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O intervalo de Vertov¹ (1896-1954)
A atividade e a posição de Vertov só são compreendidas com base em um
dado fundamental: é um cineasta soviético e vanguardista, que se recusa a
"ser confundido com o rebanho dos cineastas que empurram suas
velharias". Absolutamente convicto da revolução - política, social,
econômica -, quer repensar o cinema restaurando-o e propõe como
programa de seu kinoglaz (cine-olho) e kinopravda (cine-verdade), o "cine-
deciframento comunista do mundo", ver e mostrar o mundo em nome da
revolução dos sovietes".

Vertov acredita no cinema social: o cinema tem uma utilidade social, serve
de ferramenta para compreender o mundo em que se vive, portanto, deve,
em primeiro lugar, revelá-lo de maneira explícita e articulada. Mostrar no
cinema está bem perto de montar; a história dos filmes sociais e engajados
prova essa fórmula constantemente: para revelar como se quer revelar,
deve-se usar a montagem. A originalidade de Vertov - cuja montagem é de
primeira linha - é acrescentar que só é possível montar (mostrar) com base
em uma visão correta. Não é possível organizar o real visível para a
compreensão do espectador se ele não for visto realmente. Essa visão é
função do cineasta, mas também da câmera como superolho, mais bem
armada que o olho humano para ver o real; o "homem com a câmera",
verdadeiro centauro do século dos Lumière, alia a capacidade humana de
inteligência e a capacidade cinematográfica de visão: vê o mundo porque o
pensa e reciprocamente; por cima disso, recobrindo e sobredetermiando o
todo, vê o mundo "em nome da Revolução", isto é, munido de uma
ferramenta de construção da verdade. Como se vê, tal concepção do cinema
é substancialmente clássica.

Se Vertov (como Bresson) se sente obrigado a rebatizar o cinema de uma
maneira polêmica, como kinoglaz, é porque nele vê não uma distração nem
uma ferramenta do imaginário, mas uma ferramenta para ver o mundo tal
como é realmente, isto é, como é útil e até necessário vê-lo, tendo em vista
a construção do comunismo. Em um sistema ideológico e social que se
pretende fundamentado em uma doutrina científica (o marxismo), a análise
da realidade não é individual, ela deve ser feita em razão desse amálgama
social que supostamente oferece uma abordagem objetiva.
Para Consuelo Lins² o termo "cinema verdade" não passou de uma
homenagem à Dziga Vertov e ao seu Kinopravda - o "cinema-verdade"
soviético -, foi visto por muitos como a pretensão maior desses novos
documentários: captar a verdade do mundo. O que Rouch, lançador do
termo no início dos anos 60, fazia de fato era problematizar a questão da
verdade na tradição do documentário, dizendo que a verdade possível dessa
forma de cinema é aquela que inclui a presença dos cineastas e revela as
condições de produção. Não se trata, pois, da filmagem da verdade, como o
próprio nome cinema-verdade leva a crer, mas no máximo de uma verdade
do momento da filmagem, como também defende Eduardo Coutinho.

   "A verdade da filmagem significa revelar em que
   situação, em que momento ela se dá - e todo o
   aleatório que pode acontecer nela. ...É
   importantíssima, porque revela a contingência da
   verdade que você tem... revela muito mais a verdade
   da filmagem que a filmagem da verdade, porque
   inclusive a gente não está fazendo ciência, mas
   cinema", Eduardo Coutinho, in O cinema
   documentário e a escuta sensível da alteridade:
   167.

Vertov inventa o conceito de intervalo, destinado a fornecer a chave da
montagem cinematográfica (e também da filmagem e da visão), sobre essa
base ideológica e conceitual. O termo "intervalo", em russo, assim como
em francês, pode ser compreendido segundo três dimensões:




   a) espacial: como distância que separa dois pontos;
   b) temporal: como duração que se estende entre
       dois instantes;
   c) musical: como relação entre duas alturas de tons.

Em outras palavras, pode respectivamente designar uma grande abertura,
um vínculo de continuidade ou uma relação abstrata. O empreendimento de
Vertov consiste em fugir o máximo possível do modelo espacial, que pode
reduzir a noção de intervalo à medida de uma dist6ancia - portanto, afinal
de contas, voltar a considerações de direção: lugar da câmera, ângulo de
tomada, distância do "sujeito" filmado etc. -, em proveito de uma definição
temporal e visual. Na concepção de Vertov, o "intervalo" deve ser pensado
o máximo possível fora de sua qualidade de espaço (de suas propriedades
mensuráveis).

O termo "intervalo" designa em Vertov aquilo que separa dois fragmentos
de um mesmo filme; de um ponto de vista puramente técnico, vem,
portanto no lugar do raccord (junção na montagem), e, em um sentido, a
oposição dessas duas noções - raccord e intervalo - designa bem a diferença
entre um cinema da continuidade dramática a ser estabelecida e
restabelecida e um cinema da descontinuidade visual, no qual cada
momento do filme deve transmitir uma parte da mensagem total e de sua
verdade.

O intervalo é, assim, um potencial de diferença, mas não apenas de
diferença entre dois planos sucessivos, o salto (intelectual e perceptivo);
essa diferença material existe, é claro, e é importante, mas permanece por si
mesma de ordem apenas formal.

   "A animação não é a arte dos desenhos que se
   mexem, mas a arte dos movimentos que são
   desenhados. O que acontece entre cada imagem é
   bem mais importante do que aquilo que existe sobre
   cada imagem. A animação e, portanto, a arte de
   manipular os interstícios invisíveis que se
   encontram entre as imagens. Os interstícios são os
   ossos, a carne e o sangue do filme, o que há sobre
   cada imagem são apenas as roupas", Normam
   MacLaren (1914-1987).

Realizações de Dziga Vertov³

Goudouchtina Revolutsii (L'anniversaire de la Révolution, 1919); Boi pod
Caricynom (La bataille de Tsaritsyne, 1920); Process Miranova (Le procès
Mironov, 1920); Vskritie Mochtchei Sergueia Radonedjsoko (Ouverture du
reliquaire de Serge Radonej, 1920); Vtzik (1921); Istoria Grajdankoi Voiny
(Histoire de la guerre civile, 1922); Goskinokalendar (Cine-calendrier de
l'État, 1922-1925); Kino Pravda (Cienma-Verdade, 1922-1925); Kinoglaz
(cine-oeil, 1924); Chagai, Soviet! (Soviet en avant!, 1926); Chestaia tchast
mirva (La sixième partie du monde, 1926); Tcheloviek s Konoapparatom
(Um homem com uma câmera, 1929); Entuziazm (Enthousiasme ou La
symphonie du Donbass, 1930); Tri pesni o pesni o Leninye (Três canções
para Lênin, 1934); Sego Ordjonokidze (Em memória de Sergo
Ordzhonizkidzye, 1937); Tri geroini (Três heroínas, 1938); Krov za krov,
smert za smert (Sangue por sangue, vida por vida, 1941); Kliatva molodych
(Le serment de la jeunesse, 1944); Novosti dnia (Nouvelles du jour,
1944-1945).

_____________________________
¹ "Vertov e o intervalo", in "As teorias dos cineastas", Jacques Aumont, pp
19/22.
² Autora do livro O documentário de Eduardo Coutinho - televisão, cinema
e vídeo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004, pp 43/44.
³ TULARD, Jean. "Os diretores. Dicionário de Cinema", Porto Alegre:
L&PM, 1996.

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O intervalo de Vertov

  • 1. O intervalo de Vertov¹ (1896-1954) A atividade e a posição de Vertov só são compreendidas com base em um dado fundamental: é um cineasta soviético e vanguardista, que se recusa a "ser confundido com o rebanho dos cineastas que empurram suas velharias". Absolutamente convicto da revolução - política, social, econômica -, quer repensar o cinema restaurando-o e propõe como programa de seu kinoglaz (cine-olho) e kinopravda (cine-verdade), o "cine- deciframento comunista do mundo", ver e mostrar o mundo em nome da revolução dos sovietes". Vertov acredita no cinema social: o cinema tem uma utilidade social, serve de ferramenta para compreender o mundo em que se vive, portanto, deve, em primeiro lugar, revelá-lo de maneira explícita e articulada. Mostrar no cinema está bem perto de montar; a história dos filmes sociais e engajados prova essa fórmula constantemente: para revelar como se quer revelar, deve-se usar a montagem. A originalidade de Vertov - cuja montagem é de primeira linha - é acrescentar que só é possível montar (mostrar) com base em uma visão correta. Não é possível organizar o real visível para a compreensão do espectador se ele não for visto realmente. Essa visão é função do cineasta, mas também da câmera como superolho, mais bem armada que o olho humano para ver o real; o "homem com a câmera", verdadeiro centauro do século dos Lumière, alia a capacidade humana de inteligência e a capacidade cinematográfica de visão: vê o mundo porque o pensa e reciprocamente; por cima disso, recobrindo e sobredetermiando o todo, vê o mundo "em nome da Revolução", isto é, munido de uma ferramenta de construção da verdade. Como se vê, tal concepção do cinema é substancialmente clássica. Se Vertov (como Bresson) se sente obrigado a rebatizar o cinema de uma maneira polêmica, como kinoglaz, é porque nele vê não uma distração nem uma ferramenta do imaginário, mas uma ferramenta para ver o mundo tal como é realmente, isto é, como é útil e até necessário vê-lo, tendo em vista a construção do comunismo. Em um sistema ideológico e social que se pretende fundamentado em uma doutrina científica (o marxismo), a análise da realidade não é individual, ela deve ser feita em razão desse amálgama social que supostamente oferece uma abordagem objetiva.
  • 2. Para Consuelo Lins² o termo "cinema verdade" não passou de uma homenagem à Dziga Vertov e ao seu Kinopravda - o "cinema-verdade" soviético -, foi visto por muitos como a pretensão maior desses novos documentários: captar a verdade do mundo. O que Rouch, lançador do termo no início dos anos 60, fazia de fato era problematizar a questão da verdade na tradição do documentário, dizendo que a verdade possível dessa forma de cinema é aquela que inclui a presença dos cineastas e revela as condições de produção. Não se trata, pois, da filmagem da verdade, como o próprio nome cinema-verdade leva a crer, mas no máximo de uma verdade do momento da filmagem, como também defende Eduardo Coutinho. "A verdade da filmagem significa revelar em que situação, em que momento ela se dá - e todo o aleatório que pode acontecer nela. ...É importantíssima, porque revela a contingência da verdade que você tem... revela muito mais a verdade da filmagem que a filmagem da verdade, porque inclusive a gente não está fazendo ciência, mas cinema", Eduardo Coutinho, in O cinema documentário e a escuta sensível da alteridade: 167. Vertov inventa o conceito de intervalo, destinado a fornecer a chave da montagem cinematográfica (e também da filmagem e da visão), sobre essa base ideológica e conceitual. O termo "intervalo", em russo, assim como em francês, pode ser compreendido segundo três dimensões: a) espacial: como distância que separa dois pontos; b) temporal: como duração que se estende entre dois instantes; c) musical: como relação entre duas alturas de tons. Em outras palavras, pode respectivamente designar uma grande abertura, um vínculo de continuidade ou uma relação abstrata. O empreendimento de Vertov consiste em fugir o máximo possível do modelo espacial, que pode reduzir a noção de intervalo à medida de uma dist6ancia - portanto, afinal de contas, voltar a considerações de direção: lugar da câmera, ângulo de tomada, distância do "sujeito" filmado etc. -, em proveito de uma definição temporal e visual. Na concepção de Vertov, o "intervalo" deve ser pensado o máximo possível fora de sua qualidade de espaço (de suas propriedades
  • 3. mensuráveis). O termo "intervalo" designa em Vertov aquilo que separa dois fragmentos de um mesmo filme; de um ponto de vista puramente técnico, vem, portanto no lugar do raccord (junção na montagem), e, em um sentido, a oposição dessas duas noções - raccord e intervalo - designa bem a diferença entre um cinema da continuidade dramática a ser estabelecida e restabelecida e um cinema da descontinuidade visual, no qual cada momento do filme deve transmitir uma parte da mensagem total e de sua verdade. O intervalo é, assim, um potencial de diferença, mas não apenas de diferença entre dois planos sucessivos, o salto (intelectual e perceptivo); essa diferença material existe, é claro, e é importante, mas permanece por si mesma de ordem apenas formal. "A animação não é a arte dos desenhos que se mexem, mas a arte dos movimentos que são desenhados. O que acontece entre cada imagem é bem mais importante do que aquilo que existe sobre cada imagem. A animação e, portanto, a arte de manipular os interstícios invisíveis que se encontram entre as imagens. Os interstícios são os ossos, a carne e o sangue do filme, o que há sobre cada imagem são apenas as roupas", Normam MacLaren (1914-1987). Realizações de Dziga Vertov³ Goudouchtina Revolutsii (L'anniversaire de la Révolution, 1919); Boi pod Caricynom (La bataille de Tsaritsyne, 1920); Process Miranova (Le procès Mironov, 1920); Vskritie Mochtchei Sergueia Radonedjsoko (Ouverture du reliquaire de Serge Radonej, 1920); Vtzik (1921); Istoria Grajdankoi Voiny (Histoire de la guerre civile, 1922); Goskinokalendar (Cine-calendrier de l'État, 1922-1925); Kino Pravda (Cienma-Verdade, 1922-1925); Kinoglaz (cine-oeil, 1924); Chagai, Soviet! (Soviet en avant!, 1926); Chestaia tchast mirva (La sixième partie du monde, 1926); Tcheloviek s Konoapparatom (Um homem com uma câmera, 1929); Entuziazm (Enthousiasme ou La symphonie du Donbass, 1930); Tri pesni o pesni o Leninye (Três canções para Lênin, 1934); Sego Ordjonokidze (Em memória de Sergo Ordzhonizkidzye, 1937); Tri geroini (Três heroínas, 1938); Krov za krov, smert za smert (Sangue por sangue, vida por vida, 1941); Kliatva molodych (Le serment de la jeunesse, 1944); Novosti dnia (Nouvelles du jour,
  • 4. 1944-1945). _____________________________ ¹ "Vertov e o intervalo", in "As teorias dos cineastas", Jacques Aumont, pp 19/22. ² Autora do livro O documentário de Eduardo Coutinho - televisão, cinema e vídeo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004, pp 43/44. ³ TULARD, Jean. "Os diretores. Dicionário de Cinema", Porto Alegre: L&PM, 1996.