2. Introdução
“Em todas as sociedades existem os chamados “ ritos de passagem”, que acompanham e
simbolizam quaisquer mudanças de idade, estado ou condição social”1
.
Segundo o livro, Retalhos do Quotidiano, de João Lopes Filho, num período muito difícil da
história de cabo verde, em que havia muitas carências, aconteceram com frequência mortes de
recém-nascidos, logo nos primeiros dias de vida, certamente originados por complicações de
saúde da criança, aliado a falta de cuidados médicos. O fenómeno, assustador, marcava a
sociedade cabo-verdiana. E havia um detalhe: muitas dessas mortes aconteciam antes do sétimo
dia de vida da criança. Detalhe, este, que fez com que os familiares e amigos começassem a
questionar o “porquê” da não passagem do sétimo dia de vida, daí as crenças de que forças
malignas, os maus espíritos estariam a roubar a vida dessas crianças e era preciso contrapor-lhes
com as forças do bem, sobretudo com orações, juntando com os objectos a que atribuíam algum
poder.
1
Retalhos do Quotidiano, João Lopes Filho
3. O Ritual
Ritual Antigo
Segundo o autor, “O sétimo dia após o nascimento de uma criança é festejado com grande
entusiasmo, reunindo em casa dos pais do bebé todos os familiares, vizinhos e amigos, numa
vigília com o objectivo de defendê-lo das bruxas. Acredita-se que elas podem vir buscar os
recém-nascidos abrindo-lhes a cabeça enquanto dormem comendo-lhes os miolos ou lhes sugar o
sangue ao sétimo dia, sem que alguém dê por isso, outra ainda é que a gordura das criancinhas é
aproveitada por elas para o fabrico de poções mágicas.
A cerimónia começa no momento em que a parteira coloca a tesoura com que cortou o cordão
umbilical, aberta em cruz debaixo do travesseiro da criança a servir de amuleto. Nalgumas zonas,
alem da tesoura colocam, também, uma faca formando com ela uma cruz e ainda um terço
(chamam a este conjunto ritual a «Defesa das três Marias») e em seguida vestem a criança com a
«saia de baixo» que a mãe trouxe durante os sete dias após parto.
A outra técnica consiste em envolver a criança numa peça suja de vestuário («normalmente
pertence ao pai ») , pois, assim, as bruxas já não a «comerão».
Todo este ritual e acompanhado, por vezes, de uma fogueira acesa numa das empenas da casa
para afastar «coisa ruim» (que tem medo do fogo). Dai que, também, durante todo este tempo as
crianças nunca são deixadas as escuras, pois ficariam a mercê dos maléficos dos espíritos maus.
Todo aquele pessoal passa a noite comendo, bebendo, contando histórias e anedotas ou jogando
cartas, mas procurando estar sempre atentos e fazer barulho para afugentar as bruxas. Ao som de
violões, cavaquinhos e chocalhos (feitos de grão de milho dentro de latinhas e sumo), vocalistas
improvisados cantam música tradicional e acontece também a assistência dançar no cubículo
térreo, iluminado por lamparinas pelo arrastar dos pés e o fumo do tabaco originam uma
atmosfera muito densa (portanto, imprópria para um bebe).
A meia-noite em ponto, duas «pessoas de coragem» saem a rua, sorrateiramente, para um de
cada lado do edifício atirarem punhados de cinza da fogueira (já referida) e sal sobre o casebre,
enquanto murmuram orações para afugentar os espíritos maus.
A partir deste momento o perigo passou e as bruxas já não têm poder sobre a vida da criancinha.
Assim sendo, a festa rija prolonga-se pela noite fora, com toda a gente participando
animadamente e cantando em honra da criancinha que acabou de ultrapassar um período decisivo
da sua vida”.
4. A festa “Guarda-Cabeça” noutras paragens
Segundo o autor do livro Retalhos do Quotidiano, “existem cerimónias de carácter
semelhante” como em São Tomé e Príncipe, no Brasil.
“No Nordeste brasileiro, a cerimónia do sétimo dia do nascimento, as pedras de sal são
lançadas sobre a casa, acredita-se que este vai distrair as bruxas, pois elas irão contá-las e
esquecerão de fazer mal às crianças”2
.
Ritual Actual
Actualmente, o ritual de “guarda-cabeça” é encarada com menos tradição, pois, são poucas as
pessoas que praticam-no no sétimo dia após o nascimento da criança. A cerimónia começa
quando todas as pessoas se reúnem em casa dos pais da criança, principalmente, a madrinha, o
padrinho e a pessoa que faz a oração. Quando todos os convidados estiverem presentes coloca-se
a agulha e a tesoura debaixo do travesseiro, a criança nos braços da madrinha, enquanto o
padrinho segura uma vela acesa e os pais seguram um copo de água. Daí, começa-se a oração
(Pai Nosso, Avé Maria e o Credo).
Quando termina a oração, coloca-se a água na cabeça da criança e depois pede-se aos pais e/ou
familiares para tocarem na cabeça a fim de receber a bênção de Deus. Depois da cerimónia todos
os convidados cantam a música “ nah mininu nah”, e seguem-se pela noite dentro comendo,
dançando, jogando cartas até ao amanhecer.
A musica “Nah mininu nah” é do compositor Eugénio Tavares, foi interpretada e
gravada, unicamente, por Sãozinha Fonseca no álbum “Andorinha di Bolta”.
Música: “Na oh mininu na”
Compositor Eugénio Tavares
Oh rostu dosi di odju aguadu
Ez bo kudadu botal pa traz
Nhor Dez ta danu um bida di paz
Oh nha pecadu di odju maguadu
Coro:
Na oh mininu na
Sombra runhu fuji di li
Na oh mininu na
2
Retalhos do Quotidiano, João Lopes Filho
5. Dixa nha fidju durmi
Sonu di bida, sonhu di amor
O grasa o dor, es e noz sorti
Si Deuz maz logu mandanu morti
Kem ki tem medu ta morri sedu
Coro
Toma nha ombru inkosta kabesa
Dja-n dabu petu ama ragaz
Oh spritu dosi ka bo tem presa
Deta ku djetu, durmi na paz
Coro
Que as entidades denominadas superiores protejam o/a… (diz o nome da criança).
“Guarda-Cabeça” como passagem de Ritual á Festa
As mudanças que normalmente ocorrem nas estruturas sociais contribuem para as alterações de
aspectos das tradições. Antigamente, o ritual “guarda-cabeça” era feito num ambiente de
apreensão, em que os familiares e amigos reuniam para esconjurar os maus espíritos.
Actualmente o ambiente é de festa, porque a geração nova desconhece a história dos rituais do
guarda-cabeça.
Segundo, o antropólogo, Orlando Borja, “o tempo” surge como um “factor de desgaste” que
“pode a pouco e pouco imprimir mudanças de hábitos” favorecendo “a recriação”, permitindo a
introdução de novos elementos, como: a música (“nah mininu nah” de Eugénio Tavares, que
conhecia bem a tradição), e a agulha.
6. Análise dos Símbolos
A tesoura era o objecto que a parteira utilizava para cortar o cordão
umbilical. Como a maior parte dos objectos cortantes, a tesoura, é um símbolo de energia
masculina e da acção. Na mitologia grega está associado ás Moiras (deusas que detêm o
poder sobre o destino dos homens), se utilizam da tesoura para “ cortar a linha da vida”.
Entre muitos povos é usada como amuleto para repelir as energias
negativas.
È uma oração católica em honra da Santíssima Virgem Maria
formando tradicionalmente por três terços. Cada terço compreende 5 mistérios da vida do
nosso Senhor, Jesus Cristo e de Nossa Senhora. Os mistérios são formados basicamente por
um Pai Nosso e dez Avé Marias. Cada mistério recorda uma passagem importante da
história da salvação, segundo a doutrina católica.
Ao conjunto deste ritual juntando estes elementos chama-se “Defesa das 3 Marias”.
7. RELAÇÃO SINTAGMÁTICA
Consiste na relação de dois ou mais signos produzindo um novo significado.
TESOURA/FACA + TERÇO = CRUZ
A tesoura e/ou a faca em forma de cruz simboliza a luta contra as forças malignas, a busca
de protecção de Deus para a vida. Segundo o dicionário de Símbolos, Jean Chevalier, a
Cruz é o símbolo do intermediário, do mediador.
7 Segundo a simbólica pitagórica, o número sete é um número sagrado, é, por
assim dizer, divino. Segundo o dicionário de Símbolos de Jean Chevalier, o número sete,
comporta uma ansiedade pelo facto de indicar a passagem do conhecido para o
desconhecido.
O fogo é considerado um símbolo sagrado na maioria das religiões,
incluindo o Hinduísmo e Islamismo. Quase todos os rituais religiosos são realizados na
presença deste elemento, seja em forma de fogueira ou mesmo simplesmente representado
por uma vela. Neste contexto, a fogueira e/ou o fogo assumem como símbolo para afastar a
“coisa ruim”. Acredita-se que as bruxas têm medo do fogo, uma vez que, esta possui um
misticismo.
8. Momento em que o Sol passa por um meridiano diametralmente oposto
ao meio dia. Simbolicamente a hora que os aprendizes e mestres, e em muitos outros graus
maçónicos encerram seus trabalhos á meia-noite em ponto.
A cinza extrai o seu simbolismo do facto de ser por excelência valor
residual: o que resta depois da extinção do fogo.
Alimento considerado como indispensável para o corpo, simboliza a
força vital e as virtudes morais e espirituais. O sal Grosso actua no plano astral e na esfera
psíquica, como esterilizador. Limpa o ambiente e as pessoas das energias negativas.
RELAÇÃO SINTAGMÁTICA
Ao conjunto de todos estes signos produz-se o ritual do “guarda-cabeça”, que é a reunião
no sétimo dia depois do parto, para se guardar e festejar o neófito3
.
Obs. do professor: relação sintagmática das palavras guarda+cabeça.
3
Dicionário Crioulo, Léxico do Dialecto Crioulo do Arquipélago de Cabo Verde, de Armando Napoleão Fernandes
9. Conclusão
Concluímos que o ritual “guarda-cabeça”, embora esteja presente na sociedade e na vida das
pessoas, poucos conhecem o seu verdadeiro significado, devido ao desaparecimento de
vestígios e que não foi transmitido pelos “antigos”, que conservaram para si todo o
conhecimento destas tradições. Daí, o nosso trabalho, a recolha de informações, afim de,
compreender, analisar, o “porquê”, “como se faz” o ritual de guarda-cabeça. Cremos que este
ritual contem elementos que reunidos acabam por traduzir a memória de um povo.
Fonte:
O livro, Retalhos do Quotidiano, João Lopes Filho
Dicionário Crioulo, Léxico do dialecto Crioulo do Arquipélago de Cabo Verde, de Armando Napoleão Fernandes
Para consulta de símbolos:
Dicionário dos Símbolos, Jean Chevalier
http://consolatajovem.blogspot.com
http://symbolon.com.br
http://www.girafamania.com.br/montagem/simbolos.htm
O Trabalho contou com a ajuda do Antropólogo, Orlando Borja
Nosso sincero agradecimento,