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Nº 318 –2 A 9 DE JUNHO DE 2010 –€ 2,95 (CONT.)
AS CONFISSÕES DA MULHER
QUE CRIOU SEXO EA CIDADE
A VIDA DE CANDACE BUSHNELL
ESTUDOS MOSTRAM QUE OS
BEBÉS TÊM SUPERPODERES
TELEPATIA E VISÃO ESPECIAL
SELECÇÃO LEVA NA MALA
4.110 GARRAFAS DE ÁGUA
COMO SE PREPARA O MUNDIAL
Oquintoaniversárioda
mortedolíderhistórico
doPCPassinala-seeste
mês. Nestafotoinédita,
tiradapelopróprio
Cunhalcomtripée
temporizador,está
abraçadoàfilhaAnita
O meu pai mandava-me livros de BD belga: traduzia os diálogos e colava-os por cima dos originais
Quando era miúda disse-lhe: ‘Pai, estás mais gordo’. No resto das férias, sempre que me via a olhar para
ele, fazia uma cara exagerada de inocente e punha-se a assobiar enquanto encolhia lentamente a barriga
Um dia, disse-me para me sentar na areia e construiu um incrível carro de corrida à minha volta
Destaque
49
O MEUPAI
TINHA SEMPRE
COCA-COLA
PARADAR
AOSNETOS
N
anoitede3deJaneirode1960,Ál-
varo Cunhalemais novepresos
políticosevadiram-sedoFortede
Peniche.Deregressoàclandesti-
nidade,após11anosdeprisão,o
líderhistóricocomunistaapaixonou-sepor
IsauraMoreira.Eletinha46anos,ela19.Pas-
sadosalgunsmeses,a25deDezembronas-
ceuasuaúnicafilha: AnaCunhal.
Afamíliapassouos meses seguintes em
váriascasasclandestinas.MasaeleiçãodeÁl-
varo Cunhal parasecretário-geral do Parti-
doComunistaPortuguês –cargovagodes-
deamortedeBento Gonçalves,em1942–,
levouoPCPaenviá-loparaMoscovo. Foiaí
queAnita–comoopaiatratava–passouos
primeirosanosdevida.Quandoocasalsese-
parou, em1966, IsauraMoreiraeafilhafo-
ram viver para Bucareste, na Roménia. Só
voltaramaPortugalapós o 25 deAbril.
AnaCunhal, 49 anos, nuncaquis daren-
trevistas.Vivehámuitotemponoestrangei-
roesóaceitoufalaragora,quandoestãopres-
tes aassinalar-se os cinco anos damorte de
ÁlvaroCunhal–a13deJunho–“porneces-
sidadedesepararaverdadedamentira”.Não
quis ser fotografada, revelar a cidade onde
viveoufalardosfilhos. Sódesiedoseupai:
“Jáqueseinsisteemfalardele,quepelome-
nos seconteaverdade.”
AnaCunhal.Cincoanosdepoisdamortedolíderhistóricodo
PCP,aúnicafilhadeÁlvaroCunhalfalapelaprimeiravezdopai
edosmomentosemfamília.Naspáginasseguintes,osamigos
recordamohomemqueconheceram.PorNunoTiagoPinto
AnaCunhal,aos19anos,
comopaiaassistirà
aberturadosJogos
OlímpicosdeMoscovo,
emJulhode1980
t
AKG/ATLÂNTICOPRESS
50 2 JUNHO 2010 SÁBADO
mõestinhamouvidodizerqueeuerafilhade
Álvaro Cunhalmas, como não tinhamacer-
teza,nãohesitavamemvirperguntar-me.To-
dos os dias, várias vezes pordia. Aobsessão
eratalqueeumentia-lhes só paramedeixa-
remempaz.Detestavaserumpontodecurio-
sidadesóporterumpaiconhecido.Aeuforia
colectivaincomodava-meaopontodeeufal-
taràsaulas. AEstufaFrianoParqueEduardo
VII era um bom sítio para estudar em paz.
Longedos“éverdadequeésafilhade…?”
Comoera ÁlvaroCunhal comopai?
Maravilhoso.Umserhumanofantástico.Foi
econtinuaaserumaverdadeirafontedeins-
piração do ponto de vistahumano. Pacien-
te. Indulgente. Eu era capaz de ir acampar
para o Algarve sem dar satisfações a nin-
guém. E os meus pais (que continuaram
sempre afalar um com o outro) preocupa-
díssimos,claro.Umdia,semqualquercons-
ciência da aflição deles, voltei para casa do
meupaicomamochilaàs costas. Qualquer
outro teria feito um escabeche. Ele, apesar
dos dias de calvário semsaberporonde eu
andava – mas calculando que teria levado
pouco dinheiro –, a primeira coisa que me
perguntoufoi:“Jáalmoçastefilhita?”Oimen-
so respeito queeutinhaporelevinhasem-
pre daminhaadmiração, nuncadasuaim-
posição, queerainexistente.
Serfilhadeumafiguramíticaeraumpesoou
uma responsabilidademuitogrande?
Houve quem acreditasse e mesmo insistis-
sequedeviaserumaresponsabilidade.Sem-
prerecuseiessepapel.Queriaserlivredeco-
meter erros na minha vida como qualquer
outrapessoa,semterdepassarporum“jul-
gamento público”. E consegui. Os queque-
riam fazer de mim um exemplo acabaram
por desistir. Afastei-me deles, deixando-os
sempontaporondepegar.
Aspessoasesperavam queseligasseaoPCP
porserfilha dosecretário-geral?
Nãovouespecularsobreoqueamaioriadas
pessoas esperava. Porquenão sei. Mas nun-
caouvininguémcriticarabertamenteofacto
de eunão me termetido napolítica. Talvez,
inicialmente, alguns camaradas mais próxi-
mosdomeupaitenhamimaginadoessece-
náriocomoóbvio…atémeteremconhecido
melhor.
Maschegou a estarligada aoPCP?
Nos anos de liceu passei como um cometa
pela União de Estudantes Comunistas. Não
me lembro porque entrei, mas lembro-me
porqueéquesaí.Oambientenaquelaépoca,
aindatãopróximadofrenesimdaRevolução
deAbril,acaboupordesencadeartensõesen-
Querecordaçõestemdoseupainaépocaem
quevivia em Bucareste?
Passei todas as férias de Verão com ele. Era
muito brincalhão, paciente, carinhoso… eu
eraumamaria-rapazquegostavadetreparàs
árvoresecavarburacosnaareiadapraia“para
chegar ao outro lado da terra”. Ele só dizia:
“Anita,põeochapéunacabeçaeocremepara
osolnos ombros. Olhaqueosolestámuito
forte.” Umavez disse-me parame sentarna
areiaeconstruiuumincrívelcarrodecorrida
àminhavolta.Pareciamesmoqueestavasen-
tadaládentro. Nemmexiaos dedos dos pés
para não perfurar a parte da frente. Depois,
enquanto eu não quis sair, ia-me trazendo
conchas paraeudecoraro“paineldeinstru-
mentos”. Aoutramaneiradeeuestarquieta
mais de30segundos eraquando elemede-
safiavaparaumapartidadexadrez.Nãoper-
diadepropósito parameajudaradesenvol-
veras faculdades de umbomjogador. Cada
vezqueperdiadizia-lhe:“Maisuma.”Eelefi-
cavaajogarmuitas “mais umas” até euaca-
barporganhar.
Eduranteorestodoano?
Recebiafrequentementegiríssimascaricatu-
ras degatos, queeleinventava, desenhavae
coloriaàmão. Gato de bicicleta, gato afazer
esqui, gato-bombeiro, gato-capitão de um
barco,gatodorminhocoacairdesono…Ohu-
mornessascaricaturaseraprecioso.Eletinha
umjeitãoparadesenhar,emboracostumas-
se dizer que aquilo eram “só uns bonecos”.
Mandava-me regularmente As Aventuras de
Sofia,umasériedelivros debandadesenha-
da belga que eu adorava e que só havia em
francês. O meu pai traduzia todos os diálo-
gosparaportuguês,ecolava-osporcimados
originais,bemrecortados,retocandooscon-
tornos. Mais tarde começou a enviar-me as
aventurasdeTintim,massemtraduções. Es-
tavanumaboaidade paraaprenderfrancês.
Eaprendibastante.
Construiuum
incrívelcarrode
corridaàminhavolta.
Etrazia-meconchinhas
paraeudecoraropainel
deinstrumentos
t
t
Comofoi a mudança para Portugal?
Sabíamos oqueseestavaapassarduranteo
25deAbrileeraevidentequeíamosvoltarao
nosso país. Sebemmelembro, porvoltade
Junho ou Julho de 1974, regressámos num
aviãocomcriançascujospaistinhamestado
foradePortugalduranteaclandestinidadee
compassageirosquenadatinhamavercon-
nosco.
Quaisasprincipaisdiferenças?
Falava-sedepolíticaportodoolado.OPaíses-
tavanumfrenesimpermanenteetodaagen-
tequeriaparticiparnessaaventura. Osliceus
transformaram-seemcamposdebatalhaen-
tre os queques, os MRPPs, os trotskistas, os
comunas,etc. OsoutrosalunosnoLiceuCa-
FOTOSD.R.
ÁlvaroCunhalnapraia,nadécada
de1930. AnaCunhal,em2007,
apintaraparededeumamigo
DESTAQUE
52 2 JUNHO 2010 SÁBADO
serra de Sintra, à Praia das Maçãs ou tentar
apanharo espectacularpôr-do-solno Guin-
cho. As conversas eramsempresobrecoisas
interessantesouentãosobrecomoeuestava
eoquetinhafeito. Desabafeimuitocomele,
que sempre foi um bom ouvinte. Dava-me
bonsconselhos,massemmecriticarnemim-
porasuaopinião.
Era um pai presente?
Semprequepossível,apesardascondições.
Éverdadequeeletinhaumsentidodehumor
finoeapurado?
Ele fazia-me sempre rir. Quando era muito
miúda, durante umas das nossas férias de
praia, olheiparaele emfato de banho e dis-
se-lhe:“Pai,estásmaisgordo.”Duranteores-
todas férias,semprequeolhavaparaele,ele
fazia uma cara exagerada de inocente e pu-
nha-se a assobiar enquanto encolhia lenta-
menteabarriga,atéeunotaredesataràsgar-
galhadas.
Dizem queelequandosezangava nunca gri-
tava nem sedescontrolava. Éverdade?
Sim.Podiaficardesgostoso,desapontadoou
indignado,masnuncalevantavaavoz.Lem-
bro-me de uma vez ter sido eu a levantar a
voz contra ele. Tinha uns 17 anos e aquilo
deveter-lhedoídoimenso.Eelesódissecom
uma voz baixa mas ferida: “Já viste como é
queestásafalarparaoteupai?”Sentiqueti-
nhacometidoumaincrívelinjustiça.Dei-lhe
logoumgrandeabraçoachorarderemorsos.
tremimealíder,queacharaque,como“filha
dodito-cujo”,eu“tinhaaobrigação”desatis-
fazercertoscritériosquenadacondiziamcom
apessoaqueeuera.Osermãoqueajovemjul-
gouserboaideiapregar-meresultounomeu
rápidoafastamento.Foiogolpefatal.Játinha
aversão ao fanatismo do lado direito. E ago-
racomessa, tinha-me apercebido que fana-
tismonãotinhapreferênciapartidária.Eque
indivíduosdessetiposemeteriamnaminha
vidaseeuosdeixasse.
Oseupaicontava-lhehistóriasdoquepassou
na clandestinidadeou na prisão?
Nunca. Só me contava essas histórias se eu
lhepedisse.Umdia,quandojáviviaemPor-
tugal,fuiaocinemacomunsamigosverum
filmede1973,chamadoPapillon.Acertaaltu-
ra,oSteveMcQueen,queestavadetidonuma
prisão numa ilha, calcula o movimento das
ondas do mar para escapar sem ser atirado
contraasrochas.Foidepoisdeverofilmeque
pediao meupaiparamecontarcomo tinha
fugido daprisão dePeniche. Deviater14ou
15 anos. Já tinha lido e ouvido falar sobre a
fuga, mas ahistóriacontadaporeledeu-me
essasensaçãodeviverumfilme.
AAnaviviacomamãe.Disse-sedurantemui-
tosanosqueoseupaimoravanumpaláciodo
partidona estrada doPaçodoLumiar.
Issoéumaficçãoquesóquemnãoconheceu
omeupaipodeacreditar.Elenuncairiaviver
paraumpalácio,nemqueoobrigassem.Mes-
mo quando lhe ofereciam privilégios recu-
sousempre. Vivianumacasamodesta, mas
arranjadacomgosto,nazonadeRiodeMou-
ro. Amobíliaerasimples ebaratamas boni-
ta. Tinhanasparedesquadrosmaravilhosos
do meuavô Avelino, desenhos meus efoto-
grafiasdosmeusavós,minhas,daminhatia
edosmeusprimos. Emcimadamesinhade
cabeceira,tinhafotografiasdaFernandaBar-
roso[asuasegundamulher].Nãoeramretra-
tos tirados por um fotógrafo num estúdio.
Emcasa,omeu
paitinhaum
laboratóriofotográfico.
Ensinou-metudooque
seisobrefotografiaantes
daeradigital
Eramfotosapretoebranco,tiradaserevela-
dasporeleouoferecidaspelairmã:gargalha-
das entre família, passeios à beira-mar, os
meusprimosnarelvadeumparque,euafa-
zercaretas…Naquelaépocaomeupaitinha
umapequenadivisão dacasatransformada
emlaboratóriofotográfico.Ensinou-metudo
oqueseisobrefotografiaantesdaeradigital.
Coleccionavalivros dearte. Gostavadearte-
sanato português. Cozinhavadeliciosos pe-
tiscos.Lavavaaroupadele(eaminha,quan-
doeupassavaofim-de-semanaemcasadele).
Nunca teve uma empregada, não por uma
questãodesegurançamas porumaquestão
deprincípio.
Dizia-se que ele a ia buscar com uma boina,
para disfarçara cabeleira branca...
Erasobretudoeuqueo“iabuscar”.Iatercom
eleaoCentrodeTrabalhodoPCPeeletenta-
vasairmaiscedoeíamosdarumavoltaatéà
O secretário-geral
do PCPtinha
uma enorme
adoração pela filha.
Aproveitava os
momentos livres
para passear
com ela pela
serra de Sintra
ou vero pôr-do-sol
na praia
do Guincho
LUSA
AKG/ATLÂNTICOPRESS
t
t
54 2 JUNHO 2010 SÁBADO
Sintra. Gostava do mar, do cheiro de mare-
sia,dosomdasondasedoassobiodovento.
E seestávamos porpertonãoperdiaaopor-
tunidadedeestarconnosco.
Eledissenumaentrevistaqueerabomdança-
rino.Algumavezoviudançar?
Não. Mas ouvi-o várias vezes fazer grandes
elogios às faculdades de dançarino do Mi-
chaelJackson.Sempreelogiouartistascomta-
lento.
EleachavaquetudooquevinhadosEstados
Unidoseramauouestavareceptivoaaspec-
tosda cultura americana?
Bebíamos Coca-Cola se nos apetecesse. Se
os netos estivessemdevisita,haviasempre
uma garrafa de dois litros no frigorífico e
mais umaou duas de reservanadespensa.
Apreciávamosumbomfilme,dosquaismui-
tos eram americanos. Gostávamos de Ste-
ven Spielberg, adorávamos os Simpsons.
Casei-me com um americano e o meu pai
gostavaimenso deleevice-versa.Vivemos
actualmentenosEstadosUnidos.Claroque
seopunhaapolíticasinvasivasemilitaristas.
E não gostava da faceta monopolizante do
sistemacapitalista.Masissonadatinhaaver
comoresto.Nacabeçadomeupaiascoisas
nuncaforama“pretoebranco”.Eraumho-
memde convicções, mas tinhaconsciência
dacomplexidadedas coisas.
O queaconteceu aoespóliodele? Ficou para
a família ou foi entregueaopartido?
Foi-meentregue.Deixou-metudooquetinha
dematerialeimaterial.Paraquemmedirari-
quezaapenas emvalormonetário,direique
não foinenhumafortuna. Mas paraquema
mediremvalorespiritual, emocionaleinte-
lectual, posso afirmarque herdeiumtesou-
rodeumvaloretamanhoinigualáveis.
Qual era a relaçãodelecom odinheiro?
Davatudooquetinha.Viviaegastavamuito
modestamente.
Como é que ele reagiu ao saber que ia ser
avô?
Apoiou-mecompletamente.
Eleera realmenteum avôbabado?
Avôepaibabado.Orgulhava-semuitodenós.
Dizia-me sempre: “Vou ter de ir buscar um
lençolparalimpartodaestababa”...umlen-
çonãochegaria.
Porqueéquedecidiu vivernoestrangeiro?
Numadasminhasviagensdemochilaàscos-
taspelaEuropadescobriacidadedeGante,na
Bélgica.Deviateruns18anos.Foiamoràpri-
meiravista.Lembro-medeterpensado:“Um
diavireiviverparaaqui”. Efui.
Em quepaísesviveu?
União Soviética, Roménia, Portugal, Bélgica
eEstadosUnidos.
Quegénerodecontactomantinham?
Escrevia-me.Telefonava-me.EuvinhaaPor-
tugalsemprequepodia.
Eleia visitar-vospara estarcom osnetos?
Éramos nós que o vínhamos visitar. Assim,
aproveitávamosparavisitarafamíliatodade
Lisboa. Ficou com eles duas ou três vezes.
Numa dessas vezes levou-os ao Centro Co-
mercialdeCascaisparacomerpipocas,ham-
búrguereseiraocinema.Umdia,quandoes-
tava só com a Fernanda [Barroso] e com o
maisnovo,omeupaipediuaonetoparade-
senharo quequeriaalmoçar. Depois prepa-
rou-lheopetiscotalequaleguardouprecio-
Umdiapediu
aonetopara
desenharoquequeria
almoçar.Depois
preparou-lheopetisco
eguardouodesenho
samenteo desenho, queestavamuito bom.
Maistardemostrava-o,orgulhoso.
Ondeéqueeleia passarférias?
DevezemquandoiaaMonteGordo.IaaLa-
gossódepassagemparaespreitarapraiada
DonaAna,dequesempregostou.
Eletransportouparaavidaem“liberdade”os
hábitosdosanosda clandestinidade?
Sóalguns.Masteveboasrazõesparaofazer.
Ninguémgostadeserreconhecidoeaborda-
domilvezespordia.Privacidadeéumarega-
liaparaquemquasenuncaatinha.
Eletinhaumaimagempúblicadeumhomem
duro. Era assim em privado?
Algumaspessoasconfundemdurocomcoe-
rente,responsável,íntegro,corajosoesince-
ro.Eletinhaumavisãoparaonossomundo.
Deutudooquetinhaeoquenãotinhapara
alcançar esse sonho. Nessa visão havia me-
nosinjustiça,maisigualdade,maisrespeito.
As pessoas podem ou não estar de acordo
comoqueelequeria– aliás,sempreparaos
outros e nuncaparasi–, mas daíadizerem
queeleeraumhomemduro… Nunca.Mui-
topelocontrário.
Eletinhamomentosdedescontracçãoouaté
ostemposlivreseram dedicadosà política?
Temposlivreseramtemposlivres.Desenha-
vae pintavaquando podia. Gostavade mú-
sicaclássica, de documentários sobre avida
selvagem,deliteratura,depasseiosàserrade
Álvaro Cunhal
enviava para
a filha caricaturas
de gatos
e banda
desenhada.
Em casa tinha
quadros seus,
do seu pai
e desenhos
da filha
e de um neto
RUIOLIVEIRA
AVANTE
t
DESTAQUE
56
A
30 de Abril de 1974, Álvaro Cu-
nhal recebeu o primeiro banho
demultidãoapós13anosdeexí-
lio, 11 de prisão e oito de clan-
destinidade. Tinha acabado de
desembarcar no aeroporto de Lisboa, vin-
do deParis. Erao último dos principais di-
rigentespolíticosaregressaraPortugalapós
o 25 de Abril. Emocionado, disse a Carlos
Brito:“Conseguisteumaboamobilização.”
Momentos depois estava a subir para um
carro de combate paraagradeceros aplau-
sos. Foi uma recepção apoteótica. Mas foi
tambémummomentobreve.Poucodepois
entrou numa espécie de semiclandestini-
dadequedurantedécadas manteveemse-
gredo tudo o que dizia respeito à sua vida
pessoal.
Umdosgrandesmistérioseraasuacasa.
O líder comunista aparecia em público,
mas poucos sabiam onde vivia. Nos pri-
meiros dias depois do seu regresso ficou
alojadonacasadeMariadasDoresMedei-
ros e Ivo Madeira. Depois, o Partido Co-
munista Português (PCP) arranjou-lhe
umacasanazonadeRio deMouro. Viveu
também perto dapraia– mas não se sabe
exactamenteonde. Disse-oàjornalistaCa-
tarina Pires numa entrevista para o livro
CincoConversascomÁlvaroCunhal: “Quan-
tas vezes não fui à praia logo cedo, antes
devirparaotrabalho. Vivianumsítioque
me permitia de passagem sair do carro e
iràpraiaeestaraliumbocado.” Nos anos
90 asuaresidênciaoficialeranaRuaSou-
saMartins,n.º17,emLisboa– queeraafi-
nal a casa da irmã e onde nunca terá vivi-
do. Só no fim da vida a sua morada nos
Olivais foi conhecida.
As deslocações também eram compli-
cadas. Mudava de carro entre um local e
outro por questões de segurança. “O País
esteve quase emguerracivil. O Álvaro era
DESTAQUE
NUNO TIAGO PINTO
amado,mastambémodiado”,recordaDo-
mingos Lopes, que foi secretário do líder
comunista quando ele era ministro sem
pastanoIIGovernoProvisório. “Conheci-
o nessa altura. Era mais baixo e mais bar-
rigudo do quepensava”, diz. “E mais des-
contraído também. Chamou-meaS. Ben-
to e perguntou-me se percebia alguma
coisade Direito. Respondi-lhe que estava
a acabar o curso e ele disse-me: ‘Não foi
issoqueperguntei. Pergunteisepercebias
alguma coisa de Direito [risos].’ Depois
quis saber se eu gostava de papéis. Res-
pondiquenemporissoeeleconcluiu: ‘En-
tão se calhar ficas aqui.’” Ficou.
NAQUELA ÉPOCA, AS reuniões do Conse-
lho de Ministros prolongavam-se pela
madrugada.Ossecretáriosficavamàespe-
ra do final. E foi numa dessas
ocasiões que Domingos Lopes
conheceuo “lado solidário” de
ÁlvaroCunhal.“Numadasnoi-
tes encomendámos comida
paraduaspessoas–masacabá-
mos por ficar uns quatro. Foi
quando o Álvaro apareceu parajantar. Ao
verquetínhamospoucacomida,disseque
já tinha jantado e que o Vasco Gonçalves
tinha pedido leitão e não sei que mais.
Poucodepoistocouotelefone.EradoCon-
selho de Ministros para saber se o Álvaro
já estava despachado porque tinha desci-
do paracomerconnosco.”
Por vezes, as reuniões de trabalho na
sededo PCP tambémduravamatédema-
ApósasreuniõesnoPCP,dormia
umashorasnosbelichese
passavaasuacamisaaferro
Consideravaoamordacompanheirauma“granderiqueza”.
Gostavadecozinharearrumavaopratoquandoacabavade
jantar.E nãodeixavaumasenhorasegurar-lheaporta
A vidade
Álvarona
intimidade
HISTÓRIA.A13DEJUNHOPASSAMCINCOANOSDAMORTEDECUNHAL
2 JUNHO 2010 SÁBADO
drugada. Nessas ocasiões, Álvaro Cunhal
nem iaacasa. Dormiaalgumas horas nos
beliches dos seguranças e até foi visto a
passaraferro aprópriacamisa. Aprendeu
afazertodas as tarefas domésticas duran-
te a clandestinidade. Manteve os hábitos
no exílio emMoscovo, onde, entre1961 e
1964, viveu num apartamento perto do
Álvaro Cunhal(1913-2005),fotografadona
entradadasededoPartidoComunistaPortuguês,
naRuaSoeiroPereiraGomes,em1981
Palácio dos Pioneiros com a companhei-
ra,IsauraMoreira,eafilharecém-nascida,
Ana. “Sempre que acabávamos de almo-
çar,oÁlvarolevantava-se,lavavaoseupra-
to e arrumava-o”, conta à SÁBADO Luísa
Basto, que na época estudava na capital
soviética.
A MULHER QUE AINDA em Moscovo gra-
vou a primeira versão de Avante Camara-
da tornou-sevisitahabitualdafamíliaCu-
nhal. O secretário-geral do PCP afeiçoou-
se a ela. Tanto que considerava Luísa sua
afilhada. Foiele, aliás, quemlhe escolheu
o pseudónimo quando elachegouaMos-
covo–oseuverdadeironomeéÚrsulaLo-
bato. Elavia-ocomoumpai. “Estavasem-
pre preocupado connosco, se estávamos
bem e se suportávamos o frio. Obrigava-
nos a limpar as solas dos sapatos para ti-
rarogeloeversetinhamburacos. E às ve-
zes tinham”, diz.
t
RUIOCHOA
PUB
DESTAQUE
58 2 JUNHO 2010 SÁBADO
OconvívioterminouquandoÁlvaroCu-
nhal e a companheira se separaram, por
volta de 1965. Isaura Moreira (que ainda
hoje é funcionária do PCP) e a filha, Ana,
mudaram-se para
Bucareste, na Romé-
nia. O secretário-ge-
ral do PCP dividia-se
entre Praga, Mosco-
voeParis. Massópor
questõesdetrabalho.
A sua cabeça estava
emBucareste. Passa-
va horas a desenhar
caricaturasdegatose
a traduzir As Aventu-
rasdeSofia,umaban-
da desenhada belga,
queenviavaparaafi-
lha. E reservava os
meses de Verão para
passarférias napraia
com ela.
FoinasededaRua
SoeiroPereiraGomes
que, nos primeiros
anos da década de
1980, o líder comu-
nista passou várias
vezes a véspera de
Natal. Fazia questão
de estar com os seguranças que ficavam
de serviço. “Estivemos lá com ele muitas
vezes. Jantávamos emcasaedepois íamos
látercomos miúdos”, recordaLuísaBas-
to. “À meia-noite comíamos umas fatias
douradas e umas gambas com eles. O Ál-
varo reconhecia a lealdade daqueles ho-
mens, que eram capazes de se pôr à fren-
te de uma bala por
ele”, diz João Fernan-
do, o companheiro de
Luísa Basto. “Mas
quando lá chegáva-
mos ele queria era sa-
ber dos miúdos. Brin-
cava com eles e quan-
do estavam cansados
ia deitá-los nos sofás.
De cinco emcinco mi-
nutosiaverseestavam
bem”,contaaafilhada
de Cunhal.
Emparalelo,manti-
nhaumcódigodecon-
duta que mesmo no
próprio partido era
vistocomodemasiado
rígido. “Não recebia
ofertas, a menos que
fossem consideradas
ofertas ao partido, a
quem competia deci-
dir o destino que lhes
dava. Não assistia ao
lançamento de livros
(...) para não dar a ideia de alguma prefe-
rência por parte do partido. Não aceitava,
obviamente, convites para almoçar nem
parajantaremcasadecamaradas paranão
parecer que era o partido a fazer distin-
ções. Mas podia aceitá-los de artistas ou
intelectuais amigos do partido, pois nes-
se caso entendia-os como trabalho políti-
co”, revelaCarlos Brito
em Álvaro Cunhal, Sete
Fôlegos do Combatente.
As sucessivas espe-
culações sobre os mis-
térios dasuavidaleva-
ram-no a revelar um
pouco de si numa en-
trevista a Joaquim Le-
tria,noprogramaDirec-
tíssimo,naRTP2,a15de
Novembro de 1978. Aí
disse levar uma vida
normal: “Pagoosmeus
impostos, desconto
para a Previdência, ga-
nhoumsaláriomensal,
como funcionário do
meu partido, de 7.533
escudos [que corres-
ponderiahojea517,77
euros], salário que é
igualparatodos os que
nele trabalham.”
No entanto, muitas
das suas despesas, como as deslocações e a
casaondevivia, eramsuportadas pelo PCP.
Até o fato de fazendainglesae agravatade
seda com que se apresentou no programa
tinhamsido oferecidas ao partido.
NÃOENRIQUECEU napolítica. “Eradeuma
integridadeincrível. Sefosseprecisotinha
umtratamento VIP e o Brejnevarranjava-
lhe umavião privado. Mas o que deixade
riqueza são os livros e as pinturas”, diz
Domingos Lopes. A fi-
lha, Ana Cunhal, con-
firma.“Davatudooque
tinha. Vivia e gastava
muitomodestamente”,
diz à SÁBADO.
Ana Cunhal regres-
soucomamãeaPortu-
gal no Verão de 1974.
FoiinscritanoLiceuCa-
mões, onde depressa
correu a notícia de que era filha do líder
comunista. Ananãogostavadeseralvoda
curiosidade dos colegas e chegou a faltar
às aulas. Naquelaépoca,osecretário-geral
doPCPtinhaumaagendapreenchida.Mas
não escondia a preocupação com a filha
aos mais próximos. “Ele tinha uma ado-
O edifício dos Olivais
onde o lídercomunista
viveu nos últimos anos
de vida; à direita, no
jardim do Torel
AS CASAS DE ÁLVARO CUNHAL
CONHECIDAS APÓS O 25 DE ABRIL
O LÍDER COMUNISTASEMPRE MANTEVE ASUA
MORADAEM SEGREDO. MESMO EM LIBERDADE
• Quandoregressou a Portugal ficou na
casa deMaria dasDoresMedeirose
IvoMadeira –um antigopontode
apoiodoPCP
• Maistarde,opartidoarranjou-lhe
uma casa na zona deRiodeMouro
• Numa entrevista nosanos90disse
queviveu pertoda praia,ondepara-
va a caminhodotrabalho
• Garantiu quemorava na Rua Sousa
Martins,nº17,em Lisboa –que
era a casa da irmã
• Sópertodofim da vida
a sua morada foi conhe-
cida: era na Rua de
Benguela,nosOlivais
Nunca tive
nenhum
amigo fascista.
Mas não sou
apenas amigo
de camaradas
do meu
partido. Sou-o
e sou capaz
de sê-lo de
pessoas que
têm opiniões
muito críticas
em relação a
concepções e
posições do
PCPe
naturalmente
às minhas
Cinco Conversas
com Álvaro Cunhal
1999
Aliança é coisa
que em
nenhumas
condições
usaria
Antena 1
Sem Margem
2 de Junho de 1981
t
t
LUSA
RUIOCHOA
60 2 JUNHO 2010 SÁBADO
raçãoenormepelaAnitaechegouapedir-
me para falar com ela porque estava
apreensivo”, recorda Helena Neves, ex-
membro do Comité
Centraldo Partido Co-
munistae que naépo-
ca era casada com o
chefe de gabinete de
Cunhal, Joaquim Gor-
jão Duarte. “Acho que
funcionou.” Domingos Lopes acrescenta:
“Chegueiaverlivros debandadesenhada
que ele fez para a filha.”
AnaiatercomopaiaoCentrodeTraba-
lhodoPCPeeletentavasairmaiscedopara
passearem,discretamente.Defendiaaomá-
ximo a sua privacidade.
Por várias vezes Álvaro
Cunhalrecusoumostrar
acasaefotografiasdein-
fância, como faziam os
líderes de outros parti-
dos. Gabava-se disso.
Foicomsurpresaque
decidiuquebraressare-
gra numa entrevista
conduzida por Carlos
Cruz, na RTP2, a 6 de
Novembrode1991. “Es-
távamosafalardosecre-
tismodasuavidaquan-
do ele abriu a bolsinha
pretaque traziasempre
e tirou uma fotografia
dafilhaedos netos”,re-
corda o apresentador à
SÁBADO.
A sua relação com
Fernanda Barroso foi
mantidaemsegredodu-
rante anos. Os dois te-
rão começado a namorar no fim da déca-
da de 70. Nos primeiros anos só os mais
próximos souberam da relação. “Ele sen-
tianecessidadedefalardelaefazia-o com
uns quantos camaradas com quem tinha
mais intimidade, mas sempre arranjando
uns certos pretextos detrabalho”,recorda
Carlos BritoemÁlvaroCunhal,SeteFôlegos
do Combatente. “Um dia (...) veio pergun-
tar-me se sabiase aFernandajátinhaido
àUniãoSoviética. Começavaassim: ‘Aque-
la camarada da DORL [Direcção da Orga-
nização Regional de Lisboa]...’ E eu, feito
manhoso, perguntava: ‘AMarília?’ Então
ele ládiziaruborizado: ‘Não, aFernanda.’
Sugeriquelhetelefonasse.Respondeuque
jálhetinhatelefonadonessediaenãoque-
ria insistir, senão o que é que as camara-
das dos telefones iampensar. Ora, játoda
a gente sabia dos telefonemas, que eram
comentados com sorrisos de simpatia.”
Mas nãoeramsó as telefonistas asaber
do romance. “Começámos a suspeitar
quandoela,queeradoMovimentoDemo-
crático das Mulheres, passou a aparecer
mais vezes naSoeiroPereiraGomes. O Ál-
varo era naturalmente cordial. Mas com
elaeramenos quandoestavamvárias mu-
lheres. E nós percebemos essas coisas”,
recorda Helena Neves.
Asuaatençãoaospormenores
era também o que atraía muitas
militantescomunistas.“Eramui-
to sedutore sempre atento. Uma
vez entrevistei-o parao Avante! e
ele reparou que estava a tremer.
Perguntou-melogooquesepassavaesees-
tava bem. Às vezes esse interesse era mal
interpretado”,lembraaantigamilitanteco-
munista.
ÁLVARO CUNHALe FernandaBarroso esti-
veram juntos mais de 20 anos. Faziam fé-
rias no Algarve, emMonteGordo. “Iapara
apraiacomo vai todaa
gente,iaemcabelo,por-
que gosto de apanhar
solnacabeça,semócu-
los”,disseaCatarinaPi-
res numa das entrevis-
tas para o livro Cinco
ConversascomÁlvaroCu-
nhal. “E como muitas
vezes fui para a praia
comumapessoapróxi-
ma, que gosta de apa-
nharconquilhas como
dedodopénaareiaaes-
tragar as unhas (...), eu
às vezes também apanhava conquilhas.”
Considerava o amor de Fernanda Barroso
“umagranderiqueza”davida.Naentrevis-
taaCarlosCruzafirmou:“Sechegasseàmi-
nhaidade e não amasse estavamorto.”
Cunhal tentava manterem
segredoonamoroecorava
quandofalava em Fernanda
HelenaNeves
foicasada
comochefe
degabinete
de Cunhal.
DomingosLopes
foisecretário
eresponsável
pelasRelações
Internacionais
doPCP
CarlosBritorecordaemlivroepisódios
passadoscomCunhaldurantemaisde30anos
Sou
apaixonado
porfutebol
como
magnífico
desporto e
espectáculo.
Em jovem,
joguei (...).
Havia até uma
contradição
entre a minha
orientação
política, de
extrema-
-esquerda, e o
metergolos...
porque eu era
ponta-direita
Diário deNotícias
21 de Dezembro
de 1996
Gostomuito
deiràscompras
TSF, GrandeJúri
17de Outubro de 1992
Ahomos-
sexualidade
é uma coisa
triste na
sociedade,
mesmo muito
triste, é uma
opinião que
eu tenho
RTP2, CarlosCruz
–Quarta-Feira
6 de Novembro
de 1991
t
t
FOTOSD.R.
NATÁLIAFERRAZ/CM
DESTAQUE
62 2 JUNHO 2010 SÁBADO
“Ele eramuito carinhoso comela”, con-
taUrbanoTavaresRodrigues,amigodolíder
histórico comunista. “E ela também. Era
umarelação muito bonita.” O casal jantou
várias vezes nacasadoescritor,quesalien-
ta o sentido de humor de Álvaro Cunhal.
“PubliqueiolivroAFlordaUtopia,querepre-
sentaas revoluções francesas de 1848 e de
Maiode1968.QuandooliaoÁlvaroeledis-
se:‘Émuitobonito,estámuitobemescrito,
masnãoconcordonadacomisso.Deviasera
terescritosobreoOutubrorusso.’”
No seulivro, Carlos Brito recordaoutra
situação, passada na
Checoslováquia, em
1967,antesdaconferên-
cia dos Partidos Comu-
nistas. Álvaro Cunhal
juntou-se ao grupo de
portugueses e, com ar
sério, disse: “Estive a
pensar que a nossa de-
legação não foi bem es-
colhida.” Os três que o
ouviampuseramlogoo
lugar à disposição. Foi
quando Cunhal obser-
vou, com um sorriso:
“Viemos paraumaCon-
ferênciadePartidos Co-
munistas da Europa,
mas afinal de nós os
quatro o único europeu
sou eu, o Manuel [Ro-
drigues daSilva] nasceu
no Brasil, a Cândida
[Ventura] em Moçam-
bique, o [Carlos] Brito
em Moçambique.”
Foiduranteas muitas
viagens quealguns companheiros depar-
tido conheceram melhor Álvaro Cunhal.
“Falávamos das coisas mais incríveis.
Lembro-me de que em Viena ele me fez
uma descrição deslumbrante dos dese-
nhosecaricaturasde[Pieter] Bruegel[pin-
torholandês do Renascimento]”, lembra
Domingos Lopes, que foi o responsável
pelas Relações Internacionais do PCP.
Foi também em Praga que Carlos Bri-
to descobriu o entusiasmo e os conheci-
mentos de Cunhal sobre a gastronomia
portuguesa. “Sobretudo em relação aos
nossos queijos e vinhos”, escreve no seu
livro. “Passámos um jantar, no hotel do
partido, afalar de queijos. (...) No diase-
guinte foi-nos servido um almoço só de
queijos.” JáCarlos Carvalhas garanteque
a cultura gastronómica de
Cunhaleramuito mais vasta:
“Semprequesaíamos emini-
ciativas partidárias ele sabia
exactamente o que se comia
em cada região.”
O CONHECIMENTOeratambémpassado à
prática. Alémdeapreciador,ÁlvaroCunhal
era bom cozinheiro. Carlos Carvalhas re-
corda um prato de “salsichas injectadas
com molho”. O próprio líder comunista
admitiu que faziauns óptimos pastéis de
bacalhau. Domingos Lopes lembra-se da
vez em que lhe ofereceu um pato e de
como Cunhal lhe des-
creveu ao pormenor
como o preparou: “Só
se queixou de ter tido
de o depenar.”
Normalmentealmo-
çavanacantinado par-
tido, na Soeiro Pereira
Gomes. Ia para a fila
como os restantes “ca-
maradas” e sentava-se
comoseutabuleiro. De
vez em quando fre-
quentavarestaurantes.
O da afilhada Luísa
Basto, o Forno de Cima, no Pragal, Alma-
da, eraumdeles. “Nemperguntavao que
havia. Comia o que vinha para a mesa. E
bebia um copo de vinho branco.”
Também gostava imenso de cinema.
“Adorava Ingmar Bergman, Visconti e
Tarkovsky. Mas também filmes america-
nos.TinhaumagrandeadmiraçãopeloPa-
drinho I e II e pelo Era uma vezna América,
No Verão ia para a praia de
Monte Gordo. Gostava de andar
ao sol e apanhava conquilhas
Asmulheresdavida
deCunhalnoseu
funeral: acompanheira
Fernanda,afilhaAna,
eairmãEugénia
OsfilmesdeCunhal
TINHA UMA VASTA CULTURA CINEMATOGRÁFI-
CA E ADMIRAVA PRODUÇÕES DE HOLLYWOOD
CHOVESOBREONOSSOAMOR
Ingmar Bergman, 1946
SENTIMENTO
Luchino Visconti, 1954
OS ASSASSINOS
Andrei Tarkovsky, 1958
ACONTECEU NO OESTE
Sergio Leone, 1968
O PADRINHO
Francis Ford Coppola, 1972
APOCALYPSENOW
Francis Ford Coppola, 1979
ERA UMA VEZNA AMÉRICA
Sergio Leone, 1984
Não sou bom
contadorde
anedotas, mas
conheço-as
e aprecio-as.
O humor
também
dá riqueza
e sal à vida
e às opiniões
Diário Insular
2 de Maio de 1999
Não perfilho
da ideia de
que o homem,
ao chegara
casa, se deva
sentara ver
na televisão o
futebol ou a ler
o jornal e diga
à mulher:
‘Traz-me um
copo de água
ou prepara e
serve o jantar.’
Num casal
é bonito
o homem
comparticipar
com a mulher
na vida
da casa
Diário deNotícias
11 de Fevereiro
de 1993
t
tFOTOSRICARDOPEREIRA
DESTAQUE
64 2 JUNHO 2010 SÁBADO
doSergioLeone.AtépeloApocalypseNow”,
diz Helena Neves, que teve longos deba-
tes comÁlvaro Cunhalsobre cinema. “Al-
gunscamaradastinhampreconceitospela
violência dos filmes americanos. Ele não.
Tinha uma perspectiva
muitomaisvasta.”Erafã
de Steven Spielberg e
WoodyAllen. E até gos-
tava da série de anima-
ção Os Simpsons.
Os últimos anos da
suavidaforampassados
noapartamentodosOli-
vais. A casa pertenceu a
JorgeAraújo, umdesta-
cadomilitantedoPorto,
membro do Comité
Central,quenosanos90
a doou ao PCP. Álvaro
Cunhal e FernandaBar-
roso mudaram-se para
lá no fim da década. É
umacasaespaçosa,com
cerca de 200 m2 e que
menos de um ano após a sua morte foi
ocupada por outro membro do PCP: tem
trêsquartos,umasala,umacozinhaeuma
pequena divisão que servia de escritório.
Poucos fora do partido lá entraram.
JUDITE DE SOUSA foi a única jornalista
que subiuao nono andardaqueleprédio
na Rua de Benguela para a que viria a ser
a última entrevista televisiva de Álvaro
Cunhal. “A única coisa que ele me pediu
foidiscrição emrelação
a imagens no interior
da casa”, diz a jornalis-
ta da RTP. “Entrámos
directamenteparaasala
e a entrevista foi feita
numamesadepinho. A
umcantotinhaumape-
quena mesa de apoio
comfotografias dafilha
edos netos eumapare-
de com quadros que
julgo serem dele.”
Foinaqueleescritório
queescreveuosúltimos
livros. Fazia-oàmão. Na
fase final da vida ditava
para a secretária, Olga
Constança. Urbano Ta-
vares Rodrigues era dos poucos que po-
diam ver os manuscritos antes de serem
publicados. “Às vezes sugeria alterações,
masnamaiorpartedasvezesdeixavacomo
estava”, recorda.
A maioria das pessoas mais próximas
do líder comunista estava ligada ao PCP.
Álvaro Cunhal chegou a dizer que nunca
teve nenhum amigo fascista. Mas manti-
nha relações de amizade com alguns dos
seus críticos eex-companheiros – excepto
comaqueles que o criticaramempúblico,
oqueconsideravaumatraiçãopessoal.He-
lenaNeves é umexemplo: “Umdiaestava
numaconsultade oftalmologiaquando o
médicomedissequeoÁlvaroestavaláfora.
Tinhasaído do partido eacheiqueelenão
ia falar-me. Mas quando saí ele abraçou-
me e beijou-me e à minha filha. Fez uma
grande festa. Mais tarde, quando acabeio
mestrado,telefonou-meadarosparabéns.
E enviou-me um telegrama que vai ficar
paraos meus netos.” A professorauniver-
sitária tem uma explicação. “Quando saí
do PCP li uma carta no Comité Central e
não volteiafalar disso naimprensa.”
Afastado da política activa, Álvaro Cu-
nhal pôde dedicar-se à
pinturaeàescrita. Mas
também à educação
dos mais novos. “Um
dia a minha filha teve
defazerumtrabalhode
grupo sobre o 25 de
Abril e ele aceitou aju-
dar”,contaDoraCarva-
lho, a porteira do pré-
dio. “Foram cinco me-
ninas lá para casa e
durante mais de uma hora ele explicou-
lhes tudo. As miúdas vieram encantadas.
E tiveram Excelente.”
Álvaro Cunhalnão faziavidade bairro.
Só saía de casa para apanhar um táxi. Era
FernandaBarroso,quemorreuumanode-
pois dele, em 2006, quem ia à mercearia
que ficano bloco de apartamen-
tos comprar os produtos do dia.
Porvezes,traziaparacasaalguns
bolos. Olídercomunistanão. Cu-
nhalresguardava-seaomáximo.
Cumprimentava educadamente
todos os vizinhos e,mesmocom
quase 90 anos, mantinha o charme que
lhe foi reconhecido durante toda a vida.
Numa das últimas vezes que saiu de casa
sozinho,cruzou-secomavizinhadolado,
Sofia Pereira. Desceram juntos no eleva-
dore,quandoamulherseantecipouequis
abrir-lhe a porta, Álvaro Cunhal lançou:
“Minhasenhora,umasenhoranãomese-
gura a porta.”
ÁlvaroCunhalerafãdeSteven
SpielbergeWoodyAllen.
EgostavadasérieOsSimpsons
Álvaro Cunhal teve
um tratamento VIP
na União Soviética.
Se precisasse,
Brejnevarranjava-
-lhe um avião
privado. Mas não
enriqueceu na
política
Eu também
fui um grande
fumador,
agora não
fumo. Mas
também fumei
muito. Acho
que é um
disparate.
[Fumei]
muitos,
muitos. De
mata-ratos
a outros
Antena 1
Sem Margem
2 de Junho de 1981
Admiti não
acordarda
anestesia ou
morrerem
consequência
da operação.
Testamento
não fiz. Mas
deixei últimas
vontades.
Estive uma
noite inteira a
escrever
RTP-2, CarlosCruz–
Quarta-Feira
6 de Novembro
de 1991
Amorsem sexo
nãochega
a seramor.
Esexosem
amorésexo
bem pobre
Cinco Conversas
com Álvaro Cunhal
1999
t
AFPAKG/ATLÂNTICOPRESS

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Ana Cunhal recorda o pai Álvaro Cunhal em entrevista rara

  • 1. Nº 318 –2 A 9 DE JUNHO DE 2010 –€ 2,95 (CONT.) AS CONFISSÕES DA MULHER QUE CRIOU SEXO EA CIDADE A VIDA DE CANDACE BUSHNELL ESTUDOS MOSTRAM QUE OS BEBÉS TÊM SUPERPODERES TELEPATIA E VISÃO ESPECIAL SELECÇÃO LEVA NA MALA 4.110 GARRAFAS DE ÁGUA COMO SE PREPARA O MUNDIAL Oquintoaniversárioda mortedolíderhistórico doPCPassinala-seeste mês. Nestafotoinédita, tiradapelopróprio Cunhalcomtripée temporizador,está abraçadoàfilhaAnita O meu pai mandava-me livros de BD belga: traduzia os diálogos e colava-os por cima dos originais Quando era miúda disse-lhe: ‘Pai, estás mais gordo’. No resto das férias, sempre que me via a olhar para ele, fazia uma cara exagerada de inocente e punha-se a assobiar enquanto encolhia lentamente a barriga Um dia, disse-me para me sentar na areia e construiu um incrível carro de corrida à minha volta
  • 3. 49 O MEUPAI TINHA SEMPRE COCA-COLA PARADAR AOSNETOS N anoitede3deJaneirode1960,Ál- varo Cunhalemais novepresos políticosevadiram-sedoFortede Peniche.Deregressoàclandesti- nidade,após11anosdeprisão,o líderhistóricocomunistaapaixonou-sepor IsauraMoreira.Eletinha46anos,ela19.Pas- sadosalgunsmeses,a25deDezembronas- ceuasuaúnicafilha: AnaCunhal. Afamíliapassouos meses seguintes em váriascasasclandestinas.MasaeleiçãodeÁl- varo Cunhal parasecretário-geral do Parti- doComunistaPortuguês –cargovagodes- deamortedeBento Gonçalves,em1942–, levouoPCPaenviá-loparaMoscovo. Foiaí queAnita–comoopaiatratava–passouos primeirosanosdevida.Quandoocasalsese- parou, em1966, IsauraMoreiraeafilhafo- ram viver para Bucareste, na Roménia. Só voltaramaPortugalapós o 25 deAbril. AnaCunhal, 49 anos, nuncaquis daren- trevistas.Vivehámuitotemponoestrangei- roesóaceitoufalaragora,quandoestãopres- tes aassinalar-se os cinco anos damorte de ÁlvaroCunhal–a13deJunho–“porneces- sidadedesepararaverdadedamentira”.Não quis ser fotografada, revelar a cidade onde viveoufalardosfilhos. Sódesiedoseupai: “Jáqueseinsisteemfalardele,quepelome- nos seconteaverdade.” AnaCunhal.Cincoanosdepoisdamortedolíderhistóricodo PCP,aúnicafilhadeÁlvaroCunhalfalapelaprimeiravezdopai edosmomentosemfamília.Naspáginasseguintes,osamigos recordamohomemqueconheceram.PorNunoTiagoPinto AnaCunhal,aos19anos, comopaiaassistirà aberturadosJogos OlímpicosdeMoscovo, emJulhode1980 t AKG/ATLÂNTICOPRESS
  • 4. 50 2 JUNHO 2010 SÁBADO mõestinhamouvidodizerqueeuerafilhade Álvaro Cunhalmas, como não tinhamacer- teza,nãohesitavamemvirperguntar-me.To- dos os dias, várias vezes pordia. Aobsessão eratalqueeumentia-lhes só paramedeixa- remempaz.Detestavaserumpontodecurio- sidadesóporterumpaiconhecido.Aeuforia colectivaincomodava-meaopontodeeufal- taràsaulas. AEstufaFrianoParqueEduardo VII era um bom sítio para estudar em paz. Longedos“éverdadequeésafilhade…?” Comoera ÁlvaroCunhal comopai? Maravilhoso.Umserhumanofantástico.Foi econtinuaaserumaverdadeirafontedeins- piração do ponto de vistahumano. Pacien- te. Indulgente. Eu era capaz de ir acampar para o Algarve sem dar satisfações a nin- guém. E os meus pais (que continuaram sempre afalar um com o outro) preocupa- díssimos,claro.Umdia,semqualquercons- ciência da aflição deles, voltei para casa do meupaicomamochilaàs costas. Qualquer outro teria feito um escabeche. Ele, apesar dos dias de calvário semsaberporonde eu andava – mas calculando que teria levado pouco dinheiro –, a primeira coisa que me perguntoufoi:“Jáalmoçastefilhita?”Oimen- so respeito queeutinhaporelevinhasem- pre daminhaadmiração, nuncadasuaim- posição, queerainexistente. Serfilhadeumafiguramíticaeraumpesoou uma responsabilidademuitogrande? Houve quem acreditasse e mesmo insistis- sequedeviaserumaresponsabilidade.Sem- prerecuseiessepapel.Queriaserlivredeco- meter erros na minha vida como qualquer outrapessoa,semterdepassarporum“jul- gamento público”. E consegui. Os queque- riam fazer de mim um exemplo acabaram por desistir. Afastei-me deles, deixando-os sempontaporondepegar. Aspessoasesperavam queseligasseaoPCP porserfilha dosecretário-geral? Nãovouespecularsobreoqueamaioriadas pessoas esperava. Porquenão sei. Mas nun- caouvininguémcriticarabertamenteofacto de eunão me termetido napolítica. Talvez, inicialmente, alguns camaradas mais próxi- mosdomeupaitenhamimaginadoessece- náriocomoóbvio…atémeteremconhecido melhor. Maschegou a estarligada aoPCP? Nos anos de liceu passei como um cometa pela União de Estudantes Comunistas. Não me lembro porque entrei, mas lembro-me porqueéquesaí.Oambientenaquelaépoca, aindatãopróximadofrenesimdaRevolução deAbril,acaboupordesencadeartensõesen- Querecordaçõestemdoseupainaépocaem quevivia em Bucareste? Passei todas as férias de Verão com ele. Era muito brincalhão, paciente, carinhoso… eu eraumamaria-rapazquegostavadetreparàs árvoresecavarburacosnaareiadapraia“para chegar ao outro lado da terra”. Ele só dizia: “Anita,põeochapéunacabeçaeocremepara osolnos ombros. Olhaqueosolestámuito forte.” Umavez disse-me parame sentarna areiaeconstruiuumincrívelcarrodecorrida àminhavolta.Pareciamesmoqueestavasen- tadaládentro. Nemmexiaos dedos dos pés para não perfurar a parte da frente. Depois, enquanto eu não quis sair, ia-me trazendo conchas paraeudecoraro“paineldeinstru- mentos”. Aoutramaneiradeeuestarquieta mais de30segundos eraquando elemede- safiavaparaumapartidadexadrez.Nãoper- diadepropósito parameajudaradesenvol- veras faculdades de umbomjogador. Cada vezqueperdiadizia-lhe:“Maisuma.”Eelefi- cavaajogarmuitas “mais umas” até euaca- barporganhar. Eduranteorestodoano? Recebiafrequentementegiríssimascaricatu- ras degatos, queeleinventava, desenhavae coloriaàmão. Gato de bicicleta, gato afazer esqui, gato-bombeiro, gato-capitão de um barco,gatodorminhocoacairdesono…Ohu- mornessascaricaturaseraprecioso.Eletinha umjeitãoparadesenhar,emboracostumas- se dizer que aquilo eram “só uns bonecos”. Mandava-me regularmente As Aventuras de Sofia,umasériedelivros debandadesenha- da belga que eu adorava e que só havia em francês. O meu pai traduzia todos os diálo- gosparaportuguês,ecolava-osporcimados originais,bemrecortados,retocandooscon- tornos. Mais tarde começou a enviar-me as aventurasdeTintim,massemtraduções. Es- tavanumaboaidade paraaprenderfrancês. Eaprendibastante. Construiuum incrívelcarrode corridaàminhavolta. Etrazia-meconchinhas paraeudecoraropainel deinstrumentos t t Comofoi a mudança para Portugal? Sabíamos oqueseestavaapassarduranteo 25deAbrileeraevidentequeíamosvoltarao nosso país. Sebemmelembro, porvoltade Junho ou Julho de 1974, regressámos num aviãocomcriançascujospaistinhamestado foradePortugalduranteaclandestinidadee compassageirosquenadatinhamavercon- nosco. Quaisasprincipaisdiferenças? Falava-sedepolíticaportodoolado.OPaíses- tavanumfrenesimpermanenteetodaagen- tequeriaparticiparnessaaventura. Osliceus transformaram-seemcamposdebatalhaen- tre os queques, os MRPPs, os trotskistas, os comunas,etc. OsoutrosalunosnoLiceuCa- FOTOSD.R. ÁlvaroCunhalnapraia,nadécada de1930. AnaCunhal,em2007, apintaraparededeumamigo
  • 5. DESTAQUE 52 2 JUNHO 2010 SÁBADO serra de Sintra, à Praia das Maçãs ou tentar apanharo espectacularpôr-do-solno Guin- cho. As conversas eramsempresobrecoisas interessantesouentãosobrecomoeuestava eoquetinhafeito. Desabafeimuitocomele, que sempre foi um bom ouvinte. Dava-me bonsconselhos,massemmecriticarnemim- porasuaopinião. Era um pai presente? Semprequepossível,apesardascondições. Éverdadequeeletinhaumsentidodehumor finoeapurado? Ele fazia-me sempre rir. Quando era muito miúda, durante umas das nossas férias de praia, olheiparaele emfato de banho e dis- se-lhe:“Pai,estásmaisgordo.”Duranteores- todas férias,semprequeolhavaparaele,ele fazia uma cara exagerada de inocente e pu- nha-se a assobiar enquanto encolhia lenta- menteabarriga,atéeunotaredesataràsgar- galhadas. Dizem queelequandosezangava nunca gri- tava nem sedescontrolava. Éverdade? Sim.Podiaficardesgostoso,desapontadoou indignado,masnuncalevantavaavoz.Lem- bro-me de uma vez ter sido eu a levantar a voz contra ele. Tinha uns 17 anos e aquilo deveter-lhedoídoimenso.Eelesódissecom uma voz baixa mas ferida: “Já viste como é queestásafalarparaoteupai?”Sentiqueti- nhacometidoumaincrívelinjustiça.Dei-lhe logoumgrandeabraçoachorarderemorsos. tremimealíder,queacharaque,como“filha dodito-cujo”,eu“tinhaaobrigação”desatis- fazercertoscritériosquenadacondiziamcom apessoaqueeuera.Osermãoqueajovemjul- gouserboaideiapregar-meresultounomeu rápidoafastamento.Foiogolpefatal.Játinha aversão ao fanatismo do lado direito. E ago- racomessa, tinha-me apercebido que fana- tismonãotinhapreferênciapartidária.Eque indivíduosdessetiposemeteriamnaminha vidaseeuosdeixasse. Oseupaicontava-lhehistóriasdoquepassou na clandestinidadeou na prisão? Nunca. Só me contava essas histórias se eu lhepedisse.Umdia,quandojáviviaemPor- tugal,fuiaocinemacomunsamigosverum filmede1973,chamadoPapillon.Acertaaltu- ra,oSteveMcQueen,queestavadetidonuma prisão numa ilha, calcula o movimento das ondas do mar para escapar sem ser atirado contraasrochas.Foidepoisdeverofilmeque pediao meupaiparamecontarcomo tinha fugido daprisão dePeniche. Deviater14ou 15 anos. Já tinha lido e ouvido falar sobre a fuga, mas ahistóriacontadaporeledeu-me essasensaçãodeviverumfilme. AAnaviviacomamãe.Disse-sedurantemui- tosanosqueoseupaimoravanumpaláciodo partidona estrada doPaçodoLumiar. Issoéumaficçãoquesóquemnãoconheceu omeupaipodeacreditar.Elenuncairiaviver paraumpalácio,nemqueoobrigassem.Mes- mo quando lhe ofereciam privilégios recu- sousempre. Vivianumacasamodesta, mas arranjadacomgosto,nazonadeRiodeMou- ro. Amobíliaerasimples ebaratamas boni- ta. Tinhanasparedesquadrosmaravilhosos do meuavô Avelino, desenhos meus efoto- grafiasdosmeusavós,minhas,daminhatia edosmeusprimos. Emcimadamesinhade cabeceira,tinhafotografiasdaFernandaBar- roso[asuasegundamulher].Nãoeramretra- tos tirados por um fotógrafo num estúdio. Emcasa,omeu paitinhaum laboratóriofotográfico. Ensinou-metudooque seisobrefotografiaantes daeradigital Eramfotosapretoebranco,tiradaserevela- dasporeleouoferecidaspelairmã:gargalha- das entre família, passeios à beira-mar, os meusprimosnarelvadeumparque,euafa- zercaretas…Naquelaépocaomeupaitinha umapequenadivisão dacasatransformada emlaboratóriofotográfico.Ensinou-metudo oqueseisobrefotografiaantesdaeradigital. Coleccionavalivros dearte. Gostavadearte- sanato português. Cozinhavadeliciosos pe- tiscos.Lavavaaroupadele(eaminha,quan- doeupassavaofim-de-semanaemcasadele). Nunca teve uma empregada, não por uma questãodesegurançamas porumaquestão deprincípio. Dizia-se que ele a ia buscar com uma boina, para disfarçara cabeleira branca... Erasobretudoeuqueo“iabuscar”.Iatercom eleaoCentrodeTrabalhodoPCPeeletenta- vasairmaiscedoeíamosdarumavoltaatéà O secretário-geral do PCPtinha uma enorme adoração pela filha. Aproveitava os momentos livres para passear com ela pela serra de Sintra ou vero pôr-do-sol na praia do Guincho LUSA AKG/ATLÂNTICOPRESS t t
  • 6. 54 2 JUNHO 2010 SÁBADO Sintra. Gostava do mar, do cheiro de mare- sia,dosomdasondasedoassobiodovento. E seestávamos porpertonãoperdiaaopor- tunidadedeestarconnosco. Eledissenumaentrevistaqueerabomdança- rino.Algumavezoviudançar? Não. Mas ouvi-o várias vezes fazer grandes elogios às faculdades de dançarino do Mi- chaelJackson.Sempreelogiouartistascomta- lento. EleachavaquetudooquevinhadosEstados Unidoseramauouestavareceptivoaaspec- tosda cultura americana? Bebíamos Coca-Cola se nos apetecesse. Se os netos estivessemdevisita,haviasempre uma garrafa de dois litros no frigorífico e mais umaou duas de reservanadespensa. Apreciávamosumbomfilme,dosquaismui- tos eram americanos. Gostávamos de Ste- ven Spielberg, adorávamos os Simpsons. Casei-me com um americano e o meu pai gostavaimenso deleevice-versa.Vivemos actualmentenosEstadosUnidos.Claroque seopunhaapolíticasinvasivasemilitaristas. E não gostava da faceta monopolizante do sistemacapitalista.Masissonadatinhaaver comoresto.Nacabeçadomeupaiascoisas nuncaforama“pretoebranco”.Eraumho- memde convicções, mas tinhaconsciência dacomplexidadedas coisas. O queaconteceu aoespóliodele? Ficou para a família ou foi entregueaopartido? Foi-meentregue.Deixou-metudooquetinha dematerialeimaterial.Paraquemmedirari- quezaapenas emvalormonetário,direique não foinenhumafortuna. Mas paraquema mediremvalorespiritual, emocionaleinte- lectual, posso afirmarque herdeiumtesou- rodeumvaloretamanhoinigualáveis. Qual era a relaçãodelecom odinheiro? Davatudooquetinha.Viviaegastavamuito modestamente. Como é que ele reagiu ao saber que ia ser avô? Apoiou-mecompletamente. Eleera realmenteum avôbabado? Avôepaibabado.Orgulhava-semuitodenós. Dizia-me sempre: “Vou ter de ir buscar um lençolparalimpartodaestababa”...umlen- çonãochegaria. Porqueéquedecidiu vivernoestrangeiro? Numadasminhasviagensdemochilaàscos- taspelaEuropadescobriacidadedeGante,na Bélgica.Deviateruns18anos.Foiamoràpri- meiravista.Lembro-medeterpensado:“Um diavireiviverparaaqui”. Efui. Em quepaísesviveu? União Soviética, Roménia, Portugal, Bélgica eEstadosUnidos. Quegénerodecontactomantinham? Escrevia-me.Telefonava-me.EuvinhaaPor- tugalsemprequepodia. Eleia visitar-vospara estarcom osnetos? Éramos nós que o vínhamos visitar. Assim, aproveitávamosparavisitarafamíliatodade Lisboa. Ficou com eles duas ou três vezes. Numa dessas vezes levou-os ao Centro Co- mercialdeCascaisparacomerpipocas,ham- búrguereseiraocinema.Umdia,quandoes- tava só com a Fernanda [Barroso] e com o maisnovo,omeupaipediuaonetoparade- senharo quequeriaalmoçar. Depois prepa- rou-lheopetiscotalequaleguardouprecio- Umdiapediu aonetopara desenharoquequeria almoçar.Depois preparou-lheopetisco eguardouodesenho samenteo desenho, queestavamuito bom. Maistardemostrava-o,orgulhoso. Ondeéqueeleia passarférias? DevezemquandoiaaMonteGordo.IaaLa- gossódepassagemparaespreitarapraiada DonaAna,dequesempregostou. Eletransportouparaavidaem“liberdade”os hábitosdosanosda clandestinidade? Sóalguns.Masteveboasrazõesparaofazer. Ninguémgostadeserreconhecidoeaborda- domilvezespordia.Privacidadeéumarega- liaparaquemquasenuncaatinha. Eletinhaumaimagempúblicadeumhomem duro. Era assim em privado? Algumaspessoasconfundemdurocomcoe- rente,responsável,íntegro,corajosoesince- ro.Eletinhaumavisãoparaonossomundo. Deutudooquetinhaeoquenãotinhapara alcançar esse sonho. Nessa visão havia me- nosinjustiça,maisigualdade,maisrespeito. As pessoas podem ou não estar de acordo comoqueelequeria– aliás,sempreparaos outros e nuncaparasi–, mas daíadizerem queeleeraumhomemduro… Nunca.Mui- topelocontrário. Eletinhamomentosdedescontracçãoouaté ostemposlivreseram dedicadosà política? Temposlivreseramtemposlivres.Desenha- vae pintavaquando podia. Gostavade mú- sicaclássica, de documentários sobre avida selvagem,deliteratura,depasseiosàserrade Álvaro Cunhal enviava para a filha caricaturas de gatos e banda desenhada. Em casa tinha quadros seus, do seu pai e desenhos da filha e de um neto RUIOLIVEIRA AVANTE t
  • 7. DESTAQUE 56 A 30 de Abril de 1974, Álvaro Cu- nhal recebeu o primeiro banho demultidãoapós13anosdeexí- lio, 11 de prisão e oito de clan- destinidade. Tinha acabado de desembarcar no aeroporto de Lisboa, vin- do deParis. Erao último dos principais di- rigentespolíticosaregressaraPortugalapós o 25 de Abril. Emocionado, disse a Carlos Brito:“Conseguisteumaboamobilização.” Momentos depois estava a subir para um carro de combate paraagradeceros aplau- sos. Foi uma recepção apoteótica. Mas foi tambémummomentobreve.Poucodepois entrou numa espécie de semiclandestini- dadequedurantedécadas manteveemse- gredo tudo o que dizia respeito à sua vida pessoal. Umdosgrandesmistérioseraasuacasa. O líder comunista aparecia em público, mas poucos sabiam onde vivia. Nos pri- meiros dias depois do seu regresso ficou alojadonacasadeMariadasDoresMedei- ros e Ivo Madeira. Depois, o Partido Co- munista Português (PCP) arranjou-lhe umacasanazonadeRio deMouro. Viveu também perto dapraia– mas não se sabe exactamenteonde. Disse-oàjornalistaCa- tarina Pires numa entrevista para o livro CincoConversascomÁlvaroCunhal: “Quan- tas vezes não fui à praia logo cedo, antes devirparaotrabalho. Vivianumsítioque me permitia de passagem sair do carro e iràpraiaeestaraliumbocado.” Nos anos 90 asuaresidênciaoficialeranaRuaSou- saMartins,n.º17,emLisboa– queeraafi- nal a casa da irmã e onde nunca terá vivi- do. Só no fim da vida a sua morada nos Olivais foi conhecida. As deslocações também eram compli- cadas. Mudava de carro entre um local e outro por questões de segurança. “O País esteve quase emguerracivil. O Álvaro era DESTAQUE NUNO TIAGO PINTO amado,mastambémodiado”,recordaDo- mingos Lopes, que foi secretário do líder comunista quando ele era ministro sem pastanoIIGovernoProvisório. “Conheci- o nessa altura. Era mais baixo e mais bar- rigudo do quepensava”, diz. “E mais des- contraído também. Chamou-meaS. Ben- to e perguntou-me se percebia alguma coisade Direito. Respondi-lhe que estava a acabar o curso e ele disse-me: ‘Não foi issoqueperguntei. Pergunteisepercebias alguma coisa de Direito [risos].’ Depois quis saber se eu gostava de papéis. Res- pondiquenemporissoeeleconcluiu: ‘En- tão se calhar ficas aqui.’” Ficou. NAQUELA ÉPOCA, AS reuniões do Conse- lho de Ministros prolongavam-se pela madrugada.Ossecretáriosficavamàespe- ra do final. E foi numa dessas ocasiões que Domingos Lopes conheceuo “lado solidário” de ÁlvaroCunhal.“Numadasnoi- tes encomendámos comida paraduaspessoas–masacabá- mos por ficar uns quatro. Foi quando o Álvaro apareceu parajantar. Ao verquetínhamospoucacomida,disseque já tinha jantado e que o Vasco Gonçalves tinha pedido leitão e não sei que mais. Poucodepoistocouotelefone.EradoCon- selho de Ministros para saber se o Álvaro já estava despachado porque tinha desci- do paracomerconnosco.” Por vezes, as reuniões de trabalho na sededo PCP tambémduravamatédema- ApósasreuniõesnoPCP,dormia umashorasnosbelichese passavaasuacamisaaferro Consideravaoamordacompanheirauma“granderiqueza”. Gostavadecozinharearrumavaopratoquandoacabavade jantar.E nãodeixavaumasenhorasegurar-lheaporta A vidade Álvarona intimidade HISTÓRIA.A13DEJUNHOPASSAMCINCOANOSDAMORTEDECUNHAL 2 JUNHO 2010 SÁBADO
  • 8. drugada. Nessas ocasiões, Álvaro Cunhal nem iaacasa. Dormiaalgumas horas nos beliches dos seguranças e até foi visto a passaraferro aprópriacamisa. Aprendeu afazertodas as tarefas domésticas duran- te a clandestinidade. Manteve os hábitos no exílio emMoscovo, onde, entre1961 e 1964, viveu num apartamento perto do Álvaro Cunhal(1913-2005),fotografadona entradadasededoPartidoComunistaPortuguês, naRuaSoeiroPereiraGomes,em1981 Palácio dos Pioneiros com a companhei- ra,IsauraMoreira,eafilharecém-nascida, Ana. “Sempre que acabávamos de almo- çar,oÁlvarolevantava-se,lavavaoseupra- to e arrumava-o”, conta à SÁBADO Luísa Basto, que na época estudava na capital soviética. A MULHER QUE AINDA em Moscovo gra- vou a primeira versão de Avante Camara- da tornou-sevisitahabitualdafamíliaCu- nhal. O secretário-geral do PCP afeiçoou- se a ela. Tanto que considerava Luísa sua afilhada. Foiele, aliás, quemlhe escolheu o pseudónimo quando elachegouaMos- covo–oseuverdadeironomeéÚrsulaLo- bato. Elavia-ocomoumpai. “Estavasem- pre preocupado connosco, se estávamos bem e se suportávamos o frio. Obrigava- nos a limpar as solas dos sapatos para ti- rarogeloeversetinhamburacos. E às ve- zes tinham”, diz. t RUIOCHOA PUB
  • 9. DESTAQUE 58 2 JUNHO 2010 SÁBADO OconvívioterminouquandoÁlvaroCu- nhal e a companheira se separaram, por volta de 1965. Isaura Moreira (que ainda hoje é funcionária do PCP) e a filha, Ana, mudaram-se para Bucareste, na Romé- nia. O secretário-ge- ral do PCP dividia-se entre Praga, Mosco- voeParis. Massópor questõesdetrabalho. A sua cabeça estava emBucareste. Passa- va horas a desenhar caricaturasdegatose a traduzir As Aventu- rasdeSofia,umaban- da desenhada belga, queenviavaparaafi- lha. E reservava os meses de Verão para passarférias napraia com ela. FoinasededaRua SoeiroPereiraGomes que, nos primeiros anos da década de 1980, o líder comu- nista passou várias vezes a véspera de Natal. Fazia questão de estar com os seguranças que ficavam de serviço. “Estivemos lá com ele muitas vezes. Jantávamos emcasaedepois íamos látercomos miúdos”, recordaLuísaBas- to. “À meia-noite comíamos umas fatias douradas e umas gambas com eles. O Ál- varo reconhecia a lealdade daqueles ho- mens, que eram capazes de se pôr à fren- te de uma bala por ele”, diz João Fernan- do, o companheiro de Luísa Basto. “Mas quando lá chegáva- mos ele queria era sa- ber dos miúdos. Brin- cava com eles e quan- do estavam cansados ia deitá-los nos sofás. De cinco emcinco mi- nutosiaverseestavam bem”,contaaafilhada de Cunhal. Emparalelo,manti- nhaumcódigodecon- duta que mesmo no próprio partido era vistocomodemasiado rígido. “Não recebia ofertas, a menos que fossem consideradas ofertas ao partido, a quem competia deci- dir o destino que lhes dava. Não assistia ao lançamento de livros (...) para não dar a ideia de alguma prefe- rência por parte do partido. Não aceitava, obviamente, convites para almoçar nem parajantaremcasadecamaradas paranão parecer que era o partido a fazer distin- ções. Mas podia aceitá-los de artistas ou intelectuais amigos do partido, pois nes- se caso entendia-os como trabalho políti- co”, revelaCarlos Brito em Álvaro Cunhal, Sete Fôlegos do Combatente. As sucessivas espe- culações sobre os mis- térios dasuavidaleva- ram-no a revelar um pouco de si numa en- trevista a Joaquim Le- tria,noprogramaDirec- tíssimo,naRTP2,a15de Novembro de 1978. Aí disse levar uma vida normal: “Pagoosmeus impostos, desconto para a Previdência, ga- nhoumsaláriomensal, como funcionário do meu partido, de 7.533 escudos [que corres- ponderiahojea517,77 euros], salário que é igualparatodos os que nele trabalham.” No entanto, muitas das suas despesas, como as deslocações e a casaondevivia, eramsuportadas pelo PCP. Até o fato de fazendainglesae agravatade seda com que se apresentou no programa tinhamsido oferecidas ao partido. NÃOENRIQUECEU napolítica. “Eradeuma integridadeincrível. Sefosseprecisotinha umtratamento VIP e o Brejnevarranjava- lhe umavião privado. Mas o que deixade riqueza são os livros e as pinturas”, diz Domingos Lopes. A fi- lha, Ana Cunhal, con- firma.“Davatudooque tinha. Vivia e gastava muitomodestamente”, diz à SÁBADO. Ana Cunhal regres- soucomamãeaPortu- gal no Verão de 1974. FoiinscritanoLiceuCa- mões, onde depressa correu a notícia de que era filha do líder comunista. Ananãogostavadeseralvoda curiosidade dos colegas e chegou a faltar às aulas. Naquelaépoca,osecretário-geral doPCPtinhaumaagendapreenchida.Mas não escondia a preocupação com a filha aos mais próximos. “Ele tinha uma ado- O edifício dos Olivais onde o lídercomunista viveu nos últimos anos de vida; à direita, no jardim do Torel AS CASAS DE ÁLVARO CUNHAL CONHECIDAS APÓS O 25 DE ABRIL O LÍDER COMUNISTASEMPRE MANTEVE ASUA MORADAEM SEGREDO. MESMO EM LIBERDADE • Quandoregressou a Portugal ficou na casa deMaria dasDoresMedeirose IvoMadeira –um antigopontode apoiodoPCP • Maistarde,opartidoarranjou-lhe uma casa na zona deRiodeMouro • Numa entrevista nosanos90disse queviveu pertoda praia,ondepara- va a caminhodotrabalho • Garantiu quemorava na Rua Sousa Martins,nº17,em Lisboa –que era a casa da irmã • Sópertodofim da vida a sua morada foi conhe- cida: era na Rua de Benguela,nosOlivais Nunca tive nenhum amigo fascista. Mas não sou apenas amigo de camaradas do meu partido. Sou-o e sou capaz de sê-lo de pessoas que têm opiniões muito críticas em relação a concepções e posições do PCPe naturalmente às minhas Cinco Conversas com Álvaro Cunhal 1999 Aliança é coisa que em nenhumas condições usaria Antena 1 Sem Margem 2 de Junho de 1981 t t LUSA RUIOCHOA
  • 10. 60 2 JUNHO 2010 SÁBADO raçãoenormepelaAnitaechegouapedir- me para falar com ela porque estava apreensivo”, recorda Helena Neves, ex- membro do Comité Centraldo Partido Co- munistae que naépo- ca era casada com o chefe de gabinete de Cunhal, Joaquim Gor- jão Duarte. “Acho que funcionou.” Domingos Lopes acrescenta: “Chegueiaverlivros debandadesenhada que ele fez para a filha.” AnaiatercomopaiaoCentrodeTraba- lhodoPCPeeletentavasairmaiscedopara passearem,discretamente.Defendiaaomá- ximo a sua privacidade. Por várias vezes Álvaro Cunhalrecusoumostrar acasaefotografiasdein- fância, como faziam os líderes de outros parti- dos. Gabava-se disso. Foicomsurpresaque decidiuquebraressare- gra numa entrevista conduzida por Carlos Cruz, na RTP2, a 6 de Novembrode1991. “Es- távamosafalardosecre- tismodasuavidaquan- do ele abriu a bolsinha pretaque traziasempre e tirou uma fotografia dafilhaedos netos”,re- corda o apresentador à SÁBADO. A sua relação com Fernanda Barroso foi mantidaemsegredodu- rante anos. Os dois te- rão começado a namorar no fim da déca- da de 70. Nos primeiros anos só os mais próximos souberam da relação. “Ele sen- tianecessidadedefalardelaefazia-o com uns quantos camaradas com quem tinha mais intimidade, mas sempre arranjando uns certos pretextos detrabalho”,recorda Carlos BritoemÁlvaroCunhal,SeteFôlegos do Combatente. “Um dia (...) veio pergun- tar-me se sabiase aFernandajátinhaido àUniãoSoviética. Começavaassim: ‘Aque- la camarada da DORL [Direcção da Orga- nização Regional de Lisboa]...’ E eu, feito manhoso, perguntava: ‘AMarília?’ Então ele ládiziaruborizado: ‘Não, aFernanda.’ Sugeriquelhetelefonasse.Respondeuque jálhetinhatelefonadonessediaenãoque- ria insistir, senão o que é que as camara- das dos telefones iampensar. Ora, játoda a gente sabia dos telefonemas, que eram comentados com sorrisos de simpatia.” Mas nãoeramsó as telefonistas asaber do romance. “Começámos a suspeitar quandoela,queeradoMovimentoDemo- crático das Mulheres, passou a aparecer mais vezes naSoeiroPereiraGomes. O Ál- varo era naturalmente cordial. Mas com elaeramenos quandoestavamvárias mu- lheres. E nós percebemos essas coisas”, recorda Helena Neves. Asuaatençãoaospormenores era também o que atraía muitas militantescomunistas.“Eramui- to sedutore sempre atento. Uma vez entrevistei-o parao Avante! e ele reparou que estava a tremer. Perguntou-melogooquesepassavaesees- tava bem. Às vezes esse interesse era mal interpretado”,lembraaantigamilitanteco- munista. ÁLVARO CUNHALe FernandaBarroso esti- veram juntos mais de 20 anos. Faziam fé- rias no Algarve, emMonteGordo. “Iapara apraiacomo vai todaa gente,iaemcabelo,por- que gosto de apanhar solnacabeça,semócu- los”,disseaCatarinaPi- res numa das entrevis- tas para o livro Cinco ConversascomÁlvaroCu- nhal. “E como muitas vezes fui para a praia comumapessoapróxi- ma, que gosta de apa- nharconquilhas como dedodopénaareiaaes- tragar as unhas (...), eu às vezes também apanhava conquilhas.” Considerava o amor de Fernanda Barroso “umagranderiqueza”davida.Naentrevis- taaCarlosCruzafirmou:“Sechegasseàmi- nhaidade e não amasse estavamorto.” Cunhal tentava manterem segredoonamoroecorava quandofalava em Fernanda HelenaNeves foicasada comochefe degabinete de Cunhal. DomingosLopes foisecretário eresponsável pelasRelações Internacionais doPCP CarlosBritorecordaemlivroepisódios passadoscomCunhaldurantemaisde30anos Sou apaixonado porfutebol como magnífico desporto e espectáculo. Em jovem, joguei (...). Havia até uma contradição entre a minha orientação política, de extrema- -esquerda, e o metergolos... porque eu era ponta-direita Diário deNotícias 21 de Dezembro de 1996 Gostomuito deiràscompras TSF, GrandeJúri 17de Outubro de 1992 Ahomos- sexualidade é uma coisa triste na sociedade, mesmo muito triste, é uma opinião que eu tenho RTP2, CarlosCruz –Quarta-Feira 6 de Novembro de 1991 t t FOTOSD.R. NATÁLIAFERRAZ/CM
  • 11. DESTAQUE 62 2 JUNHO 2010 SÁBADO “Ele eramuito carinhoso comela”, con- taUrbanoTavaresRodrigues,amigodolíder histórico comunista. “E ela também. Era umarelação muito bonita.” O casal jantou várias vezes nacasadoescritor,quesalien- ta o sentido de humor de Álvaro Cunhal. “PubliqueiolivroAFlordaUtopia,querepre- sentaas revoluções francesas de 1848 e de Maiode1968.QuandooliaoÁlvaroeledis- se:‘Émuitobonito,estámuitobemescrito, masnãoconcordonadacomisso.Deviasera terescritosobreoOutubrorusso.’” No seulivro, Carlos Brito recordaoutra situação, passada na Checoslováquia, em 1967,antesdaconferên- cia dos Partidos Comu- nistas. Álvaro Cunhal juntou-se ao grupo de portugueses e, com ar sério, disse: “Estive a pensar que a nossa de- legação não foi bem es- colhida.” Os três que o ouviampuseramlogoo lugar à disposição. Foi quando Cunhal obser- vou, com um sorriso: “Viemos paraumaCon- ferênciadePartidos Co- munistas da Europa, mas afinal de nós os quatro o único europeu sou eu, o Manuel [Ro- drigues daSilva] nasceu no Brasil, a Cândida [Ventura] em Moçam- bique, o [Carlos] Brito em Moçambique.” Foiduranteas muitas viagens quealguns companheiros depar- tido conheceram melhor Álvaro Cunhal. “Falávamos das coisas mais incríveis. Lembro-me de que em Viena ele me fez uma descrição deslumbrante dos dese- nhosecaricaturasde[Pieter] Bruegel[pin- torholandês do Renascimento]”, lembra Domingos Lopes, que foi o responsável pelas Relações Internacionais do PCP. Foi também em Praga que Carlos Bri- to descobriu o entusiasmo e os conheci- mentos de Cunhal sobre a gastronomia portuguesa. “Sobretudo em relação aos nossos queijos e vinhos”, escreve no seu livro. “Passámos um jantar, no hotel do partido, afalar de queijos. (...) No diase- guinte foi-nos servido um almoço só de queijos.” JáCarlos Carvalhas garanteque a cultura gastronómica de Cunhaleramuito mais vasta: “Semprequesaíamos emini- ciativas partidárias ele sabia exactamente o que se comia em cada região.” O CONHECIMENTOeratambémpassado à prática. Alémdeapreciador,ÁlvaroCunhal era bom cozinheiro. Carlos Carvalhas re- corda um prato de “salsichas injectadas com molho”. O próprio líder comunista admitiu que faziauns óptimos pastéis de bacalhau. Domingos Lopes lembra-se da vez em que lhe ofereceu um pato e de como Cunhal lhe des- creveu ao pormenor como o preparou: “Só se queixou de ter tido de o depenar.” Normalmentealmo- çavanacantinado par- tido, na Soeiro Pereira Gomes. Ia para a fila como os restantes “ca- maradas” e sentava-se comoseutabuleiro. De vez em quando fre- quentavarestaurantes. O da afilhada Luísa Basto, o Forno de Cima, no Pragal, Alma- da, eraumdeles. “Nemperguntavao que havia. Comia o que vinha para a mesa. E bebia um copo de vinho branco.” Também gostava imenso de cinema. “Adorava Ingmar Bergman, Visconti e Tarkovsky. Mas também filmes america- nos.TinhaumagrandeadmiraçãopeloPa- drinho I e II e pelo Era uma vezna América, No Verão ia para a praia de Monte Gordo. Gostava de andar ao sol e apanhava conquilhas Asmulheresdavida deCunhalnoseu funeral: acompanheira Fernanda,afilhaAna, eairmãEugénia OsfilmesdeCunhal TINHA UMA VASTA CULTURA CINEMATOGRÁFI- CA E ADMIRAVA PRODUÇÕES DE HOLLYWOOD CHOVESOBREONOSSOAMOR Ingmar Bergman, 1946 SENTIMENTO Luchino Visconti, 1954 OS ASSASSINOS Andrei Tarkovsky, 1958 ACONTECEU NO OESTE Sergio Leone, 1968 O PADRINHO Francis Ford Coppola, 1972 APOCALYPSENOW Francis Ford Coppola, 1979 ERA UMA VEZNA AMÉRICA Sergio Leone, 1984 Não sou bom contadorde anedotas, mas conheço-as e aprecio-as. O humor também dá riqueza e sal à vida e às opiniões Diário Insular 2 de Maio de 1999 Não perfilho da ideia de que o homem, ao chegara casa, se deva sentara ver na televisão o futebol ou a ler o jornal e diga à mulher: ‘Traz-me um copo de água ou prepara e serve o jantar.’ Num casal é bonito o homem comparticipar com a mulher na vida da casa Diário deNotícias 11 de Fevereiro de 1993 t tFOTOSRICARDOPEREIRA
  • 12. DESTAQUE 64 2 JUNHO 2010 SÁBADO doSergioLeone.AtépeloApocalypseNow”, diz Helena Neves, que teve longos deba- tes comÁlvaro Cunhalsobre cinema. “Al- gunscamaradastinhampreconceitospela violência dos filmes americanos. Ele não. Tinha uma perspectiva muitomaisvasta.”Erafã de Steven Spielberg e WoodyAllen. E até gos- tava da série de anima- ção Os Simpsons. Os últimos anos da suavidaforampassados noapartamentodosOli- vais. A casa pertenceu a JorgeAraújo, umdesta- cadomilitantedoPorto, membro do Comité Central,quenosanos90 a doou ao PCP. Álvaro Cunhal e FernandaBar- roso mudaram-se para lá no fim da década. É umacasaespaçosa,com cerca de 200 m2 e que menos de um ano após a sua morte foi ocupada por outro membro do PCP: tem trêsquartos,umasala,umacozinhaeuma pequena divisão que servia de escritório. Poucos fora do partido lá entraram. JUDITE DE SOUSA foi a única jornalista que subiuao nono andardaqueleprédio na Rua de Benguela para a que viria a ser a última entrevista televisiva de Álvaro Cunhal. “A única coisa que ele me pediu foidiscrição emrelação a imagens no interior da casa”, diz a jornalis- ta da RTP. “Entrámos directamenteparaasala e a entrevista foi feita numamesadepinho. A umcantotinhaumape- quena mesa de apoio comfotografias dafilha edos netos eumapare- de com quadros que julgo serem dele.” Foinaqueleescritório queescreveuosúltimos livros. Fazia-oàmão. Na fase final da vida ditava para a secretária, Olga Constança. Urbano Ta- vares Rodrigues era dos poucos que po- diam ver os manuscritos antes de serem publicados. “Às vezes sugeria alterações, masnamaiorpartedasvezesdeixavacomo estava”, recorda. A maioria das pessoas mais próximas do líder comunista estava ligada ao PCP. Álvaro Cunhal chegou a dizer que nunca teve nenhum amigo fascista. Mas manti- nha relações de amizade com alguns dos seus críticos eex-companheiros – excepto comaqueles que o criticaramempúblico, oqueconsideravaumatraiçãopessoal.He- lenaNeves é umexemplo: “Umdiaestava numaconsultade oftalmologiaquando o médicomedissequeoÁlvaroestavaláfora. Tinhasaído do partido eacheiqueelenão ia falar-me. Mas quando saí ele abraçou- me e beijou-me e à minha filha. Fez uma grande festa. Mais tarde, quando acabeio mestrado,telefonou-meadarosparabéns. E enviou-me um telegrama que vai ficar paraos meus netos.” A professorauniver- sitária tem uma explicação. “Quando saí do PCP li uma carta no Comité Central e não volteiafalar disso naimprensa.” Afastado da política activa, Álvaro Cu- nhal pôde dedicar-se à pinturaeàescrita. Mas também à educação dos mais novos. “Um dia a minha filha teve defazerumtrabalhode grupo sobre o 25 de Abril e ele aceitou aju- dar”,contaDoraCarva- lho, a porteira do pré- dio. “Foram cinco me- ninas lá para casa e durante mais de uma hora ele explicou- lhes tudo. As miúdas vieram encantadas. E tiveram Excelente.” Álvaro Cunhalnão faziavidade bairro. Só saía de casa para apanhar um táxi. Era FernandaBarroso,quemorreuumanode- pois dele, em 2006, quem ia à mercearia que ficano bloco de apartamen- tos comprar os produtos do dia. Porvezes,traziaparacasaalguns bolos. Olídercomunistanão. Cu- nhalresguardava-seaomáximo. Cumprimentava educadamente todos os vizinhos e,mesmocom quase 90 anos, mantinha o charme que lhe foi reconhecido durante toda a vida. Numa das últimas vezes que saiu de casa sozinho,cruzou-secomavizinhadolado, Sofia Pereira. Desceram juntos no eleva- dore,quandoamulherseantecipouequis abrir-lhe a porta, Álvaro Cunhal lançou: “Minhasenhora,umasenhoranãomese- gura a porta.” ÁlvaroCunhalerafãdeSteven SpielbergeWoodyAllen. EgostavadasérieOsSimpsons Álvaro Cunhal teve um tratamento VIP na União Soviética. Se precisasse, Brejnevarranjava- -lhe um avião privado. Mas não enriqueceu na política Eu também fui um grande fumador, agora não fumo. Mas também fumei muito. Acho que é um disparate. [Fumei] muitos, muitos. De mata-ratos a outros Antena 1 Sem Margem 2 de Junho de 1981 Admiti não acordarda anestesia ou morrerem consequência da operação. Testamento não fiz. Mas deixei últimas vontades. Estive uma noite inteira a escrever RTP-2, CarlosCruz– Quarta-Feira 6 de Novembro de 1991 Amorsem sexo nãochega a seramor. Esexosem amorésexo bem pobre Cinco Conversas com Álvaro Cunhal 1999 t AFPAKG/ATLÂNTICOPRESS