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Um pouco de humanidade à espuma
Nada mais aconteceu do que algumas bolhas. Meu desejo era relatar esse acontecimento
com, ao menos, uma ou duas por perto. Apenas por prudência, para que a lembrança não venha a
pregar eventuais peças. Entretanto, se eu me preocupasse em contar essa historia com as bolhas
ainda vivas, pouco eu poderia falar. Talvez só com o intuito de resumir mentalmente tudo o que
eu julgo necessário contar, o meu tempo se esgotasse. Até porque, se elas suportassem, eu
desconfiaria da autenticidade delas.
Eu era criança e tudo estava monótono. Acho que minha mãe sabia bem o que era isso. É
claro, a monotonia era o sabor que trazia a infância dela à tona. Era a saudade da própria infância
que a fazia acreditar que faltava algo na minha vida. Eu não estava tão atento ao que ela me
propunha, mas eu estava cansado de assistir a grama verde que, ora ou outra, virava palco dos
pássaros que cantavam sem saber em qual dos dias da semana estávamos, que viviam numa
cronologia de pássaros. Eu era novo, mas já sabia: era sábado. Bom, do pouco que eu prestei
atenção, eu não entendi bem se era mais água ou mais detergente, sabia apenas que um dos dois
tinha uma proporção maior. Minha mãe, enquanto falava, investigava em cada armário para
encontrar um pote do tamanho certo para colocar a mistura. Uns eram muito grandes, outro
pequenos, outros fundos. Alguns eram muito novos. Eu não estava tão entusiasmado quanto ela,
esperava com meus pés a batucar naquela banqueta na cozinha, com os braços sustentando a
minha cara de poucas ideias. Pronto, ela achou um pote satisfatório. Lembro-me que tive a
impressão que ela já tinha olhado aquele pote no primeiro armário aberto, mas isso não faz
diferença agora. Na verdade, tratava-se de um pote sem tampa, sem nenhuma outra
especificação. Nem velho, nem novo, nem diferente de todos os potes.
Minha mãe encheu o pote com água e detergente. Com muita água e pouco detergente.
Bem, para minha sorte, ela repetiu a receita, dizendo que seriam três dedos de água e uma colher
de sopa de detergente. Aí pensei o que não competia àquela experiência que, provavelmente,
duraria no máximo alguns minutos: “e quando eu crescer, cada vez será preciso colocar mais água,
pois meus dedos serão maiores”. Lembrei-me do meu tio que, na minha cabeça, tinha uma mão
daquelas que dá medo de receber um tapa. “Acho que as bolhas dele não iam sair”, pensei. “Ou
iam sair molhadas” complementei ao pensar mais um pouco. Logo abri mão de minhas dúvidas e
acreditei na sapiência materna, sem questionar, me corrigindo por puro desencargo: “Talvez
dependesse mais da colher do que da mão. Ele, com certeza, usaria uma concha de feijão, mas
sem feijão”. Fiquei um tempo estático, pois me julguei pensando: “quem era eu para falar de
bolhas?”. Nunca havia visto uma verdadeira, daquelas que nasciam do sopro. Só conhecia as que
visitavam meu banho, foragidas da espuma, momentâneas e filhas do acaso. Minha mãe me levou
até o quintal e me muniu com um canudo e mais muitas instruções. Na época, desconfiei da
necessidade de instruções da brincadeira, não por ter qualquer experiência, mas por se tratar
apenas de um canudo com detergente e água. Não teria como complicar a um nível de
entendimento não entendível. Eu queria a bolha que saísse rápido. No suspiro de minha ânsia,
mais uma vez, fiz questão de não escutar. É claro que antes de me entregar toda a aparelhagem
para criar uma bolha, minha mãe apostou na competência agraciada pela já antiga juventude e, ao
mal encostar o canudo na boca, uma bolha pequena fugiu. Era uma bolha de mãe, não saberia
dizer se era bonita ou feia. Era simplesmente como uma bolha deveria ser. Lá se foi ela até
desaparecer, ocultando-se ao passar do muro em direção ao terreno da vizinha.
Com a obra já concluída, minha mãe saiu com um sorriso tímido e realizado. Imagino eu
que alguma lembrança da infância dela tinha sido revivida com um pouco de água e detergente.
Ou detergente e água. A mistura tinha um pouco de bruxaria. Eu percebi que os olhos dela
seguiram a bolha até ela cruzar o território vizinho. Para falar bem a verdade, fiquei em dúvida se
eu olhava para minha mãe ou para o que ela tinha feito. Procurei dividir a minha atenção, sabendo
que corria o risco de não ver nada. No fundo me senti realizado por trazer algo que a fez feliz por
meio da minha monotonia. Triste foi que isso durou pouco: tive minha mãe ao meu lado pelo
instante de vida de uma bolha, pois após parir aquela curiosidade, logo foi fazer coisas de gente
grande. “Não que precise ser grande para fazer, mas é que precisa ser grande para se preocupar”
rapidamente respondi, remediando qualquer possibilidade de dúvida. Ainda me sentia meio
inseguro ao segurar o canudo. Mais culpado do que inseguro, porque sabia que ela tinha dado
instruções e, mais uma vez, eu não havia escutado. Aproximei o canudo da boca e, por impulso,
dei um bom gole. Um gole de alguém que está no deserto ou, talvez, de alguém que se prepara
para ir a um e tem medo de sentir sede. Ou, ainda, deixando de lado um pouco esse exagero de
criança, diria hoje em lembrança que foi um gole daqueles grandes que tem o propósito de engolir
uma cápsula de remédio. Aquele detergente não tinha gosto do cheiro. “O cheiro é de maça e o
gosto é de veneno” pensei. Nunca tomei veneno, mas, como dizem que mata, meus poucos anos
rapidamente associaram ao que interpretava melhor aquele sabor. Aliás, tudo que não se deve
comer fica definido pelo cheiro, tudo fica restrito à própria utilidade. Não adiantava mais cuspir.
Resolvi contemplar mais um tempo aquele detergente, saliva e água, afinal, não teria melhor lição
para me impedir de repetir o feito.
Era hora da segunda tentativa. Foi uma bolha que não durou longe do canudo,
provavelmente por eu ter assoprado como quem tem pressa de ver a própria criação. Na terceira
eu enchi o pulmão de ar rapidamente, mas controlei para que pouco a pouco ele invadisse aquela
membrana que ficava no fim do canudo. Foi uma bolha bem gestada, que penou nascer, tomando
pouco a pouco um corpo de um tamanho de primeira bolha e se largou do canudo. Era meio torta
e volúvel. Eu chuto que durou uns vinte segundo de criança ou uns quatro segundo de adulto. Um
tempo que serviu para dar mais vontade de fazer bolhas. As bolhas não são coisas para o
entendimento de crianças, se é que são passíveis de entendimento. Não possuem nem forma e
nem cor: quase redondas e furta-cor. São agressivas a qualquer didática, tão breves que nunca
saciam a observação. O gosto de ver uma bolha é o mesmo gosto de ver mil bolhas. Porém, essa é
uma lição que pouco se aprende, partindo do ponto que sempre há esperança de ver uma bolha
de sabão diferentemente perfeita. Bem sei que não dariam o nome desta perfeição de bolha de
sabão. Ou pior, se assim dessem, todas as outras bolhas seriam doentes senão esta.
Uma bolha é pouco definida. Não sei se o que ela guarda dentro de si é parte dela. Pode
ser que o fato de englobar o ar seja um roubo para se tornar bolha ou pode ser que ela apenas se
doe em favor dos olhos. Poucos segundos de roubo não caracterizam um ladrão. Por outro lado,
milésimos de arte já determinam um artista. Talvez ela se importe tanto com essa aparência que
se estoure para não ser incriminada. Elas não suportam tanto mistério por um tempo que deixaria
o mundo saciado. É clara a sutiliza que ela precisa ser analisada. Não há nada como uma bolha de
sabão. Visivelmente vazia, ela vaga segundo o vento, sem vontade própria, mas livre. É uma cela
de pouco ar, um cárcere livre aos desejos do vento. A bolha nasce antes de ser bolha, nasce no
pensamento. A deficiência da bolha é proporcional a vontade de ter a bolha. É engraçado que ao
ver uma bolha, ninguém pensa que ela molha. Ela sempre será vista como uma bolha. Talvez com
milhões de bolhas se apague um pequeno incêndio. Ou com poucas se simule um beijo. Ou,
unitariamente, afogue uma formiga. Tudo isso é dispensável quando ela voa. Tudo que voa é
fascinante. Nada morre no ar, tudo morre ao encostar na terra. Se morrer sem se encostar, ainda
está vivo, com exceção das bolhas.
Uma bolha não pode ser afetada pela gravidade. Não muito. Se for muito, será uma queda
e não bolha. Lembro-me bem de quando eu olhei para uma nuvem quando já tinha conhecido as
bolhas de sabão. E durante uma semana de tempo de criança eu pensei sobre a diferença delas.
Descobri em palavras infantis que “As nuvens não são bolhas por que falta um pouco do homem
nelas, ou da mulher”. Parece que isso pouco esclarece, mas realmente a humanidade que fez a
bolha ser bolha e não mera parte da espuma – agregada ou livre -. E, acidentalmente, ela foi
criada para vulgarizar o ar, que antes era invisível, por meio de sua iridescência. A bolha é o prazer
da expiração, onde o ar está cansado de ficar preso. Aparentemente, uma bolha é feita para
estourar, mas o que se contempla é a demora até que esse evento ocorra. Diferente de grande
parte das coisas, ela esconde a morte por pouco tempo, e não cabe a ninguém estourar e nem
saber o motivo do seu estourar, pois são anseios de bolha.
Desde que fiz a minha primeira bolha, nunca fui capaz de estourar nenhuma. Lembro-me
que uma, um pouco mais desafortunada, voou de uma forma desajeitada e pairou quase que
levitando em meu cabelo. Minha sorte foi que eu senti a presença dela pelos olhos. Não sei se na
situação eu falei baixo ou pensei “essa bolha não sabe quem sou eu”. Pude sentir a sensação de
priorizar as vontades do que beira o fim. Em seguida, lembro que brinquei comigo mesmo
inventando que morri antes da bolha. Digo que brinquei, pois me sentia tão vivo que duvidei que
fosse possível que a bolha se estendesse por um tempo possível de eu morrer, mesmo que eu
começasse a morrer no exato momento que ela me tocou. Sem desejar, imaginava que os idosos
eram bolhas. Repreendia-me por pensar em algo assim. Resolvi inventar a desculpa que não eram
bolhas por repetir mentalmente que “idosos não voam”. Algum tempo depois conheci uma amiga
de minha avó que já havia viajado para a Itália, de avião. Foi preciso mudar. Decidi que “idosos
não são furta-cor”. Assim ficou até hoje. É uma frase imatura, mas ainda hoje me garante certo
grau de certeza sobre esse assunto.
As bolhas sempre foram como um coringa em minhas ideias. Eram soltas sem pretensões,
sem hora e sem erro. Nunca saíram diferentes. Na verdade, todas saíram tão diferentes que essa
era a igualdade. Espantar-me-ia ao ver duas bolhas iguais. Eu me sentia religioso ao ver as bolhas.
Eu acreditava em algo que quase não existia, algo que precisava de um pouco de fé, detergente e
água. Acredito que um dia elas vão ser reinventadas, talvez de forma mais compreensível. Elas não
só desaparecem como matam. Aquele tempo que voam e são apreciadas é subtraído da vida sem
se perceber, pois é como olhar o ar e querer guardar na lembrança. Com sorte você se lembrará
do que estava por detrás da bolha, mas não dela. E se tentar imaginar uma bolha, logo ela aparece
perfeita na imaginação. E para ser bolha ela precisa estourar em tempo de bolha estourar. Se você
lembrar-se do estouro, não saberá sobre a bolha. É muito complicado saber dosar esse critério. Já
estava sentindo um pesar, uma tristeza de criança, daquelas que apenas elas sabem a
importância. Resolvi dar um tempo. O tempo de um desenho. Sim, permaneci em frente a um
papel esperando para pensar em como desenhar uma bolha. Assim percebi que a bolha já estava
desenhada no papel, minha intenção era o suficiente. Eu precisava enxergar a bolha, e não ela
existir. Colei o meu desenho de bolha na parede e resolvi com minhas próprias palavras: “Preciso
de um copo de água e três dedos de detergente”. E assim foi, enchi um copo de água e detergente
e coloquei ao lado de minha cama. Encontrei a forma de ter sempre uma bolha. Elas são
possibilidades guardadas na água e florescem em devaneios que flutuam com um pouco de hálito.
São lições de desapego, feitas com intenção e soltas para não mais serem regidas pelo canudo. E
por fim, ensinam que para ter algo, não se deve realmente ter, mas sim, ele precisa ser apenas
viável ou, ainda com mais tempo de entendimento, apenas a vontade basta.

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  • 1. Um pouco de humanidade à espuma Nada mais aconteceu do que algumas bolhas. Meu desejo era relatar esse acontecimento com, ao menos, uma ou duas por perto. Apenas por prudência, para que a lembrança não venha a pregar eventuais peças. Entretanto, se eu me preocupasse em contar essa historia com as bolhas ainda vivas, pouco eu poderia falar. Talvez só com o intuito de resumir mentalmente tudo o que eu julgo necessário contar, o meu tempo se esgotasse. Até porque, se elas suportassem, eu desconfiaria da autenticidade delas. Eu era criança e tudo estava monótono. Acho que minha mãe sabia bem o que era isso. É claro, a monotonia era o sabor que trazia a infância dela à tona. Era a saudade da própria infância que a fazia acreditar que faltava algo na minha vida. Eu não estava tão atento ao que ela me propunha, mas eu estava cansado de assistir a grama verde que, ora ou outra, virava palco dos pássaros que cantavam sem saber em qual dos dias da semana estávamos, que viviam numa cronologia de pássaros. Eu era novo, mas já sabia: era sábado. Bom, do pouco que eu prestei atenção, eu não entendi bem se era mais água ou mais detergente, sabia apenas que um dos dois tinha uma proporção maior. Minha mãe, enquanto falava, investigava em cada armário para encontrar um pote do tamanho certo para colocar a mistura. Uns eram muito grandes, outro pequenos, outros fundos. Alguns eram muito novos. Eu não estava tão entusiasmado quanto ela, esperava com meus pés a batucar naquela banqueta na cozinha, com os braços sustentando a minha cara de poucas ideias. Pronto, ela achou um pote satisfatório. Lembro-me que tive a impressão que ela já tinha olhado aquele pote no primeiro armário aberto, mas isso não faz diferença agora. Na verdade, tratava-se de um pote sem tampa, sem nenhuma outra especificação. Nem velho, nem novo, nem diferente de todos os potes. Minha mãe encheu o pote com água e detergente. Com muita água e pouco detergente. Bem, para minha sorte, ela repetiu a receita, dizendo que seriam três dedos de água e uma colher de sopa de detergente. Aí pensei o que não competia àquela experiência que, provavelmente, duraria no máximo alguns minutos: “e quando eu crescer, cada vez será preciso colocar mais água, pois meus dedos serão maiores”. Lembrei-me do meu tio que, na minha cabeça, tinha uma mão daquelas que dá medo de receber um tapa. “Acho que as bolhas dele não iam sair”, pensei. “Ou iam sair molhadas” complementei ao pensar mais um pouco. Logo abri mão de minhas dúvidas e acreditei na sapiência materna, sem questionar, me corrigindo por puro desencargo: “Talvez dependesse mais da colher do que da mão. Ele, com certeza, usaria uma concha de feijão, mas sem feijão”. Fiquei um tempo estático, pois me julguei pensando: “quem era eu para falar de bolhas?”. Nunca havia visto uma verdadeira, daquelas que nasciam do sopro. Só conhecia as que visitavam meu banho, foragidas da espuma, momentâneas e filhas do acaso. Minha mãe me levou até o quintal e me muniu com um canudo e mais muitas instruções. Na época, desconfiei da necessidade de instruções da brincadeira, não por ter qualquer experiência, mas por se tratar apenas de um canudo com detergente e água. Não teria como complicar a um nível de entendimento não entendível. Eu queria a bolha que saísse rápido. No suspiro de minha ânsia, mais uma vez, fiz questão de não escutar. É claro que antes de me entregar toda a aparelhagem para criar uma bolha, minha mãe apostou na competência agraciada pela já antiga juventude e, ao mal encostar o canudo na boca, uma bolha pequena fugiu. Era uma bolha de mãe, não saberia
  • 2. dizer se era bonita ou feia. Era simplesmente como uma bolha deveria ser. Lá se foi ela até desaparecer, ocultando-se ao passar do muro em direção ao terreno da vizinha. Com a obra já concluída, minha mãe saiu com um sorriso tímido e realizado. Imagino eu que alguma lembrança da infância dela tinha sido revivida com um pouco de água e detergente. Ou detergente e água. A mistura tinha um pouco de bruxaria. Eu percebi que os olhos dela seguiram a bolha até ela cruzar o território vizinho. Para falar bem a verdade, fiquei em dúvida se eu olhava para minha mãe ou para o que ela tinha feito. Procurei dividir a minha atenção, sabendo que corria o risco de não ver nada. No fundo me senti realizado por trazer algo que a fez feliz por meio da minha monotonia. Triste foi que isso durou pouco: tive minha mãe ao meu lado pelo instante de vida de uma bolha, pois após parir aquela curiosidade, logo foi fazer coisas de gente grande. “Não que precise ser grande para fazer, mas é que precisa ser grande para se preocupar” rapidamente respondi, remediando qualquer possibilidade de dúvida. Ainda me sentia meio inseguro ao segurar o canudo. Mais culpado do que inseguro, porque sabia que ela tinha dado instruções e, mais uma vez, eu não havia escutado. Aproximei o canudo da boca e, por impulso, dei um bom gole. Um gole de alguém que está no deserto ou, talvez, de alguém que se prepara para ir a um e tem medo de sentir sede. Ou, ainda, deixando de lado um pouco esse exagero de criança, diria hoje em lembrança que foi um gole daqueles grandes que tem o propósito de engolir uma cápsula de remédio. Aquele detergente não tinha gosto do cheiro. “O cheiro é de maça e o gosto é de veneno” pensei. Nunca tomei veneno, mas, como dizem que mata, meus poucos anos rapidamente associaram ao que interpretava melhor aquele sabor. Aliás, tudo que não se deve comer fica definido pelo cheiro, tudo fica restrito à própria utilidade. Não adiantava mais cuspir. Resolvi contemplar mais um tempo aquele detergente, saliva e água, afinal, não teria melhor lição para me impedir de repetir o feito. Era hora da segunda tentativa. Foi uma bolha que não durou longe do canudo, provavelmente por eu ter assoprado como quem tem pressa de ver a própria criação. Na terceira eu enchi o pulmão de ar rapidamente, mas controlei para que pouco a pouco ele invadisse aquela membrana que ficava no fim do canudo. Foi uma bolha bem gestada, que penou nascer, tomando pouco a pouco um corpo de um tamanho de primeira bolha e se largou do canudo. Era meio torta e volúvel. Eu chuto que durou uns vinte segundo de criança ou uns quatro segundo de adulto. Um tempo que serviu para dar mais vontade de fazer bolhas. As bolhas não são coisas para o entendimento de crianças, se é que são passíveis de entendimento. Não possuem nem forma e nem cor: quase redondas e furta-cor. São agressivas a qualquer didática, tão breves que nunca saciam a observação. O gosto de ver uma bolha é o mesmo gosto de ver mil bolhas. Porém, essa é uma lição que pouco se aprende, partindo do ponto que sempre há esperança de ver uma bolha de sabão diferentemente perfeita. Bem sei que não dariam o nome desta perfeição de bolha de sabão. Ou pior, se assim dessem, todas as outras bolhas seriam doentes senão esta. Uma bolha é pouco definida. Não sei se o que ela guarda dentro de si é parte dela. Pode ser que o fato de englobar o ar seja um roubo para se tornar bolha ou pode ser que ela apenas se doe em favor dos olhos. Poucos segundos de roubo não caracterizam um ladrão. Por outro lado, milésimos de arte já determinam um artista. Talvez ela se importe tanto com essa aparência que se estoure para não ser incriminada. Elas não suportam tanto mistério por um tempo que deixaria o mundo saciado. É clara a sutiliza que ela precisa ser analisada. Não há nada como uma bolha de sabão. Visivelmente vazia, ela vaga segundo o vento, sem vontade própria, mas livre. É uma cela
  • 3. de pouco ar, um cárcere livre aos desejos do vento. A bolha nasce antes de ser bolha, nasce no pensamento. A deficiência da bolha é proporcional a vontade de ter a bolha. É engraçado que ao ver uma bolha, ninguém pensa que ela molha. Ela sempre será vista como uma bolha. Talvez com milhões de bolhas se apague um pequeno incêndio. Ou com poucas se simule um beijo. Ou, unitariamente, afogue uma formiga. Tudo isso é dispensável quando ela voa. Tudo que voa é fascinante. Nada morre no ar, tudo morre ao encostar na terra. Se morrer sem se encostar, ainda está vivo, com exceção das bolhas. Uma bolha não pode ser afetada pela gravidade. Não muito. Se for muito, será uma queda e não bolha. Lembro-me bem de quando eu olhei para uma nuvem quando já tinha conhecido as bolhas de sabão. E durante uma semana de tempo de criança eu pensei sobre a diferença delas. Descobri em palavras infantis que “As nuvens não são bolhas por que falta um pouco do homem nelas, ou da mulher”. Parece que isso pouco esclarece, mas realmente a humanidade que fez a bolha ser bolha e não mera parte da espuma – agregada ou livre -. E, acidentalmente, ela foi criada para vulgarizar o ar, que antes era invisível, por meio de sua iridescência. A bolha é o prazer da expiração, onde o ar está cansado de ficar preso. Aparentemente, uma bolha é feita para estourar, mas o que se contempla é a demora até que esse evento ocorra. Diferente de grande parte das coisas, ela esconde a morte por pouco tempo, e não cabe a ninguém estourar e nem saber o motivo do seu estourar, pois são anseios de bolha. Desde que fiz a minha primeira bolha, nunca fui capaz de estourar nenhuma. Lembro-me que uma, um pouco mais desafortunada, voou de uma forma desajeitada e pairou quase que levitando em meu cabelo. Minha sorte foi que eu senti a presença dela pelos olhos. Não sei se na situação eu falei baixo ou pensei “essa bolha não sabe quem sou eu”. Pude sentir a sensação de priorizar as vontades do que beira o fim. Em seguida, lembro que brinquei comigo mesmo inventando que morri antes da bolha. Digo que brinquei, pois me sentia tão vivo que duvidei que fosse possível que a bolha se estendesse por um tempo possível de eu morrer, mesmo que eu começasse a morrer no exato momento que ela me tocou. Sem desejar, imaginava que os idosos eram bolhas. Repreendia-me por pensar em algo assim. Resolvi inventar a desculpa que não eram bolhas por repetir mentalmente que “idosos não voam”. Algum tempo depois conheci uma amiga de minha avó que já havia viajado para a Itália, de avião. Foi preciso mudar. Decidi que “idosos não são furta-cor”. Assim ficou até hoje. É uma frase imatura, mas ainda hoje me garante certo grau de certeza sobre esse assunto. As bolhas sempre foram como um coringa em minhas ideias. Eram soltas sem pretensões, sem hora e sem erro. Nunca saíram diferentes. Na verdade, todas saíram tão diferentes que essa era a igualdade. Espantar-me-ia ao ver duas bolhas iguais. Eu me sentia religioso ao ver as bolhas. Eu acreditava em algo que quase não existia, algo que precisava de um pouco de fé, detergente e água. Acredito que um dia elas vão ser reinventadas, talvez de forma mais compreensível. Elas não só desaparecem como matam. Aquele tempo que voam e são apreciadas é subtraído da vida sem se perceber, pois é como olhar o ar e querer guardar na lembrança. Com sorte você se lembrará do que estava por detrás da bolha, mas não dela. E se tentar imaginar uma bolha, logo ela aparece perfeita na imaginação. E para ser bolha ela precisa estourar em tempo de bolha estourar. Se você lembrar-se do estouro, não saberá sobre a bolha. É muito complicado saber dosar esse critério. Já estava sentindo um pesar, uma tristeza de criança, daquelas que apenas elas sabem a importância. Resolvi dar um tempo. O tempo de um desenho. Sim, permaneci em frente a um
  • 4. papel esperando para pensar em como desenhar uma bolha. Assim percebi que a bolha já estava desenhada no papel, minha intenção era o suficiente. Eu precisava enxergar a bolha, e não ela existir. Colei o meu desenho de bolha na parede e resolvi com minhas próprias palavras: “Preciso de um copo de água e três dedos de detergente”. E assim foi, enchi um copo de água e detergente e coloquei ao lado de minha cama. Encontrei a forma de ter sempre uma bolha. Elas são possibilidades guardadas na água e florescem em devaneios que flutuam com um pouco de hálito. São lições de desapego, feitas com intenção e soltas para não mais serem regidas pelo canudo. E por fim, ensinam que para ter algo, não se deve realmente ter, mas sim, ele precisa ser apenas viável ou, ainda com mais tempo de entendimento, apenas a vontade basta.