A ALABASTRO – Revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, é uma publicação de cunho científico, com periodicidade semestral, organizada por estudantes de graduação em Ciências Sociais da Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Sua finalidade é estimular a produção e a veiculação de conhecimento e aproximar os pesquisadores de diferentes instituições universitárias ao cotidiano das Ciências Sociais por meio de artigos, resenhas, traduções científicas, análise de material audiovisual e produções poético-literárias, com temas vinculados às Ciências Humanas.
2. Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e
Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013
Comissão Editorial
CORPO EDITORIAL / EDITORS:
Prof. Dr. Rafael de Paula Aguiar Araújo: Doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, PUC/SP (2009) e Coordenador de Curso da Escola de
Sociologia e Política de São Paulo (raraujo@fespsp.org.br)
Rafael Balseiro Zin: Bacharel em Sociologia e Política pela Fundação Escola de Sociologia e
Política de São Paulo (rafaelbzin@hotmail.com)
EDITORES ASSISTENTES / ASSISTANT EDITORS:
Bruno Teixeira Martins: Graduando em Sociologia e Política pela Fundação Escola de
Sociologia e Política de São Paulo (bruno_bar_1@hotmail.com)
Evandro Finardi Sabóia: Graduando em Sociologia e Política pela Fundação Escola de
Sociologia e Política de São Paulo (evandrofsaboia@gmail.com)
Caterina de Castro Rino: Graduando em Sociologia e Política pela Fundação Escola de
Sociologia e Política de São Paulo (caterinarino@gmail.com)
Luis Sérgio Brandino: Graduando em Sociologia e Política pela Fundação Escola de Sociologia
e Política de São Paulo (brandino@apeoesp.org.br)
Thiago Duarte de Oliveira: Graduando em Sociologia e Política pela Fundação Escola de
Sociologia e Política de São Paulo (prof.thiduarte@gmail.com)
DIAGRAMAÇÃO / DIAGRAMMING:
Alessandra Felix de Almeida (dona@alealmeida.com)
A Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo
tem por escopo a publicação científica de artigos acadêmicos. Os artigos são de responsabilidade
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Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013
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3. ALABASTRO
revista eletrônica dos alunos
da Escola de Sociologia e Política de São Paulo
Alabastro: ano 1, v. 1, n. 1, 2013.
Sumário
Nota dos Editores
Nota dos editores
Rafael de Paula Aguiar Araújo
Rafael Balseiro Zin
4-5
Dossiê Lima Barreto
O Rio de Janeiro no início do século XX: uma narrativa sociológica do
desenvolvimento da cidade na obra Recordações do escrivão Isaías
Caminha, de Lima Barreto
Ana Magali Busko
Rafael Lacerda Soares
7 - 11
Ideais anarquistas de Lima Barreto na obra Recordações do escrivão
Isaías Caminha
Fabiana Nancy da Silva Araújo
Thiago Duarte de Oliveira
12 - 28
Recordações do Escrivão Isaías Caminha: Uma leitura da obra de
Lima Barreto
Fernando Morgato de Oliveira
Yasmim Nóbrega de Alencar
29 - 41
A busca por reconhecimento através da educação e os entraves
socioculturais de uma classe de cor
Marcella de Campos Costa
Kleber Aparecido da Silva
42 - 51
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013
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4. ALABASTRO
revista eletrônica dos alunos
da Escola de Sociologia e Política de São Paulo
Alabastro: ano 1, v. 1, n. 1, 2013.
Artigos
Curadoria de Artes, Micropolíticas Culturais para a América Latina
Nirlyn Karina Seijas Castillo
52 - 64
Uma percepção das mudanças no modelo de Estado após a crise
econômica de 2008 sob o foco dos conceitos do Republicanismo Clássico
Thiago Henrique Desenzi
65 - 85
Faoro e o LEITMOTIV tipicamente brasileiro: as confusões entre público e
privado
Tathiana Senne Chicarino
86 - 98
Da experiência vivida à crítica escrita: Os saberes cotidianos e os seus
sujeitos como parâmetros da produção textual e reflexão dos fenômenos
sociais
Alessandra Felix de Almeida
99 - 111
Ensaio Poético
O artesão
Renato Moro Giannico
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013
112
3
5. ALABASTRO
revista eletrônica dos alunos
da Escola de Sociologia e Política de São Paulo
Alabastro: ano 1, v. 1, n. 1, 2013.
Nota dos editores
A ALABASTRO – Revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia
e Política de São Paulo, é uma publicação de cunho científico, com
periodicidade semestral, organizada por estudantes de graduação em
Ciências Sociais da Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Sua
finalidade é estimular a produção e a veiculação de conhecimento e
aproximar os pesquisadores de diferentes instituições universitárias ao
cotidiano das Ciências Sociais por meio de artigos, resenhas, traduções
científicas, análise de material audiovisual e produções poético-literárias,
com temas vinculados às Ciências Humanas.
Alabastro é um tipo de vaso feito de cerâmica e que foi muito
utilizado na Antiguidade para armazenar ou queimar determinados
conteúdos, entre eles óleo e perfume. A primeira menção conhecida a
estes “frascos de essências” vem de Heródoto, geógrafo e historiador
grego, e está registrada no capítulo XX, do livro III, da obra Histórias, que
cita o alabastro como um dos presentes enviados por Cambises, antigo
rei da Pérsia, ao rei da Etiópia. Passada a sua época, a palavra foi utilizada
tanto entre os escritores gregos quanto entre romanos, difundindo-se
por todo o Ocidente e alcançando os nossos tempos.
ensando nestes termos, nasce a ALABASTRO. Assim como
P
os vasos que eram utilizados na Antiguidade, esse periódico, pensado
e elaborado por alunos de graduação, assume a forma de um frasco
de essências. A Revista quer, portanto, organizar, armazenar e tornar
pública a produção acadêmica de jovens pesquisadores, contribuindo,
dessa maneira, para o enriquecimento e maior qualificação na formação
intelectual dos alunos. Vale destacar que a criação desta Revista ocorre
em momento oportuno, como parte das comemorações dos 80 anos da
Escola de Sociologia e Política de São Paulo.
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 4-5.
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6. Nota dos editores
Nesta primeira edição, os textos selecionados versam sobre
assuntos diversos, mas sempre relacionados ao universo das Ciências
Sociais. Para melhor disposição do material, este número está estruturado
em três eixos. O primeiro deles traz um dossiê a respeito de um dos mais
importantes escritores brasileiros, Afonso Henriques de Lima Barreto,
a partir de sua obra Recordações do Escrivão Isaías Caminha, publicada
pela primeira vez em 1909. A segunda parte apresenta artigos que
problematizam questões referentes à sociedade, ao Estado, aos saberes
cotidianos, às artes e ao pensamento social brasileiro. Na terceira e
última seção, trazemos a público um breve ensaio poético que enaltece o
papel dos artesões, enquanto importantes agentes culturais da sociedade
brasileira.
Fundamentada em um processo colaborativo, capaz de promover
a troca de conhecimentos e interesses entre os estudantes de graduação e
pós-graduação, a comunidade acadêmica em geral e demais interessados,
a comissão editorial da ALABASTRO oferece ao público leitor os
trabalhos que compõem esta primeira edição da Revista. Esperamos que
nossos leitores apreciem esta iniciativa e compartilhem esse novo espaço
de trocas, contribuindo com as futuras edições. A ALABASTRO, como
frasco de essências, quer armazenar conhecimento, mas, da mesma
forma que é preciso abrir o frasco para que o perfume seja apreciado e se
espalhe, queremos que os saberes aqui reunidos se multipliquem através
dos leitores. Esperamos que gostem...
Boa leitura!
Rafael de Paula Aguiar Araújo
Rafael Balseiro Zin
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 4-5.
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7.
8. Dossiê Lima Barreto
O Rio de Janeiro no início do século XX: uma
narrativa sociológica do desenvolvimento da
cidade na obra Recordações do escrivão Isaías
Caminha, de Lima Barreto.
Ana Magali Busko
Rafael Lacerda Soares
Estudantes de graduação no curso
de Sociologia e Política, da Escola de
Sociologia e Política de São Paulo
Resumo
Esse trabalho tem por objetivo analisar a obra de
Lima Barreto Recordações do escrivão Isaías Caminha,
de acordo com o ponto de vista político e social,
visando uma historicidade que remonta à época do
Rio de Janeiro no início do século XX. O conteúdo
a seguir é enriquecido com as observações do
historiador e professor José Murilo de Carvalho e
sua obra Os bestializados: o Rio de Janeiro e a república
que não foi, escrito em 1987, em que demonstra o
processo de formação do republicanismo em face
da capital brasileira e discursa sobre a participação
do povo carioca no processo democrático. Foi
identificado através das leituras que o livro de Lima
Barreto torna-se campo fértil para uma discussão
sobre os aspectos da mudança política da época.
No discurso de todo o enredo, Lima Barreto
pontilha cada grupo e os sofrimentos destes, como
no caso de seu contato com a Igreja Positivista
(um dos pensamentos que mais influenciaram o
Brasil) através de um amigo ou quando vai preso
e é enquadrado como marginal, passando pela
influente imprensa carioca e até observando as
mudanças estruturais da cidade maravilhosa. Em
suma, o ponto de partida deste trabalho são duas
obras de extremo valor para uma boa compreensão
sobre o início do século XX no Rio de Janeiro.
Palavras -Chave
Pensamento político brasileiro. Século XX. Lima Barreto. José Murilo de Carvalho.
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 7-11.
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9. Dossiê Lima Barreto
O Rio de Janeiro no início do século XX: uma narrativa sociológica do desenvolvimento da cidade na obra Recordações
do escrivão Isaías Caminha, de Lima Barreto.
Ana Magali Busko e Rafael Lacerda Soares
Em Recordações do escrivão Isaías Caminha,
publicado em 1909, Lima Barreto conduz o leitor a
um passeio pelo Rio de Janeiro no início do século
XX, em pleno estabelecimento da República e
apresenta os relatos de uma cidade que foi palco de
uma transformação política radical que deu rumos
ao Brasil contemporâneo. Na obra, Lima Barreto
pincela os aspectos sociais, políticos e ideológicos
de uma população que ainda estava agitada pela
decorrência do golpe que culminou em um novo
sistema. O autor encontra-se em face de uma das
maiores agitações políticas do cenário brasileiro e,
nesse sentido, o povo do Rio de Janeiro assistia a
metamorfose desse cenário esperançada.
Segundo o historiador José Murilo (1987)
esse era o momento de trazer o povo para o
proscênio da atividade política, o momento de o
povo se engajar politicamente, afinal era o início de
uma república em terras antes monárquicas. Apesar
de o pensamento proposto pelos propagandistas
da república de que os cidadãos participassem
das decisões do Estado, o grosso da população
brasileira, nessa época, presenciava todas as
transformações aquém do poder. José Murilo em
seu livro Os bestializados: o Rio de Janeiro e a república
que não foi, diz que, “embora proclamado sem a
iniciativa popular, o novo regime despertaria entre
os excluídos do sistema anterior certo entusiasmo
quanto às novas possibilidades de participação”
(CARVALHO, 1987. p.12).
De fato, este período da história brasileira
foi de total conturbação. Nesta época o povo sofria
com a falta de um sistema eficiente de saneamento
básico e isto desencadeava frequentes epidemias,
entre elas, a febre amarela, peste bubônica e varíola.
A população carente, de moradias precárias, era a
principal vítima destas epidemias. Ao analisar as
condições sociais dessa época vê-se claramente que
a instabilidade predominava. Já ao final do século
XIX, o Rio de Janeiro passa por um crescimento
demográfico desenfreado, com um contingente
populacional quase que dobrando entre 1872 e
1890, passando de 274 mil habitantes para 522
mil habitantes. Um dos motivos foi a abolição da
escravatura, que nos anos anteriores impulsionou
um contingente de trabalhadores que buscaram
na capital da república um posto de trabalho. O
outro fator foi a vinda de muitos estrangeiros
oriundos da Europa para tentar uma vida no Brasil,
como foi o caso do jornalista Ivã Gragoróvitch
Rostolóff, citado por Isaías Caminha no decorrer
da narrativa.
Nesse ínterim, cresceu o número de
pessoas buscando emprego, consequentemente,
de desempregados. A economia enfrentou índices
inflacionários absurdos, por causa da especulação
desenfreada em vários níveis, especialmente terrível
para as classes populares.
A concepção de um povo “bestializado”
surge quando, após a conquista da República, por
falta de uma organização política pela sociedade,
o poder é dado às pessoas envolvidas com o
liberalismo imperial. O termo “bestializados”
surge com a Constituição de 1891. O Estado
não tinha a obrigação em fornecer educação
ao povo e o direito de voto só ser dado àqueles
não analfabetos, a grande maioria da população
tornou-se excluída da participação na comunidade
política. Como foi a primeira vez que o povo viu um
modelo de república, houve um descontentamento
generalizado, inclusive desejando o retorno
da monarquia, devido à simpatia a D. Pedro
II e a princesa Isabel. Desse modo, a falta de
participação do povo no processo de consolidação
da República, fez com que estudiosos chamassem
o povo de “bestializado”. E assim são tratados até
a Revolta da Vacina, em 1904 em que eclodiu um
sentimento tão esperado pela defesa da honra e de
seus direitos.
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 7-11.
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10. Dossiê Lima Barreto
O Rio de Janeiro no início do século XX: uma narrativa sociológica do desenvolvimento da cidade na obra Recordações
do escrivão Isaías Caminha, de Lima Barreto.
Ana Magali Busko e Rafael Lacerda Soares
A título de ilustração, há na obra de Lima
Barreto a seguinte passagem:
Durante três dias a agitação mantevese. Iluminação quase não havia. Na Rua
do Ouvidor armavam-se barricadas,
cobria-se o pavimento de rolhas para
impedir as cargas de cavalaria. As forças
eram recebidas a bala e respondiam
(...). Da sacada do jornal, eu pude
ver os amotinados. Havia a poeira de
garotos e moleques; havia o vagabundo,
o desordeiro profissional, o pequenoburguês, empregado, caixeiro e estudante;
havia emissários de políticos descontentes.
Todos se misturavam, afrontavam as
balas, unidos pela mesma irritação e pelo
mesmo ódio à polícia, onde uns viam o
seu inimigo natural e outros o Estado,
que não dava a felicidade, a riqueza e a
abundância. (BARRETO, 2011, p.265)
Isaías Caminha, o protagonista da história,
mostra as dificuldades de arrumar emprego e a
certo ponto na narrativa é confundido com um
ladrão e levado pelo dono do hotel onde residia à
cadeia. Pelo fato de a cidade do Rio de Janeiro dessas
décadas estar povoada por ladrões, prostitutas,
ciganos trapaceiros e gatunos, ele foi obrigado a
receber tal tratamento. E recebeu, não somente
pelo fato de ser negro, mas também por fatores
sociais que o deixaram a míngua pela cidade. Nesse
sentido sofre com o desencantamento da cidade
e com o preconceito constante. Segundo José
Murilo, uma das consequências dessa desordem
sociopolítica foi:
O acúmulo de pessoas em ocupações
mal remuneradas ou sem ocupação fixa.
Domésticos, jornaleiros, trabalhadores
em ocupações mal definidas chegavam a
mais de 100 mil pessoas em 1890 e mais
de 200 mil em 1906 e viviam nas tênues
fronteiras entre a legalidade e a ilegalidade,
às vezes participando simultaneamente de
ambas. (CARVALHO, 1987, p.17).
Portanto, durante a leitura do romance de
Lima Barreto vê-se um jovem, Isaías Caminha,
com muitos sonhos e desejos de ser reconhecido
como “Um grande homem”. Queria ir para o Rio
de Janeiro, obter o reconhecimento de todos em
sua volta, da família e dos amigos como “Doutor”.
Para ele, era um título mágico, tinha poderes e
alcances múltiplos. Estudar na capital era querer
ter as regalias e prestígios que somente um diploma
pode fornecer. Entretanto, diante do contexto
histórico e político seu desencantamento vem sem
demora.
ntre os esforços de Isaías Caminha na
E
procura por um emprego, na tentativa de provar
sua identidade, é possível refletir a respeito da
hipocrisia da sociedade vigente a época, sobre
a importância de um diploma para sobreviver
naquele período, sobre a miséria ser um empecilho
para o sucesso.
Carvalho (1987) faz abordagem sobre a
participação das camadas inferiores da sociedade,
onde se encontrava o desiludido Isaías Caminha,
durante o período da Proclamação da República.
Segundo o autor, a economia enfrentou índices
inflacionários absurdos, por causa da especulação
desenfreada em vários níveis, que foi em especial,
terrível para as classes populares. É no meio daquele
fervilhar de ambições pequenas, de intrigas, de
hipocrisia, de ignorância, que Isaías Caminha via
todas as coisas majestosas, todas as coisas que
ele amara, sendo diminuídas ou desmoralizadas.
Conforme enfatiza Isaías Caminha em uma
passagem:
Queria-me um homem do mundo,
sabendo jogar, vestir-se, beber, falar às
mulheres; mas as sombras e as nuvens
começavam a invadir-me a alma, apesar
daquela vida brilhante. Eu sentia bem o
falso da minha posição, a minha exceção
naquele mundo; sentia também que não
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 7-11.
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11. Dossiê Lima Barreto
O Rio de Janeiro no início do século XX: uma narrativa sociológica do desenvolvimento da cidade na obra Recordações
do escrivão Isaías Caminha, de Lima Barreto.
Ana Magali Busko e Rafael Lacerda Soares
me parecia com nenhum outro, que não
era capaz de me soldar a nenhum e que,
desajeitado para me adaptar, era incapaz
de tomar posição, importância e nome.
(BARRETO, 2011, p.295).
Conforme citação de Carvalho (1987):
“A República que não era cidade, não tinha
cidadão”. Além disso, diz o pesquisador, “O povo
não se enquadrava nos padrões europeus”. Por
essa razão, impossibilitada de ser “A República”,
a cidade mantinha suas repúblicas particulares,
ou seja, seus núcleos de participação social, nos
bairros nas associações, nas irmandades, nos
grupos étnicos, nas igrejas, nas festas religiosas
e profanas e mesmo nos cortiços e nas rodas de
capoeira, que se transformaram, ao longo dos anos,
em estruturas comunitárias que não se encaixavam
no modelo contratual do liberalismo dominante na
política. A despeito disso, pode-se dizer que foi a
evolução destas repúblicas, algumas inicialmente
discriminadas, que se não perseguidas formou-se
a identidade coletiva da cidade.
Foram nelas que se aproximaram povo e
classe média, foram nelas que se desenhou o rosto
real da cidade, longe das preocupações com a
imagem que se devia apresentar a Europa. Foram
o futebol, o samba e o carnaval que deram ao Rio
de Janeiro uma comunidade de sentimentos por
cima e além das grandes diferenças sociais que
sobreviveram e ainda sobrevivem. Negros livres,
ex-escravos, imigrantes, proletários e classe média
encontraram nessa resistência o reconhecimento
que lhes era negado pela sociedade e pela política,
que os marginalizava, restringindo o seu forte
apelo cultural.
Durante todo esse período a voz das
organizações era a imprensa, pois procuravam
visibilidade dentro do cenário político carioca.
Lima Barreto deixa saliente em sua história o papel
do jornal O Globo no palco político, e de fato as
folhas cariocas foram de suma importância para
o processo democrático. Foram fundados diários
das mais variadas vertentes de pensamento para
essa expressão. Jornais como o Não Matarás e o
Baluarte representavam a Federação Operária do
Rio; os anarquistas tinham os jornais: O Despertar, O
Protesto, O Golpe, A greve entre outros. Os socialistas
tinham o Echo Popular e muitos outros setores das
massas procuravam seu lugar ao sol na política
brasileira. Além disso, o personagem de Isaías
Caminha conta no decorrer do enredo que parte
desses jornais já estava corrompida pelos próprios
donos do poder e ao analisar a história de muitos
jornais cariocas nota-se que não sobreviviam por
muitos anos.
É dentro desse contexto conturbado da
historiografia nacional que Lima Barreto olha a
sociedade carioca usando como janela o cotidiano
do jornal O Globo que se mistura à sua vida
privada. Ele fez de Isaías Caminha o protagonista, e
assim aguça a intelectualidade do leitor na tentativa
de fazê-lo entender o que foi narrado e sobre os
fatos sociais decorridos. Será porque havia uma
particularidade no fundo desta narrativa tão rica
que explica todo o tema do livro? Pode-se dizer
que sim, as relações entre os personagens são por
si somente um elemento relevante no romance.
E também o são as descrições geográficas, pois
neste passeio sensorial pelo Rio de Janeiro do
início do século XX criam-se as memórias afetivas,
construindo uma moldura para todas as narrativas
do enredo, no feixe de ligação entre os personagens,
nas suas afinidades, nos seus olhares, nos seus
desafetos e rancores, nos seus destinos.
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 7-11.
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12. Dossiê Lima Barreto
O Rio de Janeiro no início do século XX: uma narrativa sociológica do desenvolvimento da cidade na obra Recordações
do escrivão Isaías Caminha, de Lima Barreto.
Ana Magali Busko e Rafael Lacerda Soares
Referências Bibliográficas:
BARRETO, Lima. Recordações do escrivão Isaías Caminha. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São
Paulo: Companhia das Letras, 1987.
HOUAISS, Antonio. Mini Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. São Paulo: Objetiva/
Moderna, 2008.
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 7-11.
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13. Dossiê Lima Barreto
Ideais anarquistas de Lima Barreto na obra
Recordações do escrivão Isaías Caminha
Fabiana Nancy da Silva Araújo
Thiago Duarte de Oliveira
Estudantes de graduação no curso
de Sociologia e Política, da Escola de
Sociologia e Política de São Paulo
Resumo
O anarquismo, visto com maus olhos pelo senso
comum devida sua fama equivocada de desordem
e bagunça, é um pensamento político, social e
econômico que contribuiu para a formação da
sociedade atual, defendendo em seu cerne os
interesses dos proletários, das mulheres, do meio
ambiente e de todas as vítimas dos processos de
industrialização e das relações de poder, a partir do
final do século XIX. As obras do brasileiro Lima
Barreto, autor à frente de seu tempo, são marcadas,
entre outras coisas, pelo pensamento libertário e
de inconformidade com o estado moral e social da
época, anteriores à consolidação do pensamento
anarquista brasileiro (a partir dos anos 30 do
século XX). Começaremos esse trabalho pela
tessitura e conceituação dos termos anarquia e
anarquismo, explorando suas vertentes e difusão
pelo Brasil a partir da abolição da escravatura e
formação da classe operária. Posteriormente uma
abordagem sobre a vida e obra de Lima Barreto
e, em seguida, buscando identificar a presença de
insigths anarquistas na obra Recordações do escrivão
Isaías Caminha.
Palavras -Chave
Anarquismo, Lima Barreto, Literatura brasileira.
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 12-28.
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14. Dossiê Lima Barreto
Ideais anarquistas de Lima Barreto na obra Recordações do escrivão Isaías Caminha
Fabiana Nancy da Silva Araújo e Thiago Duarte de Oliveira
Nasce o anarquismo e o movimento anarquista:
poder para quê?
Contra toda forma de autoridade,
totalitarismo, absolutismos, hierarquizações e
sistemas que oprimem a liberdade individual, no
sentido mais geral e salvo do conceito popular
do senso comum, está presente o anarquismo.
Woodcock (2002, p. 7) introduz o livro citando
uma frase de Sebastien Faure (famoso ativista
libertário): “Todo aquele que contesta a autoridade
e luta contra ela é um anarquista”. Podemos,
segundo ele, considerar o fio condutor de toda
história e surgimento do anarquismo essa questão
de luta contra a autoridade e que é a doutrina que
propõe uma crítica, de certa forma destrutiva
para se tornar construtiva, ao estado da sociedade
vigente, de forma que o anarquismo como um
sistema de filosofia social, visando promover
mudanças básicas na estrutura da sociedade e,
principalmente – pois esse é o elemento comum
a todas as formas de anarquismo – a substituição
do estado autoritário por alguma forma de
cooperação não governamental entre indivíduos
livres (WOODCOCK, 2002, p. 11).
Segundo Costa (1980, p. 11), “os
anarquistas, (…), têm em mira apenas o indivíduo,
sem representantes, sem delegações, produtor,
naturalmente em sociedade. Positivamente, eles
preconizam uma nova sociedade e indicam alguns
meios para isto”. O anarquismo, segundo a
definição que Bobbio, Matteucci e Pasquino (1998,
p. 23) é uma
sociedade, livre de todo domínio
político autoritário, na qual o homem
se afirmaria apenas através da própria
ação exercida livremente num contexto
sócio-político em que todos deverão ser
livres. Anarquismo significou, portanto, a
libertação de todo poder superior, fosse ele
de ordem ideológica (religião, doutrinas,
políticas, etc.), fosse de ordem política
(estrutura administrativa hierarquizada),
de ordem econômica (propriedade dos
meios de produção), de ordem social
(integração em uma classe ou num grupo
determinado), ou até em ordem jurídica
(a lei). A estes motivos se junta o impulso
geral para a liberdade [de onde vem o
termo libertarismo].
Começamos este trabalho com a intensão
primeira de desconstruir o conceito do senso comum
do anarquismo como estado de bagunça, de caos
instalado, da natureza humana malévola em si, do
terrorismo e de ser o promotor da desordem. Este
conceito popular tem uma razão histórica de ser,
mas o conceito usado nesse trabalho é, conforme
citado por Woodcock (2002, p. 8) “[o anarquista]
como um homem que acredita ser preciso que o
governo morra para que a liberdade possa viver”.
É importante ressaltar que essa diferença causa
uma confusão semântica e conceitual das teorias
anarquistas com o uso popular do termo; mesmo
porque, no surgimento dos termos ‘anarquia’
e ‘anarquismo’ que apareceram na Revolução
Francesa de 1789 nos escárnios dos girondinos,
principalmente Brissot, e posteriormente mais
fortemente pelo Diretório, contra os jacobinos,
liderados por Robespierre, acusados de serem
detentores da desordem, criminosos hediondos,
inimigos das leis, engordados de sangue, entre
outros escárnios acusatórios.
Posteriormente, pensadores e militantes
aguerridos contra o autoritarismo imposto
adotaram o nome anarquia, primeiramente o
individualista e violento Pierre-Joseph Proudhon,
em 1840. Proudhon, inclusive, é o autor da célebre
frase “A propriedade é um roubo”, contida em seu
livro O que é a propriedade?, (PROUDHON apud
WOODCOCK, 2002, p. 10)
É importante ressaltar que nem todos
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 12-28.
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15. Dossiê Lima Barreto
Ideais anarquistas de Lima Barreto na obra Recordações do escrivão Isaías Caminha
Fabiana Nancy da Silva Araújo e Thiago Duarte de Oliveira
os grandes nomes anarquistas, como, por
exemplo, Godwin, Stiner e Tolstói, este último
sendo considerado pela crítica mundial um dos
maiores escritores anarquista de acordo com
Bezerra (2010), se utilizaram do termo em suas
informações ante as relações de poder impostas
criando, para isso, sistemas antigovernamentais.
Mas, pela conceituação que estamos abordando
aqui, esses nomes podem ser considerados como
anarquistas por estarem alinhados no sentido
de irem de encontro ao sistema social vigente e
propondo novas formas de organização social e,
também, política.
O que Proudhon deseja construir,
conforme descrito por Woodcock (2002), é uma
sociedade reunida em grandes federações de
comunas e cooperativas operárias, tendo como
base econômica onde indivíduos e pequenos
grupos disponham de seus próprios meios de
produção e ligados por contratos e permuta de
créditos mútuos que asseguraria a todos o produto
de seu próprio trabalho.
Desse ideal imaginado por Proudhon,
surgem correntes de pensamento anarquistas
que se diferenciam principalmente pela forma de
organização econômica e pelo modo de militância,
violenta ou não. Essa vertente de Proudhon,
posteriormente adotada por Kropotkin, pode
ser chamada de “mutualismo” e “coletivismo”
respectivamente, tendo como base a ideia das
comunas e cooperativas e a ênfase na ideia da
propriedade em mãos de instituições voluntária
que assegurariam aos trabalhadores o produto
integral de seus trabalhos.
Surgira também o anarco-comunismo
e, posteriormente, o anarcossindicalismo, duas
correntes, por assim dizer, mais focada na
situação da classe proletária da época, tendo como
principal diferença a forma de manifestação ou
métodos revolucionários: esta última se utilizava
da não violência e das greves como protesto.
No anarco-comunismo seriam abolidos toda
forma de propriedade privada e Estado e os
trabalhadores tomariam o poder e se utilizariam da
democracia direta para todas as decisões políticas.
Os anarcossindicalistas acreditavam que a via
da atuação nos sindicatos seria uma ferramenta
para alterar a sociedade, mudando o capitalismo
instalado e o Estado e fundando democraticamente
uma nova sociedade, esta autogerida pelos próprios
trabalhadores.
Há também o anarquismo individualista,
onde pensadores e atuantes dessa vertente não
acreditam na integridade de nenhuma forma de
associação, mesmo cooperativista, exaltando o
caráter individual; além dos anarco-pacifistas,
representado ilustremente por Tolstói, e que,
inclusive, influenciou as ideias de Gandhi,
cogitavam a não-resistência. Para eles, sendo
contrários a qualquer forma de poder, e acreditando
ser a violência também uma forma de poder, eram
avessos a tais manifestações.
Podemos constatar um perfil próximo
ao positivismo em alguns ideais anarquistas, no
sentido, conforme citado por Woodcock (2002),
de entenderem que existe um progresso no
desenvolvimento das sociedades proporcionado,
entre outras coisas, pelos avanços científicos e
pela questão das sociedades se firmarem quase que
naturalmente, conforme descrito por Proudhon
apud Woodcock (2002, p. 23) em que as sociedades
se desenvolvem “estimuladas pelo progresso
das ciências, por novos inventos e pela evolução
ininterrupta das ideias cada vez mais elevadas”,
onde tais homens não são governados por outros
homens, mas em contínua evolução – tal como
notado na Natureza. Porém, é com cuidado que
nos arriscamos a considerar o anarquismo como
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 12-28.
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16. Dossiê Lima Barreto
Ideais anarquistas de Lima Barreto na obra Recordações do escrivão Isaías Caminha
Fabiana Nancy da Silva Araújo e Thiago Duarte de Oliveira
uma vertente progressista, pois, não define tão
claramente tal progresso e não define com exatidão
um devir. Woodcock (2002, p. 25) menciona que:
a maioria dos homens de esquerda
do século XIX falavam em progresso.
Godwin sonhava com homens que
se desenvolveriam indefinidamente,
Kropotkin procurava diligentemente
estabelecer ligações entre o anarquismo e
a evolução e Proudhon chegou a escrever
uma Philosophie du Progrés [Filosofia do
Progresso].
Já os que se consideravam marxistas,
utilizando um anacronismo neste termo, negavam
a existência da evolução nos ideais anarquistas,
pois, segundo eles, estes ‘flutuavam no ar’ sem
nenhuma definição legítima ou concreta dos ideais
anarquistas em relação à história.
Tais correntes anarquistas foram se
espalhando por todo mundo, inclusive para
o Brasil, onde se firmou mais claramente a
partir das décadas de 30 do século XX, embora
anteriormente a esse período já se mostrasse
claramente presente na literatura e mídias da época,
muitas censuradas pela polícia e pelo governo, mas
que contribuíram enormemente para a difusão dos
ideais anarquistas.
O anarquismo no Brasil: contra as forças
produtivas hierarquizadas e a exploração do
trabalhador brasileiro
“O anarquismo brasileiro, em sua origem
não era força hegemônica no movimento operário,
como era uma força política poderosa e que estava
presente nas lutas operárias de forma intensiva”
(DEMINICIUS e FILHO, 2006, p. 23). O
pensamento anarquista no Brasil inicia-se junto
à formação da classe operária, dada a partir da
abolição da escravatura. Surge então o trabalho
assalariado que desenvolve lentamente, porém
ganhando impulso somente com a imigração.
Sendo assim, o proletariado brasileiro é formado
não somente por artesões e camponeses, como
ocorrera na Europa na transição do feudalismo
para o capitalismo, mas, sim, por indivíduos
predominantemente estrangeiros.
O processo de industrialização no Brasil foi
lento e concentrou-se quase que na sua totalidade
na região sul do país. Há um aceleramento da
industrialização a partir de 1880 provocando assim
uma maior demanda por força de trabalho. A partir
daí, a imigração cresce ainda mais.
A partir de 1890 em São Paulo e Rio de
Janeiro a classe operária no Brasil já era formada
em sua maioria por imigrantes. Tal como ocorrido
na Europa, a industrialização foi sustentada a
partir da exploração da mão de obra, assim “o
proletariado nascente é vítima de uma exploração
intensiva, com condições de vida e trabalho
precárias, jornadas de trabalho extensas e uso da
forca de trabalho feminina precoce com salários
baixos”. (DEMINICIUS e FILHO, 2006, p. 27)
Os trabalhadores vivam em condições
insalubres, tanto dentro como fora das fábricas,
as violências praticadas dentro da fabrica contra
mulheres e menores eram constantemente
relatadas na imprensa operária. Não havia nenhuma
representatividade da classe operária na política
institucional, sendo esta vigiada e controlada pelo
Estado. As associações tornaram-se cada vez mais
urgentes, surgindo às ideias sindicalistas, socialistas
e principalmente anarquistas brasileiros.
Segundo Deminicis e Filho (2006),
grande parte dos imigrantes europeus que vieram
pra região de São Paulo e Rio de Janeiro eram
italianos, o que explica a hegemonia anarquista no
movimento operário brasileiro, devido ao fato de
que o movimento operário italiano era marcado
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 12-28.
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17. Dossiê Lima Barreto
Ideais anarquistas de Lima Barreto na obra Recordações do escrivão Isaías Caminha
Fabiana Nancy da Silva Araújo e Thiago Duarte de Oliveira
fortemente pelo anarquismo.
O anarquismo cumpriu um papel
importante na consolidação dos pensamentos
sindicalistas no Brasil, tanto a partir da divulgação
de suas ideias tanto por passar conhecimento
referente às conexões das lutas do passado com as
lutas do presente na Europa.
O anarquismo no Brasil não se limitou
aos sindicatos, manifestações e ações grevistas.
Em meados de 1890 a partir da doação de terras
feitas por Dom Pedro II é fundada a Colônia
Cecília, tentativa de anarquistas de fundar uma
comunidade ‘desierarquizada’ onde os meios de
produção fossem de todos para todos, e as ações,
debatidas entre todos e realizadas sempre de
comum acordo.
Tudo se resolvia em assembleias abertas,
gerais, com a participação dos habitantes
da comunidade (...). Não havia donos,
superioridades culturais e profissionais
nem figuras inferiores dentro da colônia
(...). Cada membro da comunidade,
adaptado a nova forma de trabalho, lutava
lado a lado com seus companheiros,
durante o dia de enxada na mão, e, à
noite, trocavam ideias, debatiam interesses
coletivos, sem esquecer o anarquismo,
desafiado a viver na prática. Um homem,
ali, valia um homem! (RODRIGUES,
1984 apud DEMINICIUS e FILHO,
2006, p. 35)
Os obstáculos encontrados pelos moradores
da Colônia Cecília como: as individualidades
relacionadas aos valores burgueses e as intempéries
naturais que prejudicavam a produção agrícola,
não foram suficientes para acabar com a colônia,
porém outros fatores externos contribuíram para
seu desfecho. Com o fim do império de Dom Pedro
II os republicanos passaram a atacar a colônia,
cobrando altos impostos e obrigando os colonos
a trabalharem cada vez mais, inclusive em fazendas
e comunidades vizinhas. O sonho anarquista e sua
magnífica experiência tiveram então seu fim – sob
o pretexto de procurar um criminoso refugiado,
destruíram a colônia.
No final do século XIX as associações e
movimentos anarquistas cresciam cada vez mais, eles
se associavam através de centros de estudos, centros
culturais, escolas para alfabetização, grupos por
afinidades, etc. Muitas associações se ramificaram:
surgiram as associações dos sapateiros, vidraceiros,
tecelões, assim o anarquismo passou a ser “a ideia
mestra da luta de classes”. (RODRIGUES, 1984
apud DEMINICIUS e FILHO, 2006)
Neste período surgem os principais jornais
e periódicos anarquistas. O anarcossindicalismo
no Brasil desenvolve-se e em 1906 é realizado o
primeiro Congresso Operário Brasileiro. Deste
congresso resultou na COB (Confederação
Operária Brasileira) que colocava como seus
objetivos a defesa dos interesses dos trabalhadores,
o estudo e a divulgação dos meios de participação,
e a produção de um jornal intitulado A voz do
trabalhador com o intuito de reunir publicações
e informações acerca das questões operárias e
denunciar as condições de trabalho em todo o
país, neste jornal sob o pseudônimo de Isaias
Caminha, Lima Barreto era um dos colaboradores
(NASCIMENTO, 2010).
Os movimentos grevistas, tendo os
anarquistas como os principais idealizadores,
foram se desenvolvendo e em 1917 ocorre uma
greve geral envolvendo milhares de operários. De
longa duração, a greve é marcada por diversos
conflitos, confrontos com policiais e mortes. As
greves foram difundidas por todo o país, sendo
que no Rio de Janeiros cerca de cinquenta mil
trabalhadores cruzaram os braços.
A greve geral é, sem nenhuma dúvida, uma
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18. Dossiê Lima Barreto
Ideais anarquistas de Lima Barreto na obra Recordações do escrivão Isaías Caminha
Fabiana Nancy da Silva Araújo e Thiago Duarte de Oliveira
arma poderosa nas mãos do proletariado;
ela é ou pode ser um modo e a ocasião de
desencadear uma revolução social radical.
Entretanto, eu me pergunto se a ideia da
greve geral não fez mais mal do que bem
à causa da revolução. (MALATESTA,
1989, p. 107)
Os movimentos operários foram cada vez
mais se burocratizando, o Estado antes indiferente
às causas operárias passou a interferir através
de legislações reguladoras. A partir de 1919 os
partidos políticos também passam a interferir,
burocratizando ainda mais as associações e os
sindicatos. O processo capitalista no Brasil
e o aprofundamento das instituições estatais,
também contribuíram significativamente para o
enfraquecimento dos ideais anarquistas.
Lima Barreto: vida e obra
asceu em 13 de Maio de 1881, Afonso
N
Henriques de Lima Barreto, neto de uma negra
escrava liberta e de um português que nunca
reconheceu seu pai, sua mãe também era mulata.
Lima nasceu sobre um “signo ruim”, numa sextafeira 13 no dia de Nossa Senhora dos Martírios,
assim, continua BASTOS (2010) “o martírio
de Lima parece advir mais da época e local de
nascimento (a retrógada sociedade brasileira de fins
do século 19) que da data supostamente agourenta
em que por acaso se deu”.
O pai de Lima era tipógrafo e sua mãe
professora primaria, seu pai não media esforços
para sustentar os filhos trabalhando dia e noite, era
muito preocupado com a educação formal, já que
não conseguiu realizar seu sonho de ser medico
devido à necessidade de trabalhar para custear os
gastos com a família, se esforçava para que seus
filhos, em especial seu primogênito Affonso,
se tornasse doutor e não passasse por todas as
humilhações e privações as quais passou.
ona Amália, mãe de Lima Barreto
D
morreu quando ele tinha apenas sete anos, vitima
de tuberculose. “A morte de Amália há de descer
como uma sombra no coração do filho mais velho.
Sombra que nunca mais se dissipará”. (BARBOSA,
2002, p. 50)
ima guardou pra sempre a imagem da
L
mãe morta, boa parte de sua revolta, violência e
descrença no mundo virá da imensa tristeza que
sempre o assombrará a partir desse triste episodio
de sua vida. Talvez pela vida dura sem os carinhos
de sua mãe e pelo peso de ser o irmão mais velho,
Lima Barreto sempre “reagira com extremada
violência, antes as injustiças do mundo e as
incompreensões das pessoas quo o cercam, com
violência às vezes desmedida e inconsequente”.
(BARBOSA, 2002, p. 61)
pós a morte de sua mãe vai para escola
A
pública, sendo sempre um aluno aplicado. Em 13
de Maio de 1888, dia do seu aniversario de sete
anos ocorreu a abolição da escravatura, fato esse
que passou despercebido, pois conforme Barbosa
(2002), sendo um morador do Rio de Janeiro
onde os escravos já rareavam, Lima Barreto nunca
conheceu um escravo e desta forma não imaginava
ser a escravidão uma “instituição vexatória”
de “aspectos hediondos”. Sempre bom aluno
e contando com o incentivo do seu pai, Lima
conquistou boas notas na escola unindo seu desejo
de estudar e o sonho do pai de vê-lo na Escola
Politécnica.
nfim em março de 1897, Affonso
E
Henriques Lima Barreto era estudante da Escola
Politécnica. Porém, era incapaz de se interessar
por assuntos que não gostava e cada vez mais,
foi mostrando que o fato de estudar na Escola
Politécnica dava-se mais pelo desejo de seu pai do
que por sua vontade, ele era um amante da filosofia
e não conseguia ocupar sua cabeça com teoremas e
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 12-28.
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19. Dossiê Lima Barreto
Ideais anarquistas de Lima Barreto na obra Recordações do escrivão Isaías Caminha
Fabiana Nancy da Silva Araújo e Thiago Duarte de Oliveira
conjugados, desta forma, e além das perseguições
sofridas por um dos professores e a loucura de
seu pai que o levou a se ver obrigado a assumir a
função de arrimo de família, não tardou para que
reprovasse em diversas matérias de exatas e fosse
obrigado a abandonar a Politécnica. Em 1903 após
prestar concurso público foi nomeado a um cargo
na Secretaria da Guerra.
Lima chega a fundar uma revista Floreal
a qual , permitia liberar ainda mais seus desejos
de ser escritor/jornalista, nesta revista chegou a
publicar dois capítulos do futuro livro Recordações
do escrivão Isaías Caminha. Porém a revista não
passa da quarta edição e tomado por sentimento
de tristeza e depressão, passa a buscar na bebida
alivio para seus tormentos.
esde a época da Politécnica, Lima Barreto
D
já demonstrava sua inclinação aos pensamentos
libertários e progressistas, havia sido colaborador
de um periódico chamado A Lanterna que se
intitulava de “órgão oficioso da mocidade de
nossas escolas superiores” (BARBOSA, 2002, p.
106), ali neste jornal já despejava sua revolta contra
as instituições, contra os professores e contra seus
colegas, dos quais, praticavam comportamentos
preconceituosos em relação a ele.
Consegue publicar sua primeira obra
literária Recordações... em Portugal devido a não ter
localizado no Brasil quem a quisesse publicar, a
partir daí, dado o conteúdo pessoal do livro e suas
referências a figuras importantes da cena jornalista
da época, seu caráter denunciante e desmoralizante
acerca dos acontecimentos e pessoas, Lima já
discriminado pela sua condição de mulato e pobre,
passa a ser também um autor não quisto.
omo já dito anteriormente, por volta de
C
1900 através dos imigrantes italianos, chega ao
país os ideais anarquistas, que contribuíram para o
inicio de publicações tanto de romances quanto de
contos com conteúdo social (BARBOSA, 2002).
Lima Barreto revelou simpatia pelo
anarquismo em vários dos seus artigos,
crônicas, romances e ensaios. Em Palavras
de um snob anarquista, publicado em
1913, em A Voz do trabalhador, tenta
mostrar plausibilidade dessa teoria política,
no contexto social brasileiro, contrário
aos grandes jornais, que a consideravam
um movimento alienígena, sem raízes na
‘cultura brasileira’. Entre os vários títulos
encontrados na biblioteca do autor,
destacam-se as obras de Hamon, Ethz
Bacher, Max Nordou, Malatesta, Elisée
Reclus e, principalmente, Kropotkin. Suas
fontes documentais dão conta da afinidade
de Lima Barreto com o pensamento
anarquista, através da utilização marcante
das chamadas linguagens negadoras:
paródia, ironia, sátira, etc. (DEMINICIS
e FILHO, 2006 p. 147)
Além de Recordações... Lima escreveu
simultaneamente Morte de M.J. Gonzaga de Sá e logo
adiante sua mais famosa obra O triste fim de Policarpo
Quaresma, segundo o documentário da TV Escola
Lima Barreto – Vida e obra, só a partir de seus escritos
é que a figura do pobre e do suburbano passa a
existir no espaço elegante e nobre da literatura. Nas
suas obras ele retrata temas como, preconceito,
discriminação das mulheres, ecologia, desfiguração
da paisagem, mostrando-se um escritor à frente do
seu tempo, de modo que nos dias atuais podemos
verificar facilmente a atualidade de suas obras.
Em 1911 seus três principais livros já estão
publicados, os problemas com a bebida aumentam
e assim pode-se traçar o começo de um declínio na
sua produção literária.
A falta de estimulo e a hostilidade do
ambiente, aliados ao forte complexo e
a uma serie de outros fatores, dos quais
não deve ser esquecido o da tragédia
doméstica, transformaria o adolescente
cheio de sonhos num pobre homem,
viciado no álcool, que lhe consome
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20. Dossiê Lima Barreto
Ideais anarquistas de Lima Barreto na obra Recordações do escrivão Isaías Caminha
Fabiana Nancy da Silva Araújo e Thiago Duarte de Oliveira
não somente a saúde, como em grande
parte lhe sacrifica a carreira de escritor.
(BARBOSA, 2002, p. 223)
O uso exagerado da bebida matou Lima
lentamente, passava dias nas ruas, não se alimentava,
não tardou a começar a apresentar sinais físicos de
seus abusos. (BARBOSA, 2002). Em 1914 ocorre
sua primeira internação num hospício por causa de
alucinações derivadas do excesso de bebidas.
Por volta de 1917 passa a contribuir
mais ainda com o movimento anarquista, seus
pensamentos libertários se expandiam, saiam cada
vez mais da obra literária e “embora sem participar
da ação direta, dá ao movimento, que cresce a
olhos vistos, o melhor do seu esforço de escritor e
jornalista” (BARBOSA, 2002, p. 268), o medo de
perder seu emprego público não o atormenta mais,
seus irmãos já eram adultos e trabalhavam tendo
possibilidades de participar do custeio da casa e
cuidar também de seu pai, há tempos, entregue a
loucura. Assim, seus anseios de participar da luta
social cresceram. Passa a denunciar tudo ferozmente,
contribui ainda mais para a imprensa anarquista.
Através desse sentimento de liberdade que o toma
entrega-se cada vez mais a bebida, é internado
novamente em 1919, continua contribuindo com
a imprensa operária e devido a suas insanidades, é
aposentado do serviço público.
Após a aposentadoria, passa a escrever
para diversos jornais: Careta, A.B.C., Hoje, Tio-Jornal
entre outros. “Nos últimos anos, como em toda a
vida, Lima Barreto permanece fiel à sua vocação
de escritor. Ao mesmo tempo em que luta para se
libertar do vicio que o degrada, agarra-se à literatura
como a um resto de náufrago” (BARBOSA, 2002,
p. 320).
Lima Barreto foi vencido pelo alcoolismo
e consequentemente pela doença, passou seus
últimos momentos em casa, recluso, sem poder
sair, sem poder praticar suas andanças pela cidade
nem compartilhar da companhia das pessoas
simples as quais tanto gostava. Morreu em 1° de
novembro de 1922 no seu quarto em meio aos
seus livros e suas últimas palavras foram perguntar
se seu pai estava bem, estava sentado abraçado a
uma revista francesa. Seu velório foi disputado
por “gente desconhecida dos subúrbios. Amigos
humildes.” (BARBOSA, 2002 p. 358)
No seu leito de moribundo, João
Henriques sentira que qualquer coisa
diferente ocorrera na casa. Como que
recobrando a razão por um instante,
perguntara à filha, no dia seguinte:
Que foi que aconteceu? Afonso morreu?
Evangelina procurou acalmá-lo, mas
em vão. João Henriques tinha os olhos
secos e duros. Logo depois, entrava em
agonia. Nada mais restava a esperar...
Morreu quarenta e oito horas depois do
filho. Foi enterrado na mesma campa. E,
no túmulo humilde, eles repousam para
sempre, novamente unidos, na morte
como na vida. (BARBOSA, 2002, p. 360)
Ideais anarquistas na obra Recordações do
escrivão Isaías Caminha
Tendo em vista que os ideais básicos
da anarquia, conforme aqui conceituado, seja a
liberdade individual como garantia indispensável
para qualquer sociedade, e que muitos pensadores
do anarquismo são aguerridos e munidos de
críticas contra o status quo, alguns até mesmo
com o pensamento de que se é preciso ‘destruir’
o estado atual da sociedade para se construir
um novo estado, e entendendo também Lima
Barreto como um artista literário dotado de tais
características (BEZERRA, 2010), podem-se
notar na obra Recordações do escrivão Isaías Caminha a
presença de algumas passagens que, ao nosso olhar,
mesmo que sutilmente, perpassa pelas questões
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21. Dossiê Lima Barreto
Ideais anarquistas de Lima Barreto na obra Recordações do escrivão Isaías Caminha
Fabiana Nancy da Silva Araújo e Thiago Duarte de Oliveira
anarquistas. Em alguns trechos Lima Barreto, na
voz da personagem Isaías Caminha, deixa claro
seu pensamento de inconformismo perante
as injustiças que ele presencia, algumas vezes
justificando suas causas pelas relações exacerbadas
de poder, rebeldia às leis e traços de personalidade
que demonstram forte senso crítico.
Outra característica importante a ser
observada na obra, conforme explorado por
Bezerra (2010, p. 90), é a forma literária do autor.
Segundo ela,
é necessário mostrar (…) [que] as ideias
anarquistas e os problemas sociais da
jovem República, foram filtrados pela
visão do artista e se configuram na
estrutura narrativa de sua obra, tornandose muito mais relevantes como elementos
estéticos do que como simples fatos
sociais.
Bezerra (2010, p. 93) também afirma que
essa liberdade, essa rebeldia diante das leis,
é um traço recorrente na obra de Lima
Barreto, provavelmente consequência de
sua simpatia pelas ideias anarquistas. Essa
atitude não se limita à estética, como já
se observa; trilha praticamente toda a vida
do artista e acaba por se refletir em sua
obra, principalmente em Recordações do
escrivão Isaías Caminha.
Lima Barreto inicia sua narrativa observando
como foi a infância de Isaías Caminha. Ele se
tornou um homem intelectualizando, comparando
a simplicidade de sua mãe, sendo que esta não
conseguia explicar as grandes coisas do mundo,
com o sacerdócio e bom manejo das palavras de
seu pai, dando a causa dessa característica como
sendo os estudos. Seu pai também lhe contara certa
vez sobre as aventuras do grande homem que fora
Napoleão, arregalando-se os olhos e admirando-se
pela postura desse grande guerreiro.
Com a ideia de se tornar um homem
também intelectualizado, e movido também por
um senso competitivo contra seu amigo de sala,
menos intelectualizado, mas que se deu bem indo
estudar no Rio de Janeiro, Isaías pede conselho
a algumas pessoas, dentre elas o Tio Valentim.
Importante ressaltar que o Tio Valentim era um
antigo militante do Partido Liberal, ele sempre
contava ao Isaías suas “façanhas, bravatas
portentosas, levadas a cabo, pelos tempos que
fora, nas eleições, esteio ao Partido Liberal”
BARRETO (2010, p. 72). O Partido Liberal foi
um partido político brasileiro do Período Imperial,
tinha como bandeira a não simpatização do regime
absolutista. Eram contrários às ideias do Partido
Conservador no modo de lidar com a realidade
social. Embora defendendo o monarquismo, foi
umas das primeiras instituições contrárias às ideias
absolutistas centralizadoras e conservadoras do
poder nacional. É interessante notar também que,
de acordo com Barbosa (2002), o pai de Lima
Barreto era um dos colaboradores do Partido
Liberal. Há esta evidência de que o Tio Valentim
seria a figura do pai de Lima Barreto, mas que na
narrativa se tornou o tio de Isaías.
Resolvendo tentar a vida no Rio, Isaías
embarca no trem, onde sofre seu primeiro ato
de preconceito. Sem saber exatamente a causa,
se indigna com a situação, causando-lhe espanto
e iniciando suas críticas posteriores. Lá conhece
Laje da Silva, que será importante em sua estadia
no Rio. Este o convida para os lazeres que a vida
carioca pode proporcionar.
No botequim do teatro, Raul Gusmão
pronuncia uma frase que fica marcada na mente de
Isaías, uma frase que demonstra certa inquietude
ante o rebuscamento efêmero das castas mais altas
em prol de uma liberdade que só se encontra na
Natureza:
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22. Dossiê Lima Barreto
Ideais anarquistas de Lima Barreto na obra Recordações do escrivão Isaías Caminha
Fabiana Nancy da Silva Araújo e Thiago Duarte de Oliveira
Os antigos bebiam pérolas dissolvidas em
vinagre. Não eram lá de gosto muito fino
e a extravagância nada significativa. Eu
bebo a verde esmeralda sadia, emblema
da mater Natureza, num copo de xerez.
Em vez de pérola mórbida, doença de
um marisco, no acre vinagre, bebo o
verde dos prados, a magnífica coma das
palmeiras, o perfume das flores, tudo que
o verde lembra da grande mãe augusta!
(BARRETO, 2010, p. 86)
Após alguns acontecimentos, dentre eles,
a ida ao tribunal em busca do doutor Castro e o
encontro com o Senador Carvalho no bonde, Isaías
demostra apreço pelo que ele idealiza que seja a
profissão de legislador, homens enormemente
capacitados em julgar e determinar leis que sejam
úteis e benéficas para todos. Posteriormente se
indigna com a frieza e indiferença desses homens
em seus ofícios e ante os problemas sociais que
eles lidam todos os dias.
Conhece então o doutor Ivã Gregoróvitch
Rostóloff, personagem que terá importância na
narrativa. Gregoróvitch na história é um jornalista
amigo de Laje da Silva. Em nota de rodapé da edição
utilizada neste trabalho (BARRETO, 2010, p. 100,
nota 21), este jornalista na vida real corresponderia
ao Mario Cattaruzza, jornalista italiano radicado no
Brasil e que fundou, “junto com Vitalino Rotteline,
o jornal anarquista Il Fanfula, fechado pela polícia
no ano seguinte”.
Em determinado momento, após esse
encontro e estando sozinho subindo a rua, se sente
de todo indiferente ante dois fatos. O primeiro a
indiferença diante das vitrinas das lojas, onde
criticou em seus pensamentos a petulância e a
efemeridade dos artigos à venda:
(…) As botinas, os chapéus petulantes,
o linho das roupas brancas, as gravatas
ligeiras, pareciam-me dizer: ‘Vesteme, ó idiota! nós somos a civilização, a
honestidade, a consideração, a beleza e
o saber. Sem nós não há nada disso; nós
somos, além de tudo, a majestade e o
domínio!’ (BARRETO, 2010, p. 103)
A segunda, a passagem do exército pela rua,
como demonstrado do seguinte trecho, também
se faz como uma característica que demonstra
fortemente a presença de um pensamento
anarquista do autor no sentido de ser indiferente
ante as forças armadas como forma de estabelecer
relações de poder:
Era talvez a primeira vez que eu vi a
força armada do meu país. Dela, só tinha
até então vagas notícias. Uma, quando
encontrei, num portal de uma venda,
semiembriagado civil e militar, um velho
soldado; a outra, quando vi a viúva do
general Bernardes receber na Coletoria
um conto e tanto de pensões e vários
títulos, que lhe deixara o marido, um
plácido general que envelhecera em várias
comissões pacíficas e bem retribuídas…
O batalhão passou de todo; e até a
própria bandeira que passara me deixou
perfeitamente indiferente… (BARRETO,
2010, p. 104)
Conforme vai decorrendo a história, após
as tentativas frustradas de encontrar o doutor
Castro, e no receio de acabar seu dinheiro, Isaías,
ao conversar com Laje da Silva, questiona sobre
o que é o jogo do bicho. Laje então, pelo diálogo
travado, se posiciona contra a forma da polícia agir,
julgando-a como executora de vinganças. A polícia
havia lhe pregado uma cilada, colocando notas
falsas em seu chapéu. Sua posição fica clara de
denúncia contra as autoridades, conforme diálogo
a seguir:
Isaías: – Foi preso?
Laje: – Preso, só?! Fui esbordoado, metido
numa enxovia, gastei dinheiro… O diabo!
E sabe por que tudo isso?
Isaías: – Não.
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 12-28.
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23. Dossiê Lima Barreto
Ideais anarquistas de Lima Barreto na obra Recordações do escrivão Isaías Caminha
Fabiana Nancy da Silva Araújo e Thiago Duarte de Oliveira
Laje: – Porque eu apoiava a oposição lá
no meu município… É isto a polícia, no
Brasil… Eu posso falar: sou brasileiro…
A polícia no Brasil só serve para exercer
vinganças, e mais nada. (BARRETO,
2010, p. 115)
Após descobrir em uma notícia que o
doutor Castro, que tanto ele procurava, não estaria
mais na cidade, começa a despertar em Isaías
um enorme sentimento de revolta contra todos
os joguetes que os homens poderosos fazem as
pessoas humildes passarem. Barreto (2010, p. 122)
cita um trecho bastante significativo e que vão ao
encontro dos ideais anarquistas, é um momento
que sofre um safanão de um sujeito e começa a
refletir:
Esse incidente fez-me voltar de novo
aos meus pensamentos amargos, ao ódio
já sopitado, ao sentimento de opressão
da sociedade inteira… Até hoje não me
esqueci desse episódio insignificante
que veio reacender na minha alma o
desejo feroz de reinvindicação. Senti-me
humilhado, esmagado, enfraquecido por
uma vida de estudo, a servir de joguete,
de irrisão a esses poderosos todos por aí.
Hoje que sou um tanto letrado sei que
Stendhal dissera que são esses momentos
que fazem os Robespierres. O nome não
me veio à memória, mas foi isso que eu
desejei chegar a ser um dia.
de vingança pelo que estaria prestes a acontecer.
Naquele dia, quebrou sua rotina, o que
teria provocado posteriormente a intimação por
suspeita de roubo. Saiu de casa mais cedo na
tentativa frustrada de encontrar o doutor Castro.
Na volta, foi almoçar com seu amigo Gregoróvitch.
Nesse encontro, passou a conhecer-lhe mais.
Gregoróvitch “tinha cinqüenta anos e sentia-se
absolutamente sem pátria, livre de todas as tiranias
morais e psicológicas que essa nação contém em
si” (BARRETO, 2010, p. 124). Essa passagem
demonstra a característica anarquista do amigo de
Isaías. Em outro trecho, Isaías, comentando sua
admiração pelo recente amigo, cita que ele fezlhe “notar que era preciso difundir na consciência
coletiva um ideal de força, de vigor, de violência
mesmo, destinado a corrigir a doçura nativa de
todos nós” (BARRETO, 2010, p. 125). Podemos
notar que, a partir daqui, muitas das ideias libertárias
de Isaías foram de todo incitadas pelas conversas
com Gregoróvitch.
A figura de Robespierre aparece aqui como
sendo uma imagem a ser atingida pelos anseios de
Isaías, uma figura de liderança em prol das causas
populares e que no cerne da Revolução Francesa
fora acusado de anarquista por Brissot e pelo
Diretório, conforme mencionado por Woodcock
(2002). Uma figura de inconformidade contra as
causas absolutistas e de luta pelos seus ideais.
Na delegacia, sofre um ato discriminatório
pela sua cor. Isaías, escrevendo essas memórias,
lembra-se com muita dor desse e de outros
acontecimentos e discerne os fatos que o levaram
a ter pensamentos de tais maneiras. Nessa
ocasião, ficou indignado ante o descompasso
que um homem, representante das autoridades e
do governo, do que tinha de certa forma poder
legitimado e que deveria ter consciência jurídica
de seus direitos, agirem dessa forma. Após uma
pequena discussão, sem motivos para isso, Isaías
é preso a mando do delegado, injustamente. Todo
seu pensamento de patriotismo, recém-erguido
por seu amigo, se desfaz. Pensou ironicamente: “A
pátria!”.
Ao final do capítulo IV, em reflexões que
não deixa claro quem está falando, Lima Barreto ou
Isaías Caminha, deixa evidentes seus desejos atuais
Lima Barreto mistura reflexões pessoais
com as reflexões da personagem ao longo da obra.
Ele, enquanto Lima Barreto, critica os literatos
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 12-28.
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24. Dossiê Lima Barreto
Ideais anarquistas de Lima Barreto na obra Recordações do escrivão Isaías Caminha
Fabiana Nancy da Silva Araújo e Thiago Duarte de Oliveira
dos jornais. Justifica-se escrevendo para denunciar
os problemas porque passou e tenta inaugurar
uma nova forma de escrita, se desvencilhando
das normas padrões de beleza e se utilizando de
uma forma acessível para todos. Entre suas obras
favoritas, Barreto (2010, p. 137) menciona a obra
A Guerra e a Paz, de Tolstói, uma importante obra
em formato de romance que analisa as estruturas
aristocráticas russas.
Após ter saída da delegacia, Isaías, absorto
em pensamentos e reflexões, se demonstra injuriado
e encalacrado ante os acontecimentos, não consegue
se conformar com os acontecimentos recentes, não
entende porque ele, uma pessoa tão aplicada aos
estudos e com anseios morais tão nobres pudesse
sofre tantas injustiças daquela forma. “O que me
fazia combalido, o que me desanimava eram as
malhas de desdém, de escárnio, de condenação em
que me sentia preso”, “(...) na delegacia, na atitude
do delegado, numa frase meio dita, num olhar, eu
sentia que a gente que me cercava, me tinha numa
conta inferior” (BARRETO, 2010, p. 141) e
(...) Aquele meu fervor primeiro tinha
sido substituído por uma apatia superior
a mim. Tudo me parecia acima de minhas
forças, tudo me parecia impossível; e que
não era eu propriamente que não podia
fazer isso ou aquilo, mas eram todos os
outros que não queriam, contra a vontade
dos quais a minha era insuficiente e débil.
(BARRETO, 2010, p. 149).
Nota-se que a partir desse momento
começam a surgir no protagonista esses sentimentos
de inconformidade com o que está posto e
começa a ter insights de revoltas e pensamentos de
crítica ante o sistema. Posteriormente conhece o
Abelardo Leiva, do qual passa a ter muita afinidade
e admiração pelos seus pensamentos de poeta e
revolucionário. Em nota de rodapé:
A descrição e características físicas e da
personalidade de Leiva se aproxima da
de Luiz Edmundo que, na juventude,
freqüentava a mesma roda da Café
Papagaio, no centro do Rio, junto
com Lima Barreto. Os amigos de
Leiva reúnem características de outros
jovens iconoclastas, grupo apelidado
de ‘Esplendor dos amanuenses’, que
mesclavam ideias anarquistas e positivistas,
aos quais se associam também alguns
poetas simbolistas. (BARRETO, 2010, p.
150, nota 31)
A passagem a seguir sugere um perfil
anarcomunista do amigo de Isaías, munido de
ideias revolucionárias e socialistas:
Como revolucionário, dizia-se socialista
adiantado, apoiando-se nas prédicas e
brochuras do senhor Teixeira Mendes,
lendo também formidáveis folhetos de
capa vermelha, e era secretário do Centro
de Resistência dos Varredores de Rua.
Vivia pobremente, curtindo misérias e
lendo, entre duas refeições afastadas,
as suas obras prediletas e enchendo a
cidade com os longos passos de homem
de grandes pernas. (BARRETO, 2010, p.
151)
Em outras passagens onde Isaías Caminha
e seu amigo Leiva conversam, sempre fica claro a
presença de ideias revolucionárias e convergentes
aos tipos de anarquismo e, algumas vezes, o
socialismo. Em um diálogo travado entre Agostinho
e Leiva, Agostinho se admira e se questiona sobre
essa nova ordem social proposto por Leiva e este
com seu argumento demonstra que a realidade é
um espaço de exploração do homem da massa
pelo homem detentor do poder, alienando àqueles
uma falsa felicidade:
Agostinho: – Mas o senhor o que quer
é desordem, é anarquia, é extinção da
ordem social...
Leiva: – Mas é isso mesmo, não quero
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 12-28.
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25. Dossiê Lima Barreto
Ideais anarquistas de Lima Barreto na obra Recordações do escrivão Isaías Caminha
Fabiana Nancy da Silva Araújo e Thiago Duarte de Oliveira
outra coisa! Pois o senhor acha justo que
esses senhores gordos, que andam por aí,
gastem numa hora com as mulheres, com
as filhas e com as amantes, o que bastava
para fazer viver famílias inteiras? O senhor
não vê que a pátria não é mais do que a
exploração de uma minoria, ligada entre
si, estreitamente ligada, em virtude dessa
mesma exploração, e que domina fazendo
crer à massa que trabalha para a felicidade
dela? O público ainda não entrou nos
mistérios da religião da pátria... Ah!
quando ele entrar! (BARRETO, 2010, p.
156 e 157)
No trecho seguinte, Leiva, aos moldes
proposto por Proudhon apud Woodcock (2002),
no pensamento anarquista, na questão da não
necessidade do Estado para governar a vida social,
pois, tal como acontece com os outros seres sociais
da Natureza, a raça humana tende a uma vida social
tão natural quanto por si só, exclama:
Leiva: – Não há na natureza nada
que se pareça com a nossa sociedade
governada pelo Estado... Observe o
senhor que todas as sociedades animais
se governam por leis para as quais elas
não colaboraram, são como preexistentes
a elas, independentes de sua vontade; e só
nós inventamos esse absurdo de fazer leis
para nós mesmos – leis que, em última
análise, não são mais que a expressão da
vontade, dos caprichos, dos interesses de
uma minoria insignificante... No nosso
corpo há uma multidão de organismos,
todos eles se interdependem, mas vivem
autonomamente sem serem propriamente
governados por nenhum, e o equilíbrio se
faz por isso mesmo... O sistema solar...
Na natureza, todo o equilíbrio se obtém
pela ação livre de cada uma das forças
particulares...
(...)
Leiva: – Eu quero a confusão geral, para
que a ordem natural surja triunfante e
vitoriosa! (BARRETO, 2010, p. 157)
Quando Isaías já se encontra trabalhando
em O Globo, a convite de seu amigo Gregoróvitch,
sempre fica muito claro suas críticas ante a imprensa
e as relações de poder que se encontra dentro
e fora dela. Esse fato fica claro na passagem a
seguir, quando Leiva dialoga com Plínio de Andrade,
suposto pseudônimo do próprio Lima Barreto:
Plínio: – (…) A imprensa! Que quadrilha!
(…) Nada há nada tão parecido como o
pirata antigo e o jornalista moderno: a
mesma fraqueza de meios, servida por
uma coragem de salteador; conhecimentos
elementares do instrumento que
lançam mão e um olhar seguro, uma
adivinhação, um faro para achar a presa
e uma insensibilidade, uma ausência de
senso moral de toda a prova… E assim
dominam tudo, aterram, fazem que todas
as manifestações de nossa vida coletiva
dependam do assentimento e da sua
aprovação… Todos nós temos que nos
submeter a eles, adulá-los, chama-los
gênios, embora inteiramente os sintamos
ignorantes, parvos, imorais e bestas…
(…) E como eles aproveitam esse
poder que lhes dá a fatal estupidez das
multidões! (…) trabalham para a seleção
de mediocridades.
(…)
Plínio: – (…) hoje, é a mais tirânica
manifestação do capitalismo e a mais
terrível também… É um poder vago, sutil,
impessoal, que só poucas inteligências
podem colher-lhe a força e a essencial
ausência da mais elementar moralidade,
dos mais rudimentares sentimentos
de justiça e honestidade! São grandes
empresas, propriedade de venturosos
donos, destinadas a lhes dar o domínio
sobre as massas, em cuja linguagem
falam, e a cuja inferioridade mental vão
ao encontro, conduzindo os governos, os
caracteres para os seus desejos inferiores,
para os atrozes lucros burgueses… Não
é fácil a um indivíduo qualquer, pobre,
cheio de grandes ideias, fundar um que os
combata… Há necessidade de dinheiro;
são precisos, portanto, capitalistas que
determinem e imponham o que deve fazer
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 12-28.
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26. Dossiê Lima Barreto
Ideais anarquistas de Lima Barreto na obra Recordações do escrivão Isaías Caminha
Fabiana Nancy da Silva Araújo e Thiago Duarte de Oliveira
num jornal… (…) (BARRETO, 2010, p.
163, 164 e 165)
Em certo momento, Isaías faz uma crítica à
imprensa: “era a imprensa, a onipotente imprensa,
o quarto poder fora da Constituição!” (BARRETO,
2010, p. 193)
Questionando ainda mais, posteriormente,
as relações de poder dentro do jornal e suas
relações com os funcionários, adotando uma crítica
contrária às formas de subordinação e segregação,
Isaías afirma:
No jornal, o diretor é uma espécie de
senhor feudal a quem todos prestam
vassalagem e juramento de inteira
dependência: são seus homens. As suas
festas são festas do feudo a que todos
têm obrigação a se associar; os seus ódios
são ódios de suserano, que devem ser
compartilhados por todos os vassalos,
vilões ou não.
(…)
Não há repartição, casa de negócio em
que a hierarquia seja mais ferozmente
tirânica. O redator despreza o repórter;
o repórter, o revisor; este, por sua vez,
o tipógrafo, o impressor, os caixeiros do
balcão. A separação é a mais nítida possível
e o sentimento de superioridade, de uns
para os outros, é palpável, perfeitamente
palpável. O diretor é um deus inacessível,
caprichoso, espécie de Tupã ou de Júpiter
Tonante, cujo menor gesto faz todo o
jornal tremer. (BARRETO, 2010, p. 244)
No decorrer da história, acontece um
fato inusitado, a Guerra do Sapato, apontado
pelo comentarista dessa edição como sendo uma
paráfrase da Revolta Contra a Vacina Obrigatória
de 1904 (BARRETO, 2010, p. 265, nota 99).
Em determinada passagem, fica claro o furor
da sociedade contra as imposições do governo,
ressaltando o perfil anarquista de combate às leis e
autoridades. Isso fica claro nas duas passagens:
A irritação do espírito popular que eu
tinha observado na minha própria casa
não me fez pensar nem temer. Julguei-a
especial àqueles a quem tocava e nunca
que aquelas observações ingênuas se
tivessem transformado em grito de guerra,
em amuleto excitador para multidão toda.
(BARRETO, 2010, p. 263)
Todos se misturavam, afrontavam as
balas, unidos pela mesma irritação e pelo
mesmo ódio à polícia, onde uns viam o
seu inimigo natural e outros o Estado,
que não dava a felicidade, a riqueza e a
abundância. (BARRETO, 2010, p. 265)
Então, quase no fim do romance notamos
mais dois trechos que nos remetem aos ideais
anarquistas, a primeiro parafraseado os escritos
de Tolstói (BEZERRA, 2010) ao considerar o
impulso de luta pelo amor – e não pelo ódio –
e posteriormente no sentimento de Isaías de
que realmente apenas a oposição e o emprego
da violência, observados pela personagem Leiva
anteriormente, é capaz de tirar as pessoas de seus
estados alienados de bondade, que deixa cega todo
sentido de liberdade:
(…) fiquei animado, como ainda estou,
a contradizer tão malignas e infames
opiniões, seja em que terreno for, com
obras sentidas e pensadas, que imagino
ter força para realizá-la, não pelo talento,
que julgo não ser muito grande em mim,
mas pela sinceridade da minha revolta que
vem bem do Amor e não do Ódio, como
podem supor. (BARRETO, 2010, p. 288)
Na delegacia, a minha vontade era rir-me
de satisfação, de orgulho, de ter sentido
por fim que, no mundo, é preciso o
emprego da violência, do murro, do soco,
para impedir que os maus e os covardes
não nos esmaguem de todo.
Até ali, tinha sido eu a doçura em pessoa,
a bondade, a timidez e vi bem que não
podia, não devia e não queria ser mais
assim pelo resto de meus dias em fora.
Ria-me, pois tive vontade de rir-me, por
ter descoberto uma coisa que ninguém
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Ideais anarquistas de Lima Barreto na obra Recordações do escrivão Isaías Caminha
Fabiana Nancy da Silva Araújo e Thiago Duarte de Oliveira
ignora. Felizmente não foi tarde…
(BARRETO, 2010, p. 289).
Conclusão
Este trabalho teve como objetivo investigar
a presença de resquícios literários que se remetam
ou refletem o início da construção do pensamento
anarquista no Brasil no início do século XX, mais
especificamente na obra Recordações do escrivão Isaías
Caminha, de Lima Barreto. Embora suas obras
posteriores como Triste fim de Policarpo Quaresma, ou
mesmo os folhetins publicados por Lima Barreto
em jornais considerados anarquistas da época
apresentem elementos figurados do pensamento
anarquista mais evidente, tal como citado por
BEZERRA (2010), nota-se que na obra analisada
há, mesmo timidamente, trechos, ideias e passagens
que remetem ao pensamento libertário do autor na
obra analisada.
Começamos a conceituar os termos
anarquismo e anarquia, explanamos seu surgimento
e desenvolvimento na Europa, mostramos
brevemente como a anarquia se firmou no Brasil,
mostramos resumidamente a vida e obra de
Lima Barreto e suas relações com o anarquismo
e finalmente investigamos na obra Recordações do
escrivão Isaías Caminha a presença de passagens
que se remete ao pensamento anarquista de Lima
Barreto. É necessário, todavia, deixar claro que
não se pode afirmar categoricamente que Lima
Barreto era um anarquista, mas é evidente que, até
mesmo pelas circunstâncias históricas da época e
de sua história de vida (fortemente marcada pelo
preconceito e pela luta e crítica contra o status quo),
suas obras transparecem o pensamento libertário,
muitas vezes pela vertente do anarco-comunismo.
A obra analisada ainda é tímida nesse sentido, mas
julgamos rico tornar evidente em que momentos
da história de Isaías o anarquismo se mostra
presente.
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 12-28.
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28. Dossiê Lima Barreto
Ideais anarquistas de Lima Barreto na obra Recordações do escrivão Isaías Caminha
Fabiana Nancy da Silva Araújo e Thiago Duarte de Oliveira
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Volumes 1. Niterói, RJ: Editora da Universidade Federal Fluminense, 2006.
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RODRIGUES, Edgar. Quem tem medo do anarquismo? Rio de Janeiro, RJ: Editora Achiamé, 1992.
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Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 12-28.
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29. Dossiê Lima Barreto
Ideais anarquistas de Lima Barreto na obra Recordações do escrivão Isaías Caminha
Fabiana Nancy da Silva Araújo e Thiago Duarte de Oliveira
TV ESCOLA. Lima Barreto – Vida e obra. (Vídeo)
http://www.youtube.com/watch?v=YYM0i_7jAs4 Disponível em 17/11/2012.
WOODCOCK, George. História das idéias e movimentos anarquistas. Volume 1: A idéia. Porto
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Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 12-28.
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30. Dossiê Lima Barreto
Recordações do Escrivão Isaías Caminha: Uma
leitura da obra de Lima Barreto
Fernando Morgato de Oliveira
Yasmim Nóbrega de Alencar
Bacharelandos em Sociologia e Política na
Fundação Escola de Sociologia e Política
de São Paulo
Resumo
O presente trabalho tem por interesse apresentar
uma leitura onde se buscará elementos de um
pensamento hegemônico na cidade do Rio
de Janeiro no começo do século XX. A partir
de relatos contidos na obra do autori visa-se
identificar um modelo de pensamento que
predominava na cidade do Rio de Janeiro.
Focalizando os discursos que deslegitimavam
os “cidadãos” negros da “cidade maravilhosa”
na época, serão abordados assuntos como
preconceito, estigma social, marginalização,
entre outros.
Palavras -Chave
Pensamento; Linguagem; Dominação; Poder.
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 29-41.
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31. Dossiê Lima Barreto
Recordações do Escrivão Isaías Caminha: Uma leitura da obra de Lima Barreto
Fernando Morgato de Oliveira e Yasmim Nóbrega de Alencar
Lima Barreto: vida e obra
Lima Barreto nasceu no dia 13 de maio
de 1881, mulato, era filho de João Henriques e
Amália Augusta, ele tipógrafo e ela professora,
ambos mulatos. Não era de família abastada, mas
tinhas ligações com os nobres da época, como, por
exemplo, seu padrinho que era Visconde de Ouro
Preto e senador do Império. Lima sofre aos seis
anos de idade com a morte precoce de sua mãe.
Quando completa sete anos vê-se diante de um
novo período da história onde ocorre a Abolição
da escravatura no ano de 1888. Um ano depois
veria o universo político-social brasileiro alterar-se
drasticamente com a Proclamação da República, no
ano de 1889. Com mais uma reviravolta do destino
e no mesmo ano seu pai é demitido da Imprensa
Nacional em fevereiro, e em março, é nomeado
escriturário das Colônias de Alienados da Ilha do
Governador. Perceber-se-ia que dali em diante as
marcas desse período e o processo de infinitas
dificuldades de inserção do negro, discriminação
racial deixariam suas marcas na sociedade brasileira,
marcas estas que estariam presentes como centro
de discussão em quase todas as suas obras.
Já no início da sua carreira como literato
Lima nos presenteia suas obras onde utiliza seu
recurso realista autobiográfico. Ele dá inicio em
1900 aos registros do Diário Íntimo, onde colocará
suas impressões sobre êxodo rural, a cidade e a vida
urbana no Rio. Lima passa por inúmeros percalços,
mas quando começa a escrever reportagens no
Correio da Manhã inicia de modo regular sua
carreira no jornalismo literato brasileiro.
Em 1905, nasce a primeira versão de Clara dos
Anjos, este seria publicado somente postumamente,
na mesma época elabora os prefácios de dois de
seus romances: Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá e
Recordações do escrivão Isaias Caminha, livros estes que
terminaria simultaneamente, ainda que o primeiro
venha a ser publicado dez anos depois que o
segundo. A partir do lançamento de Recordações do
escrivão Isaías Caminha, em 1909, Lima teria, enfim,
seu nome mencionado na “high society” da imprensa
carioca.
Passa então a escrever e elaborar crônicas
e peças satíricas em quase todos os veículos
de comunicação de sua épocaii. Todos os seus
escritos continham um “sentimento humano e
uma compreensão admirável do fenômeno social”
(BARBOSA, Francisco de Assis. In: BARRETO,
Lima 2011, p. 37iii).
Segundo Barbosa (2011, p. 44), “não será
possível proceder-se à revisão da nossa história
republicana, do 15 de Novembro ao primeiro 5
de Julho (...), sem recorrer aos romances, contos,
crônicas e artigos de Lima Barreto”. Lima possui
uma escrita paradigmática, torna-se impossível,
muitas vezes, traçar uma distância entre as fronteiras
do real e do imaginário.
Novamente Francisco de Assis Barbosa
nos dá um ótimo exemplo do talento, da atuação
de Lima Barreto como escritor longínquo,
vanguardista que está para além dos ideais de
produção de sua época, ou como diria o próprio
Lima Barreto: das camuflagens do real. Ele o
distingue como um escritor:
Memorialista, a ponto de se tornar difícil,
senão impossível, delimitar em alguns
de seus romances e contos as fronteiras
da ficção e da realidade, ele anotou,
registrou, fixou, comentou ou criticou
todos os grandes acontecimentos da vida
republicana. Como num vasto painel
que se desdobra em sucessivos quadros,
lá estão os episódios culminantes da
insurreição antiflorianista, a campanha
contra a febre amarela, a ação de Rio
Branco no Itamaraty, o Governo de
Hermes da Fonseca, a participação do
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 29-41.
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32. Dossiê Lima Barreto
Recordações do Escrivão Isaías Caminha: Uma leitura da obra de Lima Barreto
Fernando Morgato de Oliveira e Yasmim Nóbrega de Alencar
Brasil na Primeira Guerra Mundial, o
advento do feminismo, as primeiras greves
operárias, a Semana da Arte Moderna, e o
delírio do futebol e do jogo do bicho, tudo
isso se mistura com os nossos ridículos
e as nossas misérias, mas também sem
esquecer a grandeza e a doçura do nosso
povo; a mania da ostentação, o vazio
intelectual e a ganância dos políticos; em
suma, toda a crise das classes dirigente,
que se agravaria de modo alarmante com
a queda do Império, isso de um lado; do
outro, a bondade inata do brasileiro, a
coragem do funcionário público humilde
que luta para educar os filhos, o milagre
da sobrevivência da população pobre do
subúrbio carioca, que, em meio da miséria,
canta e ri. (BARRETO, 2011, p. 45)
Lima Barreto enxergou isso com os olhos
de quem estava imergido naquele contexto sóciocultural e que não tinham nada de falso, fez sua
contribuição para o universo literário transmitindo
em seus livros o mais exuberante realismo nunca
antes visto ou transcrito por nenhum escritor de
sua época. Retratou sem pudor os políticos, a
maquinaria social, a manipulação da mídia e outras
dezenas de fatos que corroboraram para inúmeras
leituras e análises da época e do país. Através de
suas investidas, de simbologias descritas através de
seus personagens Lima alterou o plano narrativo e
de interpretação do real, traçando em seus escritos
um panorama da mentalidade burguesa que
durante os primeiros trinta anos de nossa república
predominou.
Esta é uma obra ímpar de valor histórico
incalculável. Não é a toa que Lima Barreto tornarse-á inclassificável após esta e outras publicações.
Suas análises sobrepõem-se ao plano comum,
romântico e sensorial da sua época; tem-se nos
escritos desta obra o ar de ausência da humanidade,
o tom cinza do pudor, a mancha da vergonha e
a tenaz realidade. O que temos então? Uma obra
de envergadura que transpõe os planos do real
e do imaginário, do eu lírico, onde a produção
se faz na concepção da semântica formaliv e não
da semântica enunciativav, como os “mandarins”
(escritores) da época de Lima Barreto faziam.
Introdução
Recordações do escrivão Isaías Caminha é o
primeiro romance de Lima Barreto lançado, em
1907, em folhetim na revista Florealvi, sendo
lançado em livro em 1909. Na obra o narrador
principal é Isaías Caminha, mulato, letrado, de
família humilde, mas não marginal, que almeja um
futuro e vê no Rio de Janeiro sua esperança de se
tornar alguém. Com o auxílio de Valentim (seu
Tio) e uma carta escrita pelo Coronel Belmiro para
o deputado Castro, Isaías vê/consegue sua saída
da vida no interior, nela está à porta de entrada
para o seu futuro como “Doutor” na capital. “A
minha situação no Rio estava garantida. Obteria
um emprego. Um dia pelos outros iria às aulas, e
todo fim de ano, durante seis, faria os exames, ao
fim dos quais seria doutor!” (BARRETO, 2011, p.
75). O que ele não esperava encontrar durante a sua
trajetória era inúmeros percalços que o levariam ao
limite da superação e da consciência humana.
Bosivii (2011, p. 10) , na introdução do
livro descreve a condição de Isaías como a “do
mestiço humilde, interiorano” que passa depois
a ser o “suburbano” enfrentando as dificuldades
de integração de vida na capital carioca que “se
moderniza a passos largos”.
O que é visto na obra é uma construção
minuciosa da vida humilde de um mestiço, seus
conflitos, suas angústias, as mazelas, as atrocidades
e as injustiças que observará na atmosfera tétrica
e marginalizada dos cortiços ao do centro urbano
pré-modernizado do Rio de Janeiro. Tudo isso
mostra uma realidade brutal, severa, mas que faz
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 1, 2013 , p. 29-41.
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Recordações do Escrivão Isaías Caminha: Uma leitura da obra de Lima Barreto
Fernando Morgato de Oliveira e Yasmim Nóbrega de Alencar
Isaías refletir sobre sua conduta e o leva a analisar
suas origens e as razões pelas quais o levaram até
o seu destino.
A tristeza, a compreensão e a desigualdade
de nível mental do meu meio familiar
agiram sobre mim de modo curioso:
deram-me anseios de inteligência. (...)
Foi com esses sentimentos que entrei
para o curso primário. Dediquei-me
açodadamente ao estudo. Brilhei, e
com o tempo foram-se desdobrando as
minhas primitivas noções sobre o saber.
Acenturam-se-me tendências; pus-me a
colimar glórias extraordinárias, sem lhes
avaliar ao certo significação e a utilidade.
Houve na minha alma um tumultuar de
desejos, de aspirações indefinidas. Para
mim era como se o mundo me estivesse
esperando para continuar a evoluir...
(BARRETO, 2011, p. 67-68).
Sendo ele filho de um padre, e sua mãe
escrava, Isaías já antes de nascer encontra-se numa
batalha e num dilema moral. O Pai pela profissão
e o peso do pecado da carne não pôde assumilo como filho socialmente, mas dá-lhe toda a
instrução e carinho que qualquer outro pai poderlhe-ia dar.
Pareceu-me que o seu encontro fora
rápido, o bastante para me dar nascimento.
Uma crise violenta do sexo fizera esquecer
os votos de seu sacerdócio, vencera a sua
vontade, mas, passada ela, viera, com o
arrependimento da quebra do seu voto, a
dor inqualificável de não poder confessar
sua partenidade.
Ele amou-me sempre, talvez me quisesse
mais por causa das condições que
envolviam o meu nascimento. Em público
olhava-me de soslaio, media as carícias,
esforlava-se por fazê-las banais; em casa,
porém, quando não havia testemunhas,
beijava-me e afagava-me com transporte.
(BARRETO, 2011, p. 67-68).
A mãe, por sua condição humilde e
miserável, nada pôde fazer pelo filho senão apoiálo. Sua vida pacata e “burguesa” de algum modo
mostrar-lhe-ia que fora dos confins do interior,
da cidadezinha, sua condição não passaria de uma
mera negação da sua própria identidade; para se
compreender como esta descontrução se dá é
preciso entender a linguagem, e como através
dela construímos as formas socialmente aceitas de
identidade.
Frantz Fanon, em seu livro Pele Negra
Mascaras Brancas, apresenta como a linguagem
determina as formas de identidades estabelecidas
socialmente.
Na linguagem está a promessa do
reconhecimento; dominar a linguagem,
um certo idioma, é assumir a identidade
da cultura. Esta promessa não se cumpre,
todavia, quando vivenciada pelos negros.
Mesmo quando o idioma é “dominado”,
resulta a ilegitimidade (FANON, 2008, p.
15).
Isaías acredita nesta legitimidade do ser
letrado e parte para a cidade com a esperança de
conquistar seu lugar ao Sol. Da saída do interior
até a chegada à capital Isaías enfrentará inúmeros
conflitos, dos quais nem a sua inteligência,
aguçada e voraz, conseguirá de imediato decifrálos. Ao chegar à capital demorará a perceber que
sua estadia além de não ser bem quista por uns,
será anulada por outros. “O contraste feriu-me,
e com os olhares que os presentes me lançaram,
mais cresceu a minha indignação. Curti durante
segundos uma raiva muda, e por pouco ela não
rebentou em pranto.” (BARRETO, 2011, p. 80).
Mas, de certo modo, Isaías “enfrentará”
os problemas. Contudo, seus esforços, em grande
parte, serão em vão. Procurará exigir seus direitos
mesmo que para isso tenha que dormir no
“xilindró”; colocar-se-á, muitas vezes, na pele de
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Recordações do Escrivão Isaías Caminha: Uma leitura da obra de Lima Barreto
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outras pessoas, essas provações servirão ao nosso
protagonista como combustível para seguir em
frente, sempre avante, em busca de seu sonho.
Firmará alianças, terá inimigos, provará o doce
sabor da amizade e o ardor veneno da mentira e
da traição.
Contudo, para entendermos a situação de
Isaías no contexto apresentado na obra de Lima
Barreto, será preciso retornarmos um pouco no
tempo para que possamos compreender como
as disposições sociais e políticas tratadas na obra
ocorreram. Assim, damos ao leitor uma pequena
abordagem das transformações que se sussederam
e que deram molde ao pensamento apresentado
no livro. Deste modo, um breve levantamento
das transformações histórico-político-culturais
do período, assim como, dos conflitos que
desencadearam a Independência e a Abolição dos
escravos revelaria a tão sonhada “República”. A
importância de tal apresentação nos permite tratar
mais precisamente dos processos que se desdobram
sobre a personagem protagonista durante toda a
obra.
Os processos
República
sócio-políticos
na
pré
Os ares do Brasil pré-republicano eram,
naquele período, de mudança, pelo menos para
a elite que se iluminava, já há algum tempo,
com os “abomináveis princípios franceses” da
revolução e buscavam a Independência da colônia
com a metrópole. Esses homens ilustrados eram
“os estudantes que viajavam para o exterior,
completando seus estudos em Portugal ou na
França [e] voltavam imbuídos das novas ideias...”
(COSTA, 2010, p. 29) visando uma reforma
imediata, que devidos aos conflitos ideológicos,
ocorreriam paulatinamente. “Toda uma geração
fora educada nos princípios revolucionários que
os homens da Ilustração se tinham incumbido de
divulgar e a Revolução Francesa de pôr em prática”
(COSTA, 2010, p. 30).
Durante o período imperial um número
substancial de vertentes político-ideológicas
imergiu nas discussões dos grupos de repressão
contra o regime. Às vésperas da independência a
vertente que se destacava era o liberalismo. Neste
mesmo período discutia-se a ‘possibilidade de
um levante de escravos’, contudo, firmaram um
documento que garantia o direito de propriedade
dos senhores sobre seus servos: “‘Patriotas’ (...)
‘vossas propriedades, ainda as mais opugnantes ao
ideal de justiça, serão sagradas. O governo porá
meios de diminuir o mal, não o fará cessar pela
força’” (COSTA, 2010, p. 33). O Liberalismo
brasileiro conciliava com a religião e com a Igreja
Católica, constata-se tal dado a partir do número
expressivo de padres nos movimentos contra
hegemônicos, este processo recebeu o nome de
Revolução dos Padres.
Outra vertente apresentara-se no mesmo
período, o nacionalismo. Entretanto, esta não
consolidou-se devido a economia brasileira que era
ainda baseada essencialmente na exportação, tendo,
também, precárias suas formas de comunicação,
assim como, o limitado comércio interno que
dificultava as transições em toda sua extensão.
Tal nacionalismo expressava-se na forma de um
radical antiportuguesismo.
Todavia, existia uma dualidade, pois:
Aos olhos da população nativa mestiça,
a Independência significava sobretudo a
possibilidade de eliminar as restrições que
afastavam as pessoas de cor das posições
superiores, dos cargos administrativos,
do acesso à Universidade (...) e ao clero
superior. Abolir as diferenças de cor
branca, preta e parda, oferecer iguais
oportunidades a todos sem nenhuma
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Recordações do Escrivão Isaías Caminha: Uma leitura da obra de Lima Barreto
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restrição era o principal ideal das massas
mestiças que viam nos movimentos
revolucionários a oportunidade de
viverem em ‘igualdade e abundância’.
Para elas, a Independência configurava-se
como uma luta contra os brancos e seus
privilégios (COSTA, 2010, p. 36).
Contudo, Marins (1998), no livro História
da Vida Privada no Brasil, nos mostra que essa
“independência” tanto do povo negro, quanto dos
migrantes e imigrantes da época, teriam um custo
muito alto. Sua subordinação daria-se não mais
pelas garras do senhor (carrasco e desumano),
esta, agora, estruturariam-se a partir dos novos
logradouros e da “nova engenharia” que surgiriam
nesta suposta “independência”, as favelas.
Fim da escravidão. Migrações e imigrações.
A aurora do regime republicano dava-se
em meio a transformações demográficas
e sociais, que liberavam populações, e
franqueavam novos destinos geográficos
às esperanças de sobrevivência de muitos
dos velhos e novos brasileiros. (...) As
grandes cidades surgiam-no horizonte
como o espaço das novas possibilidades
de vida, do esquecimento das mazelas
do campo, da memória do cativeiro. (...)
somavam-se aos antigos escravos, forros
e brancos pobres que já inchavam as
cidades imperiais, e junto a eles também
aprenderiam a sobreviver na instabilidade
que marcaria suas vidas também em seu
novo habitat. (...) As elites emergentes
imputavam-se o dever de livrar o país do
que consideravam “atraso” (...) visível na
aparente confusão dos espaços urbanos,
povoados de ruas populosas e barulhentas,
de habitações superlotadas, de epidemia
que se alastravam com rapidez pelos
bairros, assolando continuamente as
grandes capitais litorâneas.
Acreditar na adjetivação que as intenções
normativas das elites atribuíam à aparência
das ruas e casas das antigas cidades,
herdadas da Colonia e do Império,
inviabiliza, entretanto, a possibilidade
de compreender essas cidades e as
experiências humanas, ali vividas em
seus múltiplos espaços, em uma de suas
maiores características: a instabilidade.
“Desordem” e “tumulto”eram justamente
as dimensões, muito eficientes, que grande
parte das populações urbanas brasileiras
encontravam para sua sobrevivência, para
seu agir social.
Casas e ruas fundiam-se numa dinâmica
plasmada e difusa, em que os limites
espaciais constituíam-se historicamente
ao sabor da ambição fundiária dos
proprietários e da complacência sonsa
das autoridades. O ‘desleixo’, (...) parecia
comandar a pratica (...). Neste aparente
desleixos esgueiravam-se as ‘aparentes’
desordens funcionais (...) em que
escravos, forros e seus descendentes,
miseráveis e remediados, logravam obter
mais facilmente as condições de sua
sobrevivência, e de seus próprios padrões
culturais e de sociabilidade. (MARINS,
1998, p. 132-133)
Darcy Ribeiro (1995), em seu livro O Povo
Brasileiro, complementa, o trecho citado acima,
explicando que esta deterioração urbana ocorreu
por muitas dessas pessoas que “levantaram” as
favelas, somente, para que fosse possível manter
seu trabalho. Caso contrário, seria impossível
trabalhar na capital tendo em vista a distância dela
para o campo. Casos adversos a esses também
surgiram, de modo que:
A própria população urbana, largada a
seu destino, encontra soluções para seus
maiores problemas. Soluções esdruxulas
é verdade, mas são as únicas que estão ao
seu alcance. Aprende a edificar favelas nas
morrarias mais íngremes fora todos os
regulamentos urbanísticos, mas que lhe
permitem viver juntos aos seus locais de
trabalho e conviver como comunidades
humanas regulares, estruturando uma
vida social intensa e orgulhosa de si.
(...) onde faltam morrarias, as favelas
se assentam no chão liso de áreas de
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