Fragmentos Históricos da criação e inauguração do Hospício São Pedro
1. FRAGMENTOS HISTÓRICOS DA CRIAÇÃO
E INAUGURAÇÃO DO HOSPITAL PSIQUIÁTRICO SÃO PEDRO
Edson Medeiros Cheuiche
Historiador do SMC/HPSP
O Hospital Psiquiátrico São Pedro, nomeado Hospício São Pedro em
homenagem ao padroeiro da Província, foi a primeira instituição
psiquiátrica de Porto Alegre e da Província de São Pedro. Fundado em
13 de maio de 1874, foi inaugurado dez anos após, no dia 29 de
junho, data consagrada a São Pedro. Foi o sexto asilo/hospício de
alienados (hospício, do latim "hospitium", hospedeiro; local destinado
ao acolhimento de doentes pobres e incuráveis / alienado, do latim
"alienus", estranho; o indivíduo estranho a si mesmo ou à
comunidade social), implantado durante o Segundo Reinado no Brasil
(1841-1889).
A urbe, apolínea e normatizadora, lugar de previsibilidade e
regularidade, foi ocupada por corpos sociais judiciosos, que à procura
de organização e funcionamento social estabeleceram padrões
sanitários através de processos de medicalização / higienização
(discurso). Nesse meio considerado racional, a loucura foi
institucionalizada, silenciada e afastada do “centro de civilidade”,
pretendido como opulento, transparente, disciplinado e purificado
(prática).
A criação do asilo de alienados fez parte do processo de
saneamento social da Capital da Província de São Pedro. O método
utilizado foi o deslocamento para o subúrbio das instituições que
abrigaram as enfermidades, as detenções e os sepultamentos: a
Santa Casa foi construída no alto da colina – “alto da Misericórdia” -
circundando o núcleo populacional da cidade, o Lazareto de
Variolosos estava situado no perímetro leste da cidade, na “Chácara
das Bananeiras”, onde hoje estão estabelecidos os quartéis da
Brigada Militar e o Presídio ‘Central, a Casa de Correção, uma
edificação pública que serviu para o encarceramento dos aviltados
sociais que não se enquadraram nas normas comportamentais
determinadas pela sentenciosa comunidade, foi edificada na
extremidade da península que acolhia a parte urbana da sede do
município, e o cemitério da Santa Casa estava localizado na região
rural e alta da Azenha, afastada do curso do arroio da Azenha, no
início da “Estrada de Belém”.
Os hospícios foram utilizados pelos médicos alienistas como
espaços de observações dos insanos, confiando no propósito de que o
isolamento possibilitaria o afastamento das prováveis causas que os
levaram à alienação mental. Se o hospício foi o meio na construção
do saber alienista, o isolamento foi o método na prática terapêutica
da reabilitação mental.
2. Na Província de São Pedro, a preocupação do governo em
contar com um espaço específico para o acolhimento e tratamento
dos alienados ficou evidente através do relatório do presidente
Joaquim Antão Fernandes Leão, apresentado à Assembléia Provincial,
na 2ª sessão da 8ª legislatura de 5 de novembro de 1859. Lembrou
aos deputados a proibição do envio de alienados para o Hospício
Pedro II e sugeriu a criação de uma instituição de caridade
especialmente voltada aos alienados da Província. A construção do
edifício teria a supervisão da Santa Casa da Capital e o apoio
financeiro do Governo Provincial:
"Hospicio de Alienados - Estando prohibida a remessa e
admissão no hospicio de Pedro II dos alienados, que
existem na provincia, e que forem reconhecidos
incuraveis, como sejão os idiotas, imbecis, epilepticos e
paraliticos dementes, que possão viver inoffensivos em
qualquer parte; e não havendo nos estabelecimentos de
caridade fundados na provincia accommodações
apropriadas, onde possão ser conservados e tratados
aqueles infelizes, com especialidade os dementes
furiosos; chamo a vossa attenção sobre a necessidade de
se fundar um pequeno hospicio em local apropriado, onde
possão elles ser recolhidos e tratados convenientemente:
este estabelecimento poderia ser feito pela Santa Casa da
Caridade desta Capital, sendo para esse fim applicada
somma sufficiente”.
No ano seguinte, como a população de dementes aumentava
rapidamente na Santa Casa de Porto Alegre, proveniente de todas as
regiões da Província, cresceu a dificuldade de abrigá-los, sendo
necessário que os recolhessem à cadeia civil.
Essa situação critica ficou apontada no relatório de novembro
de 1860, apresentado no segundo ano de presidência do conselheiro
Antão Fernandes Leão à Assembléia Provincial:
"Alienados: Grandes são os embaraços com que luta o
estabelecimento para proporcionar commodos adequados
á essa classe de infelizes, por se limitar a 12 o numero
das cellulas que alli ha sem as condições hygienicas
indispensaveis á sua conservação; pelo que por mais uma
vez se tem mandado reunir alguns na cadêa de Justiça,
até que possão ser transferidos para o Hospital”.
Em 1864, foi registrado no relatório emitido pelo presidente da
Província de São Pedro, Espiridião Eloy de Barros Pimentel, no
Capítulo "Estabelecimentos de Caridade", informações do
atendimento proporcionado ao longo do ano anterior pela Santa Casa
de Misericórdia de Porto Alegre: que dentre uma população atendida
3. de 1012 enfermos constavam 50 alienados pobres (30 homens e 20
mulheres) e 7 particulares (5 homens e 2 mulheres). Que saíram
curados 12 alienados pobres e 2 alienados particulares, falecendo 6
alienados pobres e 2 alienados particulares. Também ficou
consignado no relatório do presidente Pimentel, que no ano anterior,
na administração do provedor João Rodrigues Fagundes, houve a
inauguração de um local específico para o acolhimento de alienados
na Santa Casa:
"Asylo de alienados: - No dia 02 de Dezembro ultimo foi
com toda a solenidade inaugurado este estabelecimento
no edificio para elle expressamente construido com as
necessarias proporções e sob o mesmo plano do hospital
de caridade, de que é continuação. No pavimento superior
destinado ás mulheres forão recolhidas em 1.º de Janeiro
do anno findo 13 alienadas; o segundo pavimento
destinado para os homens recebeo 18 alienados, que com
aquellas perfazem o n.º de 31”.
O marechal de campo Luiz Manoel de Lima e Silva, provedor da
Santa Casa de Misericórdia de 1865 a 1872, criticou em seu relatório
de 1867 o comportamento dos alienados asilados na instituição
assistencial:
"Pois os infelizes que n´lles habitão, muito os enxovalhão
e estragão, além do que inutilisão roupas, isto
constantemente, não obstante a pontual vigilancia dos
enfermeiros (...), e não impedia a continuada quebra de
vidros, que traz uma grande despeza no anno, tudo
causado por taes infelizes, que têm um instincto
particular para a destruição”.
No final de sua gestão, Luiz Manoel de Lima e Silva reafirmou as
dificuldades administrativas e financeiras da Misericórdia
proporcionado pelo acolhimento de insanos, e alertou para a contínua
prática do envio indiscriminado de alienados de toda a Província para
a Santa Casa de Porto Alegre:
"Estes pensionistas vitalicios são os mais pesados para o
pio estabelecimento pelas despezas que fazem, e o
incomodo que dão. O asilo continua repleto de alienados
de ambos os sexos, e se maior fosse não chegaria para
tantos infelizes, pois de todas as partes da Provincia se
reclama entradas de novos”.
Foi recorrente a prática de regulação social dos insanos na
Província, antes e após a inauguração do asilo de alienados que levou
a denominação de São Pedro. As propostas discricionárias estatuídas
4. pelo poder público através dos Códigos de Posturas de diversas
Câmaras Municipais da Província de São Pedro estabeleceram uma
marginalização coagida desses indivíduos de pensamentos e
linguajares caóticos. Foram considerados inaptos para conviverem no
cotidiano e em meio à comunidade das vilas e cidades da Província de
São Pedro.
Foi provedor da Santa Casa de Porto Alegre, 1873 a 1881, o
comerciante José Antonio Coelho Junior, um cidadão altruísta com
participação ativa na vida pública da Província. Coelho Junior liderou
na Santa Casa a exitosa campanha de criação de um asilo de
alienados. Exerceu a presidência da primeira comissão encarregada
da construção do prédio manicomial, que tinha como uma das
premissas o de ser afastado do prédio da Misericórdia. Os recursos
financeiros foram obtidos com doações de filantropos e com
concessões de doze loterias à Irmandade da Santa Casa de Porto
Alegre, que foi encarregada de dar andamento no processo de
implantação do asilo de insanos. A atribuição de gestão, bem como as
condições definidas foi autorizada pela Lei Provincial nº 944, de 13 de
maio de 1874, sancionada pelo presidente da Província João Pedro
Carvalho de Moraes.
De acordo com a Lei nº 988, de 27 de abril de 1875, decretada
pela Assembléia Provincial e sancionada pelo presidente provincial
José Antonio de Azevedo Castro, o Art. 1°, § 12, "Subvenção ás
Casas de Caridade", foi autorizado o adiantamento de 25 contos de
réis para começar a edificação do asilo de alienados por conta do
benefício das loterias decretadas à Santa Casa.
No ano seguinte foi ajustada a compra da chácara de Israel
Rodrigues Barcelos para a construção do prédio do asilo de alienados.
O local estava situado entre a "Estrada do Mato Grosso" (atual av.
Bento Gonçalves) e a “Estrada de Belém” ( atual av. Oscar Pereira)
próximo da atual rua Vicente da Fontoura (ex-Boa Vista), no Arraial
do Partenon. No dia 19 de março, dom Sebastião Dias Laranjeira,
bispo da Província de São Pedro, benzeu a pedra fundamental da
nova instituição manicomial, que levou o nome de Hospício São José.
Por motivos desconhecidos o proprietário do terreno acabou
desistindo do negócio, impossibilitando a construção do asilo de
alienados.
Em novembro de 1879, no governo de Carlos Thompson Flores,
a Fazenda Provincial comprou um terreno conhecido como a chácara
da “Saúde” para a edificação do hospício. A área conhecida como
chácara da “Saúde”, com aproximadamente 33 hectares, foi adquirida
da viúva Maria Rita Clara Rabello, por 25 contos de réis. Afastada da
urbe, a chácara tinha “2.500 palmos de frente e 3.181 palmos de
fundos”. Entestava ao sul com a "Estrada do Mato Grosso", caminho
para a localidade de Nossa Senhora da Conceição de Viamão. A
bucólica quinta era arborizada, rica em ar puro e água potável, onde
corria a leste o arroio do Chagas e ao norte o arroio da Azenha, apta
à terapêutica laboral e à segregação social da loucura.
5. Em Porto Alegre, mesmo com a compra de um espaço
específico para a construção de um asilo de alienados, permaneciam
as inquietações das autoridades provinciais com as detenções dos
insanos nas cadeias.
Em janeiro de 1882, o presidente provincial Francisco de
Carvalho Soares Brandão, ao tratar da Repartição de Obras Públicas,
relatou a construção de celas na cadeia civil de Porto Alegre,
específicas para o acolhimento de alienados:
"De accôrdo como projecto e orçamento que mandei
organizar pela repartição de obras públicas, determinei ao
respectivo director a construcção de cinco cellulas para
alienados, junto ao corpo da guarda da cadéa civil desta
Capital (..) as cellulas se achão concluidas e já os
alienados ahí acommodados, evitando-se os incovinientes
de sua conservação no interior da cadéa”.
Em setembro do mesmo ano, o presidente da Província José
Leandro de Godoy e Vasconcelos determinou a construção imediata
de um dos pavilhões projetados do hospício para o acolhimento dos
alienados que estavam na cadeia civil:
"Para se recolherem os alienados que se acham na cadéa
civil, mandei que com urgencia se preparasse um dos
pavilhões desse hospicio suspendendo-se as demais
construcções”.
Em fevereiro do ano seguinte, enquanto o engenheiro Alvaro
Nunes Pereira, diretor da Repartição de Obras Públicas, reforçou a
premência da construção de pelo menos um dos pavilhões do
hospício, o chefe de Polícia José Maria de Araújo manifestou a
situação desagradável e perversa do encarceramento de alienados na
cadeia civil da Capital:
"É verdadeiramente commovedora a sorte desses
desgraçados que, perdendo o uso da razão, tornam-se
uma ameaça e um perigo para a communhão social,
quando, ás tristezas de seu infortunio, accrescem os
constrangimentos de uma reclusão incommoda e iniqua,
como ora se dá nesta Capital (...). Existem nesta cidade
cincoenta alienados, dos quaes vinte e nove são homens
e vinte e uma mulheres. Dezenove estão lançados nos
quartos da Cadéa Civil e trinta e um permanecem na
Santa Casa de Misericórdia”.
Do lançamento da pedra fundamental do "Asilo de Alienados”,
em 2 de dezembro de 1879, aniversário de 54 anos de D. Pedro II,
6. até 1903, quando foi concluído o 6º pavilhão, somente foi
contemplado a metade do projeto original do hospício.
A correspondência de 19 de junho de 1884, do provedor da
Santa Casa Joaquim Pedro Salgado, ao conselheiro José Julio de
Albuquerque Barros, presidente da Província, assinalou o aceite do
comando do futuro hospício de alienados pela Mesa Administrativa da
Santa Casa. A administração por parte da Misericórdia durou até
novembro de 1889. Com a República a direção-geral do Hospício, por
determinação do Governo Estadual, passou para o médico Francisco
Dias de Castro.
Em de 29 de junho de 1884 foi inaugurado o Hospício São
Pedro pela Mesa Administrativa da Santa Casa de Misericórdia de
Porto Alegre. O evento foi comemorado com ostentação na presença
das autoridades civis, militares e eclesiásticas, dos notáveis da
Província, dos benfeitores do novo asilo de alienados, e da imprensa
de Porto Alegre. Instalado com somente um dos atuais 6 pavilhões, a
instituição manicomial acolheu no primeiro dia de atividades, 41
alienados, sendo 25 transferidos da Santa Casa (14 homens e 11
mulheres) e 16 da cadeia civil (10 homens e 6 mulheres).