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Edição Nº 02 - Agosto de 2017.
VISIBILIDADE SOCIAL
A tentativa de romper com preconceitos e estigmas
NESTA EDIÇÃO
Trabalhadores do Trânsito
Edvaldo Rozetti e Selma Va-
lério falam sobre o cotidiano
dos motoristas de ônibus, seus
planos de carreira e em como
lidar com uma profissão onde
são responsáveis por várias
vidas durante as viagens pela
Zona Metropolitana do Rio.
Dizem que eu sou louco
por pensar assim
Paulo Sérgio Machado, 63,
escritor, militante e usuário
do sistema, como são conhe-
cidos os que usam dos servi-
ços de saúde mental no país,
explica que o Movimento da
Luta Antimanicomial é um
movimento social e político
nacional a favor da Reforma
Psiquiátrica no Brasil.
Maiêutica: o parto de ideais
Além de todas as dificulda-
des encontradas para se for-
mar em uma universidade
pública, um grupo de alunas
encontra diariamente outro
obstáculo: ao descobrirem
que terão um bebê precisam
achar uma forma saudável
e possível de viver com seus
filhos no campus enquanto
estudam.
Expediente:
Esta revista foi produzida na disciplina de Técnicas de Reportagem, do curso de
Jornalismo do Departamento de Letras e Comunicação da Universidade Federal
Rural do Rio de Janeiro.
Professora responsável: Ana Lucia Vaz (MTb/RJ 18058)
Edição: Gustavo Carvalho
Revisão: Anna Castro e Bruno Todaro
Projeto gráfico, ilustrações e diagramação: Sandro Schütt
4
8
15
11
UM PASSEIO AO
ABANDONO
“Mãe, vamos fazer um passeio
num sítio lindo. Arruma sua
bolsa com umas roupas para a
senhora.”. Estas foram as últi-
mas palavras que Dona Júlia,
88 anos, ouviu de sua filha
antes de ser deixada na Casa de
Repouso Ribeirinho no início
do ano de 2016. Já em outubro,
meses depois, o “passeio” não
havia terminado e Júlia se quei-
xa com saudades de casa.
NAO HÁ DEMÉRITO EM
SER PUTA
Mesmo sem leis que os protejam
de fato e os beneficiem, o Minis-
tério do Trabalho reconhece a
prostituição como uma profissão.
O lado deles foi ouvido: homens,
mulheres e transexuais ganharam
mais um espaço para dar voz a
essa luta.
19
2 Agosto de 2017
MARCAS DA CIDADE
O grafite surge na história
através de adolescentes que
queriam deixar sua marca nos
centros urbanos e evolui para
uma realidade muito diferen-
te na prática.
25
Editorial
A Maritaca está de volta. Já co-
nhecemos a força de seu grito na
primeira edição e agora viemos
com diferentes vozes que não
passarão despercebidas, envol-
vendo as mais diversas classes,
profissões e idades.
A revista foi novamente produ-
zida pelos alunos de Jornalismo,
que caíram dentro das histórias e
se entregaram à produção delas.
A dor de ser invisibilizado ecoa,
e tentar entender essas feridas
pode enriquecer a nós e a quem
se dispuser a ler.
O aprendizado coletivo continua.
Nosso intuito é que as histórias
gravadas nessa revista sirvam de
aprendizagem. Já o nosso desafio
enquanto jornalistas, e também
como seres humanos, é o de
estabelecer pontes e reconhecer
novas experiencias, tocando você,
leitor, de alguma forma.
Os depoimentos aqui dialogam
conosco além do imaginado, e
por isso todo o esforço é recom-
pensado. Foi um longo processo
de apuração, gravação de entre-
vistas, revisão de textos, elabora-
ção de fotos e diagramação até se
transformar nesta edição.
3Agosto de 2017
MAIÊUTICA:
O PARTO DE IDEAIS
Além de todas as dificuldades
encontradas para se formar em
uma universidade pública, um coletivo
se depara diariamente outro obstáculo:
ao descobrir a maternidade é preci-
so achar uma forma saudável de viver
com filhos no campus enquanto
estuda
Cansadas de não terem suas rei-
vindicações atendidas, além de
muitas vezes se sentirem perdi-
das, pois em vários casos não há
o apoio dos companheiros, algu-
mas alunas se juntaram e forma-
ram, em 2014, o Coletivo de Pais
e Mães (COPAMA). O grupo sur-
giu após rumores de expulsão das
mães universitárias que moravam
no campus da Universidade Fede-
ral Rural do Rio de Janeiro (UFR-
RJ), em Seropédica. Havia a possi-
bilidade de elas terem de sair dos
alojamentos e, em contrapartida,
receber uma bolsa com valor de-
terminado pela reitoria para que
pudessem pagar um aluguel pró-
ximo à Rural. Porém, esse valor
não supria o preço total da loca-
ção. Desta forma, essas passaram
a lutar para continuar com suas
moradias.
Cansadas de não terem suas rei-
vindicações atendidas, além de
muitas vezes se sentirem perdi-
das, pois em vários casos não há
o apoio dos companheiros, algu-
mas alunas se juntaram e forma-
ram, em 2014, o Coletivo de Pais
e Mães (COPAMA). O grupo sur-
giu após rumores de expulsão das
mães universitárias que moravam
no campus da Universidade Fede-
ral Rural do Rio de Janeiro (UFR-
RJ), em Seropédica. Havia a possi-
bilidade de elas terem de sair dos
alojamentos e, em contrapartida,
4 Agosto de 2017
Douglas Colarés, Gabrielle Araújo,
Marieta Keller, Raquel Lima e Rômulo
Norback
Filhos de estudantes brincam durante a reunião. Foto: Gabrielle Araújo.
receber uma bolsa com valor de-
terminado pela reitoria para que
pudessem pagar um aluguel pró-
ximo à Rural. Porém, esse valor
não supria o preço total da loca-
ção. Desta forma, essas passaram
a lutar para continuar com suas
moradias.
Ao descobrirem a existência de
grupos autogeridos para atender
esta demanda em outras institui-
ções, criaram o COPAMA. Todos
os encontros são feitos pelo Face-
book, onde uma página é atualiza-
da pelos próprios usuários. Todos
administram. Todos têm autono-
mia para postar. A criação do co-
letivo não impediu a saída de al-
gumas mães do campus, que, por
medo de represálias, preferiram ir
morar em Seropédica, município
que abriga a maior parte dos alu-
nos da Universidade Rural. Além
de ameaças veladas, algumas alu-
nas relatam diversas atitudes ma-
chistas de assistentes sociais.
— Estão sempre culpando as
mães. Existe um senso comum
culpando as mulheres pela gravi-
dez — comentou Juliana Borges,
aluna da Rural, durante reunião
do coletivo no período de ocupa-
ção da faculdade.
Uma das demandas do coletivo
é desconstruir essa ideia, prin-
cipalmente, para as mulheres,
mostrando que gravidez durante
a graduação é mais comum do
que se pensa. As integrantes do
COPAMA definem como prin-
cipal meta o desejo de mostrar à
comunidade acadêmica que as
crianças são uma parte presente e
participante da universidade. En-
quanto não consolidam esse dese-
jo, o coletivo já coleciona algumas
vitórias, como a quebra de um an-
tigo regimento que permitia que
apenas crianças de até seis anos de
idade pudessem ter acesso livre ao
Restaurante Universitário (RU).
A conquista foi resultado da par-
ticipação do coletivo na ocupação
da Rural, que aconteceu no se-
gundo período de 2016. Thaís Xa-
vier, representante do COPAMA,
conseguiu esse feito ao inserir a
reivindicação na pauta no Conse-
lho Universitário, alegando que a
constituição garante direitos bási-
cos as crianças como alimentação
e moradia. Agora, menores de até
12 anos têm direito a alimentação
no RU.
seis anos de idade pudessem ter
acesso livre ao Restaurante Uni-
versitário (RU). A conquista foi
resultado da participação do co-
letivo na ocupação da Rural, que
aconteceu no segundo período de
2016. Thaís Xavier, representan-
te do COPAMA, conseguiu esse
feito ao inserir a reivindicação na
pauta no Conselho Universitá-
rio, alegando que a constituição
garante direitos básicos as crian-
ças como alimentação e moradia.
Agora, menores de até 12 anos
têm direito a alimentação no RU.
MATERNIDADE E EDUCAÇÃO
Não são só as mães que vivem
nos alojamentos que encontram
dificuldades para permanecer na
Universidade. Carynne Oliveira,
aluna do sexto período de Jorna-
lismo e grávida do primeiro filho,
ainda não sabe como vai conciliar
a maternidade com o último ano
da graduação, além do estágio:
— Acho que seria ideal um abai-
xo-assinado para que a Universi-
dade aumentasse o tempo da li-
cença concedida às mães, e, quem
sabe, disponibilizassem discipli-
nas virtuais. Tenho várias colegas
que são mães e que estudam em
Maternidade na graduação
5Agosto de 2017
Alunos de Pedagogia e Psicologia debatem atividades para as crianças junto do coletivo.
Foto: Gabrielle Araújo.
tro filho. A maior parte do gru-
po é feito por mulheres, já que a
presença de pais é bem pequena.
Então a ideia desse ensaio foi dar
mais visibilidade a elas. O deter-
minante e modificante é a batalha
dessas mães.
A ausência dos pais fez com que
entrasse em discussão o pedido de
mudanças do nome para COMA-
PA, Coletivo de Mães e Pais.
CRECHE PARENTAL
Ao tomarem conhecimento da
existência de uma sala vazia no
Diretório Central, algumas mães
e alunas ocuparam e transfor-
maram o espaço em uma creche.
Quando inaugurada, a creche
funcionará com a supervisão das
próprias mães e de pessoas vo-
luntárias que revezarão entre si
quando não estiverem em aula. A
construção foi feita com doações
de cada membro do coletivo que
universidades privadas e não se
prejudicam tanto por isso.
A Lei n° 6.202, de 17 de abril de
1975, garante à gestante o direi-
to de estudar segundo o regime
de exercícios domiciliares, en-
tretanto, as mães se queixam da
dificuldade de dar entrada nesse
procedimento. A UFRRJ possui o
exercício domiciliar, onde a mãe
não assiste às aulas de modo pre-
sencial, mas estuda em casa, e, no
fim da licença, comparece à Uni-
versidade para realizar uma pro-
va de cada matéria em que estiver
matriculado.
A estudante Gabriela Aguiar, do
terceiro período de Engenharia
Florestal, passou por esse proces-
so, e conta como foi:
— O exercício domiciliar começa
quando você está com oito meses
de gestação e tem uma duração de
três meses. Ou seja, você retorna
com seu filho tendo apenas dois
meses de vida. Voltar a estudar
fica quase impossível.
O fato de terem que conciliar es-
tudos e maternidade se torna um
fardo pesado demais para algu-
mas delas, que, em alguns casos,
chegam a adoecer. O que se agrava
ainda mais quando não há o apoio
dos companheiros. Tuyuka Lara,
aluno de Arquitetura e Urbanis-
mo é também fotógrafo, e colheu
histórias com alunas que tiveram
filhos durante a graduação e criou
o ensaio fotográfico “Mães Rura-
linas à luta pela permanência na
Universidade”. A intenção foi jo-
gar holofotes nessas pessoas que
estão ao nosso lado e não enxer-
gamos. Uma dessas histórias o to-
cou muito, explica:
— Conheci a história de uma mãe
que teve dois filhos durante a gra-
duação. Passou por problemas
psicológicos graves e, quando ela
começou a se recuperar, teve ou-
6 Agosto de 2017
Reunião do COPAMA durante o OCUPA Rural em novemvro de 2016. Foto: Gabrielle Araújo.
se autodenomina independente
e não aceita patrocínios de pes-
soas ligadas a cargos políticos.
A creche não será exclusiva dos
membros do grupo, como explica
a mestranda de Ciências Sociais,
Juliana Borges de Souza:
— Qualquer um que queira somar
é bem-vindo. O projeto ainda não
terminou totalmente porque pre-
cisamos de pessoal. A iniciativa
também tem a ideia de favorecer
estudantes de Psicologia e Peda-
gogia a colocarem em prática o
que aprendem em sala de aula,
visto que há uma carência de está-
gios na região.
DIREITOS EM CONFLITO
Todo semestre, aproximadamen-
te, 100 estudantes recebem o di-
reito de ocuparem uma vaga no
alojamento da UFRRJ. Entre eles,
alguns universitários pais e mães,
que encontram dificuldades para
conseguir um quarto que possa
acomodar a si mesmo e ao seu
filho com conforto, já que a es-
trutura da residência estudantil
foi pensada para receber apenas
alunos.
A Instituição também dispõe de
quartos individuais, conhecidos
como “cabeceira”, que foram pro-
jetados para pessoas com dificul-
dades de convivência. Alguns pais
e mães universitários recorrem a
esses quartos e, neste momento,
começam os conflitos. Não existe
nenhum artigo no Regimento do
Alojamento prevendo estes casos
para concessão de vagas.
Um estudante de Administração,
hospedado no bloco 3 do aloja-
mento masculino, é contra a per-
manência de crianças no ambiente
universitário, e explica o porquê:
— Aqui acontecem muitas coisas
erradas que podem influenciar
negativamente na formação das
crianças, como o consumo de ál-
cool, que pode ser visto nos cor-
redores, e o consumo explícito de
drogas, como a maconha.
Uma aluna de Agronomia, alojada
no bloco 3, feminino, relata que
já enfrentou o Coletivo de Pais e
Mães, porque se sentia ameaçada
em perder o quarto que demorou
quase cinco períodos para con-
quistar:
— O movimento é importante
para a demanda desses universitá-
rios, mas eu vejo que tem muitas
meninas que não estão levando a
sério a graduação e querem tirar
os outros estudantes da cabeceira.
No período passado, o COPAMA
abriu um processo contra mim
para ocupar meu quarto. Acredi-
to que seja um grande problema
para as mães, mas também tenho
direito ao quarto de cabeceira.
Quem fez o concurso foi a estu-
dante e não o filho dela.
Os estudantes não quiseram se
identificar com medo de retalia-
ção política e ideológica causadas
por outros grupos estudantis que
residem no alojamento.	O Setor
de Residência Estudantil (SERE)
informou que, para a concessão
de vagas em quartos de cabecei-
ra, é necessário fazer a solicitação
ao setor e entrar em uma lista de
espera. Disseram que, geralmente,
encaminham para os quartos in-
dividuais os pais e mães universi-
tários. Informaram, também, que
todos já estão ocupados por gra-
duandos com esta demanda.
Ainda que nos últimos anos os
programas de permanência nas
universidades federais tenham
aumentado, ainda são perceptí-
veis as diversas barreiras sociais
e estruturais a serem quebradas.
O decreto 7234//10 instaurou o
Plano Nacional de Assistência Es-
tudantil (PNAES) voltado a aju-
dar na manutenção de alunos nas
instituições federais. Ainda assim,
necessidades específicas, como o
COPAMA, seguem sem auxílio. A
instituição, em casos como esse, é
responsável por destinar recursos
para atender estas demandas.
Maternidade na graduação
7Agosto de 2017
Reunião do COPAMA, durante o OCUPA Rural, em novembro de 2016. Foto: Gabrielle Araújo.
8 Agosto de 2017
"Dizem que eu sou louco
Paulo Sérgio Machado, 63, es-
critor, militante e usuário do
sistema, como são conhecidos os
que usam dos serviços de saúde
mental no país, explica que o Mo-
vimento da Luta Antimanicomial
é um movimento social e políti-
co nacional a favor da Reforma
Psiquiátrica no Brasil. Segundo
ele, é defendido um novo mode-
lo de assistência, 	 “ c o m
mais respeito, dignidade, unida-
de, sinceridade, dedicação, união,
harmonia e novas propostas para
ser apresentado”.
Ele se voltou para a causa através
de uma assistente social do CAPS
Depois de passarem anos isolados, os cha-
mados de loucos buscam acabar com pre-
conceitos e firmar seu espaço na sociedade
(Centro de Atenção Psicossocial)
UERJ, onde, hoje, faz tratamento,
conta:
— Eu passei por momentos di-
fíceis em minha vida, como a
morte da minha mãe, do meu
pai, da minha irmã, de alguns fa-
miliares e amigos também. Isso
me perturbou um pouco, sabe.
Fiquei com depressão, ansiedade
e minha família achou por bem
me encaminhar para fazer trata-
mento psiquiátrico pra melhorar
minhas condições.
A passagem de instituição para
instituição fez parte da vida de
Paulo Sérgio por muitos anos.
Segundo ele, ficou alguns anos
em uma clínica chamada Clini-
ca de Repousos Corcovado, que
não existe mais e, de lá, foi enca-
minhado para o Hospital Pedro
Ernesto, que depois acabou e se
transformou em CAPS UERJ.
Além dele, Nilo Sérgio de Oli-
veira, 56, ator, poeta, militante e
também usuário do sistema conta
que já chegou a se internar 17 ve-
zes. Mas participar do Movimen-
to ajudou a trazer mais estabilida-
de à sua vida.
A pesquisadora, psicóloga e tam-
bém militante Melissa de Oliveira
explica a evolução no país quanto
ao tratamento psicossocial:
— O Brasil, hoje, é referência in-
ternacional no campo da propos-
ta antimanicomial, então a gente
fechou muitos leitos, a gente con-
seguiu abrir muitas residências
terapêuticas, muitos CAPS, mui-
tos Centros de Convivência, mui-
tas iniciativas de trabalho e ren-
da, a gente avançou muito nesse
sentido institucional.
Paulo Sérgio, emenda, dizendo
que deve parte de sua melhora à
por pensar assim"
Nilo Sérgio interpretando Fausto em Deus e o Diabo na Terra do Sol. Foto: divulgação
Anette Araujo, Barbara Amorim,
Lucas Meireles, Lucas Oliveira e
Lucas Santana
Luta Antimanicomial
9Agosto de 2017
essa mudança:
— Antigamente, tinha esse dita-
do de que um hospital psiquiátri-
co era um pouco de manicômio,
mas com essas transformações do
manicômio, com essa militância,
com mais CAPS, NAPS (Núcleo
de Atenção Psicossocial), CAPS
AD (Centro de Atenção Psicosso-
cial Álcool e outras Drogas), essas
coisas... Me ajudou muito.
PRECONCEITO
“No passado era muito grande o
preconceito, muitas pessoas não
sabiam que podiam passar, a todo
o momento, pelo que os usuários
passavam na psiquiatria.” [Olho]
Apesar da melhora nas condições
de tratamento, o preconceito ain-
da está presente na vida dos usuá-
rios. Rita de Cássia Alves, usuária
no CAPS Vila Esperança, em Pa-
racambi, confirma:
— Já sofri preconceito, é exclusão.
Não me sinto parte da sociedade,
na verdade, ninguém aceita o di-
ferente, ele é excluído, as pessoas
não digerem bem isso.
Nilo Sérgio fala em bullying:
— Havia um preconceito, mas ha-
via pessoas que me queriam bem.
Na adolescência, lá em Higienó-
polis, eu sofria muito bullying,
os jovens da rua vinham atrás de
mim, porque quando você não se
integra no grupo, você é hostili-
zado. Você tem que fazer parte do
grupo e eu não queria, eu tinha
medo de fazer parte do grupo
com eles.
Contraposto, Paulo Sérgio vê
uma evolução:
— Eu passei e fui superando e, as-
sim, aos poucos, vendo a coisa de
outro jeito, com novo modelo de
assistência, tendo menos precon-
ceito na atualidade. No passado
era muito grande o preconceito,
muitas pessoas não sabiam que
podiam passar a todo o momen-
to pelo que os usuários passavam
na psiquiatria. Mas hoje foi evo-
luindo e o povo foi sendo menos
preconceituoso. Hoje em dia está
mais tranquilo.
ARTE E CULTURA
Seu Mário Lara, de 94 anos, era
maquinista e se recorda muito
bem do trem que comandava:
era uma linha exclusiva, que le-
vava os viajantes a Barbacena, no
estado de Minas Gerais, e tinha
uma área com os dizeres “Vagão
pra loucos”. Isso indicava que os
demais passageiros não poderiam
entrar lá; os ocupantes desse com-
partimento tinham como destino
final o Hospital Colônia. A insti-
tuição era de tratamento psiquiá-
trico e foi criada em 1903. A fama
do Colônia ainda não se estende
ao grande público, mas cabe a ela
o título de sede do maior caso de
extermínio na história do Brasil,
entre 1930 e 1980, onde mais de
60 mil internos morreram. Eram
vítimas de tortura, abusos físicos
e psicológicos, abandonados por
suas famílias e pela sociedade.
Supostamente, 70% dos internos
nem mesmo tinha diagnóstico de
doenças psiquiátricas.
Os relatos no parágrafo anterior
se encontram no documentário
“Holocausto Brasileiro”, de Ar-
mando Mendz, baseado no livro
homônimodatambémcodiretora
Daniela Arbex. O filme é recente,
foi lançado na TV por assinatu-
ra em novembro de 2016, depois
da exibição durante o Festival do
Rio, em outubro do mesmo ano,
e é um raríssimo exemplo de luz
em um grupo tão marginalizado
no contexto social atual.
Ao contrário do que se conven-
cionou na grande maioria da
população, as pessoas que fre-
quentam CAPS e outras institui-
ções similares buscam também
reinserção social, mas, apesar de
sentirem que o preconceito já
não é tão forte quanto em outras
Foto: Pamela Perez.
10 Agosto de 2017
épocas, ainda não se sentem par-
te efetiva da sociedade. A grande
questão é que, ainda aos olhos do
público, se tratam de inválidos,
pessoas que têm problemas que
os impedem de conviver com ou-
tros.
Uma forma encontrada para
combater não apenas o precon-
ceito, mas também de se senti-
rem inclusos são as artes, sempre
abertas a receber quem quiser en-
trar. O teatro, a música, a escrita
(livros, poemas), artes plásticas, o
cinema e até mesmo o Carnaval,
todos voltados para o entrete-
nimento, mas também travesti-
dos como forma de tratamento.
Quando se entra em cena, o ner-
vosismo vai embora, a ansiedade
se esconde, há apenas o artista.
Melissa explica a importância das
artes no tratamento:
— Eu acho que a gente avançou
muito, e a gente fala pouco disso,
numa dimensão social e cultural.
A gente teve, nos últimos anos,
talvez nas últimas duas décadas,
o surgimento de grupos cultu-
rais de teatro, de música, poetas,
escritores, inclusive na área de
trabalho, com as iniciativas de
geração de empregos e renda que
trazem essa discussão da loucura
pra outro campo, que é uma apro-
ximação do debate da sociedade
que pode romper com a definição
da loucura enquanto periculosi-
dade, enquanto aquilo que tem
estar exilado e traz a afirmação de
sujeitos políticos outros, porque
daí as pessoas não são mais usu-
árias do serviço, são poetas, são
artistas, são trabalhadores.
Nilo Sérgio, que vendeu, em
2015, mais de 900 exemplares de
seu livro, tem envolvimento com
teatro e fala ainda sobre o bloco
de Carnaval que frequenta:
— Essa camisa que estou usando
é do ‘Tá Pirando, Pirado, Pirou!’,
núcleo coletivo desse grupo de
samba que sai no Carnaval. Acho
que no sábado antes do Carnaval,
lá pela Urca até o antigo bondi-
nho. É bem divertido, toda comu-
nidade vai lá. As pessoas tomam
sua cerveja, eu não vejo ninguém
dando vexame.
RECADOS
Paulo Sérgio deixa a seguinte
mensagem para os que passam
pelos mesmos problemas que ele:
— É pra se cuidar, ter cabeça,
responsabilidade, calma, paciên-
cia, força de vontade, ficar bem
de vida, se organizar, sair desse
quadro e buscar uma coisa mais
alegre na vida, no dia a dia.
Melissa, como profissional da
área, completa dizendo o seguinte:
— É importante que as pessoas
que entendam que estão passando
por um momento de sofrimen-
to psíquico possam procurar os
serviços das suas cidades, procu-
rar o CAPS, procurar a Saúde da
Família, procurar atenção básica,
procurar os serviços de assistência
social. Tentem entender quais são
as questões para além da área da
saúde que possam recorrer a ou-
tras políticas, procurar a legislação
de saúde mental que a gente tem
hoje, os movimentos de Luta An-
timanicomial mais próximos, que
se aproximem dos coletivos para
além dos espaços institucionais
para fortalecer uma militância,
criar grupos de apoio.
No dia 27 de Outubro de 2016, fui convidado por um ator, poeta, mili-
tante da Luta Antimanicomial e usuário do sistema para conferir uma
reunião do grupo de teatro inclusivo Dyonises, que é formado por vo-
luntários e usuários do sistema, na Praça Rio Grande do Norte, Enge-
nho de Dentro, Zona Norte do município do Rio de Janeiro. Assim que
cheguei, pude perceber no rosto de um dos usuários um semblante de
ansiedade, nervosismo, como se estivesse preocupado por estar ali. Sua
face, braços e pernas inquietas e o alto consumo de cigarros também de-
nunciavam algo. Porém, quando começou o ensaio vi o espetáculo da
transformação. Aquele homem que parecia nervoso se tornara um ator
calmo, tranquilo, centrado em seu personagem. E, enquanto ensaiavam,
eles interpretavam, cantavam, dançavam e se divertiam sob os olhares de
crianças, adolescentes e famílias que circulavam pela praça naquela tar-
de. Esta atenção não os deixava acanhados, pelo contrário, eles pareciam
orgulhosos por estarem na rua sendo vistos e não isolados em alguma
instituição psiquiátrica.
Antes do encerramento, algo surpreendente aconteceu, uma idosa se
aproximou e perguntou se havia espaço no grupo para uma senhora de
85 anos, ouvindo um quase que uníssono “sim”, antes de lhe explicarem
que o grupo era para todos, de todas as idades. E para encerrar, todos,
inclusive eu, demos as mãos em roda e cantamos um ‘Salve’ – um tipo de
canção folclórica de agradecimento – rodando como em uma ciranda.
Após isto, voluntários, usuários do sistema e a senhora foram embora
sorrindo. (Lucas Meireles)
ARTE QUE UNE E TRANSFORMA
Localizada na Baixada Fluminense, a Casa de
Repouso Ribeirinho abriga idosos e pessoas com
necessidades especiais há mais de três décadas
A Casa de Repouso Ribeirinho, situada no km39 da BR-465, em Seropédica - RJ. Foto: Bruno Todaro
Alexia Dalbem, Bruno Todaro, Eduarda Braga e Júlia Medeiros
12 Agosto de 2017
“Mãe, vamos fazer um passeio
num sítio lindo. Arruma sua bolsa
com umas roupas para a senhora.”.
Estas foram as últimas palavras
que Dona Júlia, 88 anos, ouviu
de sua filha antes de ser deixada
na Casa de Repouso Ribeirinho
no início do ano de 2016. Já em
outubro, alguns meses depois, o
“passeio” não havia terminado e
Júlia se queixa com saudades de
casa. A história de Dona Rosa é
parecida: foi deixada pelo filho
com a justificativa de que era um
“novo emprego”. Ambas as histó-
rias, acrescentadas às outras 35
de seus colegas, têm em comum o
sentimento de rejeição. Seguindo
o conceito da palavra, são pessoas
negadas, recusadas, que encon-
tram resistência de suas famílias
pelos mais diversos motivos.
A senilidade traz consigo situ-
ações difíceis de lidar. Algumas
delas como a impossibilidade de
trabalhar, problemas de saúde, al-
terações na personalidade e outras
adversidades que alteram a vida
de qualquer pessoa e também as
das que convivem com ela. Por ser
uma fase difícil, ao mesmo tempo
que se tornam um “fardo”, idosos
necessitam ainda mais de cuida-
dos e atenção, e não encontrar
isto no seio da família é uma das
coisas que torna o envelhecimento
difícil. Além da tristeza, a ausência
de entes queridos também causa
o agravamento de doenças, tanto
mentais quanto físicas, de acordo
com psicólogos.
Uma das saídas encontradas por
familiares que não têm capacidade
de arcar com as responsabilidades
que uma pessoa idosa carrega está
em procurar abrigos como a Casa
de Repouso Ribeirinho, que fica
em Seropédica, no Rio de Janei-
ro. Carmen, principal responsável
pela Casa, talvez consiga resumir
o que essas pessoas deixadas de
lado sentem:
— Os idosos são como árvores
que não dão mais frutos. Muitas
pessoas esquecem o seu valor.
Quando questionados sobre o
motivo pelo qual foram parar no
abrigo, a resposta foi unânime:
por não exercerem mais suas fun-
ções de trabalho ou do lar, foram
vistos como inúteis e deixados de
lado.
A principal intenção do abrigo e
de seus 18 funcionários é repre-
sentar um lar para as pessoas que
estão lá. São feitas atividades para
entretê-los frequentemente e os
cuidados com a saúde e bem-estar
dos residentes são rigorosamen-
te cumpridos pelas enfermeiras e
cuidadoras que trabalham no lo-
cal.
Ivanilda Alves, cuidadora na Casa
há um ano e sete meses, admite
o que a maioria dos idosos acaba
deixando escapar em algum mo-
mento:
— Aqui somos uma família, nós
nos apegamos a eles e eles a nós.
Mas eles sentem saudade de estar
na sua própria casa.
Segundo ela, apesar de todo am-
paro que recebem, a falta de inde-
pendência e liberdade de ir e vir
sem ter que pedir autorização é
um dos fatores que impedem que
eles se conformem de estar em um
abrigo.
Junto com Ivanilda, traba-
lham outras três cuidadoras sob
sua supervisão, por estarem exer-
cendo a função há menos tempo,
como ela conta:
— Eu sou responsável por orien-
tar todos os cuidadores, tudo que
acontece eu tenho que estar a par.Apesar de simples, o lar dos 35 idosos é aconchegante. Foto: Bruno Todaro.
Passeio pelo abandono
13Agosto de 2017
A Casa conta também com duas
enfermeiras que trocam de plan-
tão a cada 24 horas. Além das cui-
dadoras e enfermeiras, os internos
recebem duas vezes por semana a
visita de um fisioterapeuta. Porém,
uma situação que parece comum é
a negligência por parte de pesso-
as que eram presentes na vida dos
idosos, que não as visitam mais.
LIVRE ARBÍTRIO
Contrapondo a maioria das situa-
ções da Casa de Repouso, lá estão
pessoas que foram por vontade
própria. Terezinha de Jesus, por
exemplo, não lembra sua idade,
mas confidenciou que estava lá há
uma semana por motivos de saú-
de e que pretende ir embora assim
que melhorar da varicose manifes-
tada em sua perna, que são veias
com válvulas danificadas que per-
mitem o refluxo de sangue.
— Eu que pedi para minha filha
me trazer, para andar mais rápi-
do, né. Porque aí em casa tem que
internar para poder melhorar, não
sei o que... Aí eu combinei direiti-
nho com ela e ela me trouxe. Va-
mos ver agora como é que fica.
São os mais diversos motivos que
fazem os idosos preferirem morar
em um abrigo. Maria Pastora, 90
anos, sem nenhuma doença deli-
cada e pelas próprias pernas che-
gou à Ribeirinho. Após a partida
dos 11 irmãos, Maria procurou
um abrigo para ela e para a única
irmã viva, que necessitava de aju-
da por ser surda e ter 95 anos. Cin-
co anos depois, sem filhos, Maria
se viu sozinha e se desfez de tudo,
como ela mesma disse, então de-
cidiu procurar outro abrigo. Está
na Casa há dois meses e possui seu
próprio quarto com banheiro, di-
ferente da maior parte dos outros
moradores, que dividem seus dor-
mitórios. Entre suas atividades, a
religião é a mais importante como
conta:
— Leio a bíblia, oro... A gente está
orando de manhã agora. Conver-
so com as meninas que fazem a
faxina. Agora não estou podendo
trabalhar porque estou com um
problema de artrose, mas no outro
abrigo eu fazia crochê, tapetinho...
O caso mais incomum encontrado
foi o de Eric, 52 anos. Apesar de
não ser um idoso, o pai de sete fi-
lhos surpreendeu por ter procura-
do a Casa de Repouso Ribeirinho
para manter-se afastado do vício
que o distanciou de toda a família,
trabalho, amigos e a cidade onde
morava, Fortaleza. Eric usou co-
caína por 30 anos, largou as dro-
gas há um ano e conheceu o lar
através de um pastor, onde está há
dois meses. Embora lá não tenha o
tratamento específico, conta com
remédios e apoio para não retor-
nar ao vício. Mesmo de longe, sen-
te falta da família e enxerga a im-
portância do papel que seus filhos
têm na sua recuperação, desabafa:
— Todos os dias eu penso neles
e tento falar com eles. Hoje mes-
mo eu mandei uma mensagem no
WhatsApp.
Contudo, os asilos deveriam ser
lares para idosos que não se en-
contram mais em condições de
ficarem sozinhos em casa ou cujos
filhos ou parentes não têm a dis-
ponibilidade de dar a assistência
necessária. Embora seja esse o
ideal, as instituições são conheci-
das pelo sentimento de abandono
e esquecimento de seus familiares.
Além disso, os casos de abandono
Dona Terezinha conta sua experiência na casa de repouso. Foto: Eduarda Braga.
14 Agosto de 2017
não são exclusividade de Seropé-
dica, nem do Rio de Janeiro. Todos
os asilos pelo Brasil acabam sendo
usados para descartar pessoas. De
acordo com uma pesquisa feita em
2015, dos 309 idosos abrigados em
lares filantrópicos em São José do
Rio Preto, São Paulo, 112 não re-
cebem nenhuma visita. O proble-
ma é tão grave que asilos em várias
partes do país estão fazendo cam-
panha para convidar a população
local para visitar os idosos.
A RESPONSÁVEL
Carmen cuida de idosos há 35
anos. Já a Casa de Repouso Ri-
beirinho, inaugurada com os do-
cumentos devidos, tem 14. Para
se manter, a ajuda vem, em sua
maioria, de instituições religiosas,
como conventos católicos e cen-
tros espíritas. Não contam com
o apoio do Governo do Estado e
muito menos da prefeitura de Se-
ropédica.
Além de receber tais contribuições
para se manter, a partir de cer-
to momento passou a pedir uma
contribuição para as famílias dos
idosos deixados lá, a fim de man-
tê-los em melhores condições. Em
um abrigo com 35 adultos/idosos,
14 não possuem ajuda de ninguém
e alguns têm direito ao LOAS (sa-
lário mínimo mensal ao idoso aci-
ma de 65 anos ou ao cidadão com
deficiência), que, apesar de pouco,
auxilia na compra de fraudas, re-
médios e alimento.
Carmen contou que, mesmo com
todas as dificuldades, nunca dei-
xou de receber um idoso na Casa,
mesmo que a família não tivesse
condições de contribuir para a sua
estadia. Ao falar sobre a trajetória
da sua vida, que se resume a cui-
dar de idosos, ela deixou claro sua
constante vontade de estar aju-
dando:
— Hoje eu estava ali embaixo fa-
lando com o Senhor: “São tantas
pessoas que entram por essa por-
ta, precisam de uma vaga e eu não
tenho como sustentar e o Gover-
no não faz nada.”. Eu queria tanto
poder abrir a porta e dizer “entra,
tem uma cama para você dormir,
uma comida para você comer”,
mas não tenho como sustentar
todo mundo, não tenho de onde
tirar dinheiro.
Residindo no mesmo lugar que
os idosos, Carmen confessa que
sente como se todos juntos for-
massem uma família. Perguntada
a frequência que a família volta
para buscar definitivamente o ido-
so deixado, ela nos contou que, em
todos os seus anos cuidando deles,
isso nunca aconteceu. As duas
moradores mais antigas são Dona
Glória e Dona Rosa, que vivem na
Casa há 20 e 25 anos, respectiva-
mente. É como se para elas estar
lá fosse a nova vida, assim como
quando Carmen decidiu levantar
sua primeira casa junto da pri-
meira idosa que cuidava. A Casa
de Repouso Ribeirinho representa
acolhimento para pessoas que ne-
cessitam, e também renovação, o
começar de novo.
Foto: divulgação
A Casa de Repouso Ribeirinho, situada em Seropédica - RJ. Foto: Bruno Todaro
Trabalhadores do Trânsito
15Agosto de 2017
— Esse aí vai no seu colo?
— Não, vai no meu coração —
essa é a resposta que Edvaldo
Rozetti dá aos passageiros que
reclamam quando ele para nos
pontos mesmo com o ônibus lo-
tado.
Quando a situação se inverte e os
próprios motoristas se recusam
a parar em determinadas situa-
ções, Edvaldo, que está no ramo
há 25 anos, diz que o erro da sua
profissão é colocar na carteira a
palavra “motorista”:
— Eu acho que tinha que ser
“transportador de passageiro”,
porque ele pensa que não tem
que transportar, mas ele tem. Vai
além de dirigir.
TRABALHO DOBRADO,
SALÁRIO INTOCADO
A escada profissional dos entre-
vistados, em geral, segue o se-
guinte padrão: cobrador, moto-
rista júnior e, por último, sênior.
Selma Valério, condutora há dez
anos, conta sua trajetória traba-
lhando na área desde a época de
cobradora e explica um pouco
sobre a Resolução 168, que pas-
sou a ser obrigatória em 2004:
— O curso tem o objetivo de
aperfeiçoar, instruir, qualificar e
atualizar profissionais que pre-
tendam exercer a profissão.
Segundo os rodoviários, é essen-
cial para ter um bom relaciona-
mento interpessoal e aprender
primeiros socorros e direção
defensiva. Para a condutora da
linha 838, Selma, os desafios são
diários, conta:
— A gente tem dupla função
(motorista-cobrador), tem que
dirigir e tem que cobrar. Como
se não bastasse, tem semáforos,
passageiros que não aceitam per-
der cinco centavos por falta de
troco, tem que prestar atenção
pra ver se o passageiro já des-
ceu. Tudo. Somos tudo dentro do
ônibus. Acho que é por isso que
qualquer problema que eles têm
querem jogar para cima de nós.
Quando questionada sobre a du-
pla função, Selma diz que não vê
lógica nisso. Se pudesse, seria a
primeira coisa que mudaria, vol-
tando com os cobradores.
AGRESSÕES GRATUITAS
A condutora Denise Cristina
também começou como cobra-
dora e reclama sobre a junção das
duas funções:
— É mais trabalho para o moto-
rista que recebe uma quantia que
não vale a pena, o estresse é mui-
to maior.
Ela ainda relata sobre uma agres-
são feita por um passageiro idoso
por ela ter parado fora do ponto:
— Ele puxou a cigarra quando já
havia passado o ponto, não tinha
como parar. Se viesse um carro
atrás poderia bater e machucar
alguém, causando um aciden-
TRABALHADORES DO TRÂNSITO
Conheça quem são os responsáveis pela sua vida
enquanto se locomove pela cidade
Motorista e cobrador se preparam para a jornada de trabalho. Foto: Tiago Bruno.
Anna Castro, Letícia Sabbatini, Suellen Guedes e Tiago Bruno
16 Agosto de 2017
te grave. Eu estava grávida e fui
apanhando de um ponto ao ou-
tro, não revidei, não ia machu-
car o senhor, mas depois quando
cheguei à rodoviária não conse-
guia parar de chorar.
Há oito anos como motorista,
essa foi uma das situações mar-
cantes na trajetória de Denise
que, apesar da agressão injusta,
não se arrepende de ter mantido
a calma no trânsito. Segundo ela,
tem condutor que esquece que
está transportando vidas, e pensa
que está carregando objetos. Es-
quece que tem criança e idoso.
Para Denise, o curso de dire-
ção defensiva engloba situações
como essa e ensina medidas e
procedimentos utilizados para
prevenir ou minimizar as conse-
quências dos acidentes de trân-
sito, que poderia ter acontecido
caso ela parasse fora do ponto
ou revidasse o abuso físico que
sofreu. Após o relato, ela não
tem problemas com passageiros,
como conta:
— Você sabendo tratar as pesso-
as, elas retribuem. Um bom dia,
boa tarde e boa noite podem mu-
dar o dia de alguém.
Denise também comenta um
pouco do dia a dia de uma moto-
rista no trânsito:
— Alguns não admitem que uma
mulher passe a sua vez — é a res-
posta dada sobre a relação com os
colegas homens. — Mas são pou-
cos. Geralmente, eles respeitam e
são cuidadosos com a gente, mas
não deixam de continuar pensando
que somos o sexo
frágil.
Os atritos do dia
a dia, como rixas
entre motoris-
tas, acontecem e
causam muitos
problemas. A
dupla função do
condutor gera,
algumas vezes,
consequências
como acidentes
de trânsito. Se-
gundo o Obser-
vatório Nacional
de Segurança
Viária (ONSV),
pela malha de
1.751.868 quilô-
metros de estra-
das e rodovias
brasileiras, o nú-
mero de aciden-
tes fatais envolvendo caminhões/
ônibus teve aumento de 15% no
período de 2010 a 2014, muito
decorrente da exaustão e da mul-
titarefa no trânsito.
Um condutor, que preferiu não se
identificar, conta que lidar com
as pessoas é sempre difícil. Ao ser
questionado sobre situações que
marcaram seus anos de trabalho,
ele lembra:
— Um homem bêbado com a
família no carro fazendo barbei-
ragem apontou arma e tudo para
fora do carro.
Mesmo não sendo motorista, Ju-
lio Cesar, cobrador há 18 anos,
afirma que o trânsito é o maior
problema do trabalho, assim
como as dores nas costas. Se-
gundo ele, muitos colegas têm
problemas na coluna, inclusive,
tem um que se aposentou por in-
validez. Mas Julio ainda enxerga
o lado bom do trabalho, como
disse em conversa:
—Fizmuitaamizadequandovim
trabalhar aqui. Se você for rodo-
viário, vai gostar muito. Amizade
é muito importante e a gente co-
nhece muita gente. Antes eu era
armador, hoje em dia eu trabalho
assim, limpinho, cheiroso. Não
tem coisa melhor — brinca.
Já Paulo Cesar de Oliveira, mo-
torista há 20 anos da Real Rio,
conta que o sistema nervoso fica
abalado.
— O trânsito é bem ruim e os
passageiros querem que a gente
chegue no tempo deles. É com-
plicado.
Edvaldo Rozetti também passa
por alguns perrengues e por mo-
mentos marcantes.
— Um idoso me bateu uma vezA motorista Denise Cristina em seu horário de trabalho.
Foto: Suellen Guedes.
Trabalhadores do Trânsito
17Agosto de 2017
— ele relembra de uma das his-
tórias quando trabalhava no 918,
da empresa Jabour. — Vindo de
Madureira para Realengo, três
colegas meus largaram um idoso
a pé, eu fui o quarto e parei para
ele. Quando ele subiu, me deu
um soco. Perguntei por que ele
tinha feito aquilo e ele disse que
estava me batendo porque três
colegas meus não pararam.
Assim como Denise, Edvaldo
não revidou e contou como o se-
nhor se retratou:
— Quando chegamos em Ben-
to Ribeiro, tinha uma fábrica de
sorvete. Ele desceu, comprou e
disse que o pote de sorvete era
para mim, porque eu não reagi.
Se é outro motorista, com certeza
tinha revidado.
Mas o que os motoristas entre-
vistados têm em comum é claro:
todos eles amam dirigir e o fa-
zem com gosto. Celsio Melo, ro-
doviário há 42 anos, não se afeta
pelo cotidiano. Seu dia começa às
duas e meia da manhã e termina
ao meio dia, de segunda a sexta.
Ele afirma com convicção que a
relação com os passageiros é ex-
celente:
— Se eu carregar duzentos pas-
sageiros, são 200 amigos que eu
carrego.
NEM TUDO SÃO FLORES
O mesmo Edvaldo, que no co-
meço da entrevista foi retribuí-
do pelo idoso frustrado com os
ônibus que não pararam em seu
ponto, infelizmente não pôde
contar com a empresa a qual ves-
tia o uniforme após um acidente,
desabafa:
— Um taxista avançou o sinal e
bateu em mim. Fiquei muito mal,
pois achei que ele havia falecido.
O motorista nos contou que após
o acidente, foi suspenso por dois
dias sem qualquer averiguação
anterior e intimado a depor le-
galmente sobre o ocorrido. Para
sua surpresa, ao chegar ao fórum,
encontrou o taxista acidentado
em boa saúde. No entanto, a em-
presa em nenhum momento ofe-
receu a ele um advogado ou um
acompanhamento psicológico
depois de um acidente traumáti-
co como esse. Ao vê-lo sem defe-
sa profissional, a juíza responsá-
vel o aconselhou a recorrer a um
defensor público, pois ela havia
observado que a empresa de ôni-
bus já constava em diversos pro-
cessos e não possuía o costume
de mandar um advogado para
seus empregados. Fora somente
graças às câmeras de segurança
dos ônibus, localizadas na parte
interna e externa do veículo, que
o motorista de ônibus pôde com-
provar sua versão dos fatos e ser
indenizado pelo taxista por seus
dois dias suspensos.
Além disso, os condutores de
ônibus, muitas vezes, sofrem
com a hostilidade gratuita dos
passageiros por serem os únicos
membros da empresa presentes
no veículo. Ou seja, tornam-se o
único alvo possível para aqueles
passageiros que se sentem pre-
judicados pelas condições dos
meios de transporte. Entretanto,
esquece-se que os condutores
são somente a ponta do iceberg,
e que não são culpados pela má
preservação dos veículos ou pela
falta de investimento na qualida-
de do transporte.
Edvaldo Rozetti conta sobre seus 25 anos no ramo. Foto: Tiago Bruno.
18 Agosto de 2017
Surpreendentemente, os mo-
toristas também sofrem com a
falta de linhas. Muitas pessoas já
devem ter se perguntado como
o último motorista da empresa,
que às vezes encerra seu expe-
diente de madrugada, faz para
retornar a sua residência. Assim
como qualquer outro trabalha-
dor, o motorista também faz uso
do transporte público. No entan-
to, as linhas noturnas são raras e
os ônibus conhecidos como “ba-
cural”, que circulam por toda a
noite, mais raros ainda.
NEGLIGENCIADOS
A lista dos descasos cometidos
pelas empresas é grande. A co-
brança “cronometrada” de tempo
em que um motorista deve rea-
lizar seu trajeto é feita sem levar
em consideração o trânsito do
momento, acidentes ou impre-
vistos, acarretando em pressão,
mais estresse e possíveis punições
futuras. Mesmo no Rio de Janei-
ro, cidade que possui o terceiro
pior tráfego do mundo, os moto-
ristas não possuem nenhum tipo
de acompanhamento psicológico
para avaliar como o contato di-
reto com o público, nem sempre
amigável, e o trabalho diário em
um trânsito menos amigável ain-
da afetam sua vida. Apesar dos
esforços, nem sempre é possível
não levar o estresse do trabalho
para dentro de casa. Sem contar
que, além de todo o profissio-
nalismo que alguns se esforçam
para manter, as relações pesso-
ais e profissionais ainda residem
dentro do mesmo indivíduo, fa-
zendo com que às vezes influen-
ciem uma a outra.
Não obstante o cansaço mental,
também há o prejuízo físico para
esses profissionais. Aproxima-
damente 90% dos entrevistados
reclamam de dores nas costas
devido ao fato de permanecerem
sentados o dia inteiro ou pelo
estado de conservação de seus
assentos. Esse tipo de problema,
muito recorrente, é tratado de
forma banal, uma vez que não
existe qualquer solução proposta
pela empresa que vise um melhor
ambiente para a execução de suas
funções. Afinal, o transporte pú-
blico movimenta toda a cidade
e permite que ela mantenha-se
viva e operante todos os dias.
Edvaldo se alegra ao afirmar ga-
nha o carinho e beijo de idoso e,
sendo conversa de motorista ou
não, é importante enxergar es-
ses profissionais e reconhecê-los
com a devida importância que
possuem.
Ponto de ônibus em Seropédica - RJ. Foto: Tiago Bruno.
Prostituição
19Agosto de 2017
Onúmero de profissionais do
sexo no Brasil e no mundo
todo está crescendo cada vez mais.
Mesmo sem leis que os protejam
de fato e os beneficiem, o Minis-
tério do Trabalho reconhece a
prostituição como uma profissão.
O lado deles foi ouvido: homens,
mulheres e transexuais ganharam
mais um espaço para dar voz a essa
luta.
A história se repete todos os dias,
com pessoas diferentes e dos mais
diversos estados, mas algo faz com
que elas se conectem mesmo sem
se conhecer por algo em comum:
sua necessidade de sobrevivência.
Dentre as oportunidades existen-
tes para cada indivíduo, esta tal-
vez tenha sido a melhor opção.
Segundo um estudo da fundação
francesa Scelles, que luta contra a
exploração sexual, são mais de 40
milhões de pessoas que se prosti-
tuem no mundo atualmente. 75%
são mulheres, entre 13 e 25 anos.
No Brasil, 46,3% tem entre 20 a
29 anos, a maioria com o primei-
ro grau incompleto e possuem de
um a quatro anos de profissão re-
cebendo até dois salários mínimos
por mês e são 37% delas que sus-
tentam suas famílias.
Ao olhar esses dados, levanta-se
questionamentos: mas o que faz
tantas mulheres no país optarem
por essa profissão? Quais são suas
histórias?
Nas “clínicas de massagem”, tanto
mulheres quanto homens podem
ingressar nessa profissão tão lucra-
tiva. Em site das próprias clínicas,
pode-se encontrar fotos de massa-
gistas que trabalham no local em
questão, disponibilizando a espe-
Não há demérito em ser puta
Número de profissionais do sexo cresce no país
Foto: divulgação
Brenda Rangel, Gabriela Willer,
Lucas Ferreira, Luísa Martinelli e
Matheus Almeida
20 Agosto de 2017
cialidade das massagens oferecida
por cada uma, valor e telefone. O
expediente dura cerca de oito ho-
ras por dia, atendendo até cinco
clientes no decorrer dele.
Aos 20 anos, universitária, Ca-
roline Ribeiro, conhece Pedro
Augusto, dono de uma clínica de
massagem que lhe convida para
conhecer o ambiente de trabalho
dele e como funciona. Carol, que
pertence à uma família pobre,
sem condições financeiras para se
manter e fazer o que a maioria das
mulheres em sua idade gostariam,
se envolve com Pedro, que logo a
proíbe de trabalhar na clínica. Ao
fim do relacionamento, Carol, ain-
da sem condições de se manter,
decide procurar outras clínicas de
massagem, e então o sucesso foi
absoluto:
— A clínica que eu trabalhava era
situada na Barra da Tijuca, Rio de
Janeiro, os clientes não eram po-
bres, com pouco poder aquisitivo,
até porque era cobrado R$ 200,00
a hora. Eu tinha anuncio em uns
três sites, e eles me encontravam
ali, também por flyer, através de
entregadores que pagávamos para
distribuir na rua.
Carol recebia, por semana, em
média R$ 2.000,00. Para ela, pres-
são psicológica ou externa não faz
uma pessoa largar uma vida des-
sa, porque é lucrativa. Mas Carol
não suportou o preconceito que
estava enfrentando. Segundo ela,
as pessoas que souberam da sua
profissão começaram a se afastar e
a excluir das atividades acadêmicas
e sociais. Até mesmo as que gosta-
riam de trabalhar dessa maneira e
não tinham coragem encontraram,
na exclusão de Carol, uma manei-
ra de descontar suas frustrações. O
objetivo de Carol era ter dinheiro e
ser aceita por seus colegas univer-
sitários, infelizmente, o resultado
foi o oposto e, depois de quatro
meses, abandonou a profissão.
Além das “clínicas de massagem”,
há também os bordéis. Cleiton
Santos, 19 anos, filho da adminis-
tradora de um bordel, afirma não
saber de leis que protejam mu-
lheres que trabalham nessa área,
muito menos benefícios como
plano de saúde, carteira assina-
da e aposentadoria como lhes é
de direito, mesmo sabendo que o
governo reconhece esta profissão.
Quando o assunto é prostituição, a partir de 1942, surgiram três formas de classificarmos no meio legislativo: o re-
gulamentarismo — o qual o profissional é legalizado e possue direitos previdenciários — o abolicionismo - a profis-
são só é reconhecida como prostituição — e o proibicionismo — como o próprio nome sugere, é proibida a prática.
No caso do Brasil, rege a classificação abolicionista, que, desde meados de 2002, é reconhecido pelo Ministério do
Trabalho o ofício de “profissional do sexo”.
No ano de 2012, o deputado federal Jean Wyllys apresentou o projeto de lei 4211/12, o qual propõe, partindo de um
aspecto geral, a regulamentação e segurança dos profissionais do sexo, baseado no artigo 5° da Constituição Federal
de 1988, com medidas como:
- “Art. 1º - Considera-se profissional do sexo toda pessoa maior de dezoito anos e absolutamente capaz que volunta-
riamente presta serviços sexuais mediante remuneração.”.
- “Art. 3º - A/O profissional do sexo pode prestar serviços:
I - como trabalhador/a autônomo/a; II - coletivamente em cooperativa.
Parágrafo único. A casa de prostituição é permitida desde que nela não se exerce qualquer tipo de exploração sexu-
al.”.
-“Art. 5º. O Profissional do sexo terá direito a aposentadoria especial de 25 anos, nos termos do artigo 57 da Lei
8.213, de 24 de julho de 1991.”.
	 É fato que, no país canarinho, há uma necessidade de se regulamentar todo e qualquer tipo de função, seja
profissional ou social. Com os profissionais do sexo, torna-se mais necessário, principalmente pela cultura menos-
prezativa, semeada por um estereótipo criado socialmente de que prostituição não é profissão, além das condições
exploratórias de trabalho.
	 Porém, vivemos um contexto de empoderamento financeiro, o qual divide opiniões em relação à regula-
mentação da prostituição. Isso porque corre o risco de ser cerceado o direito de autonomia dos profissionais, a partir
do momento em que a profissão fica extremamente dependente da fiscalização governamental. Será mesmo que a
regulamentação melhora as condições de trabalho ou só diminui o poder de ação dos profissionais do sexo?
POR DENTRO DA LEGISLAÇÃO
Prostituição
21Agosto de 2017
Sua mãe, que trabalhou por cinco
anos no mesmo bordel que hoje
administra, nunca teve amparo al-
gum, além de ter que enfrentar o
preconceito até mesmo de alguns
de seus filhos. Cleiton, por sua vez,
sempre encarou a situação mui-
to bem e com naturalidade, como
conta:
— Eu acho um trabalho digno,
sabe por quê? Porque elas estão
fazendo isso porque precisam. Mi-
nha mãe batalhou muito para criar
eu e meus irmãos. Essas mulheres
estão correndo, trabalhando, bus-
cando o que é delas. É um trabalho
como qualquer outro.
Cleiton também já passou por di-
versas situações de preconceito por
ser homossexual e pela antiga pro-
fissão da mãe.
— Hoje em dia tudo tem um pou-
quinho de preconceito. Ao invés
das pessoas tentarem fazer de ou-
tra forma, elas preferem viver do
mesmo jeito, criticando os outros.
Agora eu relevo e vivo bem com
isso.
A prostituta não é vista como mu-
lher, mãe ou esposa, ela é apenas
prostituta. E sendo prostituta ela
só pode ser vista como tal, excluin-
do todas as outras possibilidades
de ser. Há uma dificuldade de
aceitação para uma nova condição
feminina em que a construção e a
imposição do tipo de mulher se-
ria diferente da mulher tida como
aceitável. A prostituta vai contra
todo comportamento criado pelo
homem para a mulher: ativa de
suas ações, utiliza do seu corpo,
frequenta lugares que antes não
podiam, possuem o seu próprio
dinheiro. O homem, que antes ti-
nha domínio sobre a mulher, passa
a não ter mais. E aí surge o medo
de outras mulheres quererem essa
liberdade de serem elas mesmas. A
mídia de massa contribui no mo-
mento que reforça a visão de mar-
ginalização das prostitutas e como
reprodutoras de doenças. Nos ci-
nemas e nas novelas costumam dar
um papel de vitimização. Ocorre
uma desvalorização da imagem
ao serem representadas. Elas pos-
suem duas saídas: doentes, escra-
vas do desejo sexual dos homens
ou então com um final feliz, mas
com uma “glamourização”, que só
ocorre como recompensa por ser
vítima de algo.
Hoje, Cleiton ajuda sua mãe e
o padrasto na administração da
casa. As meninas que vêm de fora
Foto: divulgação
22 Agosto de 2017
da cidade onde o bordel está loca-
lizado, trabalham de terça a sába-
do. É permitido até 20 mulheres
trabalhando, com a faixa de preço
de seus programas entre R$ 50,00
a R$ 140,00. O sistema é rotativo,
ou seja, a cada semana há novas
mulheres na casa justamente com
o objetivo de não criar vínculos e
acabar tendo eventuais problemas
com clientes conhecidos.
Ele também diz que, aos 15 anos,
se prostituiu pela primeira vez:
— Prostituição é mais comum do
que vocês pensam. Até eu já me
prostituí, assim, na rua, sabe? São
muitas as mulheres e homens que
fazem isso estando casados, por
algum trocado ou porque não têm
como sustentar a família.
O que nos leva a entender que a
necessidade de sustento também
parte do sexo masculino. Na Es-
panha, 70% dos homens que se
prostituem são brasileiros entre 18
e 28 anos. No Brasil, a porcenta-
gem é menor, porém pela mesma
necessidade: dinheiro. Alguns es-
colhem essa profissão como forma
de complementar renda, outros
por dificuldade de ingressar no
mercado de trabalho formal, por
isso entram e permanecem única e
exclusivamente por dinheiro. Eles
atuam de forma discreta, somente
1% coloca anúncios em jornais, 9%
estão nas ruas. A maioria (64%)
atua em saunas gays e o restante
busca clientes de outras formas.
E é nas ruas que algumas dessas
mulheres e desses homens rejeita-
dos encontram o campo ideal para
exercer o ofício de profissionais do
sexo. O problema é que, na rua,
a vulnerabilidade é maior, os de-
safios são muitos e eles precisam
estar preparados para toda e qual-
quer situação. Grande parte das
mulheres dividem parcialmente o
“ponto” (maneira que referem-se
ao local onde esperam um cliente)
para que se sintam mais protegi-
das, mas com certo espaço e res-
peito para que cada uma tenha seu
cliente sem que haja conflito. Estão
nas ruas, também, as transexuais,
que enfrentam não só o precon-
ceito por serem prostitutas, mas
também por serem trans. Na busca
por conhecer melhor o mundo da
prostituição e as histórias que en-
volvem as prostitutas, conhecemos
também Lyah Corrêa, que respon-
deu a algumas de nossas pergun-
tas.
Entrevistador: Lyah, como foi que
você entrou para essa profissão e
há quanto tempo está nela?
Lyah: Eu comecei aos 25 anos, em
2006. Começou com um hobby de
chat's de bate-papos. Eu comecei a
fazer dessa diversão uma possibili-
dade de ganhar dinheiro devido a
minha situação financeira ser bem
delicada. Comecei a cobrar dinhei-
ro para os homens que eu me en-
volvia. Não foi difícil, até pelo fato
d'eu ser trans eles próprios já me
abordavam pensando que eu era
prostituta pelo estigma que carre-
gamos (transexualidade associada
à prostituição). Sim, confesso que
me incomodei no início, mas de-
pois acostumei. Em 2008, eu co-
mecei a ir pras ruas (detalhe: eu
morava sozinha, pois havia sido
expulsa de casa). Então, além dos
chat's, as esquinas eram minha ou-
tra fonte de lucro. Paralelo a tudo
isso, eu fazia o curso de Psicologia
na UFPA e conseguir terminá-lo
pra mim era uma questão de hon-
ra. Terminei o curso somente em
2012, que foi o ano que não me
prostituí mais nas ruas.
Entrevistador: Como é o trabalho?
Lyah: Tanto pelo chat quanto na
rua, eu atendia os clientes sempre
em motéis, embora, dependendo
da esquina, havia terrenos aban-
donados que também serviam de
motéis. Nas ruas, eu chegava umas
22h e ia embora lá pelas 4h. Eu evi-
tava ficar muito próxima de outras
trans até pela questão da concor-
rência, para não criar conflitos.
Aqui em Belém, embora tenham
espaços bem delimitados onde
ocorrem prostituição de mulheres
cis e trans, não tem muita briga en-
tre elas.
Entrevistador: Como é ser mulher
trans e profissional do sexo? Quais
as suas especificidades, como é o
preconceito no campo social?
Lyah: Como eu havia dito, a ima-
gem da mulher trans ou travesti é
imediatamente remetida à prosti-
tuição, até porque, de acordo com
a Associação Nacional de Travestis
e Transexuais (ANTRA), 90% de
nós é ou já foi profissional do sexo.
E, na época, eu era universitária,
e mesmo assim nunca consegui
estágios aqui por conta da minha
identidade de gênero. A rua foi o
único lugar que abriu as portas pra
mim. Claro, tinha o chat, mas a rua
era mais certa, embora o grau de
vulnerabilidade fosse ao extremo.
Por isso que, para mim, a minha
formação era uma questão de hon-
ra, para tentar ocupar outros espa-
ços para além da prostituição. Se
as mulheres cis já encontram difi-
culdades e desafios no mercado de
trabalho, imagina as trans.
Entrevistador: Sobre a legaliza-
ção, qual a melhora que vê para as
profissionais, qual seu olhar dian-
te do Projeto de Lei (PL) Gabriela
Leite?
Prostituição
23Agosto de 2017
porque foram nessas relações de
cafetinagem e pararam em outros
países. Como eu disse, sempre pre-
feri ficar sozinha e separada por-
que eu sabia que as noites são mo-
mentos de outras relações, muitas
vezes cruéis, e que ter "amigos" era
algo raro.
Entrevistador: Já pensou em de-
sistir? Como é a sua luta diária
para enfrentar tanto preconcei-
to... Se já te violentaram e caso
tenha ocorrido, como foi?
Lyah: A desistência foi a melhor
coisa que fiz em 2012, senão eu te-
estão erradas? Não. Apenas limita-
das a um único ponto de vista.
Entrevistador: Você já trabalhou
em alguma casa de prostituição?
Chegou a se sentir explorada en-
quanto trabalhava lá?
Lyah: Nunca trabalhei em casas
de prostituição, mas já fui inúme-
ras vezes convidada a entrar em
redes de cafetinagem em troca de
ganhar cirurgias estéticas "grátis"
e vida melhor. Claro que eram ilu-
sões pra ficar eternamente escravi-
zada como muitas amigas minhas
ficaram. Algumas nunca mais vi
Lyah: Sobre a questão da legaliza-
ção através do PL Gabriela Leite:
penso que é muito mais que ques-
tões trabalhistas, é uma reafirma-
ção do empoderamento feminino
frente ao status quo de submissão
dos corpos e gêneros femininos
frente ao patriarcado. À mulher,
sempre foi reservado o papel de
submissa em todos os sentidos,
em todas as culturas. A questão da
prostituição em si pode ser olhada
por diversas perspectivas, e uma
delas é justamente sob a ótica dos
direitos humanos, de autonomia
que a mulher tem sobre seu pró-
prio corpo e sexualidade. E, para
aquelas que sobrevivem unica-
mente das esquinas, ter um ampa-
ro legal do Estado é o mínimo que
este possa oferecer enquanto estí-
mulo de empoderamento para ela
própria se ver enquanto sujeito de
direitos e deveres e não meramen-
te subjugadas à sorte. Tem-se um
mal cultural horrível de se pensar
que, legalizando um projeto de lei,
se irá estimular uma determinada
prática (vide legalização do aborto
e da maconha) e isso é um pensa-
mento errôneo. No caso da prosti-
tuição, um dos pilares de luta das
ativistas é justamente mostrar pra
sociedade que a puta, a prostituta,
também merece ter seus direitos
ao trabalho e à saúde garantidos,
e resgatar seus processos de auto-
estima, de seus lugares e inúmeras
possibilidades de papéis no mundo
para além do que o patriarcado re-
serva a elas. Lembro que fui colo-
car esse posicionamento para um
grupo de mulheres de um partido
político socialista e elas disseram
que os homens dos partidos delas
eram proibidos de se valerem dos
serviços sexuais das putas devido à
uma cláusula que proibia isso. Ar-
gumento delas? O marxismo. Elas
Foto: divulgação
24 Agosto de 2017
ria morrido. Foi nessa época que
conheci o GEMPAC, mas nunca
cheguei a ser uma ativista oficial
desse movimento devido a ser
um grupo exclusivo de prostitutas
cis. A maioria é ótima, mas nun-
ca me senti plenamente à vontade.
Então, colaboro como e quando
posso igual a outros voluntários
de outros movimentos sociais que
apoiam à causa. Mas esse grupo
foi primordial para o meu pleno
reconhecimento de autonomia so-
bre o meu próprio corpo. Como eu
nunca tive muitos atributos físicos
que chamassem a atenção, sempre
ganhei pouco nas ruas e sempre ti-
nha os aluguéis atrasados de onde
eu morava, quase sendo despejada
várias vezes. E confesso que, na
ausência de preservativo, eu com
a expectativa de ganhar mais me
submetia a transar sem camisinha.
Numa dessas, fui infectada pelo
vírus HIV. Enfim, era outra reali-
dade que eu começava também a
ter que lidar. O diagnóstico foi em
2010. E foi pelo GEMPAC que co-
nheci o movimento social de luta
contra a AIDS aqui do Pará, que
me acolheu e sou ativista até hoje.
Imagina que ser prostituta, trans
e vivendo com AIDS era enfren-
tar os mais perversos preconceitos
sociais oriundos de tudo isso. Mas
finalmente me formei e consegui
trabalhar na minha área, de for-
ma autônoma, e conseguindo uma
grana que me possibilite até hoje
me sustentar.
Hoje, não voltaria para a prosti-
tuição, só que mais pelas questões
de sofrimento que passei, traumas,
violências sexuais, mas sou uma
eterna defensora das guerreiras
que a exercem, sejam elas cis ou
trans. Como eu disse, ser puta
na sociedade, através da luta pelos
direitos em condição de liberdade
e igualdade. Algumas vertentes do
feminismo, como o radical, são
contra a legalização da prostitui-
ção. Eugênia Rodrigues, feminista,
argumenta:
— A prostituição é um mundo tão
difícil que algumas mulheres aca-
bam por recorrer ao alcoolismo e
às drogas para continuar. Na vida
real, em que o homem é mais forte
fisicamente, se ela existe ela pode
ser até agredida e estuprada. No
Brasil, que o aborto não é legaliza-
do, a situação delas é pior, o núme-
ro de aborto provocado é maior,
acabando por engrossar o núme-
ro de mortalidade materno nos
abortos clandestinos. Profissional
do sexo é um truque para apagar
a gravidade disso, o quanto preju-
dica a saúde física e psicológica de
meninas e mulheres. As pessoas
que advogam são cafetinas e ad-
vogam por legalização, e não por
políticas públicas, eles não querem
que essas pessoas saiam porque
eles lucram com essas pessoas. Eu
chamo de PL dos Cafetões: se você
ler, vai ver seis artigos. Então você
já fica desconfiado, como é que
uma situação tão grande, tão com-
plexa, de um país enorme como o
Brasil, poderia ser tratado em ape-
nas seis artigos? Garantir os lucros
dos cafetões, tirar os cafetões da
ilegalidade, porque hoje, de acor-
do com a lei, ser cafetão e cafetina
é crime. A ideia do projeto é tirar
essa galera da ilegalidade, transfor-
má-los em empresários e garantir
que eles fiquem com até 50% do
que a prostituta conseguir, ou seja,
óbvio que esse projeto de lei não
está levando-as em conta.
não é demérito nenhum. Escroti-
ce é ser invisibilizada por um Es-
tado e uma cultura machista que
sempre relega ao corpo feminino
um grau de quase inexistência de
poder. Hoje, com as inovações
tecnológicas, os aplicativos, sites
de anúncios e chat's, são outros
recursos utilizados por elas. E
devido à estigmatização da pros-
tituição, muitas não se definem
como tal por acharem que é uma
ofensa. Preferem eufemismos, tais
como o famoso "acompanhante".
Os movimentos sociais utilizam o
termo puta para ressignificar isso.
Puta enquanto uma agente de sua
própria história, uma lutadora. E
principalmente as que têm na rua
seu meio de ganha-pão.
Apesar dessa luta das prostitutas,
existe parte de um movimento que
é contra e que viabiliza seus argu-
mentos a favor das mulheres e não
a favor dos seus atos e da decisão
que elas têm sobre seu próprio cor-
po. O feminismo é o movimento
que busca igualdade, a emancipa-
ção e o empoderamento da mulher
Escrotice é ser
invisibilizada por
um Estado e uma
cultura machista
que sempre relega
ao corpo feminino
um grau de quase
inexistência de
poder.
Prostituição
Em toda cidade grande, e arris-
camos dizer que em muitas pe-
quenas também, é praticamente
impossível andar pelas ruas e não
encontrar um ou outro grafite. Ou
vários. Esse fênomeno que data
desde a década de 70, nos Estados
Unidos, hoje toma conta das cida-
des brasileiras. O grafite surge na
história através de adolescentes
que queriam deixar sua marca nos
centros urbanos e evolui para uma
realidade muito diferente na prá-
tica, mas certamente igual em sua
essência. Para entender um pouco
mais, dois grafiteiros foram entre-
vistados e contaram um pouco de
como foi começar a prática e os
desdobramentos que isso teve em
suas vidas.
Pedro* tinha 15 anos quando teve
seu primeiro contato com a picha-
ção. Não foi através de amigos,
como é comum em alguns casos.
A vontade surgiu de uma neces-
sidade de estar na rua, que ia ao
encontro com certa admiração
pela prática. Posteriormente, ele
acabou por se juntar em alguns
grupos que já praticavam em sua
cidade e a fazer amizades. Júnior*
iniciou mais cedo, aos 13. Come-
çou a pichar em seu próprio bairro,
depois de ser chamado por alguns
colegas de escola. Ele não pensou
muito, apenas topou. Na prática,
descobriu um prazer que não sabia
que tinha. Os dois compartilham
de histórias diferentes, mas que se
cruzam: o momento em que larga-
ram a pichação e abraçaram o gra-
fite. Tal decisão colocou os dois,
anos depois, lado a lado em frente
a um mesmo muro — dessa vez
não pichando, mas grafitando.
Aos 17 anos, Júnior foi jurado de
morte no bairro em que morava.
Inicialmente, ele relembra a his-
MARCAS DA CIDADE
Da adolescência à vida adulta: grafiteiros
contam suas experiências artísticas
25Agosto de 2017
Grafite
Foto: divulgação.
Bruno Cardoso
tória sem muitos detalhes, como
se não quisesse falar desse tempo,
mas logo depois nos conta um
pouco mais do que aconteceu. A
ameaça chegou nele por meio de
familiares, que ficaram sabendo e
pediram que se mudasse e ficasse
fora por um tempo. “O aviso veio
de dentro da polícia, então o que
me restava era sair”, disse. Ele mu-
dou de cidade, mas devido à sua
difícil condição financeira não
pôde ir para muito longe. Teve que
ficar na casa de parentes e não cha-
mar muita atenção. Foi nessa mes-
mo época que o grafite começou a
surgir em sua vida. Ainda em ida-
de escolar, próximo de terminar o
ensino médio, começou a grafitar
no colégio onde estudava e, a par-
tir disso, foi convidado para levar
seus desenhos à outras institui-
ções. No entanto, ainda evitava de
grafitar nas ruas.
No inicio de 2009, Pedro ingres-
sou no serviço militar. “Não era
uma escolha de vida, mas eu ‘tava’
pensando mais no dinheiro”, expli-
cou. O que a princípio seria apenas
um ano, se estendeu por mais 18
meses, a pedido do próprio. Na-
quela época, já conhecia sua atual
esposa, que ainda era apenas sua
namorada. Quando estava prestes
a terminar o primeiro ano de ser-
viço militar, ela engravidou, fazen-
do com que Pedro optasse por ficar
mais algum tempo no exército, a
fim de juntar um dinheiro para o
nascimento da filha.
Durante todo esse tempo em que
esteve servindo, o cansaço se tor-
nou constante. A pichação já não
fazia muito sentido e estava prati-
camente esquecida. O desenho, no
entanto, continuava permeando
sua vida, em cadernos que encon-
trava em casa e folhas soltas. Foi
quando um amigo lhe sugeriu es-
tudar para trabalhar como ilustra-
dor, e Pedro gostou da ideia. Nos
meses antes de sair do exército, se
dedicou a aprender a usar os edi-
tores e ilustradores digitais presen-
tes no mercado. Quando deixou
o serviço militar, começou a tra-
balhar com ilustração e voltou às
ruas, dessa vez levando muito do
que aprendeu nos computadores
para os muros, deixando de lado
a pichação e abraçando de vez o
grafite.
Andando pela cidade, não é difícil
observar a maneira como o grafite,
muitas vezes, divide espaço com a
pichação. Pedro conta que costuma
existir um respeito mútuo entre pi-
chadores e grafiteiros. Não acon-
tece pichação em cima de grafite,
nem vice-versa. Porém, relembra
uma situação em que esse acordo
foi quebrado e que perseguiu um
26 Agosto de 2017
Foto: divulgação. Foto: divulgação.
pichador que frequentemente es-
tragagava seus desenhos: “Era um
garoto novo, ‘tava’ começando a
pichar agora. Conversamos e de-
pois não aconteceu de novo”, rela-
ta. Junior fala do respeito direcio-
nado aos grafiteiros: “Dá pra viver
do grafite. Eu já trabalhei em esco-
las, empresas, igrejas. Não vivo só
disso, mas é uma das vertentes do
que eu faço”.
Hoje, Pedro e Júnior tem 25 e 23
anos, respectivamente. Pedro é ca-
sado e tem duas filhas, afirma que
largar a pichação foi uma decisão
sensata e que não voltaria a pra-
ticar: “A pichação é um protesto,
mas muitas vezes nasce só como
diversão. Não que isso seja im-
portante pra pessoas que só veem
o muro sujo e ficam revoltadas.
Então, por mais que você acredi-
te naquilo, uma hora a gente tem
que parar, e a galera nova que se-
gue”. Júnior relembra com saudade
daqueles tempos: “O grafite é mais
tranquilo, de certa forma. E isso é
bom. Mas tem dia que eu não te-
nho assim tanta animação. Isso
não costumava acontecer com a
pichação”.
O céu arma uma chuva nesse mo-
mento, e sentimos na pele como é
essa realidade que é trabalhar com
arte na rua. Seus grafites ainda
não estão prontos, mas mesmo as-
sim eles começam a guardar seus
materiais, temendo que caia um
temporal que os obrigue a correr
com tudo. Antes da chuva, porém,
Júnior conta, complementando
sua última frase, que já sabia que
a pichação era considerada crime
quando tinha 13 anos, e afirma que
essa retaliação da população não é
resposta à uma atividade crimino-
sa, mas a um incômodo: “A gente
convive bem e até pratica um mon-
te de coisa que é crime. A venda de
cigarro e bebida pra menor, sone-
gação de imposto, propina, mas es-
sas coisas não incomodam. Então,
a gente finge que não tá vendo”,
reflete.
E então a chuva caiu, forte e sem
piedade, nos fazendo juntar todos
os sprays nas mochilas e sacolas,
correndo e torcendo para que a
tinta na parede estivesse seca. E,
provavelmente, estava. Dias de-
pois, passando por ali, pude ver
o grafite finalizado. Uma marca
deixada na cidade — exatamente
como era feito há quase cinquenta
anos, quando tudo começou.
* A fim de proteger a identidade
dos entrevistados, os nomes Júnior
e Pedro são fictícios. Fatos, dados
e locais que pudessem identificar
esses personagens foram suprimi-
dos.
Grafite
27Agosto de 2017
Foto: divulgação.
Jornalismo-UFRRJ
2017
Revista de reportagem experimental dos alunos da UFRRJ.

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A luta das mães universitárias por creche e apoio na UFRRJ

  • 1. Edição Nº 02 - Agosto de 2017. VISIBILIDADE SOCIAL A tentativa de romper com preconceitos e estigmas
  • 2. NESTA EDIÇÃO Trabalhadores do Trânsito Edvaldo Rozetti e Selma Va- lério falam sobre o cotidiano dos motoristas de ônibus, seus planos de carreira e em como lidar com uma profissão onde são responsáveis por várias vidas durante as viagens pela Zona Metropolitana do Rio. Dizem que eu sou louco por pensar assim Paulo Sérgio Machado, 63, escritor, militante e usuário do sistema, como são conhe- cidos os que usam dos servi- ços de saúde mental no país, explica que o Movimento da Luta Antimanicomial é um movimento social e político nacional a favor da Reforma Psiquiátrica no Brasil. Maiêutica: o parto de ideais Além de todas as dificulda- des encontradas para se for- mar em uma universidade pública, um grupo de alunas encontra diariamente outro obstáculo: ao descobrirem que terão um bebê precisam achar uma forma saudável e possível de viver com seus filhos no campus enquanto estudam. Expediente: Esta revista foi produzida na disciplina de Técnicas de Reportagem, do curso de Jornalismo do Departamento de Letras e Comunicação da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Professora responsável: Ana Lucia Vaz (MTb/RJ 18058) Edição: Gustavo Carvalho Revisão: Anna Castro e Bruno Todaro Projeto gráfico, ilustrações e diagramação: Sandro Schütt 4 8 15 11 UM PASSEIO AO ABANDONO “Mãe, vamos fazer um passeio num sítio lindo. Arruma sua bolsa com umas roupas para a senhora.”. Estas foram as últi- mas palavras que Dona Júlia, 88 anos, ouviu de sua filha antes de ser deixada na Casa de Repouso Ribeirinho no início do ano de 2016. Já em outubro, meses depois, o “passeio” não havia terminado e Júlia se quei- xa com saudades de casa. NAO HÁ DEMÉRITO EM SER PUTA Mesmo sem leis que os protejam de fato e os beneficiem, o Minis- tério do Trabalho reconhece a prostituição como uma profissão. O lado deles foi ouvido: homens, mulheres e transexuais ganharam mais um espaço para dar voz a essa luta. 19 2 Agosto de 2017 MARCAS DA CIDADE O grafite surge na história através de adolescentes que queriam deixar sua marca nos centros urbanos e evolui para uma realidade muito diferen- te na prática. 25
  • 3. Editorial A Maritaca está de volta. Já co- nhecemos a força de seu grito na primeira edição e agora viemos com diferentes vozes que não passarão despercebidas, envol- vendo as mais diversas classes, profissões e idades. A revista foi novamente produ- zida pelos alunos de Jornalismo, que caíram dentro das histórias e se entregaram à produção delas. A dor de ser invisibilizado ecoa, e tentar entender essas feridas pode enriquecer a nós e a quem se dispuser a ler. O aprendizado coletivo continua. Nosso intuito é que as histórias gravadas nessa revista sirvam de aprendizagem. Já o nosso desafio enquanto jornalistas, e também como seres humanos, é o de estabelecer pontes e reconhecer novas experiencias, tocando você, leitor, de alguma forma. Os depoimentos aqui dialogam conosco além do imaginado, e por isso todo o esforço é recom- pensado. Foi um longo processo de apuração, gravação de entre- vistas, revisão de textos, elabora- ção de fotos e diagramação até se transformar nesta edição. 3Agosto de 2017
  • 4. MAIÊUTICA: O PARTO DE IDEAIS Além de todas as dificuldades encontradas para se formar em uma universidade pública, um coletivo se depara diariamente outro obstáculo: ao descobrir a maternidade é preci- so achar uma forma saudável de viver com filhos no campus enquanto estuda Cansadas de não terem suas rei- vindicações atendidas, além de muitas vezes se sentirem perdi- das, pois em vários casos não há o apoio dos companheiros, algu- mas alunas se juntaram e forma- ram, em 2014, o Coletivo de Pais e Mães (COPAMA). O grupo sur- giu após rumores de expulsão das mães universitárias que moravam no campus da Universidade Fede- ral Rural do Rio de Janeiro (UFR- RJ), em Seropédica. Havia a possi- bilidade de elas terem de sair dos alojamentos e, em contrapartida, receber uma bolsa com valor de- terminado pela reitoria para que pudessem pagar um aluguel pró- ximo à Rural. Porém, esse valor não supria o preço total da loca- ção. Desta forma, essas passaram a lutar para continuar com suas moradias. Cansadas de não terem suas rei- vindicações atendidas, além de muitas vezes se sentirem perdi- das, pois em vários casos não há o apoio dos companheiros, algu- mas alunas se juntaram e forma- ram, em 2014, o Coletivo de Pais e Mães (COPAMA). O grupo sur- giu após rumores de expulsão das mães universitárias que moravam no campus da Universidade Fede- ral Rural do Rio de Janeiro (UFR- RJ), em Seropédica. Havia a possi- bilidade de elas terem de sair dos alojamentos e, em contrapartida, 4 Agosto de 2017 Douglas Colarés, Gabrielle Araújo, Marieta Keller, Raquel Lima e Rômulo Norback Filhos de estudantes brincam durante a reunião. Foto: Gabrielle Araújo.
  • 5. receber uma bolsa com valor de- terminado pela reitoria para que pudessem pagar um aluguel pró- ximo à Rural. Porém, esse valor não supria o preço total da loca- ção. Desta forma, essas passaram a lutar para continuar com suas moradias. Ao descobrirem a existência de grupos autogeridos para atender esta demanda em outras institui- ções, criaram o COPAMA. Todos os encontros são feitos pelo Face- book, onde uma página é atualiza- da pelos próprios usuários. Todos administram. Todos têm autono- mia para postar. A criação do co- letivo não impediu a saída de al- gumas mães do campus, que, por medo de represálias, preferiram ir morar em Seropédica, município que abriga a maior parte dos alu- nos da Universidade Rural. Além de ameaças veladas, algumas alu- nas relatam diversas atitudes ma- chistas de assistentes sociais. — Estão sempre culpando as mães. Existe um senso comum culpando as mulheres pela gravi- dez — comentou Juliana Borges, aluna da Rural, durante reunião do coletivo no período de ocupa- ção da faculdade. Uma das demandas do coletivo é desconstruir essa ideia, prin- cipalmente, para as mulheres, mostrando que gravidez durante a graduação é mais comum do que se pensa. As integrantes do COPAMA definem como prin- cipal meta o desejo de mostrar à comunidade acadêmica que as crianças são uma parte presente e participante da universidade. En- quanto não consolidam esse dese- jo, o coletivo já coleciona algumas vitórias, como a quebra de um an- tigo regimento que permitia que apenas crianças de até seis anos de idade pudessem ter acesso livre ao Restaurante Universitário (RU). A conquista foi resultado da par- ticipação do coletivo na ocupação da Rural, que aconteceu no se- gundo período de 2016. Thaís Xa- vier, representante do COPAMA, conseguiu esse feito ao inserir a reivindicação na pauta no Conse- lho Universitário, alegando que a constituição garante direitos bási- cos as crianças como alimentação e moradia. Agora, menores de até 12 anos têm direito a alimentação no RU. seis anos de idade pudessem ter acesso livre ao Restaurante Uni- versitário (RU). A conquista foi resultado da participação do co- letivo na ocupação da Rural, que aconteceu no segundo período de 2016. Thaís Xavier, representan- te do COPAMA, conseguiu esse feito ao inserir a reivindicação na pauta no Conselho Universitá- rio, alegando que a constituição garante direitos básicos as crian- ças como alimentação e moradia. Agora, menores de até 12 anos têm direito a alimentação no RU. MATERNIDADE E EDUCAÇÃO Não são só as mães que vivem nos alojamentos que encontram dificuldades para permanecer na Universidade. Carynne Oliveira, aluna do sexto período de Jorna- lismo e grávida do primeiro filho, ainda não sabe como vai conciliar a maternidade com o último ano da graduação, além do estágio: — Acho que seria ideal um abai- xo-assinado para que a Universi- dade aumentasse o tempo da li- cença concedida às mães, e, quem sabe, disponibilizassem discipli- nas virtuais. Tenho várias colegas que são mães e que estudam em Maternidade na graduação 5Agosto de 2017 Alunos de Pedagogia e Psicologia debatem atividades para as crianças junto do coletivo. Foto: Gabrielle Araújo.
  • 6. tro filho. A maior parte do gru- po é feito por mulheres, já que a presença de pais é bem pequena. Então a ideia desse ensaio foi dar mais visibilidade a elas. O deter- minante e modificante é a batalha dessas mães. A ausência dos pais fez com que entrasse em discussão o pedido de mudanças do nome para COMA- PA, Coletivo de Mães e Pais. CRECHE PARENTAL Ao tomarem conhecimento da existência de uma sala vazia no Diretório Central, algumas mães e alunas ocuparam e transfor- maram o espaço em uma creche. Quando inaugurada, a creche funcionará com a supervisão das próprias mães e de pessoas vo- luntárias que revezarão entre si quando não estiverem em aula. A construção foi feita com doações de cada membro do coletivo que universidades privadas e não se prejudicam tanto por isso. A Lei n° 6.202, de 17 de abril de 1975, garante à gestante o direi- to de estudar segundo o regime de exercícios domiciliares, en- tretanto, as mães se queixam da dificuldade de dar entrada nesse procedimento. A UFRRJ possui o exercício domiciliar, onde a mãe não assiste às aulas de modo pre- sencial, mas estuda em casa, e, no fim da licença, comparece à Uni- versidade para realizar uma pro- va de cada matéria em que estiver matriculado. A estudante Gabriela Aguiar, do terceiro período de Engenharia Florestal, passou por esse proces- so, e conta como foi: — O exercício domiciliar começa quando você está com oito meses de gestação e tem uma duração de três meses. Ou seja, você retorna com seu filho tendo apenas dois meses de vida. Voltar a estudar fica quase impossível. O fato de terem que conciliar es- tudos e maternidade se torna um fardo pesado demais para algu- mas delas, que, em alguns casos, chegam a adoecer. O que se agrava ainda mais quando não há o apoio dos companheiros. Tuyuka Lara, aluno de Arquitetura e Urbanis- mo é também fotógrafo, e colheu histórias com alunas que tiveram filhos durante a graduação e criou o ensaio fotográfico “Mães Rura- linas à luta pela permanência na Universidade”. A intenção foi jo- gar holofotes nessas pessoas que estão ao nosso lado e não enxer- gamos. Uma dessas histórias o to- cou muito, explica: — Conheci a história de uma mãe que teve dois filhos durante a gra- duação. Passou por problemas psicológicos graves e, quando ela começou a se recuperar, teve ou- 6 Agosto de 2017 Reunião do COPAMA durante o OCUPA Rural em novemvro de 2016. Foto: Gabrielle Araújo.
  • 7. se autodenomina independente e não aceita patrocínios de pes- soas ligadas a cargos políticos. A creche não será exclusiva dos membros do grupo, como explica a mestranda de Ciências Sociais, Juliana Borges de Souza: — Qualquer um que queira somar é bem-vindo. O projeto ainda não terminou totalmente porque pre- cisamos de pessoal. A iniciativa também tem a ideia de favorecer estudantes de Psicologia e Peda- gogia a colocarem em prática o que aprendem em sala de aula, visto que há uma carência de está- gios na região. DIREITOS EM CONFLITO Todo semestre, aproximadamen- te, 100 estudantes recebem o di- reito de ocuparem uma vaga no alojamento da UFRRJ. Entre eles, alguns universitários pais e mães, que encontram dificuldades para conseguir um quarto que possa acomodar a si mesmo e ao seu filho com conforto, já que a es- trutura da residência estudantil foi pensada para receber apenas alunos. A Instituição também dispõe de quartos individuais, conhecidos como “cabeceira”, que foram pro- jetados para pessoas com dificul- dades de convivência. Alguns pais e mães universitários recorrem a esses quartos e, neste momento, começam os conflitos. Não existe nenhum artigo no Regimento do Alojamento prevendo estes casos para concessão de vagas. Um estudante de Administração, hospedado no bloco 3 do aloja- mento masculino, é contra a per- manência de crianças no ambiente universitário, e explica o porquê: — Aqui acontecem muitas coisas erradas que podem influenciar negativamente na formação das crianças, como o consumo de ál- cool, que pode ser visto nos cor- redores, e o consumo explícito de drogas, como a maconha. Uma aluna de Agronomia, alojada no bloco 3, feminino, relata que já enfrentou o Coletivo de Pais e Mães, porque se sentia ameaçada em perder o quarto que demorou quase cinco períodos para con- quistar: — O movimento é importante para a demanda desses universitá- rios, mas eu vejo que tem muitas meninas que não estão levando a sério a graduação e querem tirar os outros estudantes da cabeceira. No período passado, o COPAMA abriu um processo contra mim para ocupar meu quarto. Acredi- to que seja um grande problema para as mães, mas também tenho direito ao quarto de cabeceira. Quem fez o concurso foi a estu- dante e não o filho dela. Os estudantes não quiseram se identificar com medo de retalia- ção política e ideológica causadas por outros grupos estudantis que residem no alojamento. O Setor de Residência Estudantil (SERE) informou que, para a concessão de vagas em quartos de cabecei- ra, é necessário fazer a solicitação ao setor e entrar em uma lista de espera. Disseram que, geralmente, encaminham para os quartos in- dividuais os pais e mães universi- tários. Informaram, também, que todos já estão ocupados por gra- duandos com esta demanda. Ainda que nos últimos anos os programas de permanência nas universidades federais tenham aumentado, ainda são perceptí- veis as diversas barreiras sociais e estruturais a serem quebradas. O decreto 7234//10 instaurou o Plano Nacional de Assistência Es- tudantil (PNAES) voltado a aju- dar na manutenção de alunos nas instituições federais. Ainda assim, necessidades específicas, como o COPAMA, seguem sem auxílio. A instituição, em casos como esse, é responsável por destinar recursos para atender estas demandas. Maternidade na graduação 7Agosto de 2017 Reunião do COPAMA, durante o OCUPA Rural, em novembro de 2016. Foto: Gabrielle Araújo.
  • 8. 8 Agosto de 2017 "Dizem que eu sou louco Paulo Sérgio Machado, 63, es- critor, militante e usuário do sistema, como são conhecidos os que usam dos serviços de saúde mental no país, explica que o Mo- vimento da Luta Antimanicomial é um movimento social e políti- co nacional a favor da Reforma Psiquiátrica no Brasil. Segundo ele, é defendido um novo mode- lo de assistência, “ c o m mais respeito, dignidade, unida- de, sinceridade, dedicação, união, harmonia e novas propostas para ser apresentado”. Ele se voltou para a causa através de uma assistente social do CAPS Depois de passarem anos isolados, os cha- mados de loucos buscam acabar com pre- conceitos e firmar seu espaço na sociedade (Centro de Atenção Psicossocial) UERJ, onde, hoje, faz tratamento, conta: — Eu passei por momentos di- fíceis em minha vida, como a morte da minha mãe, do meu pai, da minha irmã, de alguns fa- miliares e amigos também. Isso me perturbou um pouco, sabe. Fiquei com depressão, ansiedade e minha família achou por bem me encaminhar para fazer trata- mento psiquiátrico pra melhorar minhas condições. A passagem de instituição para instituição fez parte da vida de Paulo Sérgio por muitos anos. Segundo ele, ficou alguns anos em uma clínica chamada Clini- ca de Repousos Corcovado, que não existe mais e, de lá, foi enca- minhado para o Hospital Pedro Ernesto, que depois acabou e se transformou em CAPS UERJ. Além dele, Nilo Sérgio de Oli- veira, 56, ator, poeta, militante e também usuário do sistema conta que já chegou a se internar 17 ve- zes. Mas participar do Movimen- to ajudou a trazer mais estabilida- de à sua vida. A pesquisadora, psicóloga e tam- bém militante Melissa de Oliveira explica a evolução no país quanto ao tratamento psicossocial: — O Brasil, hoje, é referência in- ternacional no campo da propos- ta antimanicomial, então a gente fechou muitos leitos, a gente con- seguiu abrir muitas residências terapêuticas, muitos CAPS, mui- tos Centros de Convivência, mui- tas iniciativas de trabalho e ren- da, a gente avançou muito nesse sentido institucional. Paulo Sérgio, emenda, dizendo que deve parte de sua melhora à por pensar assim" Nilo Sérgio interpretando Fausto em Deus e o Diabo na Terra do Sol. Foto: divulgação Anette Araujo, Barbara Amorim, Lucas Meireles, Lucas Oliveira e Lucas Santana
  • 9. Luta Antimanicomial 9Agosto de 2017 essa mudança: — Antigamente, tinha esse dita- do de que um hospital psiquiátri- co era um pouco de manicômio, mas com essas transformações do manicômio, com essa militância, com mais CAPS, NAPS (Núcleo de Atenção Psicossocial), CAPS AD (Centro de Atenção Psicosso- cial Álcool e outras Drogas), essas coisas... Me ajudou muito. PRECONCEITO “No passado era muito grande o preconceito, muitas pessoas não sabiam que podiam passar, a todo o momento, pelo que os usuários passavam na psiquiatria.” [Olho] Apesar da melhora nas condições de tratamento, o preconceito ain- da está presente na vida dos usuá- rios. Rita de Cássia Alves, usuária no CAPS Vila Esperança, em Pa- racambi, confirma: — Já sofri preconceito, é exclusão. Não me sinto parte da sociedade, na verdade, ninguém aceita o di- ferente, ele é excluído, as pessoas não digerem bem isso. Nilo Sérgio fala em bullying: — Havia um preconceito, mas ha- via pessoas que me queriam bem. Na adolescência, lá em Higienó- polis, eu sofria muito bullying, os jovens da rua vinham atrás de mim, porque quando você não se integra no grupo, você é hostili- zado. Você tem que fazer parte do grupo e eu não queria, eu tinha medo de fazer parte do grupo com eles. Contraposto, Paulo Sérgio vê uma evolução: — Eu passei e fui superando e, as- sim, aos poucos, vendo a coisa de outro jeito, com novo modelo de assistência, tendo menos precon- ceito na atualidade. No passado era muito grande o preconceito, muitas pessoas não sabiam que podiam passar a todo o momen- to pelo que os usuários passavam na psiquiatria. Mas hoje foi evo- luindo e o povo foi sendo menos preconceituoso. Hoje em dia está mais tranquilo. ARTE E CULTURA Seu Mário Lara, de 94 anos, era maquinista e se recorda muito bem do trem que comandava: era uma linha exclusiva, que le- vava os viajantes a Barbacena, no estado de Minas Gerais, e tinha uma área com os dizeres “Vagão pra loucos”. Isso indicava que os demais passageiros não poderiam entrar lá; os ocupantes desse com- partimento tinham como destino final o Hospital Colônia. A insti- tuição era de tratamento psiquiá- trico e foi criada em 1903. A fama do Colônia ainda não se estende ao grande público, mas cabe a ela o título de sede do maior caso de extermínio na história do Brasil, entre 1930 e 1980, onde mais de 60 mil internos morreram. Eram vítimas de tortura, abusos físicos e psicológicos, abandonados por suas famílias e pela sociedade. Supostamente, 70% dos internos nem mesmo tinha diagnóstico de doenças psiquiátricas. Os relatos no parágrafo anterior se encontram no documentário “Holocausto Brasileiro”, de Ar- mando Mendz, baseado no livro homônimodatambémcodiretora Daniela Arbex. O filme é recente, foi lançado na TV por assinatu- ra em novembro de 2016, depois da exibição durante o Festival do Rio, em outubro do mesmo ano, e é um raríssimo exemplo de luz em um grupo tão marginalizado no contexto social atual. Ao contrário do que se conven- cionou na grande maioria da população, as pessoas que fre- quentam CAPS e outras institui- ções similares buscam também reinserção social, mas, apesar de sentirem que o preconceito já não é tão forte quanto em outras Foto: Pamela Perez.
  • 10. 10 Agosto de 2017 épocas, ainda não se sentem par- te efetiva da sociedade. A grande questão é que, ainda aos olhos do público, se tratam de inválidos, pessoas que têm problemas que os impedem de conviver com ou- tros. Uma forma encontrada para combater não apenas o precon- ceito, mas também de se senti- rem inclusos são as artes, sempre abertas a receber quem quiser en- trar. O teatro, a música, a escrita (livros, poemas), artes plásticas, o cinema e até mesmo o Carnaval, todos voltados para o entrete- nimento, mas também travesti- dos como forma de tratamento. Quando se entra em cena, o ner- vosismo vai embora, a ansiedade se esconde, há apenas o artista. Melissa explica a importância das artes no tratamento: — Eu acho que a gente avançou muito, e a gente fala pouco disso, numa dimensão social e cultural. A gente teve, nos últimos anos, talvez nas últimas duas décadas, o surgimento de grupos cultu- rais de teatro, de música, poetas, escritores, inclusive na área de trabalho, com as iniciativas de geração de empregos e renda que trazem essa discussão da loucura pra outro campo, que é uma apro- ximação do debate da sociedade que pode romper com a definição da loucura enquanto periculosi- dade, enquanto aquilo que tem estar exilado e traz a afirmação de sujeitos políticos outros, porque daí as pessoas não são mais usu- árias do serviço, são poetas, são artistas, são trabalhadores. Nilo Sérgio, que vendeu, em 2015, mais de 900 exemplares de seu livro, tem envolvimento com teatro e fala ainda sobre o bloco de Carnaval que frequenta: — Essa camisa que estou usando é do ‘Tá Pirando, Pirado, Pirou!’, núcleo coletivo desse grupo de samba que sai no Carnaval. Acho que no sábado antes do Carnaval, lá pela Urca até o antigo bondi- nho. É bem divertido, toda comu- nidade vai lá. As pessoas tomam sua cerveja, eu não vejo ninguém dando vexame. RECADOS Paulo Sérgio deixa a seguinte mensagem para os que passam pelos mesmos problemas que ele: — É pra se cuidar, ter cabeça, responsabilidade, calma, paciên- cia, força de vontade, ficar bem de vida, se organizar, sair desse quadro e buscar uma coisa mais alegre na vida, no dia a dia. Melissa, como profissional da área, completa dizendo o seguinte: — É importante que as pessoas que entendam que estão passando por um momento de sofrimen- to psíquico possam procurar os serviços das suas cidades, procu- rar o CAPS, procurar a Saúde da Família, procurar atenção básica, procurar os serviços de assistência social. Tentem entender quais são as questões para além da área da saúde que possam recorrer a ou- tras políticas, procurar a legislação de saúde mental que a gente tem hoje, os movimentos de Luta An- timanicomial mais próximos, que se aproximem dos coletivos para além dos espaços institucionais para fortalecer uma militância, criar grupos de apoio. No dia 27 de Outubro de 2016, fui convidado por um ator, poeta, mili- tante da Luta Antimanicomial e usuário do sistema para conferir uma reunião do grupo de teatro inclusivo Dyonises, que é formado por vo- luntários e usuários do sistema, na Praça Rio Grande do Norte, Enge- nho de Dentro, Zona Norte do município do Rio de Janeiro. Assim que cheguei, pude perceber no rosto de um dos usuários um semblante de ansiedade, nervosismo, como se estivesse preocupado por estar ali. Sua face, braços e pernas inquietas e o alto consumo de cigarros também de- nunciavam algo. Porém, quando começou o ensaio vi o espetáculo da transformação. Aquele homem que parecia nervoso se tornara um ator calmo, tranquilo, centrado em seu personagem. E, enquanto ensaiavam, eles interpretavam, cantavam, dançavam e se divertiam sob os olhares de crianças, adolescentes e famílias que circulavam pela praça naquela tar- de. Esta atenção não os deixava acanhados, pelo contrário, eles pareciam orgulhosos por estarem na rua sendo vistos e não isolados em alguma instituição psiquiátrica. Antes do encerramento, algo surpreendente aconteceu, uma idosa se aproximou e perguntou se havia espaço no grupo para uma senhora de 85 anos, ouvindo um quase que uníssono “sim”, antes de lhe explicarem que o grupo era para todos, de todas as idades. E para encerrar, todos, inclusive eu, demos as mãos em roda e cantamos um ‘Salve’ – um tipo de canção folclórica de agradecimento – rodando como em uma ciranda. Após isto, voluntários, usuários do sistema e a senhora foram embora sorrindo. (Lucas Meireles) ARTE QUE UNE E TRANSFORMA
  • 11. Localizada na Baixada Fluminense, a Casa de Repouso Ribeirinho abriga idosos e pessoas com necessidades especiais há mais de três décadas A Casa de Repouso Ribeirinho, situada no km39 da BR-465, em Seropédica - RJ. Foto: Bruno Todaro Alexia Dalbem, Bruno Todaro, Eduarda Braga e Júlia Medeiros
  • 12. 12 Agosto de 2017 “Mãe, vamos fazer um passeio num sítio lindo. Arruma sua bolsa com umas roupas para a senhora.”. Estas foram as últimas palavras que Dona Júlia, 88 anos, ouviu de sua filha antes de ser deixada na Casa de Repouso Ribeirinho no início do ano de 2016. Já em outubro, alguns meses depois, o “passeio” não havia terminado e Júlia se queixa com saudades de casa. A história de Dona Rosa é parecida: foi deixada pelo filho com a justificativa de que era um “novo emprego”. Ambas as histó- rias, acrescentadas às outras 35 de seus colegas, têm em comum o sentimento de rejeição. Seguindo o conceito da palavra, são pessoas negadas, recusadas, que encon- tram resistência de suas famílias pelos mais diversos motivos. A senilidade traz consigo situ- ações difíceis de lidar. Algumas delas como a impossibilidade de trabalhar, problemas de saúde, al- terações na personalidade e outras adversidades que alteram a vida de qualquer pessoa e também as das que convivem com ela. Por ser uma fase difícil, ao mesmo tempo que se tornam um “fardo”, idosos necessitam ainda mais de cuida- dos e atenção, e não encontrar isto no seio da família é uma das coisas que torna o envelhecimento difícil. Além da tristeza, a ausência de entes queridos também causa o agravamento de doenças, tanto mentais quanto físicas, de acordo com psicólogos. Uma das saídas encontradas por familiares que não têm capacidade de arcar com as responsabilidades que uma pessoa idosa carrega está em procurar abrigos como a Casa de Repouso Ribeirinho, que fica em Seropédica, no Rio de Janei- ro. Carmen, principal responsável pela Casa, talvez consiga resumir o que essas pessoas deixadas de lado sentem: — Os idosos são como árvores que não dão mais frutos. Muitas pessoas esquecem o seu valor. Quando questionados sobre o motivo pelo qual foram parar no abrigo, a resposta foi unânime: por não exercerem mais suas fun- ções de trabalho ou do lar, foram vistos como inúteis e deixados de lado. A principal intenção do abrigo e de seus 18 funcionários é repre- sentar um lar para as pessoas que estão lá. São feitas atividades para entretê-los frequentemente e os cuidados com a saúde e bem-estar dos residentes são rigorosamen- te cumpridos pelas enfermeiras e cuidadoras que trabalham no lo- cal. Ivanilda Alves, cuidadora na Casa há um ano e sete meses, admite o que a maioria dos idosos acaba deixando escapar em algum mo- mento: — Aqui somos uma família, nós nos apegamos a eles e eles a nós. Mas eles sentem saudade de estar na sua própria casa. Segundo ela, apesar de todo am- paro que recebem, a falta de inde- pendência e liberdade de ir e vir sem ter que pedir autorização é um dos fatores que impedem que eles se conformem de estar em um abrigo. Junto com Ivanilda, traba- lham outras três cuidadoras sob sua supervisão, por estarem exer- cendo a função há menos tempo, como ela conta: — Eu sou responsável por orien- tar todos os cuidadores, tudo que acontece eu tenho que estar a par.Apesar de simples, o lar dos 35 idosos é aconchegante. Foto: Bruno Todaro.
  • 13. Passeio pelo abandono 13Agosto de 2017 A Casa conta também com duas enfermeiras que trocam de plan- tão a cada 24 horas. Além das cui- dadoras e enfermeiras, os internos recebem duas vezes por semana a visita de um fisioterapeuta. Porém, uma situação que parece comum é a negligência por parte de pesso- as que eram presentes na vida dos idosos, que não as visitam mais. LIVRE ARBÍTRIO Contrapondo a maioria das situa- ções da Casa de Repouso, lá estão pessoas que foram por vontade própria. Terezinha de Jesus, por exemplo, não lembra sua idade, mas confidenciou que estava lá há uma semana por motivos de saú- de e que pretende ir embora assim que melhorar da varicose manifes- tada em sua perna, que são veias com válvulas danificadas que per- mitem o refluxo de sangue. — Eu que pedi para minha filha me trazer, para andar mais rápi- do, né. Porque aí em casa tem que internar para poder melhorar, não sei o que... Aí eu combinei direiti- nho com ela e ela me trouxe. Va- mos ver agora como é que fica. São os mais diversos motivos que fazem os idosos preferirem morar em um abrigo. Maria Pastora, 90 anos, sem nenhuma doença deli- cada e pelas próprias pernas che- gou à Ribeirinho. Após a partida dos 11 irmãos, Maria procurou um abrigo para ela e para a única irmã viva, que necessitava de aju- da por ser surda e ter 95 anos. Cin- co anos depois, sem filhos, Maria se viu sozinha e se desfez de tudo, como ela mesma disse, então de- cidiu procurar outro abrigo. Está na Casa há dois meses e possui seu próprio quarto com banheiro, di- ferente da maior parte dos outros moradores, que dividem seus dor- mitórios. Entre suas atividades, a religião é a mais importante como conta: — Leio a bíblia, oro... A gente está orando de manhã agora. Conver- so com as meninas que fazem a faxina. Agora não estou podendo trabalhar porque estou com um problema de artrose, mas no outro abrigo eu fazia crochê, tapetinho... O caso mais incomum encontrado foi o de Eric, 52 anos. Apesar de não ser um idoso, o pai de sete fi- lhos surpreendeu por ter procura- do a Casa de Repouso Ribeirinho para manter-se afastado do vício que o distanciou de toda a família, trabalho, amigos e a cidade onde morava, Fortaleza. Eric usou co- caína por 30 anos, largou as dro- gas há um ano e conheceu o lar através de um pastor, onde está há dois meses. Embora lá não tenha o tratamento específico, conta com remédios e apoio para não retor- nar ao vício. Mesmo de longe, sen- te falta da família e enxerga a im- portância do papel que seus filhos têm na sua recuperação, desabafa: — Todos os dias eu penso neles e tento falar com eles. Hoje mes- mo eu mandei uma mensagem no WhatsApp. Contudo, os asilos deveriam ser lares para idosos que não se en- contram mais em condições de ficarem sozinhos em casa ou cujos filhos ou parentes não têm a dis- ponibilidade de dar a assistência necessária. Embora seja esse o ideal, as instituições são conheci- das pelo sentimento de abandono e esquecimento de seus familiares. Além disso, os casos de abandono Dona Terezinha conta sua experiência na casa de repouso. Foto: Eduarda Braga.
  • 14. 14 Agosto de 2017 não são exclusividade de Seropé- dica, nem do Rio de Janeiro. Todos os asilos pelo Brasil acabam sendo usados para descartar pessoas. De acordo com uma pesquisa feita em 2015, dos 309 idosos abrigados em lares filantrópicos em São José do Rio Preto, São Paulo, 112 não re- cebem nenhuma visita. O proble- ma é tão grave que asilos em várias partes do país estão fazendo cam- panha para convidar a população local para visitar os idosos. A RESPONSÁVEL Carmen cuida de idosos há 35 anos. Já a Casa de Repouso Ri- beirinho, inaugurada com os do- cumentos devidos, tem 14. Para se manter, a ajuda vem, em sua maioria, de instituições religiosas, como conventos católicos e cen- tros espíritas. Não contam com o apoio do Governo do Estado e muito menos da prefeitura de Se- ropédica. Além de receber tais contribuições para se manter, a partir de cer- to momento passou a pedir uma contribuição para as famílias dos idosos deixados lá, a fim de man- tê-los em melhores condições. Em um abrigo com 35 adultos/idosos, 14 não possuem ajuda de ninguém e alguns têm direito ao LOAS (sa- lário mínimo mensal ao idoso aci- ma de 65 anos ou ao cidadão com deficiência), que, apesar de pouco, auxilia na compra de fraudas, re- médios e alimento. Carmen contou que, mesmo com todas as dificuldades, nunca dei- xou de receber um idoso na Casa, mesmo que a família não tivesse condições de contribuir para a sua estadia. Ao falar sobre a trajetória da sua vida, que se resume a cui- dar de idosos, ela deixou claro sua constante vontade de estar aju- dando: — Hoje eu estava ali embaixo fa- lando com o Senhor: “São tantas pessoas que entram por essa por- ta, precisam de uma vaga e eu não tenho como sustentar e o Gover- no não faz nada.”. Eu queria tanto poder abrir a porta e dizer “entra, tem uma cama para você dormir, uma comida para você comer”, mas não tenho como sustentar todo mundo, não tenho de onde tirar dinheiro. Residindo no mesmo lugar que os idosos, Carmen confessa que sente como se todos juntos for- massem uma família. Perguntada a frequência que a família volta para buscar definitivamente o ido- so deixado, ela nos contou que, em todos os seus anos cuidando deles, isso nunca aconteceu. As duas moradores mais antigas são Dona Glória e Dona Rosa, que vivem na Casa há 20 e 25 anos, respectiva- mente. É como se para elas estar lá fosse a nova vida, assim como quando Carmen decidiu levantar sua primeira casa junto da pri- meira idosa que cuidava. A Casa de Repouso Ribeirinho representa acolhimento para pessoas que ne- cessitam, e também renovação, o começar de novo. Foto: divulgação A Casa de Repouso Ribeirinho, situada em Seropédica - RJ. Foto: Bruno Todaro
  • 15. Trabalhadores do Trânsito 15Agosto de 2017 — Esse aí vai no seu colo? — Não, vai no meu coração — essa é a resposta que Edvaldo Rozetti dá aos passageiros que reclamam quando ele para nos pontos mesmo com o ônibus lo- tado. Quando a situação se inverte e os próprios motoristas se recusam a parar em determinadas situa- ções, Edvaldo, que está no ramo há 25 anos, diz que o erro da sua profissão é colocar na carteira a palavra “motorista”: — Eu acho que tinha que ser “transportador de passageiro”, porque ele pensa que não tem que transportar, mas ele tem. Vai além de dirigir. TRABALHO DOBRADO, SALÁRIO INTOCADO A escada profissional dos entre- vistados, em geral, segue o se- guinte padrão: cobrador, moto- rista júnior e, por último, sênior. Selma Valério, condutora há dez anos, conta sua trajetória traba- lhando na área desde a época de cobradora e explica um pouco sobre a Resolução 168, que pas- sou a ser obrigatória em 2004: — O curso tem o objetivo de aperfeiçoar, instruir, qualificar e atualizar profissionais que pre- tendam exercer a profissão. Segundo os rodoviários, é essen- cial para ter um bom relaciona- mento interpessoal e aprender primeiros socorros e direção defensiva. Para a condutora da linha 838, Selma, os desafios são diários, conta: — A gente tem dupla função (motorista-cobrador), tem que dirigir e tem que cobrar. Como se não bastasse, tem semáforos, passageiros que não aceitam per- der cinco centavos por falta de troco, tem que prestar atenção pra ver se o passageiro já des- ceu. Tudo. Somos tudo dentro do ônibus. Acho que é por isso que qualquer problema que eles têm querem jogar para cima de nós. Quando questionada sobre a du- pla função, Selma diz que não vê lógica nisso. Se pudesse, seria a primeira coisa que mudaria, vol- tando com os cobradores. AGRESSÕES GRATUITAS A condutora Denise Cristina também começou como cobra- dora e reclama sobre a junção das duas funções: — É mais trabalho para o moto- rista que recebe uma quantia que não vale a pena, o estresse é mui- to maior. Ela ainda relata sobre uma agres- são feita por um passageiro idoso por ela ter parado fora do ponto: — Ele puxou a cigarra quando já havia passado o ponto, não tinha como parar. Se viesse um carro atrás poderia bater e machucar alguém, causando um aciden- TRABALHADORES DO TRÂNSITO Conheça quem são os responsáveis pela sua vida enquanto se locomove pela cidade Motorista e cobrador se preparam para a jornada de trabalho. Foto: Tiago Bruno. Anna Castro, Letícia Sabbatini, Suellen Guedes e Tiago Bruno
  • 16. 16 Agosto de 2017 te grave. Eu estava grávida e fui apanhando de um ponto ao ou- tro, não revidei, não ia machu- car o senhor, mas depois quando cheguei à rodoviária não conse- guia parar de chorar. Há oito anos como motorista, essa foi uma das situações mar- cantes na trajetória de Denise que, apesar da agressão injusta, não se arrepende de ter mantido a calma no trânsito. Segundo ela, tem condutor que esquece que está transportando vidas, e pensa que está carregando objetos. Es- quece que tem criança e idoso. Para Denise, o curso de dire- ção defensiva engloba situações como essa e ensina medidas e procedimentos utilizados para prevenir ou minimizar as conse- quências dos acidentes de trân- sito, que poderia ter acontecido caso ela parasse fora do ponto ou revidasse o abuso físico que sofreu. Após o relato, ela não tem problemas com passageiros, como conta: — Você sabendo tratar as pesso- as, elas retribuem. Um bom dia, boa tarde e boa noite podem mu- dar o dia de alguém. Denise também comenta um pouco do dia a dia de uma moto- rista no trânsito: — Alguns não admitem que uma mulher passe a sua vez — é a res- posta dada sobre a relação com os colegas homens. — Mas são pou- cos. Geralmente, eles respeitam e são cuidadosos com a gente, mas não deixam de continuar pensando que somos o sexo frágil. Os atritos do dia a dia, como rixas entre motoris- tas, acontecem e causam muitos problemas. A dupla função do condutor gera, algumas vezes, consequências como acidentes de trânsito. Se- gundo o Obser- vatório Nacional de Segurança Viária (ONSV), pela malha de 1.751.868 quilô- metros de estra- das e rodovias brasileiras, o nú- mero de aciden- tes fatais envolvendo caminhões/ ônibus teve aumento de 15% no período de 2010 a 2014, muito decorrente da exaustão e da mul- titarefa no trânsito. Um condutor, que preferiu não se identificar, conta que lidar com as pessoas é sempre difícil. Ao ser questionado sobre situações que marcaram seus anos de trabalho, ele lembra: — Um homem bêbado com a família no carro fazendo barbei- ragem apontou arma e tudo para fora do carro. Mesmo não sendo motorista, Ju- lio Cesar, cobrador há 18 anos, afirma que o trânsito é o maior problema do trabalho, assim como as dores nas costas. Se- gundo ele, muitos colegas têm problemas na coluna, inclusive, tem um que se aposentou por in- validez. Mas Julio ainda enxerga o lado bom do trabalho, como disse em conversa: —Fizmuitaamizadequandovim trabalhar aqui. Se você for rodo- viário, vai gostar muito. Amizade é muito importante e a gente co- nhece muita gente. Antes eu era armador, hoje em dia eu trabalho assim, limpinho, cheiroso. Não tem coisa melhor — brinca. Já Paulo Cesar de Oliveira, mo- torista há 20 anos da Real Rio, conta que o sistema nervoso fica abalado. — O trânsito é bem ruim e os passageiros querem que a gente chegue no tempo deles. É com- plicado. Edvaldo Rozetti também passa por alguns perrengues e por mo- mentos marcantes. — Um idoso me bateu uma vezA motorista Denise Cristina em seu horário de trabalho. Foto: Suellen Guedes.
  • 17. Trabalhadores do Trânsito 17Agosto de 2017 — ele relembra de uma das his- tórias quando trabalhava no 918, da empresa Jabour. — Vindo de Madureira para Realengo, três colegas meus largaram um idoso a pé, eu fui o quarto e parei para ele. Quando ele subiu, me deu um soco. Perguntei por que ele tinha feito aquilo e ele disse que estava me batendo porque três colegas meus não pararam. Assim como Denise, Edvaldo não revidou e contou como o se- nhor se retratou: — Quando chegamos em Ben- to Ribeiro, tinha uma fábrica de sorvete. Ele desceu, comprou e disse que o pote de sorvete era para mim, porque eu não reagi. Se é outro motorista, com certeza tinha revidado. Mas o que os motoristas entre- vistados têm em comum é claro: todos eles amam dirigir e o fa- zem com gosto. Celsio Melo, ro- doviário há 42 anos, não se afeta pelo cotidiano. Seu dia começa às duas e meia da manhã e termina ao meio dia, de segunda a sexta. Ele afirma com convicção que a relação com os passageiros é ex- celente: — Se eu carregar duzentos pas- sageiros, são 200 amigos que eu carrego. NEM TUDO SÃO FLORES O mesmo Edvaldo, que no co- meço da entrevista foi retribuí- do pelo idoso frustrado com os ônibus que não pararam em seu ponto, infelizmente não pôde contar com a empresa a qual ves- tia o uniforme após um acidente, desabafa: — Um taxista avançou o sinal e bateu em mim. Fiquei muito mal, pois achei que ele havia falecido. O motorista nos contou que após o acidente, foi suspenso por dois dias sem qualquer averiguação anterior e intimado a depor le- galmente sobre o ocorrido. Para sua surpresa, ao chegar ao fórum, encontrou o taxista acidentado em boa saúde. No entanto, a em- presa em nenhum momento ofe- receu a ele um advogado ou um acompanhamento psicológico depois de um acidente traumáti- co como esse. Ao vê-lo sem defe- sa profissional, a juíza responsá- vel o aconselhou a recorrer a um defensor público, pois ela havia observado que a empresa de ôni- bus já constava em diversos pro- cessos e não possuía o costume de mandar um advogado para seus empregados. Fora somente graças às câmeras de segurança dos ônibus, localizadas na parte interna e externa do veículo, que o motorista de ônibus pôde com- provar sua versão dos fatos e ser indenizado pelo taxista por seus dois dias suspensos. Além disso, os condutores de ônibus, muitas vezes, sofrem com a hostilidade gratuita dos passageiros por serem os únicos membros da empresa presentes no veículo. Ou seja, tornam-se o único alvo possível para aqueles passageiros que se sentem pre- judicados pelas condições dos meios de transporte. Entretanto, esquece-se que os condutores são somente a ponta do iceberg, e que não são culpados pela má preservação dos veículos ou pela falta de investimento na qualida- de do transporte. Edvaldo Rozetti conta sobre seus 25 anos no ramo. Foto: Tiago Bruno.
  • 18. 18 Agosto de 2017 Surpreendentemente, os mo- toristas também sofrem com a falta de linhas. Muitas pessoas já devem ter se perguntado como o último motorista da empresa, que às vezes encerra seu expe- diente de madrugada, faz para retornar a sua residência. Assim como qualquer outro trabalha- dor, o motorista também faz uso do transporte público. No entan- to, as linhas noturnas são raras e os ônibus conhecidos como “ba- cural”, que circulam por toda a noite, mais raros ainda. NEGLIGENCIADOS A lista dos descasos cometidos pelas empresas é grande. A co- brança “cronometrada” de tempo em que um motorista deve rea- lizar seu trajeto é feita sem levar em consideração o trânsito do momento, acidentes ou impre- vistos, acarretando em pressão, mais estresse e possíveis punições futuras. Mesmo no Rio de Janei- ro, cidade que possui o terceiro pior tráfego do mundo, os moto- ristas não possuem nenhum tipo de acompanhamento psicológico para avaliar como o contato di- reto com o público, nem sempre amigável, e o trabalho diário em um trânsito menos amigável ain- da afetam sua vida. Apesar dos esforços, nem sempre é possível não levar o estresse do trabalho para dentro de casa. Sem contar que, além de todo o profissio- nalismo que alguns se esforçam para manter, as relações pesso- ais e profissionais ainda residem dentro do mesmo indivíduo, fa- zendo com que às vezes influen- ciem uma a outra. Não obstante o cansaço mental, também há o prejuízo físico para esses profissionais. Aproxima- damente 90% dos entrevistados reclamam de dores nas costas devido ao fato de permanecerem sentados o dia inteiro ou pelo estado de conservação de seus assentos. Esse tipo de problema, muito recorrente, é tratado de forma banal, uma vez que não existe qualquer solução proposta pela empresa que vise um melhor ambiente para a execução de suas funções. Afinal, o transporte pú- blico movimenta toda a cidade e permite que ela mantenha-se viva e operante todos os dias. Edvaldo se alegra ao afirmar ga- nha o carinho e beijo de idoso e, sendo conversa de motorista ou não, é importante enxergar es- ses profissionais e reconhecê-los com a devida importância que possuem. Ponto de ônibus em Seropédica - RJ. Foto: Tiago Bruno.
  • 19. Prostituição 19Agosto de 2017 Onúmero de profissionais do sexo no Brasil e no mundo todo está crescendo cada vez mais. Mesmo sem leis que os protejam de fato e os beneficiem, o Minis- tério do Trabalho reconhece a prostituição como uma profissão. O lado deles foi ouvido: homens, mulheres e transexuais ganharam mais um espaço para dar voz a essa luta. A história se repete todos os dias, com pessoas diferentes e dos mais diversos estados, mas algo faz com que elas se conectem mesmo sem se conhecer por algo em comum: sua necessidade de sobrevivência. Dentre as oportunidades existen- tes para cada indivíduo, esta tal- vez tenha sido a melhor opção. Segundo um estudo da fundação francesa Scelles, que luta contra a exploração sexual, são mais de 40 milhões de pessoas que se prosti- tuem no mundo atualmente. 75% são mulheres, entre 13 e 25 anos. No Brasil, 46,3% tem entre 20 a 29 anos, a maioria com o primei- ro grau incompleto e possuem de um a quatro anos de profissão re- cebendo até dois salários mínimos por mês e são 37% delas que sus- tentam suas famílias. Ao olhar esses dados, levanta-se questionamentos: mas o que faz tantas mulheres no país optarem por essa profissão? Quais são suas histórias? Nas “clínicas de massagem”, tanto mulheres quanto homens podem ingressar nessa profissão tão lucra- tiva. Em site das próprias clínicas, pode-se encontrar fotos de massa- gistas que trabalham no local em questão, disponibilizando a espe- Não há demérito em ser puta Número de profissionais do sexo cresce no país Foto: divulgação Brenda Rangel, Gabriela Willer, Lucas Ferreira, Luísa Martinelli e Matheus Almeida
  • 20. 20 Agosto de 2017 cialidade das massagens oferecida por cada uma, valor e telefone. O expediente dura cerca de oito ho- ras por dia, atendendo até cinco clientes no decorrer dele. Aos 20 anos, universitária, Ca- roline Ribeiro, conhece Pedro Augusto, dono de uma clínica de massagem que lhe convida para conhecer o ambiente de trabalho dele e como funciona. Carol, que pertence à uma família pobre, sem condições financeiras para se manter e fazer o que a maioria das mulheres em sua idade gostariam, se envolve com Pedro, que logo a proíbe de trabalhar na clínica. Ao fim do relacionamento, Carol, ain- da sem condições de se manter, decide procurar outras clínicas de massagem, e então o sucesso foi absoluto: — A clínica que eu trabalhava era situada na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro, os clientes não eram po- bres, com pouco poder aquisitivo, até porque era cobrado R$ 200,00 a hora. Eu tinha anuncio em uns três sites, e eles me encontravam ali, também por flyer, através de entregadores que pagávamos para distribuir na rua. Carol recebia, por semana, em média R$ 2.000,00. Para ela, pres- são psicológica ou externa não faz uma pessoa largar uma vida des- sa, porque é lucrativa. Mas Carol não suportou o preconceito que estava enfrentando. Segundo ela, as pessoas que souberam da sua profissão começaram a se afastar e a excluir das atividades acadêmicas e sociais. Até mesmo as que gosta- riam de trabalhar dessa maneira e não tinham coragem encontraram, na exclusão de Carol, uma manei- ra de descontar suas frustrações. O objetivo de Carol era ter dinheiro e ser aceita por seus colegas univer- sitários, infelizmente, o resultado foi o oposto e, depois de quatro meses, abandonou a profissão. Além das “clínicas de massagem”, há também os bordéis. Cleiton Santos, 19 anos, filho da adminis- tradora de um bordel, afirma não saber de leis que protejam mu- lheres que trabalham nessa área, muito menos benefícios como plano de saúde, carteira assina- da e aposentadoria como lhes é de direito, mesmo sabendo que o governo reconhece esta profissão. Quando o assunto é prostituição, a partir de 1942, surgiram três formas de classificarmos no meio legislativo: o re- gulamentarismo — o qual o profissional é legalizado e possue direitos previdenciários — o abolicionismo - a profis- são só é reconhecida como prostituição — e o proibicionismo — como o próprio nome sugere, é proibida a prática. No caso do Brasil, rege a classificação abolicionista, que, desde meados de 2002, é reconhecido pelo Ministério do Trabalho o ofício de “profissional do sexo”. No ano de 2012, o deputado federal Jean Wyllys apresentou o projeto de lei 4211/12, o qual propõe, partindo de um aspecto geral, a regulamentação e segurança dos profissionais do sexo, baseado no artigo 5° da Constituição Federal de 1988, com medidas como: - “Art. 1º - Considera-se profissional do sexo toda pessoa maior de dezoito anos e absolutamente capaz que volunta- riamente presta serviços sexuais mediante remuneração.”. - “Art. 3º - A/O profissional do sexo pode prestar serviços: I - como trabalhador/a autônomo/a; II - coletivamente em cooperativa. Parágrafo único. A casa de prostituição é permitida desde que nela não se exerce qualquer tipo de exploração sexu- al.”. -“Art. 5º. O Profissional do sexo terá direito a aposentadoria especial de 25 anos, nos termos do artigo 57 da Lei 8.213, de 24 de julho de 1991.”. É fato que, no país canarinho, há uma necessidade de se regulamentar todo e qualquer tipo de função, seja profissional ou social. Com os profissionais do sexo, torna-se mais necessário, principalmente pela cultura menos- prezativa, semeada por um estereótipo criado socialmente de que prostituição não é profissão, além das condições exploratórias de trabalho. Porém, vivemos um contexto de empoderamento financeiro, o qual divide opiniões em relação à regula- mentação da prostituição. Isso porque corre o risco de ser cerceado o direito de autonomia dos profissionais, a partir do momento em que a profissão fica extremamente dependente da fiscalização governamental. Será mesmo que a regulamentação melhora as condições de trabalho ou só diminui o poder de ação dos profissionais do sexo? POR DENTRO DA LEGISLAÇÃO
  • 21. Prostituição 21Agosto de 2017 Sua mãe, que trabalhou por cinco anos no mesmo bordel que hoje administra, nunca teve amparo al- gum, além de ter que enfrentar o preconceito até mesmo de alguns de seus filhos. Cleiton, por sua vez, sempre encarou a situação mui- to bem e com naturalidade, como conta: — Eu acho um trabalho digno, sabe por quê? Porque elas estão fazendo isso porque precisam. Mi- nha mãe batalhou muito para criar eu e meus irmãos. Essas mulheres estão correndo, trabalhando, bus- cando o que é delas. É um trabalho como qualquer outro. Cleiton também já passou por di- versas situações de preconceito por ser homossexual e pela antiga pro- fissão da mãe. — Hoje em dia tudo tem um pou- quinho de preconceito. Ao invés das pessoas tentarem fazer de ou- tra forma, elas preferem viver do mesmo jeito, criticando os outros. Agora eu relevo e vivo bem com isso. A prostituta não é vista como mu- lher, mãe ou esposa, ela é apenas prostituta. E sendo prostituta ela só pode ser vista como tal, excluin- do todas as outras possibilidades de ser. Há uma dificuldade de aceitação para uma nova condição feminina em que a construção e a imposição do tipo de mulher se- ria diferente da mulher tida como aceitável. A prostituta vai contra todo comportamento criado pelo homem para a mulher: ativa de suas ações, utiliza do seu corpo, frequenta lugares que antes não podiam, possuem o seu próprio dinheiro. O homem, que antes ti- nha domínio sobre a mulher, passa a não ter mais. E aí surge o medo de outras mulheres quererem essa liberdade de serem elas mesmas. A mídia de massa contribui no mo- mento que reforça a visão de mar- ginalização das prostitutas e como reprodutoras de doenças. Nos ci- nemas e nas novelas costumam dar um papel de vitimização. Ocorre uma desvalorização da imagem ao serem representadas. Elas pos- suem duas saídas: doentes, escra- vas do desejo sexual dos homens ou então com um final feliz, mas com uma “glamourização”, que só ocorre como recompensa por ser vítima de algo. Hoje, Cleiton ajuda sua mãe e o padrasto na administração da casa. As meninas que vêm de fora Foto: divulgação
  • 22. 22 Agosto de 2017 da cidade onde o bordel está loca- lizado, trabalham de terça a sába- do. É permitido até 20 mulheres trabalhando, com a faixa de preço de seus programas entre R$ 50,00 a R$ 140,00. O sistema é rotativo, ou seja, a cada semana há novas mulheres na casa justamente com o objetivo de não criar vínculos e acabar tendo eventuais problemas com clientes conhecidos. Ele também diz que, aos 15 anos, se prostituiu pela primeira vez: — Prostituição é mais comum do que vocês pensam. Até eu já me prostituí, assim, na rua, sabe? São muitas as mulheres e homens que fazem isso estando casados, por algum trocado ou porque não têm como sustentar a família. O que nos leva a entender que a necessidade de sustento também parte do sexo masculino. Na Es- panha, 70% dos homens que se prostituem são brasileiros entre 18 e 28 anos. No Brasil, a porcenta- gem é menor, porém pela mesma necessidade: dinheiro. Alguns es- colhem essa profissão como forma de complementar renda, outros por dificuldade de ingressar no mercado de trabalho formal, por isso entram e permanecem única e exclusivamente por dinheiro. Eles atuam de forma discreta, somente 1% coloca anúncios em jornais, 9% estão nas ruas. A maioria (64%) atua em saunas gays e o restante busca clientes de outras formas. E é nas ruas que algumas dessas mulheres e desses homens rejeita- dos encontram o campo ideal para exercer o ofício de profissionais do sexo. O problema é que, na rua, a vulnerabilidade é maior, os de- safios são muitos e eles precisam estar preparados para toda e qual- quer situação. Grande parte das mulheres dividem parcialmente o “ponto” (maneira que referem-se ao local onde esperam um cliente) para que se sintam mais protegi- das, mas com certo espaço e res- peito para que cada uma tenha seu cliente sem que haja conflito. Estão nas ruas, também, as transexuais, que enfrentam não só o precon- ceito por serem prostitutas, mas também por serem trans. Na busca por conhecer melhor o mundo da prostituição e as histórias que en- volvem as prostitutas, conhecemos também Lyah Corrêa, que respon- deu a algumas de nossas pergun- tas. Entrevistador: Lyah, como foi que você entrou para essa profissão e há quanto tempo está nela? Lyah: Eu comecei aos 25 anos, em 2006. Começou com um hobby de chat's de bate-papos. Eu comecei a fazer dessa diversão uma possibili- dade de ganhar dinheiro devido a minha situação financeira ser bem delicada. Comecei a cobrar dinhei- ro para os homens que eu me en- volvia. Não foi difícil, até pelo fato d'eu ser trans eles próprios já me abordavam pensando que eu era prostituta pelo estigma que carre- gamos (transexualidade associada à prostituição). Sim, confesso que me incomodei no início, mas de- pois acostumei. Em 2008, eu co- mecei a ir pras ruas (detalhe: eu morava sozinha, pois havia sido expulsa de casa). Então, além dos chat's, as esquinas eram minha ou- tra fonte de lucro. Paralelo a tudo isso, eu fazia o curso de Psicologia na UFPA e conseguir terminá-lo pra mim era uma questão de hon- ra. Terminei o curso somente em 2012, que foi o ano que não me prostituí mais nas ruas. Entrevistador: Como é o trabalho? Lyah: Tanto pelo chat quanto na rua, eu atendia os clientes sempre em motéis, embora, dependendo da esquina, havia terrenos aban- donados que também serviam de motéis. Nas ruas, eu chegava umas 22h e ia embora lá pelas 4h. Eu evi- tava ficar muito próxima de outras trans até pela questão da concor- rência, para não criar conflitos. Aqui em Belém, embora tenham espaços bem delimitados onde ocorrem prostituição de mulheres cis e trans, não tem muita briga en- tre elas. Entrevistador: Como é ser mulher trans e profissional do sexo? Quais as suas especificidades, como é o preconceito no campo social? Lyah: Como eu havia dito, a ima- gem da mulher trans ou travesti é imediatamente remetida à prosti- tuição, até porque, de acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), 90% de nós é ou já foi profissional do sexo. E, na época, eu era universitária, e mesmo assim nunca consegui estágios aqui por conta da minha identidade de gênero. A rua foi o único lugar que abriu as portas pra mim. Claro, tinha o chat, mas a rua era mais certa, embora o grau de vulnerabilidade fosse ao extremo. Por isso que, para mim, a minha formação era uma questão de hon- ra, para tentar ocupar outros espa- ços para além da prostituição. Se as mulheres cis já encontram difi- culdades e desafios no mercado de trabalho, imagina as trans. Entrevistador: Sobre a legaliza- ção, qual a melhora que vê para as profissionais, qual seu olhar dian- te do Projeto de Lei (PL) Gabriela Leite?
  • 23. Prostituição 23Agosto de 2017 porque foram nessas relações de cafetinagem e pararam em outros países. Como eu disse, sempre pre- feri ficar sozinha e separada por- que eu sabia que as noites são mo- mentos de outras relações, muitas vezes cruéis, e que ter "amigos" era algo raro. Entrevistador: Já pensou em de- sistir? Como é a sua luta diária para enfrentar tanto preconcei- to... Se já te violentaram e caso tenha ocorrido, como foi? Lyah: A desistência foi a melhor coisa que fiz em 2012, senão eu te- estão erradas? Não. Apenas limita- das a um único ponto de vista. Entrevistador: Você já trabalhou em alguma casa de prostituição? Chegou a se sentir explorada en- quanto trabalhava lá? Lyah: Nunca trabalhei em casas de prostituição, mas já fui inúme- ras vezes convidada a entrar em redes de cafetinagem em troca de ganhar cirurgias estéticas "grátis" e vida melhor. Claro que eram ilu- sões pra ficar eternamente escravi- zada como muitas amigas minhas ficaram. Algumas nunca mais vi Lyah: Sobre a questão da legaliza- ção através do PL Gabriela Leite: penso que é muito mais que ques- tões trabalhistas, é uma reafirma- ção do empoderamento feminino frente ao status quo de submissão dos corpos e gêneros femininos frente ao patriarcado. À mulher, sempre foi reservado o papel de submissa em todos os sentidos, em todas as culturas. A questão da prostituição em si pode ser olhada por diversas perspectivas, e uma delas é justamente sob a ótica dos direitos humanos, de autonomia que a mulher tem sobre seu pró- prio corpo e sexualidade. E, para aquelas que sobrevivem unica- mente das esquinas, ter um ampa- ro legal do Estado é o mínimo que este possa oferecer enquanto estí- mulo de empoderamento para ela própria se ver enquanto sujeito de direitos e deveres e não meramen- te subjugadas à sorte. Tem-se um mal cultural horrível de se pensar que, legalizando um projeto de lei, se irá estimular uma determinada prática (vide legalização do aborto e da maconha) e isso é um pensa- mento errôneo. No caso da prosti- tuição, um dos pilares de luta das ativistas é justamente mostrar pra sociedade que a puta, a prostituta, também merece ter seus direitos ao trabalho e à saúde garantidos, e resgatar seus processos de auto- estima, de seus lugares e inúmeras possibilidades de papéis no mundo para além do que o patriarcado re- serva a elas. Lembro que fui colo- car esse posicionamento para um grupo de mulheres de um partido político socialista e elas disseram que os homens dos partidos delas eram proibidos de se valerem dos serviços sexuais das putas devido à uma cláusula que proibia isso. Ar- gumento delas? O marxismo. Elas Foto: divulgação
  • 24. 24 Agosto de 2017 ria morrido. Foi nessa época que conheci o GEMPAC, mas nunca cheguei a ser uma ativista oficial desse movimento devido a ser um grupo exclusivo de prostitutas cis. A maioria é ótima, mas nun- ca me senti plenamente à vontade. Então, colaboro como e quando posso igual a outros voluntários de outros movimentos sociais que apoiam à causa. Mas esse grupo foi primordial para o meu pleno reconhecimento de autonomia so- bre o meu próprio corpo. Como eu nunca tive muitos atributos físicos que chamassem a atenção, sempre ganhei pouco nas ruas e sempre ti- nha os aluguéis atrasados de onde eu morava, quase sendo despejada várias vezes. E confesso que, na ausência de preservativo, eu com a expectativa de ganhar mais me submetia a transar sem camisinha. Numa dessas, fui infectada pelo vírus HIV. Enfim, era outra reali- dade que eu começava também a ter que lidar. O diagnóstico foi em 2010. E foi pelo GEMPAC que co- nheci o movimento social de luta contra a AIDS aqui do Pará, que me acolheu e sou ativista até hoje. Imagina que ser prostituta, trans e vivendo com AIDS era enfren- tar os mais perversos preconceitos sociais oriundos de tudo isso. Mas finalmente me formei e consegui trabalhar na minha área, de for- ma autônoma, e conseguindo uma grana que me possibilite até hoje me sustentar. Hoje, não voltaria para a prosti- tuição, só que mais pelas questões de sofrimento que passei, traumas, violências sexuais, mas sou uma eterna defensora das guerreiras que a exercem, sejam elas cis ou trans. Como eu disse, ser puta na sociedade, através da luta pelos direitos em condição de liberdade e igualdade. Algumas vertentes do feminismo, como o radical, são contra a legalização da prostitui- ção. Eugênia Rodrigues, feminista, argumenta: — A prostituição é um mundo tão difícil que algumas mulheres aca- bam por recorrer ao alcoolismo e às drogas para continuar. Na vida real, em que o homem é mais forte fisicamente, se ela existe ela pode ser até agredida e estuprada. No Brasil, que o aborto não é legaliza- do, a situação delas é pior, o núme- ro de aborto provocado é maior, acabando por engrossar o núme- ro de mortalidade materno nos abortos clandestinos. Profissional do sexo é um truque para apagar a gravidade disso, o quanto preju- dica a saúde física e psicológica de meninas e mulheres. As pessoas que advogam são cafetinas e ad- vogam por legalização, e não por políticas públicas, eles não querem que essas pessoas saiam porque eles lucram com essas pessoas. Eu chamo de PL dos Cafetões: se você ler, vai ver seis artigos. Então você já fica desconfiado, como é que uma situação tão grande, tão com- plexa, de um país enorme como o Brasil, poderia ser tratado em ape- nas seis artigos? Garantir os lucros dos cafetões, tirar os cafetões da ilegalidade, porque hoje, de acor- do com a lei, ser cafetão e cafetina é crime. A ideia do projeto é tirar essa galera da ilegalidade, transfor- má-los em empresários e garantir que eles fiquem com até 50% do que a prostituta conseguir, ou seja, óbvio que esse projeto de lei não está levando-as em conta. não é demérito nenhum. Escroti- ce é ser invisibilizada por um Es- tado e uma cultura machista que sempre relega ao corpo feminino um grau de quase inexistência de poder. Hoje, com as inovações tecnológicas, os aplicativos, sites de anúncios e chat's, são outros recursos utilizados por elas. E devido à estigmatização da pros- tituição, muitas não se definem como tal por acharem que é uma ofensa. Preferem eufemismos, tais como o famoso "acompanhante". Os movimentos sociais utilizam o termo puta para ressignificar isso. Puta enquanto uma agente de sua própria história, uma lutadora. E principalmente as que têm na rua seu meio de ganha-pão. Apesar dessa luta das prostitutas, existe parte de um movimento que é contra e que viabiliza seus argu- mentos a favor das mulheres e não a favor dos seus atos e da decisão que elas têm sobre seu próprio cor- po. O feminismo é o movimento que busca igualdade, a emancipa- ção e o empoderamento da mulher Escrotice é ser invisibilizada por um Estado e uma cultura machista que sempre relega ao corpo feminino um grau de quase inexistência de poder. Prostituição
  • 25. Em toda cidade grande, e arris- camos dizer que em muitas pe- quenas também, é praticamente impossível andar pelas ruas e não encontrar um ou outro grafite. Ou vários. Esse fênomeno que data desde a década de 70, nos Estados Unidos, hoje toma conta das cida- des brasileiras. O grafite surge na história através de adolescentes que queriam deixar sua marca nos centros urbanos e evolui para uma realidade muito diferente na prá- tica, mas certamente igual em sua essência. Para entender um pouco mais, dois grafiteiros foram entre- vistados e contaram um pouco de como foi começar a prática e os desdobramentos que isso teve em suas vidas. Pedro* tinha 15 anos quando teve seu primeiro contato com a picha- ção. Não foi através de amigos, como é comum em alguns casos. A vontade surgiu de uma neces- sidade de estar na rua, que ia ao encontro com certa admiração pela prática. Posteriormente, ele acabou por se juntar em alguns grupos que já praticavam em sua cidade e a fazer amizades. Júnior* iniciou mais cedo, aos 13. Come- çou a pichar em seu próprio bairro, depois de ser chamado por alguns colegas de escola. Ele não pensou muito, apenas topou. Na prática, descobriu um prazer que não sabia que tinha. Os dois compartilham de histórias diferentes, mas que se cruzam: o momento em que larga- ram a pichação e abraçaram o gra- fite. Tal decisão colocou os dois, anos depois, lado a lado em frente a um mesmo muro — dessa vez não pichando, mas grafitando. Aos 17 anos, Júnior foi jurado de morte no bairro em que morava. Inicialmente, ele relembra a his- MARCAS DA CIDADE Da adolescência à vida adulta: grafiteiros contam suas experiências artísticas 25Agosto de 2017 Grafite Foto: divulgação. Bruno Cardoso
  • 26. tória sem muitos detalhes, como se não quisesse falar desse tempo, mas logo depois nos conta um pouco mais do que aconteceu. A ameaça chegou nele por meio de familiares, que ficaram sabendo e pediram que se mudasse e ficasse fora por um tempo. “O aviso veio de dentro da polícia, então o que me restava era sair”, disse. Ele mu- dou de cidade, mas devido à sua difícil condição financeira não pôde ir para muito longe. Teve que ficar na casa de parentes e não cha- mar muita atenção. Foi nessa mes- mo época que o grafite começou a surgir em sua vida. Ainda em ida- de escolar, próximo de terminar o ensino médio, começou a grafitar no colégio onde estudava e, a par- tir disso, foi convidado para levar seus desenhos à outras institui- ções. No entanto, ainda evitava de grafitar nas ruas. No inicio de 2009, Pedro ingres- sou no serviço militar. “Não era uma escolha de vida, mas eu ‘tava’ pensando mais no dinheiro”, expli- cou. O que a princípio seria apenas um ano, se estendeu por mais 18 meses, a pedido do próprio. Na- quela época, já conhecia sua atual esposa, que ainda era apenas sua namorada. Quando estava prestes a terminar o primeiro ano de ser- viço militar, ela engravidou, fazen- do com que Pedro optasse por ficar mais algum tempo no exército, a fim de juntar um dinheiro para o nascimento da filha. Durante todo esse tempo em que esteve servindo, o cansaço se tor- nou constante. A pichação já não fazia muito sentido e estava prati- camente esquecida. O desenho, no entanto, continuava permeando sua vida, em cadernos que encon- trava em casa e folhas soltas. Foi quando um amigo lhe sugeriu es- tudar para trabalhar como ilustra- dor, e Pedro gostou da ideia. Nos meses antes de sair do exército, se dedicou a aprender a usar os edi- tores e ilustradores digitais presen- tes no mercado. Quando deixou o serviço militar, começou a tra- balhar com ilustração e voltou às ruas, dessa vez levando muito do que aprendeu nos computadores para os muros, deixando de lado a pichação e abraçando de vez o grafite. Andando pela cidade, não é difícil observar a maneira como o grafite, muitas vezes, divide espaço com a pichação. Pedro conta que costuma existir um respeito mútuo entre pi- chadores e grafiteiros. Não acon- tece pichação em cima de grafite, nem vice-versa. Porém, relembra uma situação em que esse acordo foi quebrado e que perseguiu um 26 Agosto de 2017 Foto: divulgação. Foto: divulgação.
  • 27. pichador que frequentemente es- tragagava seus desenhos: “Era um garoto novo, ‘tava’ começando a pichar agora. Conversamos e de- pois não aconteceu de novo”, rela- ta. Junior fala do respeito direcio- nado aos grafiteiros: “Dá pra viver do grafite. Eu já trabalhei em esco- las, empresas, igrejas. Não vivo só disso, mas é uma das vertentes do que eu faço”. Hoje, Pedro e Júnior tem 25 e 23 anos, respectivamente. Pedro é ca- sado e tem duas filhas, afirma que largar a pichação foi uma decisão sensata e que não voltaria a pra- ticar: “A pichação é um protesto, mas muitas vezes nasce só como diversão. Não que isso seja im- portante pra pessoas que só veem o muro sujo e ficam revoltadas. Então, por mais que você acredi- te naquilo, uma hora a gente tem que parar, e a galera nova que se- gue”. Júnior relembra com saudade daqueles tempos: “O grafite é mais tranquilo, de certa forma. E isso é bom. Mas tem dia que eu não te- nho assim tanta animação. Isso não costumava acontecer com a pichação”. O céu arma uma chuva nesse mo- mento, e sentimos na pele como é essa realidade que é trabalhar com arte na rua. Seus grafites ainda não estão prontos, mas mesmo as- sim eles começam a guardar seus materiais, temendo que caia um temporal que os obrigue a correr com tudo. Antes da chuva, porém, Júnior conta, complementando sua última frase, que já sabia que a pichação era considerada crime quando tinha 13 anos, e afirma que essa retaliação da população não é resposta à uma atividade crimino- sa, mas a um incômodo: “A gente convive bem e até pratica um mon- te de coisa que é crime. A venda de cigarro e bebida pra menor, sone- gação de imposto, propina, mas es- sas coisas não incomodam. Então, a gente finge que não tá vendo”, reflete. E então a chuva caiu, forte e sem piedade, nos fazendo juntar todos os sprays nas mochilas e sacolas, correndo e torcendo para que a tinta na parede estivesse seca. E, provavelmente, estava. Dias de- pois, passando por ali, pude ver o grafite finalizado. Uma marca deixada na cidade — exatamente como era feito há quase cinquenta anos, quando tudo começou. * A fim de proteger a identidade dos entrevistados, os nomes Júnior e Pedro são fictícios. Fatos, dados e locais que pudessem identificar esses personagens foram suprimi- dos. Grafite 27Agosto de 2017 Foto: divulgação.
  • 28. Jornalismo-UFRRJ 2017 Revista de reportagem experimental dos alunos da UFRRJ.