanágio de um amigo, tentando cair nas graças do soberano para obter seus favores, ou, como se diz por aqui, achar graça, ser favorecido perante alguém. Em decorrência disso não é surpresa algum rei morrer na guerra, por dar ouvidos a uma falsa mensagem divina. Obviamente, o falso profeta teria o mesmo destino. Por outro lado, se você está bem informado do que se passa aqui, sabe que profetas verdadeiros são um saco de pancadas dos ouvintes, pois nem sempre recebem suas mensagens de coração e mente abertos, e quando suas predições se cumprem ainda o tornam igualmente culpado das conseqüências delas decorrentes. Como se eles fossem o autor da mensagem ou tivessem alguma culpa no que ocorreu a partir dela. Eles são tratados como o penhor da tragédia, e se arriscam a ficar presos até que ela ocorra, e morram, em seguida, para que paguem com a vida a mensagem proclamada. Este é o castigo que se lhes reservam por terem profetizado. Deveria constituir um trunfo, uma glória, um regozijo para os interlocutores saberem das coisas com antecedência, qual a vontade divina em situações críticas, e outras coisas que um profeta está apto a revelar, mas não é desta forma que o ofício profético é encarado. Meu pai - que também era profeta – e muitos dos meus amigos têm colocações parecidas com as minhas, quanto à dificuldade de desenvolver as tarefas a nós inerentes. Apesar disso seguimos em frente, correndo todos os riscos para que a missão seja cumprida. 8
  • 9. Capítulo III No íntimo, eu sei que a dificuldade principal que acomete a quem profetiza de um lado e quem ouve do outro é lidar com a exposição da verdade. As pessoas, quase sempre, preferem ficar engodadas em sua própria dissimulação, preferem a mentira para acalentar seus desencantos e inseguranças, e validar seus procedimentos. Nossos sábios ilustram com uma proposta interessante esta tensão existencial. Eles dizem que shequer, a palavra para mentira em hebraico, é composta de três letras com uma perna apenas, igualmente emet, a palavra hebraica para verdade, possui a mesma quantidade letras e os mesmos sinais massoréticos (a palavra massorético vem dos massoretas, estudiosos que temiam que a pronúncia correta das letras se perdesse e criaram um conjunto de sinais para auxílio na leitura da Torá e dos outros livros de nosso povo), só que todas com duas pernas. Embora as duas palavras tenham os mesmos sinais vocálicos, e a mesma quantidade de letras, são diferentes em seu significado final. Assim, a mentira aparenta ser uma verdade, até que esta última prevaleça. A metáfora da mentira é que ela não consegue perdurar, porque ninguém consegue ficar em pé por muito tempo, apoiado em apenas uma das pernas. Em suma, para ser profeta não se consulta nem carne, nem sangue, apenas se aceita o encargo, o ônus e o bônus dele decorrentes, muito mais aquele do que este. Não há sequer um seguro de vida, e à família resta chorar quando o profeta morre ou fica inutilizado nas circunstâncias mais descabidas. Isto posto, tornar-se desnecessário informar que aqui não há muitos ouvidos simpáticos quando a mensagem é de reprovação ou exortação, e devido ao pecado reinante em meus dias tenha certeza que ela quase sempre o é. O que significa dizer que se devem esquecer as recepções calorosas, as tapinhas de aprovação nas costas, os apertos de mão com os sorrisos nos lábios, pois até mesmo seus amigos e familiares o desprezarão. E desprezo é um dos presentes mínimos que poderão lhe ofertar com desdém. Muitos conterrâneos meus foram mortos brutalmente, outros castigados duramente, ouço dizer que lhes foram feitas barbaridades. Uns foram enclausurados em calabouços escuros, alimentados precariamente, outros foram condenados ao degredo, sentenciados a ter a vida resumida a pouco mais que uma vaga lembrança na história, e ainda outros foram obrigados a viver como eremitas, porque sua aproximação das cidades, aldeias e vilas era encarada como um mau agouro. Poucos ouvintes cuidam de se arrepender de seus pecados e conformar-se às palavras destes emissários divinos. Em parte porque uma vida de santidade exige que renunciemos aos desejos mais convenientes, uma mudança nem sempre bem-vinda. Relembre-se aqui que muitas das punições impostas aos profetas verdadeiros foram perpretadas em nome da mesma realeza da qual falamos anteriormente. Reis e nobres perseguiram e os calaram sistematicamente por medo de suas mensagens, ou porque contrariavam seus interesses, ou porque não permitiriam ser cooptados, preferindo a morte e o sofrimento à conivência. Em parte sabemos que há uma preocupação generalizada de que os atos nocivos dos monarcas sejam expostos, - aquele velho problema do qual falei anteriormente, o medo de ser testado pela verdade! - esta é apenas uma das razões pelas quais a classe dirigente repele os pronunciamentos proféticos contrários às suas atitudes. Mas o povo também tem sua parcela de culpa, mesmo que seja difícil admitir esta realidade. Esta culpa se evidencia a medida em que gradual e progressivamente as massas se tornam participantes destes mesmos erros e se afastam da adoração verdadeira. Sacerdotes, reis e profetas, a tríade da liderança espiritual do meu povo, deveriam conduzir o povo no caminho correto, punindo os maus exemplos e unindo as forças populares para uma conversão genuína, no entanto, não é isto que acontece. 9
  • 10. Capítulo IV Minha narrativa até aqui procura fazer uma pequena acomodação histórica e conceitual, e, assim, eu poderia ser tomado como um ser nostálgico, mas não adianta ficar acuado, chorando o leite derramado. Acho uma tremenda bobagem ficar fazendo colocações semelhantes a: Como era bom em tal tempo! Antigamente era dessa ou daquela outra forma! Foi melhor no tempo de meu pai! Quando meu avô era vivo havia santos verdadeiros! Em tal momento, as pessoas tinham mais prazer de ir ao templo! Sinceramente acho preferível tentar melhorar o presente, já que este retorno ao passado é impossível, resume-se a uma lamentação improdutiva, sem resultados práticos. Cada geração deve entender que tem melhores, mais variadas e maiores opções de pecado e santidade, cabendo a cada um de nós escolher quais caminhos devemos trilhar. Não digo isso ressentido, sou um resignado por minhas atribuições, mas é que o que eu vou lhe contar exige que seu raciocínio se desprenda um pouco, absorvendo ou relembrando conceitos esquecidos no desenvolvimento histórico da religiosidade do meu povo. Esta volta inadiável aos primórdios serve apenas para que você se situe nos termos do que é necessário à compreensão dos tópicos a seguir, os quais perdem o sentido se não fizermos tal digressão. Para enfatizar a propriedade desta colocação, eu não sei por aí, mas aqui já não há muitos profetas, e se não fosse por uma providência divina seria uma categoria extinta, relegada ao passado de nosso povo. Talvez sejam as duras conseqüências da missão, talvez seja desleixo, talvez seja bloqueio psicológico, mas o que realmente ocorre é que eu conheço poucos dispostos a seguir este caminho, e os que a despeito das dificuldades tentam, ficam a jogar as palavras ao ar. Perdem-se suas vozes em meio à cacofonia das cidades. Em resumo, os ouvidos de além mar estão intensamente influenciados pelos novos ventos que sopram aqui, parteiros irresponsáveis de novidades convenientes. Se tais não sopram aí, cuidado, você pode estar com problemas no seu anemômetro! Ou seria na biruta1? Por falar em profetas, cidades e ventos, está em curso aqui uma adoração leve, a gosto do freguês, aliás, tem sido assim, bem light, desde que Jeroboão, o primeiro, liderou uma revolta que abrangeu a maior parte dos israelitas, fundando o reino do Norte, isolando Roboão, no Sul, tornando o reino prometido dividido contra si mesmo. Não desejo me alongar nas razões que concorreram para tal acontecimento - você poderá pesquisar sobre o assunto em livros adequados, como as Crônicas dos Reis ou no livro das visões de Ido, o profeta (Você não tem uma cópia deste último? Que coincidência! Eu também não tenho, estamos quites!) - mas o motivo básico foi a falta de sensibilidade estratégica de Roboão. Um rei medíocre, cuja única boa característica era ser descendente de Davi, o maior e melhor rei que tivemos. A julgar por sua postura, ele achava que isso seria uma prerrogativa para legitimar os maiores abusos. O povo vivia sobrecarregado pela obrigação de manter o luxo e a opulência da casa do rei, mas, ao assumir o trono, contrariando todo bom senso, a promessa dele foi de aumentar a carga tributária e obrigar seu encargo, através de castigos cruéis, nos quais, figuradamente, trilharia as costas dos seus próprios súditos com escorpiões! O povo, que já estava escaldado por uma inflação altíssima, provocada pelo excesso de gastos públicos de Salomão, pai de Roboão, diante de uma promessa tão desumana – desconfio que não deveria ser reservada nem aos animais – rejeitou seu reinado. Dez tribos e meia se rebelaram e elegeram Jeroboão como novo rei, que, por sua vez, estabeleceu em Samaria a capital do reino do Norte, deslocando para lá não apenas um diferencial geopolítico, como veremos a seguir, mas todo um conjunto de ações estratégicas para desviar a atenção de seu 1 O anemômetro é um equipamento que permite descobrir a velocidade e a força do vento. A biruta é um instrumento que estabelece a direção do mesmo 10
  • 11. grupo (as tribos que haviam ficado sob seu comando) de Jerusalém. Esta divisão implicou em muitas outras de várias ordens, em maior ou menor proporção, umas mais e outras menos perceptíveis. Uma delas foi tomada com a nítida intenção de evitar a ida do povo judeu, que vivia ao Norte, à adoração em Jerusalém, capital de Judá, no Sul. Foram colocados dois bezerros de ouro, um em Dã e outro em Betel, em altares especificamente preparados. Esta providência intensificou alguns dos problemas espirituais que se desencadearam sobre nosso povo, não muito tempo depois. Pois, como seria previsível, os bezerros se tornaram os catalisadores da adoração popular no reino do Norte e o nível espiritual chegou a um estado generalizado de caos, no qual se devem incluir todas as práticas pagãs reprováveis que existiam ao nosso redor. 11
  • 12. Capítulo V Nós estávamos avisados dos perigos desse retrocesso religioso. Quando saímos do Egito, foram nos dadas ordens severas de que não deveríamos adotar as práticas dos povos cananeus, nem voltar as dos egípcios, com as quais alguns de nós já estavam familiarizados. Entretanto, contrariamente aos conselhos mais ponderados, as pessoas passaram a assimilar as crenças politeístas com suas doutrinas mais absurdas, participando ativamente dos rituais. Adoravam o sol, a lua, as estrelas, e sacrificavam aos ídolos das nações que nos rodeiam, e como se isso fosse pouco, sacrificavam seus próprios filhos àqueles. Voltamos, desta forma, aos tempos dos Juízes, onde cada uma fazia o que achasse correto. Acerca deste dramático momento da história de nosso povo, dois conterrâneos meus, Oséias e Amós, tornaram-se proclamadores incisivos e insossos de uma desgraça iminente, que ocorreria um pouco mais tarde. Eu os considero insossos, não por discordar das palavras deles, aliás, até tínhamos uma fonte sobrenatural comum de inspiração, o problema é que para ouvidos indóceis como os que encontrávamos ao nosso redor, palavras de exortação são consideradas assim, o paladar comunicativo não encontra sabor. Pessoas indolentes, de dura cerviz, querem mensagens afáveis, carinhosas, de exaltação particular. Aplicam filtros comunicativos, selecionam a parte que lhes interessa, tornam os conceitos relativos para justificar seus erros. É uma constatação crítica, que se encaixa perfeitamente no perfil básico da nossa população. Por falar nisso, ele não muda muito na outra parte do reino, de forma que praticamente tudo que dissemos até aqui se aplica igualmente ao reino de Judá. Pelo menos é o que dá conta as notícias que ouço. O rei Jeroboão II é o monarca que neste momento está a direcionar os rumos de nosso povo, do lado norte, o que em termos político-administrativos ele o faz muito bem, uma característica que o distingue dos demais que ocuparam o trono até agora. Décimo terceiro desde Jeroboão I (ou décimo quarto se você contar com Tibni), estendeu as fronteiras até a Transjordânia, o que não acontecia desde que Ben-Hadade, rei da Síria, as havia nos bloqueado anteriormente. Como os assírios, sob o comando de Adad-Ninari, decidiram subjugá-lo, deixando-o entretido em defender seu próprio território, nós nos aproveitamos da oportunidade e fizemos nossa retomada. Então, alcançamos um nível excelente de prosperidade material, que, infelizmente, não se refletia no campo espiritual. O que não é novidade já que, quase sempre, tendemos a esquecer que toda boa dádiva desce dos céus, e, quando isso acontece, quando não há esse reconhecimento, nossa gratidão se torna ritualista e desprovida de sentimentos elevados, um mero sinônimo para ingratidão. Temos, em resumo, um quadro de problemas religiosos em Israel, ao mesmo tempo em que temos progresso material inédito, numa demonstração clara que nem sempre um coração espiritual está rodeado de bens materiais, um ledo engano dos que buscam a prosperidade a qualquer preço. Nesse ínterim, a Assíria veio crescendo e passa de reles aldeias confederadas a nação que ameaça o mundo, trazendo em seu bojo uma das primeiras globalizações qualificadas da história, assunto que retomaremos mais adiante. Os reis passam a temer seu poderio e crueldade, ao mesmo tempo em que muitos se aliam para fugir da invasão. A seqüência de acontecimentos que passo a narrar se misturam, quase que abruptamente - já que não há como não entremeá-los, pois eles se intercalam entre si - no desenrolar dos fatos que até aqui foram colocados. Tudo começou quando, certo dia, eu recebi uma ordem. Não um chamado difuso, que poderia ser confundido de alguma forma, carente de predicados 12
  • 13. comunicativos, que permitisse divagações, dúvidas ou mal-entendidos. Detalhes esses que se tornam mais interessantes à medida que havia, em meus dias, muitos com um nome igual ao meu, e facilmente poderia ser tida como endereçada a qualquer um deles. Mas não é isso que aconteceu. O emissor estava bem identificado e distinto, não havia ruídos, a mensagem, bem clara e curta, me ordenava ir a Nínive, que nestes dias era uma imponente metrópole, cidade- estado do grande reino assírio, absolutamente desconhecida para mim, exceto pelo relato de viajantes admirados. Tais pessoas, vezes sem conta, falavam da beleza de suas construções, enquanto passavam por aqui. Aliás, os babilônios, os egípcios, os assírios, os gregos, os persas e medos, os hititas, os amoritas ou amorreus, enfim, todos os impérios poderosos do Oriente Médio, tinham construções magníficas, algumas das quais prometeram resistir ao tempo, especialmente as pirâmides-tumbas dos faraós no Egito e os zigurates babilônicos. Os seres humanos tendem a tais deslumbramentos e os governantes destes impérios capitalizavam sobre esta tendência, à medida que cada um construía prédios mais imponentes do que outro, numa tentativa camuflada de sobrepujação dos seus pares. Uma unanimidade são os castelos, cada vez maiores, e com maior ostentação, talvez, porque as dinastias pensassem ser eternas. Nós não fugíamos à regra geral, nosso templo era magnífico e nossa casa real só deixava a dever aos outros no que se refere ao tamanho, tanto que reis e rainhas de outros países vinham conhecer o arrojo de nossa arquitetura. Somente os anos seriam capazes de demonstrar a futilidade destas providências. Aliás, neste instante já é possível observar que muitas destas construções imponentes se tornam em ruínas sob o peso do tempo, da guerra, das catástrofes naturais, do abandono, e por uma série de outros fatores. Mas, deixemos as divagações e voltemos ao assunto de que vínhamos falando. 13
  • 14. Capítulo VI Não me pergunte o leitor como ouvi a mensagem, ou seja, por qual meio ela me veio, pois percepção é um dom raro, inerente à fé, um ingrediente essencial para compreender a história que lhe conto, aliás, será imprescindível uma boa dose dela daqui por diante. A partir desta premissa poderia ser um sussurro, uma voz, um trovão, o canto de um Cilindro de Ciro pássaro, uma mensagem escrita - acredite, a escrita já estava bem desenvolvida! - num papiro ou pergaminho, ou numa pequena tábua de argila, como os cilindros de Ciro, esculpida numa rocha, como as tábuas da Lei de Moisés, poderia, enfim, me chegar de várias formas e modos. Poderia, inclusive, ser a resposta ao pedido desesperado de um ninivita, descontente, como eu, com os rumos espirituais de sua nação. Para ser econômico na minha descrição, simplesmente, a mensagem veio a mim. Este vir assemelha-se a ser abraçado pelo vento, você não se dá conta de imediato nem da direção, nem da força. Num tempo em que os profetas recebem chamados do alto, não lhe deve custar compreender a dinâmica deste processo, a menos que os problemas dos seus dias apaguem o brilho dos meus. Compreenda apenas que é como acontecer um evento do destino, vem e pronto, não há como explicar imediatamente, precisamos revisitar mentalmente a cena várias e demoradas vezes, para que nos apercebamos dos seus detalhes, com o agravante de que cada vez que o fazemos novas informações nos vêm. Por qual modo, portanto, não faz muita diferença, pois o emissor, que daqui a algumas linhas você irá saber quem foi, quando transmite uma mensagem é um problema para o receptor. Ela se agarra de tal forma ao seu ser, que não se pode dela desvencilhar, e fica lá, impregnada no seu inconsciente, martelando na sua alma, não dá sequer para ignorar, fazer de conta que não é com você, passar a responsabilidade para os outros. Assim não importa se sentimos, se vimos ou se ouvimos, a mensagem vem a quem Ele quer, e eu garanto que é mais fácil esquecer de si mesmo, do que dela. Eu sei que se pode questionar que o cenário ao redor é de crise espiritual, conforme dizíamos há pouco, o que num primeiro momento poderia impedir eventos desta natureza, mas não podemos esquecer que sempre sobra a reserva técnica, os sete mil que não se dobram a Baal, não o adoram e não o beijam. Eles estão espalhados em meio à multidão, perceptíveis apenas por um poderoso elo que os une sobrenaturalmente. Este elo não é uma iniciação esotérica, apenas para determinados seres elevados portadores de uma aura cósmica, uma constelação sincrética de membros, ou coisas do tipo. Está disponível a todos quantos queiram dele participar, bastando para isso buscá-lo de todo coração. Inclusive, é esta sintonia maravilhosa de crer contra a esperança, em meio a aridez do deserto da vida, que permite vislumbrar fatos como o que narro. Portanto, sempre haverá alguém a oferecer uma oportunidade para ações sobrenaturais, a preparar um oásis no meio de um deserto espiritual. Apenas para que você tenha uma vaga idéia de como era insistente o parto de palavras de que falo, lembro-me que a primeira frase, quando a mensagem me veio, era: Levanta-te! Assim mesmo, uma frase de prontidão, semelhante àquela que o comandante dá à sua tropa. Não é que todas as vezes que eu me levantava, lembrava da ordem. Levantava da mesa, lembrava, levantava da cama, lembrava. Enfim, quando me levantava de qualquer lugar, lembrava da ordem a ser seguida. Já pensou na dificuldade de viver assim, acometido por uma premência que não te larga em momento algum? É..., eu disse que ser profeta não é fácil, a ansiedade se torna sua amiga em todas as horas - essas colocações talvez façam com que as pessoas sejam 14
  • 15. mais compreensivas em relação ao pedido de Elias para ver a morte, muito embora esta seja, em última análise, uma atitude difícil de justificar. 15
  • 16. Capítulo VII Como se exigiria a todo bom missionário, e também por uma questão de meticulosidade, comecei a reunir os dados disponíveis sobre o destino acertado, coletando esparsamente o que fosse possível encontrar, já que não existem bibliotecas por aqui. Os poucos livros que temos discorrem, quase que exclusivamente, sobre a história e a geografia de nosso povo. A maioria deles versa apenas sobre nossos rituais e leis, sendo livros de natureza intrinsecamente litúrgica. Invariavelmente possuem um formato difícil de portar. São feitos de materiais que não resistem o bastante às intempéries, muitos dos quais devem ser recopiados periodicamente sob pena de se perderem para sempre, como, aliás, já aconteceu com alguns deles, que não puderam ser repassados para a posteridade. Não existe papel, nem impressão gráfica, o que quer dizer que as impressões em série devem ser esquecidas. As tintas não são resistentes o suficiente, e os materiais existentes para se escrever sobre eles se resumem basicamente às seguintes opções: a) O pergaminho - feito de couro de animais. O couro era curtido e preparado para que se pudesse escrever sobre ele. Não é rara a aplicação da técnica do palimpsesto aos pergaminhos, porque estes sendo melhores para a escrita e mais duradouros, são também os mais caros. A técnica consiste em lixar o pergaminho, com uma pedra-pomes ou outro artefato semelhante, e reaproveitá-lo porque sua tinta anterior se desfigurou. Muitas vezes outro texto diferente, e até em outra língua, era escrito no mesmo pergaminho. Noutras vezes era o estilo de escrita que seria atualizado. Minha língua passou por diversos estágios de desenvolvimento, de forma que estamos numa era em que as letras possuem uma forma bem estilizada, mas antes os caracteres possuíam um formato, digamos, bem primitivo, diversos palimpsestos refletem estes estágios; b) O papiro - feito a partir de plantas aquáticas desidratadas trançadas entre si como uma esteira, e, em seguida, lixado e untado para facilitar a escrita. Era um material originário do Egito e bastante utilizado pelos reis de lá; c) A argila - na qual se deveria escrever quando ainda úmida, para depois se colocar ao sol ou nos fornos das olarias; d) As pedras - nas quais se escreve em grandes ou pequenos blocos esculpindo com um cinzel ou algo semelhante; e) E a madeira, idem. A Assíria era longe, não menos que oitocentas milhas, em linha reta, a nordeste da pequena Gate-Hêfer, minha terra, na tribo de Zebulom, próximo à Nazaré, oito quilômetros a noroeste do Monte Tabor. Oops! Observem bem este detalhe: oitocentas milhas em linha reta! Como todos aventureiros dos desertos das Arábias sabem, não há rotas assim por aqui, e por nenhum canto do mundo de então. Todas as estradas - se é que podemos chamar os íngremes e mal traçados caminhos do Oriente Médio antigo dessa forma - serpenteiam, ora por desertos e oásis, ora por rios e montanhas, ora por qualquer outro motivo, inclusive vales e vaus de rios, cujos trechos devem ser atravessados apenas nos períodos de seca, sob pena de afogamento. Muitas vezes um acampamento é montado, e os animais dispersos a pastar por vários dias, até que seja possível a travessia. Infelizmente, ainda não dominamos a tecnologia necessária à construção de pontes, o que me seria extremamente útil no momento. Aos viajantes resta unicamente o consolo de saber que indo assim, fazendo voltas e mais voltas, se chega ao destino desejado. Afinal, é menos trabalhoso tomar o caminho e segui-lo, chegando aonde se quer, do que ficar tentando consertá-lo. Certamente, neste último caso, a 16
  • 17. solução é desaconselhável para quem quer realmente chegar a algum lugar. Adicione-se que não havia mapas confiáveis das rotas, e, muitas vezes, cada viajante tratava de fazer o seu ou alterar o dos outros. O alívio sobrevém do fato de sabermos que há muitas cidades que estão nascendo ao redor destas precárias estradas, então, se torna um pouco mais fácil conseguir orientação e hospedagem, minimizando os riscos de uma empreitada tão longa. É evidente que não se deve esperar uma acolhida tão imediata, pois muitas destas cidades são habitadas por estrangeiros, e nossas leis rígidas de higiene e culto nos impedem de hospedar-se com qualquer pessoa. Pode parecer um pequeno detalhe esmerado, mas nós o levamos muito a sério. 17
  • 18. Capítulo VIII Para chegar ao destino proposto pela mensagem, eu dispunha da antiga rota do caminho que segue por Damasco, ou a mais distante, pela que passa sucessivamente por Hamate, Haran e Gozan. Eu não dispunha de cavalos, nem de camelos, nem carros, que dessem cabo da distância, sem contar a dificuldade de levar guias, água, comida e companhia, e os parcos recursos que possuía mal davam para sair das bordas do Crescente Fértil. Crescente Fértil, em destaque abrangência do Império Assírio Se você não sabe do que estou falando, se dá este nome à meia-lua, em forma de arco, onde ficam os países que terei de atravessar. É uma extensa faixa de terra que vai do Egito ao norte da Líbia, bordejando o Mar Grande, e daí, desemboca no Golfo Pérsico. Ela abrange quase todos os grandes e médios impérios antigos e em seu interior floresceram algumas das mais desenvolvidas civilizações. Inclusive, nossos livros dizem que foi naquela parte do mundo que a humanidade nasceu, já que ali estava o Éden. Na verdade, eu me encontrava no meio deste arco, mas isto, contrariamente ao que se possa imaginar, quer dizer que são muitos quilômetros até a terra de Ninrode. Sim..., ia esquecendo de informar que foi este líder quem fundou Nínive, e outras cidades assírias, como Reobote-Ir, Calá e Resen. Como já falei anteriormente, de início eles eram apenas uma comunidade de camponeses e guerreiros rudes, que orientados pelo Código de Hamurabi, rei de Babilônia, com quem mantinham estreitos laços fraternos, veio a se tornar uma grande potência bélica. Em termos de porte, provavelmente, a primeira da história. Uma excelente alternativa seria tomar um navio no porto de Jope, e ir navegando pelo Mar Mediterrâneo, mas Nínive não é banhada pelo mar. Isto mesmo que você acabou de ouvir, ou melhor, ler - é... percepção é assim, a gente não sabe, de imediato, se leu, se viu ou se ouviu, ou todas estas coisas ao mesmo tempo - contrariando a noção comum, Nínive não tem porto marítimo, nem praia, é banhada apenas por um rio, que se revolve em suas margens sinuosas, o Tigre, também conhecido como Hidequel, um dos que banhavam o jardim do Éden, daí a dedução do lugar ser o gênesis do mundo, captou? As cidades principais espraiam-se por suas margens, tanto de um lado quanto do outro, dependendo intrinsecamente de suas águas, como de resto dependem todas as nações do nosso tempo, e porque não dizer, ou escrever, todas as nações de todos os tempos. Aliás, é bom frisar que todas grandes cidades antigas nasceram e cresceram ao redor de rios e mares. Então, não será necessário muito esforço para deduzir que a água é um bem básico, pois aglutina os povos vizinhos em suas fontes e caminhos, de maneira que a dependência dela é completa e vital. Para plantação, para consumo humano e animal, para higiene, para a preparação de alimentos, enfim para quase tudo. E ela ocorre em pouquíssima quantidade no Crescente Fértil. Para que você tenha idéia, meu país tem pouco mais de dois por cento do seu território com água. Esta dependência causa não poucas guerras e há constantes ameaças de surrupiar territórios dos outros, apenas para se apoderar das fontes e rios. Com relação à água, temos ainda um outro problema recorrente, é o acesso ao mar. Isso é importante para os países, pois podem, utilizando barcos, navegar e vender seus produtos excedentes, organizar uma frota com um exército que chegue mais rapidamente do que por terra, e, assim, dominar um recurso poderoso e estratégico. Não deixa de ser um motivo excelente para novas guerras e invasões, afinal, se uma nação não tem acesso ao mar, ela deveria lutar por isso, e não poucas o fizeram. 18
  • 19. Descartada a alternativa de ir por via marítima, restava a opção de seguir por terra, mas aqui começam as dificuldades porque no caminho entre mim e Nínive tem o perigoso deserto da Síria. Eu teria que contorná-lo ou atravessá-lo, e, falando ou escrevendo, parece fácil, mas para trilhá-lo a realidade é outra. Atravessar o deserto significa combinar as caminhadas com os horários mais adequados, para evitar o calor do dia e amenizar o frio da noite, conviver com animais peçonhentos, fugir de ladrões que conhecem cada palmo dele, ter guias beduínos que o conheçam da mesma forma, subidas íngremes que terminam em vales profundos Abecedário acádico-ugarítico repletos de areia e pedras, desfiladeiros perigosos, nos quais um leve resvalo dos pés pode se traduzir numa queda mortal, além da distância, que com a soma de todas as variáveis anteriores tende a parecer maior, cobrando um preço muito caro do corpo de quem insiste em realizar tal proeza. Para os que acham isso pouco, ainda restam as terríveis tempestades de areia, que ocorrem durante a primavera e o verão, dispostas a mudar o traçado de qualquer caminho em questão de minutos, ou cobrir um acampamento inteiro, sufocando os acampados. Era preciso ser um aventureiro e tanto para assumir tamanha façanha e chegar vivo e inteiro ao destino. No entanto, mesmo com esse item no meu resumo mental, não conseguia me dispor para a partida. Nem mesmo o palácio de Senaqueribe, do qual falavam com tanta admiração, despertava minha curiosidade. Falavam em nove mil metros quadrados, deveria ser soberbo! Eu tinha certeza que a cidade era grande por uma razão bem simples. Minha língua costuma ser econômica nos adjetivos, e aquele que me enviava se referia a ela como a yr hagdôlá, a grande cidade. Então, tinha de ser enorme! Por falar em língua, um outro fator de complicação era que eu não conhecia nenhum dos três idiomas aparentados utilizados na Assíria, país de onde meu destino era uma das principais cidades, ao lado de Assur, Corsabade, Arbela e Calá. Essas línguas eram o sumério, o acádico ou acadiano e o ugarítico. Das três, o acádico era compartilhado com os babilônios, com quem os assírios mantinham estreitos laços culturais, inclusive em vários momentos da história tiveram reis únicos, e de lá Escrita cuneiforme importaram seus códigos civis, como dissemos há pouco. Sua escrita constava de um emaranhado primitivo de sinais, que se assemelhavam a pequenas setas verticais e horizontais, lidos em vários sentidos, ao sabor do escriba, apesar das indicações bem nítidas no texto sobre a direção exigida para o lermos. De certa forma, as três línguas eram bastante parecidas. É evidente que o sistema de seiscentos caracteres fixos já representava um progresso espetacular, diante do complicado sistema hieroglífico do Egito, mas em qualquer dos dois casos você tinha de conhecer para poder utilizar. Mesmo que minha língua fosse uma prima distante - o hebraico é uma língua derivada do mesmo ramo semítico - era uma dificuldade e tanto, principalmente, se levarmos em conta a necessidade de proficiência para falar a um povo desconhecido e ser compreendido razoavelmente. Uma situação de resolução impossível em pouco tempo. Onde aprender ao menos uma delas? Isso bastaria para uma comunicação eficiente? Não havia livrarias, nem livros, nem gramática sistematizada, entrega postal, tradução simultânea, em suma, nenhuma facilidade. Sem contar que os assírios usavam, quase exclusivamente, a argila e as pedras para escrever. Portanto, um livro com todas as regras da língua neste formato era, digamos, pesadinho! Imagine um dicionário? Uma enciclopédia? Um código legal? 19
  • 20. Se, ao menos, eu soubesse uma daquelas línguas poderia mandar uma carta, ou, quem sabe, um pequeno recado escrito em pedra, papiro ou pergaminho. Mas as correspondências aqui não são entregues por correios, porque eles, simplesmente, não existem. As cartas são enviadas por intermédio de parentes e amigos, e, como é presumível, chegam atrasadas, muitas vezes em anos, porque precisam ser repassadas de mão em mão até o destino final. Nínive tinha pouco tempo, então, carta nem em sonho. Seria uma opção razoável, mas ineficaz no momento. Eu creditava esse desconhecimento da língua a uma providência divina, pois eu seria tentado a repassar esta responsabilidade às mãos de um mensageiro qualquer que poderia chegar ou não ao destino. Não, não deveria ser assim, eu teria de ir pessoalmente. 20
  • 21. Capítulo IX Como se isto não bastasse, às dificuldades se juntava o fato de que os assírios eram politeístas, adoravam a diversos deuses, uns, mais, outros, menos, mas, vários, com certeza. O que lhe faz deduzir, sem muito esforço, que mais um não faria diferença. Cada rei que assumia o trono elegia sua própria divindade e a exaltava com templos e cerimônias, em detrimento de qualquer outro. Suas principais divindades eram Assur, tido como o deus fundador do império, Sim, o deus-lua, Shamash, o deus-sol, Istar, deusa das estrelas, e Tamuz, seu marido. Aliás, a tendência politeísta estava bastante enraizada em toda Mesopotâmia, a terra de entre rios, e as grandes nações da região faziam questão de ter deuses em grande quantidade. E não só isso, os formatos variavam abundantemente, os escultores e oleiros procuravam produzir deuses que parecessem com objetos, corpos celestes, pessoas e animais, mesclando várias de suas características. Lá existiam deuses demais, para todos os gostos e bolsos, inclusive os de carne e osso - do ponto de vista prático, os mais perigosos. Digo isto porque os outros, de madeira, pau, pedra, bronze, ferro, prata, ouro, e outros materiais nenhum mal por si mesmos poderiam fazer. Inanimados que eram não tinham poder algum, a não ser quando utilizados pelos seus adoradores e sacerdotes para infundir algum medo, por exemplo, nos outros. Óbvio é que muitas pessoas buscavam neles o remédio para seus males, e a justificativa para maldições, bênçãos e outras situações, querendo com isso conceder-lhes os créditos que não lhes eram devidos. Eu, pelo contrário, sou monoteísta radical, portanto, via dificuldades para que eles redirecionassem este posicionamento. Muitas dessas pessoas, é bom anotar, possuíam uma fé genuína, apesar de deslocada no objeto de sua adoração que nada é, outros, porém, tinham a finalidade principal de engrandecer seus próprios nomes, de alcançar algum status temporário. De qualquer forma, adorar a estes deuses, produzidos pelas mãos humanas, é uma cegueira inominável. Mas fazer a demonstração deste problema não é o objetivo desta história, ela ocorre a reboque dos fatos que serão narrados, e não deixa de ser importante para nossa compreensão de como os engodos se enraízam facilmente, e de como eu estava enrascado. Somente a história seria capaz de mostrar como era vã esta deturpada adoração mesopotâmica. Quem sabe, mais adiante, todos estes deuses passassem a ser apenas um registro histórico, resumidos a uma citação num livro de arqueologia qualquer? Sem altares, sem adoradores, apenas uma lembrança de uma civilização remota? O testemunho vivo de que somente um é verdadeiro, os outros são como a palha que o vento dispersa. 21
  • 22. Capítulo X Para complementar minha lista de pontos negativos restavam dois, um deles era o conteúdo da profecia. Era um rolo amargo como fel, sem nenhuma tendência a se transformar em mel. Aquele tipo de coisa que não se quer que os amigos falem de sua cidade, muito menos um estrangeiro. Dizia: Em quarenta dias esta cidade será destruída, porque seu mal chegou até mim! Assim, quarenta dias, secamente, nada de elogios às construções imponentes, aos templos suntuosos, aos deuses, ao rei, promessas de prosperidade, nada de massagens no ego ninivita, ao contrário, uma promessa de destruição. Quarenta dias era pouco mais de um mês, um cálculo que, por sinal, diferia de país para país. Não dava para colher a plantação, não dava para criar os filhos nascidos, sequer para esperá-los numa gravidez, era um período de emergência. Era para ontem, para acontecer já, diferente dos sete anos egípcios de José. Confesso que eu mesmo não ouviria uma colocação dessa natureza de coração aberto, nem seria fácil compreender seus motivos. É mais que evidente que nós criamos um elo psicológico muito forte com nossas cidades. É ali que nós nascemos, que crescemos, que vivemos, que constituímos família, que criamos nossos filhos, onde residem nossos parentes, é o local no qual convivemos com os amigos, e por estas e outras razões, mais subjetivas, há um apego instintivo facilmente intuído. Eu tinha certeza que nenhum ninivita gostaria de ouvir falar de destruição para um local que estava tão arraigado no inconsciente coletivo do seu povo, muito menos que um deus desconhecido o faria, através de uma mensagem de um profeta idem. Utilizando a assertiva acima, todas as teorias de empatia comunicativa cairiam por terra. Predisposição do ouvinte? Nem pensar. Quem seria levado a ouvir com condescendência uma afirmação tão ofensiva? Eu raciocinava em cima da criação de um elo nas circunstâncias iniciais da minha fala, nos primeiros contatos, quem sabe uma dinâmica para quebrar o gelo, uma ilustração retórica, para depois trazer a mensagem final, mas minha mente se recusava a percebê-lo. Já despontava por aqui um tipo de diálogo falacioso que procura exaltar o interlocutor, que se sentindo lisonjeado é golpeado em seguida com o verdadeiro conteúdo do que se quer dizer. Mas não era ético proceder assim, então fui impedido de utilizar este recurso pelas minhas próprias convicções. Eu deveria ser objetivo e direto em minhas palavras, falando o que realmente interessava. Note-se que, em conjunto com a necessidade de proclamar o juízo que irremediavelmente iria se abater sobre eles, havia a dificuldade adicional de informar que o pecado do povo assírio havia subido até os céus. Qual o por quê? Por que meio? Como? De que maneira? Não me perguntem os assírios! Eu achava difícil explicar, por exemplo, qual a razão pela qual um determinado deus reivindicava o respeito e a adoração dos ninivitas, quando estes sequer o conheciam e nem o listavam em seu panteão. E, por último, mas não menos grave, eu havia aprendido, no cotidiano, a pensar que éramos um povo exclusivo, com leis únicas, com crenças peculiares, a elite dos terráqueos. Costumávamos nos assemelhar a uma romã, cuja casca é dura, mas o fruto é doce. Impúnhamos esta similitude aos que procuravam nossa amizade, dizendo: rompam esta casca e gozarão de nossa simpatia, como a interpor um enigma. Semelhante à Esfinge do Egito: decifrem-nos ou serão devorados por nosso desprezo e não receberão nosso afeto. Sabe como é, quando você floresce tende a esquecer a raiz, que é quem inicia a alimentação da árvore, em outras palavras, é quem garante a seiva. Flores e frutos ocultam a verdadeira noção de alimento e sustento, e os ramos tendem à soberba. Eu sempre ignorei a metáfora do mar da 22
  • 23. Galiléia. Recebendo as águas que descem do Hermon, através de seus inúmeros riachos e corredeiras naturais, ele as passa adiante através do rio Jordão, deixando um rastro esplêndido de água potável, vida, peixes e beleza além de beneficiar as pessoas em seu entorno e tornar florida uma trilha árida. O Mar Morto recebe estas mesmas águas, mas as retém, tornando-se infrutífero, num processo autofágico e destrutivo. Em outras palavras, a água, por si só, é incapaz de fechar o ciclo de vida ali, ficando a mercê do modo pelo qual rio e mar a utilizam. Aquilo soava como um prenúncio de desgraça para nós, e eu, como todo judeu que se preza, preferia esquecer tal analogia. Portanto, qualquer tentativa que tendesse ao proselitismo não era vista com bons olhos. Nós perdíamos tempo conjeturando em cima de hipóteses tais como: E se o povo de tal país se convertesse a nossa religião? Seríamos obrigados a rever nossas teses maniqueístas, recebê- los em nosso templo, ensiná-los nossos rituais, transmitir-lhes nossas tradições. Não nos parecia uma possibilidade muito simples que o judaísmo pudesse ser assimilado por qualquer pessoa. Isso sem contarmos que a proposta nesse instante era de que uma grande cidade, de mais de cento vinte mil pessoas, fosse convidada a fazer uma mudança tão radical. 23
  • 24. Capítulo XI Comparando nossa história com a da Assíria, o que mais nos poderia assemelhar seria a grande misericórdia que nos inundou como um tsunami, arrastando-nos através de vagas impenetráveis para mãos eternas e invisíveis. Não desejava a mesma boa sorte e bondade para eles. Eu não amava aquele povo a ponto de fazer um sacrifício tão grande, apenas pelo prazer de vê-los se arrependerem e repartirem conosco nossos bens espirituais. Eu ignorava, inclusive, que foram estrangeiros fenícios que ajudaram a construir nosso templo, imprimiram boa parte do estilo que nossos monumentos possuíam, além dos objetos neles contidos, e forneceram muitos dos seus materiais. Relutei em lembrar que foi o rei Hirão, quem forneceu boa parte, senão toda, da madeira do templo e do palácio real. Até mesmo o papiro e o pergaminho que utilizávamos para copiar nossa Tanakh, por exemplo, foram criações importadas dos fenícios e egípcios. Além disso, dos primeiros nós importamos a escrita e o alfabeto, e até o estilo, que sobejamente se assemelhava ao nosso. E foram estes últimos que nos acolheram num momento de fome, muito embora tenham nos escravizado anos depois. Ou seja, nossa dependência e importação de valores culturais estrangeiros eram muito maiores do que poderíamos imaginar, e, portanto, nenhum mal específico poderia advir do contato com eles, exceto, se nós mesmos nos dispuséssemos a ser influenciados, afinal, não é o que entra que contamina o homem, mas o que sai. Este contato, por sinal, era inevitável, porque nosso país fica numa rota de passagem entre as grandes nações do norte e o Egito, ao sul, que viviam numa alternância sem fim de interesses que iam da guerra ao comércio, passando pela cultura. Todo dia nosso país assiste à passagem de uma caravana advinda de um país diferente, e nossa cegueira impedia de enxergar as vantagens deste intercâmbio. Bastava que nos resguardássemos de quaisquer envolvimentos com as religiões destes povos - o que de fato parece simples, mas não é - e aproveitássemos a oportunidade para anunciar a nossa, para promover um debate espiritual saudável, para esclarecer nossas posições no assunto. Estar ali, na encruzilhada do mundo, era uma oportunidade única, que nós desperdiçávamos de forma voluntária e intencional todos os dias. Deveria haver algum propósito nesta providência, mas não tínhamos qualquer interesse em descobrir qual era. Existe uma história bem interessante entre nós que busca fazer uma analogia do relacionamento divino com os gentios e os judeus. Ela conta que certo homem tinha dois filhos. O mais novo, representante da ingenuidade juvenil e dos gentios, dirigiu-se a ele e disse-lhe: Dá-me a minha parte da herança, pois desejo conhecer o mundo. O pai, apesar do coração destroçado, repartiu a herança e deu-lha conforme seu pedido. O filho gastou toda riqueza - que na verdade fora amealhada por seu pai - que representava sua parte na herança, com os prazeres deste mundo, na procura por satisfazer seus desejos. Mas, mal acabara seu dinheiro, seus amigos se afastaram, deixando-o triste e só. Nessa condição encontrou emprego numa casa a cuidar de porcos, uma função que para nós era inaceitável. Desejou, então, voltar à casa paterna, e para isso tomou o caminho de retorno tão logo quanto pôde. Quando ainda vinha longe o pai, que todo dia sonhava em revê-lo, reconheceu seu caminhar, e tomado de alegria correu ao seu encontro, o abraçou e beijou, como se nada tivesse acontecido. Mandou que matassem o novilho cevado, pusessem nele a melhor roupa e preparassem uma grande festa. Mas, o filho, que simbolizava o povo judeu e ficara em casa, irou-se profundamente e argumentou com seu pai porque aquela festa nunca tinha sido feita para ele. Ao que o mesmo retrucou: Você sempre esteve comigo, mas seu irmão estava perdido e foi achado, estava morto e reviveu. E todos se alegraram. Nós não queríamos compreender as implicações desta parábola para nosso cotidiano. Desfrutávamos diariamente da companhia do pai, sem nos 24
  • 25. darmos conta da dimensão desse relacionamento, apenas o olhávamos pelo aspecto exclusivista, mas ele possuía outro filho, a quem por uma questão de justiça cumpria amar como pai e a nós como irmão! Por falar em estrangeiros, a fama guerreira dos assírios era terrível. Para o rei, por exemplo, conquistar os países vizinhos era uma determinação divina improrrogável, era a missão principal para a qual eram constituídos pelos deuses, e quando nelas morriam eles eram sumamente glorificados, e ganhavam o direito às maiores honrarias na condução de Alto relevo de guerra assíria seus féretros. Os historiadores dão conta de que quando invadiam uma cidade, montavam um requintado espetáculo macabro. Amontoavam os mortos numa grande pilha de cadáveres para assustar as cidades e países vizinhos. Os que ficassem vivos sofriam uma morte horrível, eram empalados, ou seja, eram espetados, pelo ânus, em vigas de madeira, e ficavam ao sol e à chuva, até morrerem. Com certeza, era um aviso dramático para quem passasse por ali, mas em termos de crueldade isso ainda era pouco. Conforme as crônicas da monarquia assíria, preservadas para o futuro nas inúmeras plaquetas de barro que os reis mandavam cunhar2 para proclamar seus feitos, um de seus reis, Salmanazar I, capturou, certa vez, quatorze mil soldados inimigos, e, para certificar-se que o serviriam sem reservas, tirou-lhes a visão! Eram cruéis ou não? 2 Daí nos chegou o termo cuneiforme. 25
  • 26. Capítulo XII Eles também desenvolveram um modo peculiar de enfraquecer as possíveis resistências. Quando um país era invadido, os exércitos conduziam povos de outras nações e as faziam habitar nas cidades conquistadas. Assim, mesclando os habitantes, praticamente eliminavam as possibilidades de revolta. Em resumo, temos uma grande cidade, cujo histórico de maldade de seu povo criava dificuldades para compreender a necessidade de pregar-lhe uma boa nova. Estar sendo enviado a Nínive era uma prova do dom gratuito da bondade divina, a todos os males noticiados o prêmio da oportunidade de misericórdia. Para mim, era uma situação inconcebível, não julgava aquele povo merecedor de tão grande deferência. Deus, por sua vez, não me disse como chegar, - lembram que eu sou detalhista? - nem como me guiaria a exercer sua vontade, sequer me ofereceu um mapa. Sentia-me, desta forma, desobrigado - puxa vida, acabei dizendo quem era o emissor da mensagem, queria deixar isso para mais tarde. À medida que sobravam inúmeros pontos negativos, o cerco se fechava ao meu redor obrigando-me a tomar uma iniciativa. Como não percebia nenhum motivo para partir, fechava-me num casulo carrancudo de apropriação indébita. A mensagem não era minha, nem era para mim, nem para meu povo, mas, eu recusava levá-la a quem de direito, e me enchia de motivos para justificar esta decisão. Ainda que tais motivos não fossem ideais, nem justificáveis, eu achava que poderia fazer isso, que tinha uma condição implícita de falar apenas se eu quisesse, já que eu era o portador da mensagem. Eu saberia, mais tarde, que isso era um grande engano. Entretanto, o desafio continuava e da urgência da mensagem eu não conseguia fugir, ficava sutilmente ecoando nos afazeres do dia-a-dia. Até parecia ter personalidade, se assemelhava a ter um espinho na carne esbofeteando minha vontade, que eu insistentemente orava para que se apartasse de mim, mas não conseguia. Decidi que deveria tomar uma atitude definitiva, para quebrar este ciclo estressante. Uma idéia aflorou na minha mente assaltada por milhões de pensamentos conflitantes: E se eu fugisse? Nossa história continha exemplos de pessoas que fizeram isso, com um certo grau de sucesso. Moisés, por exemplo, quando fugiu da morte pelas mãos de Faraó, rei do Egito. Lembra? Após matar um de seus súditos que agredira um israelita? E Jacó, quando traiu Esaú, seu irmão, com um prato de lentilhas, e, em seguida, enganou Isaque, seu próprio pai, com o couro de animais nos braços e pescoço? Sendo obrigado a fugir para que seu irmão não o matasse? Ou como Elias quando matou corajosamente tantos profetas e depois fugiu de Jezabel, mulher de Acabe? No entanto, havia uma variável importante: Onde? Para perto não dava, já havia tentado fugir camuflado nas ocupações cotidianas, sem sucesso. Tinha que ser para bem longe, os confins conhecidos pelos navegantes parecia razoável, era o horizonte máximo que eu poderia divisar. Para colocar tal plano em prática, a melhor coisa a fazer, sem dúvida, seria tomar um navio. Passagem barata, acomodações razoáveis, opções de destino incontáveis, quem sabe alguns parentes do ramo, ou mesmo amigos, enfim, uma decisão extremamente adequada para o momento, uma alternativa moderna para escapar. Até surgia a possibilidade de ir a lugares mais distantes do que eu imaginava, a partir do destino inicial, quem sabe uma conexão para a Índia!? Neste intento, desci a Jafa - ou Jope, desculpe a salada de nomes, mas eu precisava me acostumar a descrever as palavras em outras línguas, se quisesse ir, obviamente, apesar de esta ser uma possibilidade remota. Aliás, Jope, como todo porto, é um local cosmopolita, 26
  • 27. acostumado a um palavreado entremeado de sotaques dos mais diversos cantos de nosso planeta - e..., surpresa! Um dos destinos disponíveis era Társis, nas proximidades dos penhascos de Gilbratar, na Espanha, praticamente no meio do Mar Mediterrâneo. O navio seria guiado pelos experientes marinheiros fenícios, que conheciam detalhadamente aquelas rotas marítimas. Afinal, desde tempos imemoriais, eles comerciavam com todas as cidades costeiras da região. Imaginava que se os fenícios alcançaram o Atlântico e circunavegaram a África, o que seria daquele pequeno passeio até Társis? Um sentimento engraçado se apodera de nós quando estamos fugindo, parece que toda possibilidade se torna real a nós, num momento, como se estivéssemos entorpecidos. Inclusive, o destino se torna tão próximo que aumenta a expectativa e os passos da fuga se tornam maiores que os de uma jornada comum. Julgo que, uma vez ou outra, todos nós queremos fugir, seja da vida, de Deus, da juventude, das responsabilidades que nos são impostas e/ou assumidas, do amadurecimento causado pela idade, da verdade, dos problemas, e até de nós mesmos. Chego ao extremo de pensar que este desejo nos persegue desde que somos pequenas crianças levadas, cujo divertimento principal é nos esconder de nossos pais, irmãos e amigos, a esperar que nos procurem preocupados. A fuga, de certo modo não compreendido, significa poder, o poder de fugir, de se ocultar, de simplesmente sair de cena sem ser notado ou sendo, desaparecer da vida real para um mundo virtual somente nosso – este mundo, aliás, presumo que se tornará mais disponível tão logo algumas grandes descobertas aconteçam, e as pessoas possam momentaneamente fugir da realidade. Quando não conseguimos lidar com a configuração que temos à nossa volta ou compreendê-la, enfrentar nossos oponentes, conformar os fatos à nossa vontade, nós fugimos. E, como podia fugir, isso dava o direito subliminar de poder diminuir Deus, razão da minha fuga! Pequeno como era, segundo meu raciocínio obtuso, Ele ficara para trás, limitado aos confins israelitas, quem sabe no porto, a procura de outro que fizesse meu trabalho? Aliás, Ele sempre está a procura de alguém, para fazer alguma coisa. Eu sempre tive problemas para compreender a dialética que envolve este gesto divino misterioso. Se Deus pode tudo, por que precisa de nós? Por que é incapaz de fazer determinadas coisas e nos delega? Por que Ele mesmo não ia a Nínive e anunciava sua vontade aos ninivitas? Ou falava a um profeta de lá a mensagem que deveria ser anunciada por mim? Eu sorria matreiro, pensando em como fora tão fácil despistá-lo, e ainda teria a oportunidade de conhecer uma nova cidade. Não poderia ser melhor! E quanto aos ninivitas? Como saberão que sua cidade tem tão pouco tempo? Ora essa, que se arrependam por conta própria, isto era um problema exclusivamente deles. Eu queria distância dali, ir à Assíria, parecia um sonho esquecido numa brincadeira de criança ou num delírio juvenil? Convém informar que tanto a direção, quanto a distância a que eu me propora agora seguir eram inversamente proporcionais ao destino inicial, perfeito, portanto, para minhas pretensões. Nínive ao leste, tendendo ao norte, e Társis ao oeste, tendendo ao sul, quase que exatamente opostos. Duvidava entre se Deus poderia me encontrar ali ou não, balançando nas ondas, quando adormeci no porão, num torvelinho de sensações contraditórias e ambíguas, mas, ao mesmo tempo, interessantes. Dormia o sonho dos esquecidos, dos que fazem de conta que não viram ou ouviram, dos que juram que não sabem de nada, dos que possuem a falsa noção de que podem omitir a verdade, dos que acham que podem até mesmo se apropriar dela e com ela fugir para onde quiserem. Naquele navio, nem Deus poderia me alcançar, cheguei a esta conclusão resoluto e impassível, assegurado por meu obstinado coração, um coração de dura cerviz. 27
  • 28. Capítulo XIII Nestas horas decisivas as grandes bases sobre as quais nós construímos nossas atitudes mais éticas ruem repentinamente, e sobram apenas nossas pretensões, nossos interesses mais infelizes. O que queremos passa a ter precedência sobre o que é correto fazer, e nós anulamos nossa consciência, nossos ensinamentos, nossa moral, nossas virtudes mais caras, ainda que esta sensação dure apenas alguns instantes. É um sentimento singular de liberdade perigosa, pois, permissível que é, se torna uma arma virtual a ameaçar os outros, e acaba por se voltar contra nós. O navio zarpou serpenteando pelas águas, impulsionado pelo vento que suavemente inflava suas velas. Como ia dizendo, ou escrevendo, - lá vem percepção de novo! - dormi, não sem antes descer ao porão do navio, um lugar frio e aconchegante a um fugitivo. Ia longe, no sono e no caminho que uma embarcação descreve em meio às águas do mar, que o sábio rei Salomão elegeu como uma das maravilhas do mundo antigo, quando fui acordado pelo barulhento capitão. Ele gritava, como se algo grave e terrível estivesse acontecendo. Não encontrei os caixotes que levavam as fazendas e costumeiramente estavam a bordo. Atarantado e procurando me equilibrar no balanço frenético do navio, de súbito me levantei, olhando ao redor, observando que toda carga havia sido lançada nas águas, boiando em meio a um vendaval que perdia de vista. O vento soprava, assobiando por entre ondas gigantescas, balançando o barco a seu sabor, irreconhecível na brisa suave do momento que partimos. Era tão forte que fazia a nau parecer uma marionete nos poderosos braços invisíveis do mar. Não sei como é que eu não tinha acordado antes? Como eu tinha conseguido dormir em meio a uma tão grande turbulência? Atraindo meu olhar ele falou abruptamente: - Que tens dormente? Essa doeu! Logo eu, que tinha saído da pequena Gate-Hefer, uma distância de cerca de trinta quilômetros de caminhada até Jope, e apanhado um navio para ir a Társis? Após tanto sacrifício, era impossível ser um preguiçoso. Fugitivo, sim, mas, dorminhoco, não. Eu dormia para fugir da pressa da missão. - Levanta-te! Oh! Não, de novo, não! O que eu mais queria era ficar ali, repousando naquele porão frio e fedorento. Nada de me erguer, a expressão evocava sentimentos que eu preferia esquecer. - Clama ao teu deus! Esta assertiva foi um nocaute doloroso. Era inadmissível o fato de que um gentio ousara ordenar-me clamar à última pessoa ou ser com quem eu desejaria falar! O duro é que a colocação pressupõe que o interlocutor tenha um, e, além disso, esteja em condições de ou precise procurá-lo. Eu olhava incrédulo para ele, estando a ponto de destratá-lo por tamanha insolência, mas o mar vinha a nos despertar para necessidades mais urgentes, jorrando sua língua aquosa por todos os cômodos da embarcação. Quando o porão ficou totalmente encharcado, tornou minha letargia ali impossível, me forçando a uma retirada. À medida que me erguia tremulando, procurando a saída para o ar livre, lenta e gradualmente uma realidade 28
  • 29. terrível me assaltou. Deus tinha vindo ao meu encontro, para me ensinar uma dura lição prática de onipresença. O comandante emendou desesperado: – Talvez se lembre Deus de nós e não pereçamos! Ele contava que um último resquício de fé pudesse nos livrar da morte que se anunciava. Assim nós pensamos ante as dificuldades, julgamos que fomos esquecidos, em meio às tormentas de nossa existência, e torcemos para que Deus se lembre de nós. Fugimos dEle, e subitamente descobrimos que dEle precisamos. Os marinheiros jogavam o que restara das cargas do navio, murmurando ou gritando preces aos seus deuses, conforme as crenças particulares e o estado psicológico de cada um permitia. Era uma tarefa difícil de realizar porque as águas não davam trégua, tornando, por exemplo, o esforço de se ficar em pé quase impossível. O que os empurrava para aquela situação é que quando você sabe que vai morrer então tenta se apegar a tudo, num desespero eclético. Até mesmo minha fé baseada em esteios tão legalistas, nos quais estavam firmados meus paradigmas mais interiores, sofria com o desespero que tentava relativizá-los, buscando tornar-me prisioneiro dos meus instintos mais primitivos. Entretanto, num pequeno relance de consciência, observei que eles, os deuses de cada um daqueles desesperados, pareciam surdos, pois não acalmavam a tormenta. Na verdade, eu temia que sequer Melkarte, o deus dos marinheiros fenícios, ouvisse seus lamentos. Agora a agonia era total, diante da impossibilidade de contatá-los. Concebo comunicação como uma via de mão dupla, onde você interage com seu interlocutor. Se eles não podiam ouvir uma apelação tão angustiada de seus devotados servos, talvez não tivesse ninguém do outro lado!? 29
  • 30. Capítulo XIV É inevitável contrapor o clamor ao Deus verdadeiro em relação aos falsos deuses das nações. Num breve olhar retrospectivo, no âmbito sócio-antropológico, suponho que todos os povos antigos tiveram uma fonte única de revelação, a partir de nosso pai comum, Adão. Foi dele, creio, que todos nós descendemos, sendo em última análise uma única família – inclusive, mais uma razão para que não tivéssemos tantos preconceitos. Disto isto, é inevitável concluir que nossos ancestrais repassaram um legado religioso a seus descendentes, incutindo neles seus valores mais caros e basilares. Ao longo da história, no entanto, a adoração foi degenerando e tomando um aspecto dividido, misterioso e pragmático. Um deus único já não satisfazia as pessoas e elas cuidaram de materializar suas preferências pessoais, de tal maneira que o gosto particular determinasse até mesmo a fisionomia de cada um desses deuses. Basta-nos observar como era o culto da fertilidade de Istar, e de outras deusas cananéias semelhantes, onde, por exemplo, a prostituição ritual era permitida e cometida dentro dos templos a elas consagrados. Sem dúvidas, a propriedade básica dos ídolos era sua adaptação ao gosto pessoal, daí, talvez, nos derive a noção de portabilidade. Isto pode nos soar contraditório, mas se adequa perfeitamente aos pressupostos anteriores, um deus que possa ser carregado! O profeta Isaías sintetiza muito bem esta peculiaridade quando diz que o homem derruba uma árvore e corta seu lenho em três partes. Com uma das partes faz uma fogueira, para aquecer seu corpo, de outra faz fogo e cozinha seu alimento, e da última faz um deus e adora. Era o que os marinheiros estavam a fazer agora, agarrados a seus amuletos pessoais, representantes portáteis de suas crenças. Mas eles, repito, não estavam nem aí! Os fenícios eram extremamente supersticiosos no que se refere ao mar, que para eles era tão importante a ponto de darem ao deus do mar como nome o próprio substantivo, ou seja, Yam era ao mesmo tempo a palavra fenícia – e por extensão para muitas outras línguas semíticas, inclusive o hebraico – para o mar, e para o deus do mar. O mar para eles tinha a mesma importância que a terra para nós, havia uma dependência umbilical, pois todo comércio fenício estava ligado ao estado do mesmo. Portanto, aquela tormenta além de desagradável para eles era, sobretudo, o resultado de algum erro de alguém que estava a bordo, no caso, eu! O que, em última análise, não deixava de estar correto. Em contraste, uma reprise das minhas horas na leitura dos livros sagrados do meu povo tagarelava na minha mente perturbada, montando uma colcha de retalhos de idéias sobrepostas e entremeadas de verdades absolutas, que eu era incapaz de contestar. As palavras dos capítulos dos Salmos, - um livro litúrgico bastante utilizado em todos momentos de nossa adoração diária - especialmente o cento e trinta e nove, dançavam com as ondas que balouçavam o navio, e me acusavam do horizonte - se é que era possível divisar algum naquele vendaval - como num tribunal: - Para onde fugirei da tua face? Deus poderia me acusar de vários pecados. Certamente o pior deles, naquele momento angustiante, era diminuí-lo, supondo que jamais me encontraria. Aliás, é interessante observar como ele permite que fujamos, para que, entre outras coisas, nós nos apercebamos de sua ubiqüidade, além de poder estar em todos os lugares ao mesmo tempo, ele pode estar onde quiser. Esta propriedade evidencia o contraponto principal de nossa condição humana, pela facilidade com que esquecemos disso, e simplesmente fugimos. Nós fugimos porque 30
  • 31. queremos, e Deus nos acha quando quiser, soava trágico e cômico para mim. Em um de nossos livros mais importantes, o Bereshit, que vocês devem conhecer como Gênesis, está registrado como Ele havia encontrado Abraão nos carvalhais de Manre, sem código postal, sem instrumentos de rastreamento, sem sinalização, sem rodovias, acampado no meio do deserto, e ainda chegara a tempo de comer um churrasco! Noutro, o primeiro livro dos Reis, também está escrito do profeta Elias, no famoso encontro na penha. Pensava que o Senhor estava no vento, no terremoto, no fogo, mas apenas um cicio suave e tranqüilo denunciava sua presença. As palavras perdem o sentido para sintetizar sua forma sutil de estar sempre presente, seja aqui, seja ali, seja além, seja acolá, podemos sempre encontrá-lo. 31
  • 32. Capítulo XV Questionavelmente, no entanto, eu não clamei a deus algum, como faziam aqueles homens. Isto era mais uma contradição ridícula, já que eles clamavam aos seus deuses surdos, de pau, pedra, barro, osso, e outros materiais, todos moldados e imaginados pelas mãos humanas. Eu condenava igualmente a adoradores e adorados, mas era incapaz de clamar a meu Deus, o verdadeiro, que transcende toda vontade humana e até mesmo existe além dela. Não obstante o fato de que Ele estava presente pessoalmente ali, pronto a me escutar. Esperava por uma saída que excluísse essa possibilidade, talvez por pura vergonha, talvez porque seria necessário um bom tempo para esclarecer as razões da minha fuga ou porque, em última análise, eu seria obrigado a refazer o percurso e cumprir sua vontade. Eu contava com a possibilidade de que aos trancos e barrancos, o navio encalhasse nas pedras da costa de alguma ilha, onde eu envelhecesse sem precisar sequer voltar à minha terra!? Seria uma opção maravilhosa, mas eu saberia mais tarde que era uma alternativa tão imponderável quanto o ser. Nesse ínterim, um daqueles marinheiros teve a idéia de lançar sortes, as goralôt, e aí surgiu um grande problema para mim, que nem de longe, pelo menos até aqui, eu imaginava que ia acontecer. Mas, antes, deixe-me descrever as sortes, o que não é uma tarefa muito fácil. Num momento era uma pedra de uma cor específica em meio às outras cores, noutro era um ritual no qual alguém lançava de costas um pequeno objeto, sobre um grupo de pessoas, em outro era uma pedra, osso ou madeira marcada com uma palavra, uma letra ou um número específico3. No Monte Sinai, Deus havia ordenado que o sacerdote portasse duas pedras: o Urim e o Tumim, também conhecidas como Luzes e Perfeições. Que nada mais eram do que pedras para revelar a vontade de Deus em situações complicadas, através da consulta sacerdotal. Traduzindo em outras palavras, estas pedras seriam um exemplo supremo do que eram as sortes. Acredita-se que as mesmas brilhassem conforme a vontade de Deus, ou uma ou a outra, a responder sim ou não para determinadas decisões mais complexas. Enfim, era uma seleção bem particular, na qual pouca ou nenhum dúvida restava, buscava-se uma certa dose de isenção, com tom fatalístico. Ao que tudo indicava, no balanço do navio, seria fácil esquivar-se, afinal uma sorte lançada num mar revolto cai em qualquer lugar, menos na minha cabeça, pensava eu. Mas, contra minhas expectativas, a estratégia me denunciou e as sortes caíram sobre mim. Quando a sorte caiu sobre mim, - veja o que é comunicação, já que não houve palavra alguma!? - meu mundo com suas trapaças desabou com ela. É interessante descobrir como nos achamos tão fortes e somos tão fracos, ao mesmo tempo. Em nossa ambigüidade humana podemos tudo num momento, e no instante seguinte nada mais podemos, estamos a mercê do mar, levados de um lado para o outro pelas incongruências de nossas escolhas, que se tornam vagas a tentar afundar nossos navios, que se sabiam insubmergíveis até seu trágico naufrágio. Certo pensador dizia que o homem é um caniço balançando ao vento, mas que sabe que sabe, é daí, aliás, que vem a designação científica de nossa espécie pela ciência, homo sapiens, o que sabe. Ele continuava filosofando: O Universo todo é mais forte do que ele, mas é incapaz de perceber seu poder. Se uma força ou evento da natureza destrói o homem, este sabe que morre, mas aquela não sabe que mata! 3 Na minha língua, o hebraico, as letras também são números! 32
  • 33. O duro naquele momento, pior que a própria fuga e seu desfecho, era a constatação da minha impotência diante da realidade. A realidade da mensagem, do chamado, do mar, do navio, da tormenta, da verdade, nua e crua na forma tão básica, totalmente despida de amarras, que se me apresentava. A realidade da onipotência indescritível de Deus. Se ele podia por um mar imenso naquele estado, o que não poderia comigo? É... quando Isaías, ele de novo, diz que o mar está na palma de suas mãos, não é brincadeira, não! Como eu atraí a atenção deles, por conta das sortes houverem me denunciado, todos se acercaram de mim, admirados e ao mesmo tempo com uma dose razoável de indignação, enquanto o capitão me inquiria, rosnando as palavras ferozmente ao vento: - Dize-nos, agora, por que causa nos sobreveio este mal? Era uma reflexão do contraponto entre a calma da partida e a agonia do presente. Ele, certamente, achava que eu tinha uma explicação para o incidente. O mal era uma conjuntura dos deuses fenícios, que, curiosamente, segundo suas próprias palavras, tinham vindo a nós, haviam nos acometido. Não parecia tão circunstancial quanto a mensagem, que inicialmente viera a mim? Eles não sabiam que tudo aquilo advinha do único Deus capaz de tal façanha, os outros, já disse, eram meros fantasmas de nossas idiossincrasias. – Qual a tua ocupação? Os marinheiros percebiam que eu estava fugindo de algum dos deuses, e, consequentemente, teria atraído sua fúria, muito embora ainda não soubessem qual. A pergunta teria a ver com meus afazeres diários, em que eu estava ocupado? Em fugir? Seria eu um mensageiro fugitivo? Eles mal sabiam que suas dúvidas seriam constatadas, quando eu expusesse minha situação. Mas o capitão não esperou nem que eu falasse, e foi logo emendando: – E de onde vens? – Qual a tua terra? – E de que povo és tu? Estas três perguntas eram a cédula de identidade do viajante dos meus dias, onde, aliás, não existe documentos. No máximo, alguma escritura de compra e venda de bens ou acordos entre reis e reinos, talhadas numa pedra, ou esculpidas. A maioria dos contratos e acertos são realizados nas portas das cidades, diante de testemunhas, de preferência, diante dos mais velhos. Em nossos dias bastam as palavras acordadas diante deste conselho para selar compras e trocas de imóveis e animais, além de resolver assuntos mais complexos. Como ia falando, ou escrevendo, bastava dizer de onde se vinha, qual a terra e o povo, para que imediatamente um estereótipo se formasse na mente do interlocutor. Obviamente, era uma generalização perigosa, que, inclusive, ceifara não poucas vidas, enquanto a outros deixara viver. Descrever o infortúnio de ser perguntado sobre como os fatos que narrei até agora se sucederam não foi fácil, nem o seria explicar pormenorizadamente como tudo se deu. Não havia, porém, para onde fugir. O mar se embravecia e ameaçava engolir o navio. Respirei fundo e solenemente declarei: – Eu sou hebreu! 33
  • 34. – E ao Senhor, Deus dos céus, eu temo. – O que fez o mar e a terra seca! Estas três declarações foram suficientes para que os marinheiros compreendessem a gravidade da situação. Talvez, não conhecessem bem o deus do qual falava, mas pelos adjetivos dava para se chegar a uma conclusão temerosa. Minha cédula de identidade atestava que eu pertencia a um povo cuja referência antropológica sempre fora a de adoradores de Yavé, não havia como esconder minha ascendência. Os fenícios sabiam há muito de nosso templo – alguns deles haviam ajudado a construí-lo como já dissemos anteriormente - e os povos que entravam em contato conosco conheciam nossos costumes. Então, exclamaram desesperados, em uníssono: – Por que nos fizeste isto? Eu formulava uma resposta adequada, mas aquele não era o momento ideal para compartilhar divagações. Aos homens cabia outra preocupação mais urgente: – Que faremos a ti, para que o mar se nos acalme? Imediatamente lhes adverti que Deus exigiria que eu fosse jogado ao mar, para que eles pudessem sair com vida daquele incidente. Entretanto, esta possibilidade fez com que os homens temessem muito e, num primeiro momento, a descartassem. Eu fiquei surpreso com esta atitude porque nas religiões antigas estava arraigado o conceito de que uma vítima deveria ser sacrificada, para acalmar um deus. A recusa deles era de fato surpreendente. No entanto, o mar parecia ter vida própria, pois tão mais demorávamos a tomar uma iniciativa, ia se embravecendo a ponto de toda esperança de chegar a algum porto se perder. Os homens remavam loucamente, na esperança de alcançar a terra firme, mas pareciam estar girando em círculos, sem progresso algum. Então, reunidos, decidiram lançar-me ao mar tão rápido quanto possível, para salvar suas próprias vidas. Antes, porém, oraram e pediram perdão, supondo que o curso da história toda fora uma determinação divina. Eu ainda não havia feito isto ainda, por conta própria, porque o suicídio entre nós é algo absolutamente reprovável. Só tomaria uma decisão tão extrema se fosse para poupar aqueles miseráveis homens. Nas entrelinhas do momento acontecia uma coisa curiosa, pra dizer o mínimo, pois muito embora eu não haja pregado um longo sermão àqueles homens, eles eram capazes de identificar as evidências de que Deus teria planos para mim, e eu não o levei a sério. Eram capazes de crer, e isto os distingue de maneira louvável, especialmente porque os argumentos configurados não eram muito verossímeis. Esta é uma comprovação nítida de que as ações são mais importantes e eficientes que as palavras. Quantas vezes queremos impactar as pessoas ao redor com uma multidão de frases de efeito, adquiridas aqui e acolá, ou com citações aprendidas de alguém, quando na verdade os gestos possuem uma influência muito maior. Não sei por aí, mas aqui há uma enorme carência de prática. As pessoas, algumas das quais sábias aos seus próprios olhos, se acostumaram a teorizar, e teorizando ficam por toda a vida, nada de prático fazem em benefício dos outros. Começam a aparecer tratados, tradições e interpretações delas que possuem regras estáticas e padronizadas para todas as situações da existência de uma pessoa. Afirmativas e afirmações que são tratadas como uma panacéia, um 34
  • 35. remédio para todas as dores. Entretanto, boa parte delas é inexeqüível e impraticável, fogem da realidade do homem comum, este que está em todos os lugares e sofrendo o efeito de pressões diversas. Não que eu despreze o valor do raciocínio teórico, da filosofia, do planejamento, da estratégia, muito pelo contrário. A questão divisora de águas é que a vida se constitui num barco com dois remos, um se chama fé e outro se chama ação. Todos os dias são oportunidades para avançar um pouco mais no mar da vida, utilizando os dois remos. Quando esquecemos um deles a tendência é o retrocesso ou a estagnação, a depender do tempo que gastarmos nesse processo. Tenho a certeza que minha admissão de culpa, e a posterior concessão em ser lançado ao mar, para salvar a embarcação da ruína, foi mil vezes mais importante do que qualquer pregação demorada. Afinal, a fé despida das obras é morta! Há, porém, uma outra análise a ser feita neste momento da minha história. Quando falhamos ocultamente a extensão destas falhas é traumática para nós, mas dói apenas internamente, entretanto, quando envolve outras pessoas, que passam a nos recriminar como se, repentinamente, soubessem tudo sobre a vontade de Deus para nós, então a dor é muito maior. Aquelas pessoas me olhavam, em tom de reprovação, como se quisessem dizer: Por que você é tão bobo procurando fugir de um Deus que te acha em qualquer lugar? Por que não cumpre sua missão? Ademais, eu, um profeta, durante toda aquela tempestade sequer orara, e, agora, pego de surpresa, forçava homens que não temiam a meu Deus a tomar uma decisão tão, digamos, teológica, encomendando-me à vontade de um desconhecido. Aquela seria uma oportunidade excelente para contrapor a religião liberal fenícia com a ortodoxia judaica, mas eu não a aproveitei, entretido que estava em solucionar a situação, e em preservar meu status quo. É difícil admitir, mas não havia acaso algum no fato de eu estar ali, pois mesmo quando erramos Deus faz com que isto se torne em oportunidade para que Ele seja glorificado. Minha ignorância penetrava a realidade daqueles homens com a intenção de também transformá-los, mas eu não percebia isso. Quantos temas espirituais poderiam ser abordados, mas não o foram. Passados os fatos esta foi, sem dúvida, uma das marcas profundas na minha alma. Mas..., estamos apenas no meio da história, voltemos, pois, ao que está acontecendo a nossa volta. 35