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COTRIM, Gilberto. Fundamentos da filosofia. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 1993. Pg. 25.



                        Natureza em destruição
                         O poder da consciência participante


A concepção da realidade que predominou no        conclusões sobre o mundo. Portanto, não faço
Ocidente até as vésperas da revolução             parte desse mundo” - raciocina o cientista. A
científica era a de um “mundo encantado”. As      conseqüência lógica dessa visão de mundo é
rochas, as árvores, os rios e as nuvens eram      um sentimento de coisificação: tudo é objeto,
tidos pelo homem como seres maravilhosos e        estranho, não-eu. E “eu”, afinal, também sou
portadores de vida. Os homens, por sua vez,       um objeto; um ser à parte, em meios a tantos
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O cosmo era o lar ao qual pertenciam. Cada        mim; tampouco se importa com minha
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relação conferia sentido profundo à vida de       humanidade, vigorou a concepção de que o
todos. Este tipo de concepção da realidade –      mundo era encantado e o homem se sentia
que chamarei consciência participante –           como parte integrante dele. Nos últimos quatro
envolve a fusão ou identificação do homem         séculos, a total reversão dessa concepção
com o seu ambiente natural, expressando uma       destruiu, no plano psíquico e físico, o
integração psíquica que há muito tempo            sentimento de integração do homem em
deixou de existir.                                relação ao cosmo. Isso foi responsável pela
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Considerando-se o plano mental, a história da     esperança, parece-me, está no re-encantamento
Idade Moderna é uma história de progressivo       do mundo como meio de nosso re-encontro.
desencantamento. A partir do século XVI, a
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estrangeiros (seres não-integrados) em relação    moderno. Não podemos voltar à alquimia ou
aos fenômenos do mundo. Inovações capazes         ao animismo – pelo menos isso não parece
de questionar essa nova visão da realidade –      provável. Por outro lado, não podemos
física quântica, ou certas pesquisas ecológicas   permanecer com este mundo triste, de frieza
– não foram suficientemente fortes para abalar    científica, controlado por computadores,
a forma dominante do pensamento vigente.          ameaçado por reatores nucleares. É preciso
Essa forma pode ser adequadamente descrita        desenvolver algum tipo de consciência
com palavras como desencantamento, não-           holística ou participante – e uma formação
integração, pois ela insiste em estabelecer uma   sociopolítica correspondente – se desejamos
rígida separação entre o observador e o           sobreviver enquanto espécie genuinamente
observado. Assim, a consciência científica        humana.
tornou-se uma consciência alienada no sentido
de que não promove uma fusão harmoniosa           MORRIS BERMAN
com a natureza, mas sim a separação plena         The reenchantment of the world (excertos da
dela. O sujeito conhecedor e o objeto             introdução, traduzidos e adaptados pelo
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  • 1. COTRIM, Gilberto. Fundamentos da filosofia. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 1993. Pg. 25. Natureza em destruição O poder da consciência participante A concepção da realidade que predominou no conclusões sobre o mundo. Portanto, não faço Ocidente até as vésperas da revolução parte desse mundo” - raciocina o cientista. A científica era a de um “mundo encantado”. As conseqüência lógica dessa visão de mundo é rochas, as árvores, os rios e as nuvens eram um sentimento de coisificação: tudo é objeto, tidos pelo homem como seres maravilhosos e estranho, não-eu. E “eu”, afinal, também sou portadores de vida. Os homens, por sua vez, um objeto; um ser à parte, em meios a tantos sentiam-se em casa neste “mundo encantado”. outros seres. O cosmo não foi construído por O cosmo era o lar ao qual pertenciam. Cada mim; tampouco se importa com minha pessoa não era um observador distante e existência e eu não tenho a sensação de estar alienado, mas um direto participante da trama nele integrado. da vida. O destino pessoal de cada um estava ligado ao destino do cosmo, e esta inter- Durante mais de 99% da história da relação conferia sentido profundo à vida de humanidade, vigorou a concepção de que o todos. Este tipo de concepção da realidade – mundo era encantado e o homem se sentia que chamarei consciência participante – como parte integrante dele. Nos últimos quatro envolve a fusão ou identificação do homem séculos, a total reversão dessa concepção com o seu ambiente natural, expressando uma destruiu, no plano psíquico e físico, o integração psíquica que há muito tempo sentimento de integração do homem em deixou de existir. relação ao cosmo. Isso foi responsável pela quase-destruição ecológica do planeta. A única Considerando-se o plano mental, a história da esperança, parece-me, está no re-encantamento Idade Moderna é uma história de progressivo do mundo como meio de nosso re-encontro. desencantamento. A partir do século XVI, a mentalidade científica nos tornou verdadeiros É nisto que reside a questão central do dilema estrangeiros (seres não-integrados) em relação moderno. Não podemos voltar à alquimia ou aos fenômenos do mundo. Inovações capazes ao animismo – pelo menos isso não parece de questionar essa nova visão da realidade – provável. Por outro lado, não podemos física quântica, ou certas pesquisas ecológicas permanecer com este mundo triste, de frieza – não foram suficientemente fortes para abalar científica, controlado por computadores, a forma dominante do pensamento vigente. ameaçado por reatores nucleares. É preciso Essa forma pode ser adequadamente descrita desenvolver algum tipo de consciência com palavras como desencantamento, não- holística ou participante – e uma formação integração, pois ela insiste em estabelecer uma sociopolítica correspondente – se desejamos rígida separação entre o observador e o sobreviver enquanto espécie genuinamente observado. Assim, a consciência científica humana. tornou-se uma consciência alienada no sentido de que não promove uma fusão harmoniosa MORRIS BERMAN com a natureza, mas sim a separação plena The reenchantment of the world (excertos da dela. O sujeito conhecedor e o objeto introdução, traduzidos e adaptados pelo investigado são encarados como pólos opostos Autor) antagônicos. “Não sou minhas experiências e