1. A Ilusão Musical
Daniel Levitin [1]
Imagine que você colocou uma fronha de travesseiro bem esticada na boca de um balde, e
várias pessoas começam a jogar ali, de diferentes distâncias, bolas de pingue-pongue. As
pessoas podem jogar quantas bolinhas quiserem e com qualquer freqüência. O seu trabalho
é adivinhar, apenas olhando o movimento da fronha para cima e para baixo, quantas
pessoas estão ali, quem são elas e se elas estão se aproximando de você, se distanciando
ou estão paradas. Essencialmente, este é o problema com o qual o seu sistema auditivo
precisa lidar quando usa o tímpano como a porta de entrada da audição.
O som é transmitido através do ar por moléculas que vibram em certas freqüências. As
moléculas bombardeiam o tímpano, fazendo com que ele se agite para dentro ou para fora,
dependendo da força com que batem no tímpano (relacionada ao volume ou à amplitude do
som) e da velocidade na qual estão vibrando (relacionada àquilo que chamamos de altura
[grave ou agudo]). Mas não há nada na estrutura das moléculas que possa dizer ao tímpano
de onde elas vieram, ou qual delas está associada com qual objeto. Vozes podem estar
misturadas a outras vozes ou ao som de máquinas, do vento, ou de alguém pisando no
chão. Na maioria das vezes o som recebido pelo tímpano é incompleto ou ambíguo. Então,
como o cérebro descobre, no meio dessa mistura de moléculas batendo contra uma
membrana, o que está acontecendo no mundo?
A maioria das pessoas presume que o mundo é exatamente como mostra sua percepção.
Entretanto, experimentos têm forçado pesquisadores, inclusive a mim mesmo, a confrontar
a realidade de que as coisas não são bem assim. Aquilo que realmente ouvimos é o final de
uma longa cadeia de eventos mentais que cria uma impressão – uma imagem mental – do
mundo físico. Em nenhum lugar isso é mais impressionante do que na ilusão perceptiva na
qual nosso cérebro impõe estrutura e ordem em uma seqüência de sons para criar o que
chamamos de música.
2. MÚSICA NA MENTE
A cadeia de eventos mentais começa com um
processo chamado de "extração de características". A atividade musical envolve envolve
O cérebro extrai da música características básicas quase todas as regiões cerebrais
e de baixo nível, usando redes neurais conhecidas e quase todos os
especializadas que decompõem o sinal sonoro em subsistemas neurais
informações relacionadas à altura, timbre, A audição da
localização espacial, intensidade, reverberação do música começa
ambiente, duração tonal e o tempo de ataque para com as estruturas
diferentes notas (e para componentes tonais subcorticais
diferentes). Esse processamento em baixo nível de (abaixo do córtex) -
elementos básicos ocorre nas partes periféricas e o núcleo cloclear, o
filogenéticas de nossos cérebros. Depois, ocorre bulbo cerebral, o
um processo chamado de "integração". Partes cerebelo - e então
superiores do cérebro – mais freqüentemente o se move para
córtex frontal – recebem as características básicas cima, para os
das regiões inferiores e trabalham para integrá-las córtex auditivos, de
em uma percepção completa. ambos os lados do
cérebro.
O cérebro enfrenta três dificuldades na "extração
de características" e na "integração". Primeiro, a Ao
informação que chega aos receptores sensoriais é acompanharmos
indiferenciada em termos de localização, fonte e músicas que
identidade. Segundo, a informação sonora é conhecemos, ou
ambígua: diferentes sons podem gerar padrões de que sejam de um
ativação similares ou idênticos ao atingirem o estilo ao qual
tímpano. Terceiro, a informação sonora raramente somos
é completa. Partes do som podem vir encobertas familiarizados,
por outros sons, ou se perderem. O cérebro tem regiões adicionais
que fazer um cálculo estimado do que realmente são mobilizadas,
está acontecendo no mundo. Assim, a percepção incluindo o
auditiva é um processo de inferência. E quando a hipocampo - o
origem do som é musical, as inferências incluem centro da memória
muitos fatores, que vão além dos próprios sons: o - e subseções do
que veio antes deste trecho musical que estamos lobo frontal,
ouvindo; o que nos lembramos que virá em particularmente o
seguida, o que esperamos que virá em seguida, se córtex frontal
conhecemos o gênero ou o estilo musical; e inferior.
quaisquer outras informações adicionais que Acompanhar o
possamos ter, como o resumo que lemos da ritmo da música,
música, um movimento repentino de um artista ou quer em voz alta
um cutucão dado pela pessoa sentada ao nosso ou somente em
lado. nossa mente,
envolve os
Portanto, o cérebro constrói uma representação da
circuitos de tempo
realidade, baseada tanto nos componentes do que
do cerebelo.
efetivamente ouvimos, quanto em nossas
A execução
expectativas do que achamos que deveríamos
musical envolve os
estar ouvindo. Existem boas razões para que o
lobos frontais para
cérebro funcione assim – um sistema perceptivo
o planejamento, o
que é capaz de restaurar informações perdidas
córtex motor na
pode nos ajudar a tomar decisões rápidas em
parte posterior do
3. A maioria das gravações contemporâneas contém outro tipo de ilusão auditiva. Nossos
cérebros usam sugestões relacionadas ao espectro de som e os tipos te ressonâncias para
dizer-nos sobre o mundo auditivo ao nosso redor, assim como um rato usa seus bigodes
para aprender sobre o mundo físico que o cerca.
Engenheiros de som aprenderam a imitar essas sugestões com a intenção de inserir nas
gravações uma qualidade de "mundo real", mesmo quando estas foram gravadas em
estúdios sem qualquer reverberação. Reverberação artificial faz com que os sons de um
vocalista ou de um guitarrista pareçam vir da parte de trás de uma sala de concerto, mesmo
quando estamos ouvindo aquela música com fones de ouvido, quando o som está a apenas
alguns centímetros de nossos ouvidos. Os mesmo princípios podem gerar truques sonoros,
como aquele que faz com que um violão soe como se tivesse 3 metros de largura, e seus
ouvidos estivessem exatamente onde onde fica a abertura acústica (boca).
Efeitos Especiais
Gravações musicais nos permitem experimentar outras impressões sonoras que nunca
teríamos no mundo real. Engenheiros de som e músicos criam efeitos especiais que
enganam nosso cérebro por simular circuitos neurais especializados em discernir
características importantes de nosso ambiente auditivo. Por exemplo, nosso cérebro pode
estimar o tamanho de um espaço fechado tendo como base a reverberação e o eco
presentes no sinal sonoro que atinge os nossos ouvidos. Mesmo que poucos de nós
consigamos compreender as equações necessárias para descrever como os ambientes são
diferentes uns dos outros, todos poderíamos dizer se estamos em um banheiro pequeno e
apertado, ou em uma sala de concerto de tamanho médio, ou em uma imensa igreja, com
tetos bem altos. E podemos também dizer o tamanho da sala que um cantor ou um narrador
está, quando ouvimos suas vozes gravadas. Engenheiros de som exploram essa habilidade
para criarem o que chamo de "hiper-realidades", brincando com nossa percepção sonora de
espaço de forma equivalente aos truques cinemtográficos, onde uma câmera é montada no
pára-choque de um carro em alta velocidade.
Outra ilusão sonora envolve o tempo. Nosso cérebro é delicadamente sensível às
informações sobre o tempo. Somos capazes de localizar objetos no mundo baseados em
diferenças de apenas alguns milissegundos entre o momento da chegada do som em um
ouvido, em relação ao outro. Muitos dos efeitos sonoros que gostamos de ouvir em músicas
gravadas são baseados nesta sensibilidade. Os sons realizados pelo guitarrista de jazz Pat
Metheny ou os de David Gilmour, do Pink Floyd, utilizam múltiplos atrasos de sinal, que são
capazes de criar um ambiente etéreo e um efeito inesquecível, que acionam partes de
nosso cérebro de formas que os seres humanos nunca experimentaram antes, simulando o
som de uma caverna fechada com múltiplos ecos de uma maneira que nunca aconteceria
no mundo real – é o equivalente sonoro do espelho do cabeleireiro, que repete imagens
infinitamente.
Talvez a ilusão musical mais importante, todavia, é aquela relacionada à estrutura e à
forma. Não há nada em uma seqüência de notas que possa criar a riqueza de associações
emocionais que sentimos na música. Não há nada em uma escala, um acorde, ou uma
seqüência de acordes que, intrinsecamente, nos leve a esperar uma resolução.
Nossa habilidade de dar sentido à musica depende da experiência e das estruturas neurais
que aprendem sobre os sons e podem se auto-modificar a cada vez que uma nova canção
ou um trecho musical são ouvidos, ou ainda a cada vez que ouvimos uma música que já
conhecemos. Nosso cérebro aprende sobre um tipo de gramática musical que é específica
de nossa cultura, assim como aprendemos a falar a língua do país em que nascemos. Esse
4. fenômeno se torna a base para nossa compreensão musical e, finalmente, a base para o
que gostamos nas músicas, qual música nos toca, e como a música nos toca.
FONTE: http://www.musicaeadoracao.com.br/efeitos/ilusao_musical.htm
Nota:
[1] Daniel Levitin está no Departamento de Psicologia da Universidade de Montreal, no
Canadá. Este artigo é um trecho de seu novo livro (ainda não disponível no Brasil): This is
Your Brain On Music: Understanding a human obsession, published by Atlantic Books.
Fonte: Revista New Scientist, vol. 197, nr. 2644 (23 de fevereiro de 2008), pp. 34-38.
Artigo original disponível on-line em http://www.newscientist.com/article/mg19726441.500-
music-special-the-illusion-of-music.html
Tradução: Adrian Theodor (fev./2008). Revisão: Levi de Paula Tavares.