2. LOUISE-MICHEL
Uma história aparentemente
simples de um grupo de trabalhadoras que
decidem matar o patrão depois da falência
da fábrica sem aviso prévio, torna-se uma
autêntica epopeia que nos leva muito acima
na cadeia de comando.
Apesar do seu lado surreal,
povoado de cenas absurdas, ainda assim
podemos colocar o filme nos contornos da
nossa realidade. E se muitas vezes as cenas
cómicas de uma hiper-realidade gelada e
cínica nos fazem duvidar do nosso próprio
riso, esse lado cómico do filme é bem
compensado com a sua lentidão, que
acentua toda a gravidade da situação. A
questão é, aliás, central na sociedade – o
que fazer com o desespero e quem culpar?
O humor negro do filme aplica-se a
todas as personagens sem exceção mas
consegue vestir de diferentes roupagens os
miseráveis e os impiedosos – ao mesmo
tempo que torna ainda mais analfabeta
Louise, sensibilizando-nos para o seu
desespero, torna ainda mais supérfluo o
lugar do grande empresário no mundo,
isolado na sua mansão, indiferente a
qualquer resquício de humanidade e
destinado a correr na passadeira do seu
ginásio negociando ações na bolsa.
Aquilo que aproxima a realidade e
o filme é que cada personagem é uma
caricatura e a caricatura é sempre feita
sobre um fundo real – um exagero daquilo
que realmente é. Assim Louise poderia
existir como no filme, uma senhora
analfabeta de meia-idade, que perde o seu
trabalho com uma indeminização ridícula,
e que provavelmente não conseguirá
qualquer outro emprego. É uma inapta da
sociedade, uma marginal. Mas no fundo
somos todos humanos, e cada um tem
direito ao seu lugar no mundo. Neste
sentido, a desumanização do grande
empresário funciona perfeitamente – o seu
egoísmo espelho do negócio, como se fosse
o lugar da sua personalidade, como se o
capital o invadisse não deixando lugar para
qualquer relação afetiva humana.
Mas a questão é também uma
afirmação – a de que o problema não reside
apenas no pequeno patrão mas numa
cadeia muito maior – de que vai muito
mais fundo do que nós imaginamos mas
não tão fundo que seja intocável – afinal de
contas, o grande empresário na sua mansão
divina isolada acaba por ser morto como
humano que é.
O filme acaba por ser uma
constatação revoltada da situação social a
que o capitalismo globalizado nos reduz.
Uma espécie de chamada de atenção que
diz que o sistema (que não funciona) nos
entala na miséria mas não é por isso que
devemos deixar que goze com a nossa cara.
E no fundo a solução parece-nos
viável. Matar o patrão… Eu própria
levantaria a mão aquando da pequena
assembleia.
3. Para além de um retrato da sociedade, o filme mostra-nos
bem o que é um filme: uma sucessão de cenas aparentemente
desligadas mas que fazem sentido no seu conjunto.
É deste modo que apresenta cenas e personagens
aparentemente dispensáveis ou redundantes - digo aparentemente
porque estes elementos fazem mais do que enriquecer o universo
fictício do filme: alargam a sátira para a sociedade inteira através
de personagens-tipo e alargam a compreensão quando
percebemos o sentido de uma cena através de uma que lhe
sucede, colocando a questão num âmbito mais alargado do que
aquela que toca aos dois protagonistas.
Assim, mais para além da situação
em que se encontram os protagonistas,
existem pistas que apontam noutros
sentidos. Temos o vizinho de Michel,
maníaco das conspirações, com um
magnífico plano filmado de cima que nos
mostra uma troca de chapéu-de-chuva uma
camuflagem para a câmara e para o céu,
antes de o ouvirmos gritar para cima “Boa
tentativa! Nunca me apanharás! Nunca!”
sem sabermos se é para Deus ou para uns
quaisquer satélites que ele fala. Também o
casal pseudoecológico retrata tão bem o
cinismo e a falta de informação, a forma
como somos tão bem enganados com a
subversão das palavras, e a forma como o
mercado nos manipula com estratégias de
consumo, impingindo termos que não
significam absolutamente nada “café com
ómega 3… adoçante biológico”. Temos
também a forma como Michel põe os
moribundos a assassinar no seu lugar,
presenteando-os assim com uma maneira
de morrer com sentido – que não é tanto o
de matar alguém por um prazer mórbido
mas a de morrer sabendo que se participou
de alguma maneira na mudança e na
justiça. Até o discurso de Michel sobre a
segurança faz sentido se tomarmos em
conta o panorama atual, toda a
monitorização e vigilância a que somos
sujeitos quer tenhamos ou não
conhecimento disso. Isto rematado pelo
alarme instalado por Michel em casa dos
pais, completamente inútil naquele
condomínio virado para o interior, que toca
com qualquer movimento da vida
quotidiana. “Ah, é o gato. (…) É uma
mosca.”
4. FEMININO-MASCULINO
“O HOMEM É UMA MULHER QUE EM VEZ DE TER UMA CONA TEM UMA PIÇA, O QUE EM NADA
PREJUDICA O NORMAL ANDAMENTO DAS COISAS E ACRESCENTA UM TIC DELICIOSO À DIVERSIDADE DA
ESPÉCIE. MAS O HOMEM É UMA MULHER QUE NUNCA SE COMPORTOU COMO MULHER, E QUIS
DIFERENCIAR-SE, FAZER CHIC, NÃO CONSEGUINDO COM ISSO SENÃO PRODUZIR MONSTRUOSIDADES
COMO ESTA FAMOSA "CIVILIZAÇÃO OCIDENTAL" SOB A QUAL SUFOCAMOS MAS QUE, FELIZMENTE, VAI
DESAPARECER EM BREVE.
PELO CONTRÁRIO, A MULHER, QUE É UM HOMEM, SOUBE SEMPRE GUARDAR AS DISTÂNCIAS E
NUNCA PRETENDEU SUBSTITUIR-SE À VIDA SISTEMATIZANDO PUERILIDADES, COMO FILOSOFIA,
AVIAÇÃO, CIÊNCIA, MÚSICA (SINFÓNICA), GUERRAS, ETC. ALGUNS PEDANTES QUE SE TOMAM POR
LIBERTADORES DIZEM-NA "ESCRAVA DO HOMEM" E ELA RI ÀS ESCÂNCARAS, COM A SUA CONA, QUE É
UM HOMEM.”
(…)
“O regresso de Ulisses”
in Pena Capital de Mário Cesariny
Existe uma confusão crescente dos
géneros ao longo do filme que, mais para
além daquilo que traz ao universo fictício
do filme, toca também na questão humana.
Somos para o sistema bens
materiais, mão-de-obra, ferramentas de
lucro, antes de sermos humanos ou mesmo
antes de sermos homens ou mulheres.
É assim que o subdiretor se dá ao
luxo de identificar a bata de Louise com
um nome masculino. É essa confusão,
propositadamente banalizada no filme, que
transforma Louise em Jean-Pierre e Michel
em Cathy para nos mostrar que a nossa
humanidade partilhada, aquela pela qual
devemos lutar, transcende o nosso género.
E afinal de contas, Louise-Michel é
Louise que é uma mulher que é um homem
e Michel que é um homem que é uma
mulher.
E Louise-Michel é uma mulher e é
Homem para mostrar que a luta é de todos.
5. DA MORTE AO NASCIMENTO
O filme explora a inversão de conceitos fixados no
tempo, mas que podem ser subvertidos - o homem é mulher,
a mulher é homem e o próprio ciclo da vida está invertido:
começa com uma morte e acaba com um nascimento.
De pé, ó vítimas da fome!
De pé, famélicos da terra!
Da ideia a chama já consome
A crosta bruta que a soterra.
Mas cortai o mal bem pelo fundo!
De pé, de pé, não mais senhores!
Se nada somos neste mundo,
Sejamos tudo, oh produtores!
Bem unidos façamos,
Nesta luta final,
Duma Terra sem amos
A Internacional.
Tudo começa com uma cremação.
Percebemos logo que vai ser um filme
cómico através de toda a incompetência do
serviço (“Alguém tem… lume?”) mas não
conseguimos bem perceber a relevância da
cena para a intriga principal.
Esta sequência consegue tomar, no
entanto, um sentido gigantesco com a
Internacional que passa no rádio e com o
paralelismo que podemos estabelecer com
a sequência do nascimento final. Morre um
homem que deseja uma mudança, e, na sua
luta final ele deseja a terra sem amos.
E no final nasce alguém – uma
criança sem género: os patrões decidir-lhe-
ão o sexo porque ainda têm poder para
isso.
Mas «Agora que sabemos que os
ricos são gatunos, se o nosso pai, a nossa
mãe não conseguiram varrê-los da terra,
nós, quando crescermos, faremos deles
carne picada. ». A mensagem é límpida e
constitui uma boa forma de dizer que a luta
é contínua, é transgeracional e renasce.
Morreu um homem e o seu lema era
uma luta, uma guerra única e final onde a
terra se une na luta contra os patrões – o
seu lema era acordar as pessoas para a
injustiça. Mas o ser humano novo que
nasce já conhece a injustiça, como nós as
vamos conhecendo cada vez melhor, e o
culminar é assumir a luta e continuar,
conseguindo efetivamente aquilo que antes
não se conseguiu.
Ana da Palma Kennerly