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O Muro

O homem, deitado de bruços, soergueu-se e rodou sobre si próprio, lentamente.
Alguns metros à frente, uma parede levantava-se em toda a sua volta. Uniforme.
Aproximou-se e estendeu o braço direito.
Tocando o muro, experimentou-lhe a solidez e percorreu-o em toda a sua extensão,
detendo-se exactamente no local de onde partira.
Impossível saltar. E a parede, completamente lisa, impedia qualquer tentativa de
escalada.
Retrocedeu.
No centro do recinto voltou a girar sobre si próprio. Nenhuma solução.
Levantou os olhos para o céu e seguiu o avanço suave de uma nuvem.
Descobriu uma pedra de não muito grandes dimensões e um feitio aparentemente
adequado. Seria suficientemente sólida?
Apanhou-a e avançou para o muro em passo decidido. Procuraria abrir algumas fendas
na parede, onde apoiaria os pés e as mãos numa tentativa de escalada.
Sentou-se no chão. O primeiro sulco abri-lo-ia a uns quarenta centímetros de altura.
Iniciou o trabalho com uma batida forte, lenta e ritmada.
Fustigava o muro há já algum tempo sem qualquer resultado quando a pedra se desfez.
Contrariedade enorme, esta. A solidez da parede obrigava à procura de outra solução.
Reergueu-se e caminhou lentamente, com as mãos nos bolsos.
Pensou em tecer uma corda utilizando as ervas altas. Talvez assim conseguisse a
escalada. O êxito da operação ficaria dependente de um objecto que, colocado numa das
extremidades da corda, permitisse a sua fixação no topo do muro.
Arrancou um tufo de ervas e dirigiu-se para a sombra. Sentado, iniciou a construção da
trança.
Quando ficou pronta, enrolou-a em torno do braço esquerdo e iniciou a busca do objecto
adequado à fixação da corda no alto da muralha.
Olhou primeiro para a esquerda e depois para a direita, decidindo-se por caminhar em
frente.
Pousou a corda no chão.
Finalmente, depois de muito procurar, encontrou três pedaços de verga de ferro.
Dobrou-os e atou-os uns aos outros de forma a obter uma fateixa.
Voltou ao local onde havia deixado a corda, procurando no bolso do lado direito das
calças um lenço de assoar.
Usou-o para limpar a testa e voltou a guardá-lo. Desta vez no bolso traseiro. Atou a
corda ao ferro, afastou-se alguns passos da parede e lançou a fateixa em direcção ao
topo do muro, o coração ligeiramente acelarado pelo esforço e pela esperança de ver
esse mesmo esforço resultar positivamente.
A primeira tentativa falhou, não porque o aparelho se revelasse inoperante, mas por não
lhe ter imprimido a força necessária para que atingisse o topo da muralha.
A segunda tentativa fahou igualmente. De novo a força empregue se revelara
insuficiente.
Abriu um pouco mais o ângulo, volteou a corda e conseguiu um arremesso perfeito.
Num voo eficaz, a fateixa ultrapassou o muro e desapareceu no lado contrário.
Puxou com força para nova desilusão. A superfície lisa e o cimo redondo da parede
impediam o ferro de encontrar um ponto de fixação.
Após uma nova tentativa abandonou também este método.
A muralha defendia-se de todos os seus ataques, mas teria de haver uma solução.
Nessa altura, a noite lançara já o seu manto de estrelas sobre o recinto onde o homem
enfrentava a sua impotência. Sentiu-se cansado e deitou-se.
Dormiu.


Ao acordar, a posição do sol fê-lo pensar ter dormido muito mais do que queria.
Mas talvez o sono não tivesse sido um desperdício. Sonhara uma máquina passível de
resolver o problema. Assim ela funcionasse.
Procurou nos bolsos o lenço de assoar que sabia possuir por tê-lo utilizado na véspera.
Encontrado este no bolso traseiro das calças, abriu-o e fez um nó em cada uma das suas
quatro pontas, por forma a poder utilizá-lo na cabeça como um chapéu, para protecção
contra os raios solares.
A passos firmes dirigiu-se para o centro do recinto e, aí, traçou, com a ajuda da corda,
um círculo perfeito, cujo raio era igual a exactamente três metros.
Limpou minuciosamente a área no interior do círculo e deu início à recolha de todos os
materiais passíveis de virem a ser úteis à sua empresa.
Cantarolou.
Com extraordinária competência e a um ritmo francamente animador, deu início à
construção do seu sonho.
Não sentia qualquer dificuldade na concepção do engenho. Tudo estava muito
claramente definido na sua memória. Todos os procedimentos relativos à construção e
ao funcionamento da máquina. Tudo!
As paragens e os consequentes atrasos na evolução da obra foram invariavelmente
motivados pela necessidade de encontrar os materiais ou fabricar os equipamentos que
lhe permitissem continuar os trabalhos.
Numa das paragens ditadas pela falta de matéria-prima, pensou na possibilidade
de,utilizando a corda e a fateixa, procurar materiais no exterior do recinto, do outro lado
da parede, ideia posta em prática com pleno êxito.
Cantou, entoando de forma quase fadista, um fragmento de um poema de Gedeão.


"Uma emoção pequenina
me vem do lado de lá.
Rompe através da cortina
Que envolve o mundo de cá."


O êxito alcançado na captura de materiais no exterior permitiu-lhe encarar com
optimismo a resolução de um outro eventual problema: talvez viesse a necessitar de
matérias combustíveis para assegurar o funcionamento da máquina. Animado, iniciou
igualmente a acumulação de materiais deste género.
Na posse de todas as soluções técnicas e práticas, pôde trabalhar durante trinta e oito
dias consecutivos, parando apenas para se alimentar e dormir o suficiente para não
vacilar.
Terminada a construção, olhou carinhosamente o produto de tanto esforço e afagou
suavemente a superfície áspera da máquina. Caminhou em seu redor e pareceu contente.
Afastou-se. Voltou a aproximar-se. Sorriu. Estava seguro da eficácia do engenho na
hora de ser posto em movimento.
Confiante, decidiu-se por uma breve pausa.




Ao fim de alguns minutos, ergueu-se e lançou um olhar em redor. Respirou fundo e deu
início à recolha de materiais combustíveis para alimentar a voragem da maravilha
mecânica acabada de construir. Empilharia resíduos combustíveis em quantidade
suficiente para lhe garantir a libertação do tempo necessário ao descanso e à execução
de outras tarefas. O tempo fluía. Tudo fluía, como um rio correndo em direcção ao mar.
"Uma emoção pequenina
Me vem do lado de lá."


Uma enorme pilha composta dos mais variados detritos começou a emergir do solo
junto à máquina. Sorriu com orgulho.
E mais sorriu ainda ao passar os dedos de mansinho pela estranha construção.
Pensou dar-lhe um nome, e isso pareceu-lhe normal.
Enrolou a corda. Deste modo tê-la-ia sempre pronta a ser utilizada.
Olhou para o céu, respirou fundo e deitou-se.




Manhã cedo. Manhã magnífica.




Deu uma volta em torno do mecanismo ainda inerte, certificando-se do estado de todos
os seus componentes. Contente com o resultado da análise, deu início ao trabalho.


A obra tinha resultado numa estranha construção, um equipamento complexo, onde
facilmente podiam ser identificadas estruturas e conceitos importados de outras
máquinas. Activava-se com a energia produzida numa caldeira pela combustão de todo
o tipo de resíduos. Os detritos desta combustão, uma pasta viscosa, permitiam
reutilização, o que resultava numa economia, ambiental como pessoal, nada
desprezível.
Uma vez o gigante em funcionamento, do seu corpo saíriam quatro braços colocados
em oposição e agindo a cerca de metro e meio do solo. Tais braços estender-se-iam,
segundo o princípio do telescópio, até alcançarem o muro. nessa altura dar-se-ia início a
um movimento de vaivém, e os braços agiriam sobre a parede como se de martelos
pneumáticos se tratassem, atingindo-a com sucessivos golpes de uma violência
sucessivamente ampliada e tendo como efeito a derrocada daquela estúpida muralha.
Colocara os longos braços mecânicos a um metro e sessenta centímetros do solo. Em
caso de não haver derrocada e vir a ter necessidade de trabalhar manualmente numa
eventual fenda para conseguir uma zona de evacuação, essa altitude permitir-lhe-ia gerir
melhor o esforço e, consequentemente, obter melhores e mais rápidos resultados.
Também a existência de quatro braços colocados em oposição, atacando o muro em
quatro lugares distintos, obedecia à intenção de reduzir maximamente as possibilidades
de derrota nesta empresa. Com as disposições tomadas e a eficácia do aparelho, a vitória
estava garantida.




Encheu a caldeira e retomou a busca de materiais combustíveis, fazendo-o tanto no
interior como no exterior, utilizando neste caso, e como sempre fazia, a corda com a
fateixa, que trazia enrolada cuidadosamente e em bandoleira, para tornar a sua utilização
mais eficaz.


Parou.


O sol escondera-se e todo o espaço à sua volta se transformara num círculo de sombra.
Levantou a cabeça, esticou-se, abriu os braços e passou as costas da mão direita pela sua
testa suada.
Em passo firme dirigiu-se para o local onde costumava dormir. Acreditava ser esse o
melhor lugar para o fazer, apesar de nunca ter pensado no assunto.




Quando os primeiros raios de sol invadiram o círculo murado, levantou-se. Hoje, os
braços da máquina iniciariam a sua viagem em direcção ao muro. A verificação do
estado geral de todo o engenho tomou-lhe as duas primeiras horas do dia. Satisfeito,
respirou fundo e, num gesto firme, pôs o aparelho em funcionamento. Depois, retomou
a procura de combustíveis, actividade na qual se manteve até ao pôr do sol, altura em
que procedeu ao reabastecimento da caldeira.


Nos quatro dias seguintes, a sua rotina manteve-se inalterável.


Ao quinto dia mediu o espaço percorrido pelos braços mecânicos. Alguns cálculos
rápidos informaram-no de que, não havendo contratempos, o muro caíria dentro de,
exactamente, nove dias.
Chegou a noite e, deitado sob um céu saturado de estrelas, adormeceu serena e
profundamente.
Os seus dias eram total e completamente consagrados à tarefa de manter aquele
organismo magnífico em funcionamento. Tudo quanto pudesse perturbar a sua tarefa
era imediata e metodicamente eliminado.




Ao sétimo dia, uma chuva persistente e miudinha veio opor-se à tranquilidade optimista
dos dias anteriores.
nesse dia sentiu aquele amontoado de sucata vibrante como uma extensão de si próprio.
Os braços movimentando-se em direcção ao muro eram os seus próprios braços
movidos pelos seus próprios músculos.
Não dormiu no mesmo local.


Na tarde seguinte a chuva parou. cansado pela luta travada para evitar a extinção do
brasido da caldeira, despiu a camisa e limpou cuidadosamente cada centímetro da
superfície da máquina. A tarefa terminou já depois de a noite ter estendido o seu negro
manto sobre a Terra. Deitou-se numa cavidade sob a arfante massa mecânica. O único
lugar que lhe pareceu seco e abrigado.
No dia seguinte retomou a rotina interrompida pela chuva. Pelos seus cálculos, perdera
apenas um dia. Nada de grave, portanto.
À noite voltou a deitar-se no local onde acordara nessa manhã. ali vigiaria melhor o
desempenho do seu engenho.




Ao acordar do décimo dia o coração batia-lhe a um ritmo superior ao normal. Atingira o
dia previsto para a queda do muro sem qualquer outro contratempo. podia ler-se orgulho
e inquietação no seu olhar.
Como fazia todas as manhãs, mesmo quando chovera, verificou o funcionamento, um a
um, de cada elemento do maquinismo e retomou a tarefa de manter o nível da pilha de
combustíveis.
Às dez horas assaltou-o uma angústia indefinível. Abandonou o trabalho, dirigiu-se para
a máquina e iniciou uma minuciosa operação de limpeza. como se preparasse o engenho
para um desfile em parada.
mas a inquietação manteve-se e, nem mesmo ao meio-dia, quando as primeiras pedras
da muralha começaram a cair, sentiu qualquer alívio.




Três horas e alguns minutos depois, levantou-se e rodou sobre si próprio,
acompanhando o ruir fragoroso da parede.
serenamente, sem um único pensamento, aguardou a consumação da derrocada.




As enormes paredes aluíram e sentiu uma brisa fresca que talvez por ali sempre tivesse
corrido.




Escalou os escombros com segurança, como se toda a vida tivesse trepado por aquelas
pedras e, chegado ao alto, voltou-se para trás, num último olhar sobre a arena onde
travara o fantástico combate daqueles dias.
Atrás de si a máquina fremia ruidosamente, os braços desferindo inúteis golpes no
vazio. Um pouco mais para a direita erguia-se, agora quase totalmente consumida, a
pilha de materiais combustíveis.
Em todo o corpo sentia a terra vibrante. Algumas lágrimas afloraram-lhe o rosto. Olhou
as mãos calosas e desceu.
desceu até à máquina, deu um ligeiro toque num tufo de ervas com o bico do sapato,
olhou o céu sem nuvens e desatou a encher a caldeira. Reorientou a acção dos braços
metálicos, lançou-se freneticamente na apanha de combustível e organizou mentalmente
as tarefas seguintes.
Conhecedor de todos os segredos daquela engrenagem, sabia quão atarefados seriam os
seus dias.
Manter a pilha de combustível, reconstruir o muro, zelar pelo bom funcionamento
daquela maravilha arquejante e, a todo o custo, evitar qualquer possibilidade de
colapso.




Trabalho e vigilância seriam, doravante, o princípio e o fim da sua vida.
O muro by A. Alfredo Poeiras

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O muro by A. Alfredo Poeiras

  • 1. O Muro O homem, deitado de bruços, soergueu-se e rodou sobre si próprio, lentamente. Alguns metros à frente, uma parede levantava-se em toda a sua volta. Uniforme. Aproximou-se e estendeu o braço direito. Tocando o muro, experimentou-lhe a solidez e percorreu-o em toda a sua extensão, detendo-se exactamente no local de onde partira. Impossível saltar. E a parede, completamente lisa, impedia qualquer tentativa de escalada. Retrocedeu. No centro do recinto voltou a girar sobre si próprio. Nenhuma solução. Levantou os olhos para o céu e seguiu o avanço suave de uma nuvem. Descobriu uma pedra de não muito grandes dimensões e um feitio aparentemente adequado. Seria suficientemente sólida? Apanhou-a e avançou para o muro em passo decidido. Procuraria abrir algumas fendas na parede, onde apoiaria os pés e as mãos numa tentativa de escalada. Sentou-se no chão. O primeiro sulco abri-lo-ia a uns quarenta centímetros de altura. Iniciou o trabalho com uma batida forte, lenta e ritmada. Fustigava o muro há já algum tempo sem qualquer resultado quando a pedra se desfez. Contrariedade enorme, esta. A solidez da parede obrigava à procura de outra solução. Reergueu-se e caminhou lentamente, com as mãos nos bolsos. Pensou em tecer uma corda utilizando as ervas altas. Talvez assim conseguisse a escalada. O êxito da operação ficaria dependente de um objecto que, colocado numa das extremidades da corda, permitisse a sua fixação no topo do muro. Arrancou um tufo de ervas e dirigiu-se para a sombra. Sentado, iniciou a construção da trança. Quando ficou pronta, enrolou-a em torno do braço esquerdo e iniciou a busca do objecto adequado à fixação da corda no alto da muralha. Olhou primeiro para a esquerda e depois para a direita, decidindo-se por caminhar em frente. Pousou a corda no chão. Finalmente, depois de muito procurar, encontrou três pedaços de verga de ferro. Dobrou-os e atou-os uns aos outros de forma a obter uma fateixa. Voltou ao local onde havia deixado a corda, procurando no bolso do lado direito das
  • 2. calças um lenço de assoar. Usou-o para limpar a testa e voltou a guardá-lo. Desta vez no bolso traseiro. Atou a corda ao ferro, afastou-se alguns passos da parede e lançou a fateixa em direcção ao topo do muro, o coração ligeiramente acelarado pelo esforço e pela esperança de ver esse mesmo esforço resultar positivamente. A primeira tentativa falhou, não porque o aparelho se revelasse inoperante, mas por não lhe ter imprimido a força necessária para que atingisse o topo da muralha. A segunda tentativa fahou igualmente. De novo a força empregue se revelara insuficiente. Abriu um pouco mais o ângulo, volteou a corda e conseguiu um arremesso perfeito. Num voo eficaz, a fateixa ultrapassou o muro e desapareceu no lado contrário. Puxou com força para nova desilusão. A superfície lisa e o cimo redondo da parede impediam o ferro de encontrar um ponto de fixação. Após uma nova tentativa abandonou também este método. A muralha defendia-se de todos os seus ataques, mas teria de haver uma solução. Nessa altura, a noite lançara já o seu manto de estrelas sobre o recinto onde o homem enfrentava a sua impotência. Sentiu-se cansado e deitou-se. Dormiu. Ao acordar, a posição do sol fê-lo pensar ter dormido muito mais do que queria. Mas talvez o sono não tivesse sido um desperdício. Sonhara uma máquina passível de resolver o problema. Assim ela funcionasse. Procurou nos bolsos o lenço de assoar que sabia possuir por tê-lo utilizado na véspera. Encontrado este no bolso traseiro das calças, abriu-o e fez um nó em cada uma das suas quatro pontas, por forma a poder utilizá-lo na cabeça como um chapéu, para protecção contra os raios solares. A passos firmes dirigiu-se para o centro do recinto e, aí, traçou, com a ajuda da corda, um círculo perfeito, cujo raio era igual a exactamente três metros. Limpou minuciosamente a área no interior do círculo e deu início à recolha de todos os materiais passíveis de virem a ser úteis à sua empresa. Cantarolou. Com extraordinária competência e a um ritmo francamente animador, deu início à construção do seu sonho. Não sentia qualquer dificuldade na concepção do engenho. Tudo estava muito
  • 3. claramente definido na sua memória. Todos os procedimentos relativos à construção e ao funcionamento da máquina. Tudo! As paragens e os consequentes atrasos na evolução da obra foram invariavelmente motivados pela necessidade de encontrar os materiais ou fabricar os equipamentos que lhe permitissem continuar os trabalhos. Numa das paragens ditadas pela falta de matéria-prima, pensou na possibilidade de,utilizando a corda e a fateixa, procurar materiais no exterior do recinto, do outro lado da parede, ideia posta em prática com pleno êxito. Cantou, entoando de forma quase fadista, um fragmento de um poema de Gedeão. "Uma emoção pequenina me vem do lado de lá. Rompe através da cortina Que envolve o mundo de cá." O êxito alcançado na captura de materiais no exterior permitiu-lhe encarar com optimismo a resolução de um outro eventual problema: talvez viesse a necessitar de matérias combustíveis para assegurar o funcionamento da máquina. Animado, iniciou igualmente a acumulação de materiais deste género. Na posse de todas as soluções técnicas e práticas, pôde trabalhar durante trinta e oito dias consecutivos, parando apenas para se alimentar e dormir o suficiente para não vacilar. Terminada a construção, olhou carinhosamente o produto de tanto esforço e afagou suavemente a superfície áspera da máquina. Caminhou em seu redor e pareceu contente. Afastou-se. Voltou a aproximar-se. Sorriu. Estava seguro da eficácia do engenho na hora de ser posto em movimento. Confiante, decidiu-se por uma breve pausa. Ao fim de alguns minutos, ergueu-se e lançou um olhar em redor. Respirou fundo e deu início à recolha de materiais combustíveis para alimentar a voragem da maravilha mecânica acabada de construir. Empilharia resíduos combustíveis em quantidade suficiente para lhe garantir a libertação do tempo necessário ao descanso e à execução de outras tarefas. O tempo fluía. Tudo fluía, como um rio correndo em direcção ao mar.
  • 4. "Uma emoção pequenina Me vem do lado de lá." Uma enorme pilha composta dos mais variados detritos começou a emergir do solo junto à máquina. Sorriu com orgulho. E mais sorriu ainda ao passar os dedos de mansinho pela estranha construção. Pensou dar-lhe um nome, e isso pareceu-lhe normal. Enrolou a corda. Deste modo tê-la-ia sempre pronta a ser utilizada. Olhou para o céu, respirou fundo e deitou-se. Manhã cedo. Manhã magnífica. Deu uma volta em torno do mecanismo ainda inerte, certificando-se do estado de todos os seus componentes. Contente com o resultado da análise, deu início ao trabalho. A obra tinha resultado numa estranha construção, um equipamento complexo, onde facilmente podiam ser identificadas estruturas e conceitos importados de outras máquinas. Activava-se com a energia produzida numa caldeira pela combustão de todo o tipo de resíduos. Os detritos desta combustão, uma pasta viscosa, permitiam reutilização, o que resultava numa economia, ambiental como pessoal, nada desprezível. Uma vez o gigante em funcionamento, do seu corpo saíriam quatro braços colocados em oposição e agindo a cerca de metro e meio do solo. Tais braços estender-se-iam, segundo o princípio do telescópio, até alcançarem o muro. nessa altura dar-se-ia início a um movimento de vaivém, e os braços agiriam sobre a parede como se de martelos pneumáticos se tratassem, atingindo-a com sucessivos golpes de uma violência sucessivamente ampliada e tendo como efeito a derrocada daquela estúpida muralha. Colocara os longos braços mecânicos a um metro e sessenta centímetros do solo. Em caso de não haver derrocada e vir a ter necessidade de trabalhar manualmente numa eventual fenda para conseguir uma zona de evacuação, essa altitude permitir-lhe-ia gerir
  • 5. melhor o esforço e, consequentemente, obter melhores e mais rápidos resultados. Também a existência de quatro braços colocados em oposição, atacando o muro em quatro lugares distintos, obedecia à intenção de reduzir maximamente as possibilidades de derrota nesta empresa. Com as disposições tomadas e a eficácia do aparelho, a vitória estava garantida. Encheu a caldeira e retomou a busca de materiais combustíveis, fazendo-o tanto no interior como no exterior, utilizando neste caso, e como sempre fazia, a corda com a fateixa, que trazia enrolada cuidadosamente e em bandoleira, para tornar a sua utilização mais eficaz. Parou. O sol escondera-se e todo o espaço à sua volta se transformara num círculo de sombra. Levantou a cabeça, esticou-se, abriu os braços e passou as costas da mão direita pela sua testa suada. Em passo firme dirigiu-se para o local onde costumava dormir. Acreditava ser esse o melhor lugar para o fazer, apesar de nunca ter pensado no assunto. Quando os primeiros raios de sol invadiram o círculo murado, levantou-se. Hoje, os braços da máquina iniciariam a sua viagem em direcção ao muro. A verificação do estado geral de todo o engenho tomou-lhe as duas primeiras horas do dia. Satisfeito, respirou fundo e, num gesto firme, pôs o aparelho em funcionamento. Depois, retomou a procura de combustíveis, actividade na qual se manteve até ao pôr do sol, altura em que procedeu ao reabastecimento da caldeira. Nos quatro dias seguintes, a sua rotina manteve-se inalterável. Ao quinto dia mediu o espaço percorrido pelos braços mecânicos. Alguns cálculos rápidos informaram-no de que, não havendo contratempos, o muro caíria dentro de, exactamente, nove dias.
  • 6. Chegou a noite e, deitado sob um céu saturado de estrelas, adormeceu serena e profundamente. Os seus dias eram total e completamente consagrados à tarefa de manter aquele organismo magnífico em funcionamento. Tudo quanto pudesse perturbar a sua tarefa era imediata e metodicamente eliminado. Ao sétimo dia, uma chuva persistente e miudinha veio opor-se à tranquilidade optimista dos dias anteriores. nesse dia sentiu aquele amontoado de sucata vibrante como uma extensão de si próprio. Os braços movimentando-se em direcção ao muro eram os seus próprios braços movidos pelos seus próprios músculos. Não dormiu no mesmo local. Na tarde seguinte a chuva parou. cansado pela luta travada para evitar a extinção do brasido da caldeira, despiu a camisa e limpou cuidadosamente cada centímetro da superfície da máquina. A tarefa terminou já depois de a noite ter estendido o seu negro manto sobre a Terra. Deitou-se numa cavidade sob a arfante massa mecânica. O único lugar que lhe pareceu seco e abrigado. No dia seguinte retomou a rotina interrompida pela chuva. Pelos seus cálculos, perdera apenas um dia. Nada de grave, portanto. À noite voltou a deitar-se no local onde acordara nessa manhã. ali vigiaria melhor o desempenho do seu engenho. Ao acordar do décimo dia o coração batia-lhe a um ritmo superior ao normal. Atingira o dia previsto para a queda do muro sem qualquer outro contratempo. podia ler-se orgulho e inquietação no seu olhar. Como fazia todas as manhãs, mesmo quando chovera, verificou o funcionamento, um a um, de cada elemento do maquinismo e retomou a tarefa de manter o nível da pilha de combustíveis. Às dez horas assaltou-o uma angústia indefinível. Abandonou o trabalho, dirigiu-se para a máquina e iniciou uma minuciosa operação de limpeza. como se preparasse o engenho para um desfile em parada.
  • 7. mas a inquietação manteve-se e, nem mesmo ao meio-dia, quando as primeiras pedras da muralha começaram a cair, sentiu qualquer alívio. Três horas e alguns minutos depois, levantou-se e rodou sobre si próprio, acompanhando o ruir fragoroso da parede. serenamente, sem um único pensamento, aguardou a consumação da derrocada. As enormes paredes aluíram e sentiu uma brisa fresca que talvez por ali sempre tivesse corrido. Escalou os escombros com segurança, como se toda a vida tivesse trepado por aquelas pedras e, chegado ao alto, voltou-se para trás, num último olhar sobre a arena onde travara o fantástico combate daqueles dias. Atrás de si a máquina fremia ruidosamente, os braços desferindo inúteis golpes no vazio. Um pouco mais para a direita erguia-se, agora quase totalmente consumida, a pilha de materiais combustíveis. Em todo o corpo sentia a terra vibrante. Algumas lágrimas afloraram-lhe o rosto. Olhou as mãos calosas e desceu. desceu até à máquina, deu um ligeiro toque num tufo de ervas com o bico do sapato, olhou o céu sem nuvens e desatou a encher a caldeira. Reorientou a acção dos braços metálicos, lançou-se freneticamente na apanha de combustível e organizou mentalmente as tarefas seguintes. Conhecedor de todos os segredos daquela engrenagem, sabia quão atarefados seriam os seus dias. Manter a pilha de combustível, reconstruir o muro, zelar pelo bom funcionamento daquela maravilha arquejante e, a todo o custo, evitar qualquer possibilidade de colapso. Trabalho e vigilância seriam, doravante, o princípio e o fim da sua vida.