O documento descreve o processo de privatização no Brasil desde os anos 1930 até os anos 1990. A privatização teve início no governo Collor em 1990 e foi ampliada no governo FHC, quando o Estado brasileiro atingiu seu ápice de desmanche. Grandes estatais estratégicas foram vendidas a preços baixos a grupos econômicos nacionais e estrangeiros, prejudicando o desenvolvimento do país.
3. Editorial
Um jogo de cartas marcadas
C
omo parte das comemorações dos 75 anos Foram criadas diversas empresas estatais nas áreas de
do Sindicato dos Engenheiros no Estado transportes, cinema e até hotelaria. Nessa época, o go-
do Paraná, apresentamos este caderno verno brasileiro passa a fazer uso político das empresas,
especial “Reflexos da Privatização”. O objetivo des- entregando cargos técnicos a aliados, subvertendo o con-
sa publicação é apresentar um panorama do proces- ceito original das estatais. Em 1979, o governo do general
so de privatização no Brasil, que surgiu com força no João Baptista Figueiredo (1979-1985) lança o Programa
governo de Fernando Collor de Mello (1990-1992) Nacional de Desburocratização, com objetivo de privatizar
que instituiu o Programa Nacional de Desestatização algumas dessas empresas. No entanto, é no início do
(PND) e implementado com mais vigor após a cria- governo Collor e sua política neoliberal que esse processo
ção do Conselho Nacional de Desestatização, já no se intensifica. O conceito de Estado Mínimo é adotado,
governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002). com o objetivo de facilitar a administração e “enxugar” a
As principais empresas estatais brasileiras surgiram máquina pública. Dessa forma, o governo brasileiro colo-
durante o primeiro governo de Getúlio Vargas (1930- ca a venda suas principais empresas, sob o argumento
1945). Antes disso, durante o período imperial, foram cri- que eram deficitárias. Mas a primeira estatal privatizada
ados o Banco do Brasil S/A, o Banco do Estado de São em seu governo, a siderúrgica mineira Usiminas, era uma
Paulo S/A, o Banco Mineiro da Produção e o Banco de das mais lucrativas. Mesmo com grandes manifestações
Crédito da Borracha. Mas foi com o início da industriali- populares, até o fim do tumultuado governo de apenas
zação no país que surgiram as grandes estatais brasileiras dois anos, 18 grandes estatais foram entregues a iniciativa
como o Instituto de Resseguros do Brasil, a Companhia privada, especialmente siderúrgicas e petroquímicas.
No governo seguinte, de Fernando Henrique Cardoso
Vale do Rio Doce, a Companhia Nacional de Álcalis, a
(1995-2002), o desmanche do estado brasileiro atinge seu
Companhia Hidroelétrica do São Francisco e a Fábrica
ápice. Com a criação do Conselho Nacional de
Nacional de Motores S/A. Elas tinham como objetivo a
Desestatização, foram vendidas empresas estratégicas,
transformação da economia brasileiras de agrária para
como a companhia de minério Vale do Rio Doce, a
industrial, num processo de substituição de importações.
Telebrás, que detinha o monopólio das telecomunicações
No seu segundo governo (1951-1954) criou a Petrobrás
e a Eletropaulo, uma das maiores distribuidoras de ener-
para atuar prioritariamente nas áreas de exploração, pro- gia elétrica do mundo. Além de vender empresas funda-
dução, refino, comercialização e transporte de petróleo e mentais para o desenvolvimento do país, o governo finan-
seus derivados, no Brasil e no exterior. ciou com recursos públicos ou aceitou títulos de crédito
Com a chegada dos militares ao poder (1964-1985) o com retorno duvidoso em boa parte das privatizações,
processo de estatização do país ampliou-se indevidamente, num verdadeiro jogo de cartas marcadas. Dessa forma, o
sob o meu ponto de vista, para setores não estratégicos. governo agiu com um Robin Hood às avessas, tirando o
Senge-PR Comunicação
patrimônio do povo brasileiro para entregá-lo a preços
irrisórios a grupos econômicos nacionais e estrangeiros.
Passados quase 20 anos do início do processo de
privatização do país, quando o Brasil começa a retomar
um processo de crescimento vigoroso, o faz novamente
com uma forte inserção do investimento público, motivo
pelo qual consideramos oportuno oferecer essa reflexão.
Valter Fanini - Diretor Presidente do Senge-PR
Publicação comemorativa aos 75 anos do Sindicato dos Engenheiros no Estado do
Paraná (Senge-PR). Edição única.
Editor responsável Felipe A. Pasqualini (Reg. Prof. 3.804 PR)
Textos e reportagens Pedro Carrano
Design, infográficos e diagramação Alexsandro Teixeira Ribeiro
Fale conosco comunica@senge-pr.org.br
Artigos assinados são de responsabilidade dos autores. O Senge-PR permite a
reprodução do conteúdo deste jornal, desde que a fonte seja citada.
FANINI: governo FHC marca ápice do desmanche do estado brasileiro Fotolitos/impressão Reproset Tiragem 5 mil exemplares
4 Reflexos da Privatização
4. Reportagem
LOREM IPSUM DOLOR
Anos 1990: a apropriação
das empresas públicas
Economia brasileira descreve um longo caminho do desenvolvimentismo
dos anos 1930 a 1980, até a aplicação da política neoliberal, com ataques
ao mundo do trabalho, perda de direitos conquistados, privatização do
capital controlado pelo Estado são alguns marcos do novo período.
E
ra o retorno, adaptado às novas realida ou perecer, e a indústria perde seu papel específico
des, do velho capitalismo liberal. Entre 1930 de liderança do processo de desenvolvimento” (1).
e 1975, várias concessões haviam sido feitas, De acordo com o ritmo mundial, a produção brasilei-
em muitos países, para atender às necessidades do sistema ra teve queda no ritmo de crescimento, impossibilita-
atingido pela Crise de 1929 e pela subseqüente Grande da de repetir os números do modelo anterior. Entre
Depressão, da década de 30. Logo após a Segunda Guerra,
1950 e 1973, a taxa de crescimento do PIB nacional
os países capitalistas precisavam recuperar suas economi-
as. Precisavam garantir sua vitória contra a expansão do
estava em torno de 4,7%, número que passa a 2,8%
comunismo e contra as lutas de libertação que aconteciam na década de 1990 (veja dados abaixo). “Ao contrá-
em todas as antigas colônias. Nos países capitalistas, a rio do que diz o discurso hegemônico, o período em
pressão do movimento operário conquista, “na marra”, que se aceleram a revolução técnico-científica e a
vários direitos. Nos anos 80, as em- globalização (1973-1990) coin-
presas, para garantir seus lucros, cide com uma nítida contração
precisavam recuperar o terreno per- Entre as décadas de no ritmo de crescimento da eco-
dido com essas concessões. Precisa- 1930 a 1980, o Brasil nomia e do comércio mundiais,
vam retirar dos trabalhadores o má-
ximo de conquistas possíveis, de acor- viveu um processo de em relação ao período imedia-
do com Vito Giannoti. industrialização, base- tamente anterior” (2).
Estradas, portos, linhas fér-
Definição de “mercado”: Capi-
tal monetário concentrado nas mãos
ado no modelo de reas, linhas de transmissão de
de pequeno número de operadores, substituição de impor- energia e telefônicas são leiloa-
de acordo com François Chesnais. tações (MSI), que o dos, ao lado de insumos e re-
cursos energéticos. Uma infra-
urbaniza e retira da estrutura completa é apropria-
Entre as décadas de 1930 a 1980,
o Brasil viveu um processo de condição de país da por grupos privados, a partir
industrialização, baseado no mo- baseado exclusiva- do excedente concentrado até
delo de substituição de importa- mente na agricultura, aquele momento no Estado. O
ções (MSI), que o urbaniza e re- discurso característico do
tira da condição de país baseado
e que tem como re- neoliberalismo - o Estado míni-
exclusivamente na agricultura, e sultado a criação de mo reduzido aos investimentos
que tem como resultado a cria- uma indústria de essenciais – não encobre o fato
ção de uma indústria de base e de a privatização ter contado
base e infra-estrutura. com o apoio do próprio Estado.
infraestrutura. Ainda que depen-
dente, a industrialização deixou A ferramenta para isso foi o
como saldo setores modernos em todas as regiões, Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e
articulados com mercados globais. Embora o Estado Social (BNDES), usado na formatação e no
brasileiro não tenha realizado neste período reformas gerenciamento das privatizações.
estruturais e não reverteu a concentração de renda O economista Fábio Bueno, da organização Con-
no país, situação que veio a se aprofundar. sulta Popular, identifica uma mudança no papel histó-
Na década de 1990, a imagem do crescimento rico do Estado ao longo do século vinte. “Após um
planejado pelo Estado é rompida e dá lugar a uma período que vai da Primeira Guerra Mundial e da
outra percepção: “As oscilações de mercado pas- Revolução Russa até meados da década de 1960, a
sam a definir praticamente sozinhas as atividades ou organização da sociedade pelo livre mercado foi vis-
setores produtivos que irão se desenvolver, estagnar ta como responsável pelas grandes mazelas do pe-
Reflexos da Privatização 5
5. Reportagem
ríodo, inclusive dentro do próprio mundo capitalista. Daí
a atuação estatal como organizadora de várias dimen-
sões da sociedade. Com o passar do tempo, ocorre
uma mudança importante de correlação de forças den-
tro da burguesia internacional, com ascendência da-
quelas frações internacionalizadas pelas finanças, que
acabam por inverter o ponto de vista na segunda me-
tade do século vinte: as mazelas e dificuldades enfren-
tadas após a década de 1960 passam a ser atribuídas
justamente à falta de liberdade dos mercados!”, analisa.
A expansão das corporações e transnacionais,
iniciada na década de 1970, é uma das determinantes
na implantação do neoliberalismo, quando passam a
ser responsáveis por um terço da produção do mun-
do. Estas empresas definem a especialização entre
países e servem de base para o formato atual do ca-
pitalismo financeiro, devido à sua capacidade de di-
fusão a partir do desenvolvimento da tecnologia e da
telemática. No Brasil, as empresas estatais apropria-
das pelo capital transnacional (a exemplo da Vale,
Petrobrás, etc) passam a ter um forte controle do DELFIN: processo de financeirização da economia vem desde 1970
capital financeiro, planejadas de acordo com meca- transnacionais e o jogo do mercado de ações. “As
nismos próprios (fundos de pensão, etc) e decisão na grandes empresas tenderam a obter fundos direta-
mesa dos acionistas. mente no livre mercado, passando assim a depender
Nos anos 1990, o Estado recebe investimentos menos dos empréstimos bancários, (...) o que signifi-
externos diretos e, como conseqüência, aumenta sua ca que o mercado passa a controlar os empréstimos,
dívida. Aumentam também as remessas enviadas das por meio de títulos e derivativos, não mais apenas por
corporações para suas matrizes. “As remessas de meio dos bancos. A capacidade produtiva mundial
lucros e dividendos de empresas estrangeiras para sofre um deslocamento produtivo. O mais importan-
suas matrizes dão dois grandes saltos, em 1992 e 1996, te, que é a necessidade básica dos trabalhadores, não
tornando-se nos últimos anos muito acentuadas. Em é atendida” (4).
1997, elas apresentaram crescimento de 69% em É o economista Delfim Netto quem explica o pro-
relação a 1996 e de 217% em relação a 1993, ano cesso de financeirização da economia, iniciado nos
imediatamente anterior ao início do Plano Real” (3). anos 1970. “No fim dos anos 70 do século, o sistema
Os mecanismos financeiros tornam-se mais com- bancário americano foi submetido a um enorme
plexos e envolvem agentes como investidores, estresse, criado pelos petrodólares, pela maior liber-
Agência Brasil
dade de movimento de capitais, pelas ‘inovações’ fi-
nanceiras e, principalmente, pela maior flexibilidade
do sistema bancário inglês. Iniciou-se, então, a
desregulação do sistema (...) Eliminou-se o monopó-
lio dos bancos comerciais nos depósitos sacáveis com
cheques, acabou-se com a separação entre bancos
comerciais e de investimentos, estabeleceu-se a eli-
minação progressiva dos controles das taxas de ju-
ros”, descreve (5).
Desregulamentação, privatização e liberalização.
Esta é a síntese usada pelo economista francês
François Chesnais, considerado o principal teórico hoje
sobre o capitalismo financeiro. Não importa a pala-
vra que usemos para entender o neoliberalismo, em
todo o continente, dos indígenas mexicanos ao movi-
mento social e sindical brasileiro, de Seattle a Cara-
cas, é produzida uma percepção de que o
neoliberalismo se lança como guerra contra a própria
humanidade (6) e contra o sentido daquilo que é pú-
O BNDES foi ferramenta usada em auxílio das privatizações blico e deveria ser de todos.
6 Reflexos da Privatização
6. Reportagem
aconteceu com o setor dos trabalhadores mineiros ingle-
Taxas médias anuais de crescimento do ses. “Se os países subdesenvolvidos não conseguem pa-
produto e das exportações mundiais gar suas dívidas externas, que vendam suas riquezas, seus
Ano PIB Exportações (%) territórios e suas fábricas”, afirmava Tatcher. Neste con-
1870 - 1913 2,7 3,5 texto, um país como o México, em 1995, sofre a queda de
5% do Produto Interno Bruto (PIB), enquanto os salários
1913 - 1937 1,8 1,3
caíram em 55%. Falar deste país não se trata de uma
1950 - 1973 4,7 7,2 casualidade, o primeiro da América Latina a decretar a
1973 - 1990 2,8 3,9 moratória da dívida pública, ainda no ano de 1982, que se
Fonte: A Opção Brasileira, editora Contraponto, 1998 alastraria aos países vizinhos, uma vez que o tema da
dívida é uma das principais justificativas do pensamento
Distribuição de renda no Brasil
neoliberal para a privatização e venda do patrimônio público.
Acesso das classes à renda nacional
1960 1970 1980 Dívida pública e
20% mais pobres 3,9 3,4 2,8 venda do patrimônio
50% mais pobres 17,4 14,9 12,6
1% mais ricos 11,9 14,7 16,9 As condições para a implantação do modelo neoliberal
Fonte: A Opção Brasileira, editora Contraponto, 1998 já eram dadas no próprio final do ciclo do modelo de subs-
tituição de importações (MSI), a partir do endividamento
Implantação do neoliberalismo do Estado. Com isso, o mecanismo do pagamento da dí-
vida foi o que amarrou e justificou a venda de empresas
na América Latina estatais. Isto porque, no final da década de 1970, o capita-
lismo brasileiro se viu enredado em empréstimos interna-
Na sua raiz, o neoliberalismo é o resgate do ideário de cionais, uma forma de sustentar a implantação da indús-
completa não-intervenção do Estado e auto-organização tria de bens intermediários, levada à frente pelo II Plano
do mercado, baseado nas ideias de Frederich Von Hayek, Nacional de Desenvolvimento, lançado pelo governo Geisel,
autor de O Caminho da Servidão, e Milton Friedman (da em 1974, já no declínio do “Milagre Brasileiro”. “Seduzi-
escola de Chicago), entre outros. Estes pensadores não dos pelo endividamento ‘fácil’ nos anos 1970, (os gover-
tinham eco nos anos 1950, uma vez que o capitalismo no nos) enfrentaram crises da dívida nos anos 1980 e, ao se
pós-guerra passava por um longo período de expansão, verem sem recursos para o pagamento da dívida, são
financiado justamente pela intervenção estatal, crescimento ‘socorridos’ pelo FMI e levados a aceitar as condições
que duraria até o “Choque do Petróleo”, de 1973 (ocasio- impostas pelos credores”, descrevem Rodrigo Vieira de
nado pela disputa entre países produtores e consumidores Ávila e Maria Lúcia Fatorelli, daAuditoria Cidadã da Dívida.
do recurso energético). O neoliberalismo e suas determinações não estão
Na América Latina, o primeiro laboratório neoliberal engessadas na década de 90. Este modelo econômico
foi o Chile, durante a ditadura militar. O economista e se desenvolve e ainda hoje com conseqüências. Dados
diretor do Sindicato dos Bancários de Curitiba e Região, de 2009 apontam que a dívida pública (soma das dívidas
Pablo Diaz, analisa: “Os ‘Chicago Boys’, sob o comando interna e externa do setor público) atinge o patamar de
do Friedman, vieram para o país de Pinochet, onde fize- R$ 1,497 trilhões (sendo R$ 96,97 bilhões de dívida
ram a primeira grande experiência neoliberal. Foi o balão externa e os restantes R$ 1,4 trilhões de interna), o que
de ensaio do neoliberalismo. Ficou comprovado que o li- corresponde a 47,6% do PIB e eleva em R$ 104 bilhões
beralismo de mercado não era igual à democracia, ca- o patamar de endividamento registrado em 2008 (7).
bendo muito bem em um Estado autoritário combinado O montante de recursos pode ser comparado com o
ao liberalismo econômico. O liberalismo não precisava de que concretamente é investido em setores tais como
democracia”, comenta. À época, Pinochet lograria con- Saúde e Educação, como revela o gráfico na página 6,
ter a inflação, porém ao preço de 60% da população chi- elaborado pela Auditoria Cidadã da Dívida, sobre o
lena subalimentada e a falência de mais de 2 mil empre- orçamento do governo (2006) e o destino dos recursos.
sas. A participação da indústria chilena no PIB baixou de
30% para 20%, de acordo com análise de Diaz. Hoje,
economistas de Chicago estão retornando ao governo do Derrotas populares
país, a partir da eleição de Sebastián Piñera. e no mundo do trabalho
Em 1979, o liberalismo é aplicado na Inglaterra sob
comando da primeira-ministra, Margareth Tatcher. O Para a população da América Latina, o Consenso
modelo pregava, além do esvaziamento do Estado, a de Washington (1989) caracterizou-se por alguns ele-
financeirização da dívida pública dos países do então cha- mentos comuns, entre eles: o investimento e o mer-
mado Terceiro Mundo e o combate aos sindicatos, como cado aberto para as corporações, o vínculo das moe-
Reflexos da Privatização 7
7. Reportagem
Orçamento e destino de recursos da União (2006)
3,17%
9,5%
9,51%
15,38%
25,73%
36,7%
Lazer, energia, comunicações, comércio e serviço, indústria, organização agrária, Outros encargos especiais (principalmente
agricultura, tecnologia, saneamento e gestão ambiental transferência a estados e municípios)
Habitação, urbanismo, direitos da cidadania, cultura, educação, trabalho e saúde. Previdência Social
Legislativa, judiciária, essencial à justiça, administração, defesa nacional, segurança Juros e amortizações da dívida
pública, relações exteriores e assistência social.
das latino-americanas com o dólar, e a redefinição da mos pela crise da dívida, pelo re-estabelecimento da demo-
propriedade intelectual como uma das formas de as cracia representativa e pela elaboração de uma Constitui-
transnacionais ampliarem e estenderem o seu con- ção, processos que desembocaram em uma disputa de pro-
trole sob os mercados (8). jeto na eleição em 1989, entre o abandonado projeto demo-
O neoliberalismo se impôs a partir de derrotas popula- crático popular de Lula e o neoliberalismo de Collor. Ou
res na década de 1980. No Brasil, esta década se traduziu seja, impunha-se a mudança para o Brasil, mas não neces-
em cinco greves gerais dos trabalhadores, cujo projeto polí- sariamente a neoliberal, que vingou por derrotar a alternati-
tico conheceu a derrota nas eleições de 1989. Na opinião va posta então, em que pese não ser claro os desdobra-
de Bueno, a implantação do modelo neoliberal responde a mentos de uma derrota de Collor em 1989”, comenta.
uma derrota a partir de dois projetos em disputa. “Passa- Os trabalhadores sofreram ataques contra seus di-
reitos e a força de trabalho teve o valor depreciado. “No
Pontos do Consenso de Washington começo da década, com a recessão de 1981/83, tentou-
se aplicar novas tecnologias que desempregavam força
Disciplina Fiscal de trabalho. Elas intensificavam e homogeneizavam o
Corte de subsídios e aumento de gastos em educação e saúde processo de trabalho. Estas transformações buscavam
Reforma Tributária e aumento da carga e base tributária pressionar o mercado de trabalho, desqualificando a for-
Taxa de juros deve ser positiva e determinada pelo mercado
ça de trabalho (simplificando suas tarefas e diminuindo
seu preço). Dessa forma, as mudanças tecnológicas
Taxa de câmbio deve ser determinada pelo mercado
visualizavam uma precarização das relações de traba-
Comércio deve ser liberalizado e voltado para o exterior lho, aumentavam o ritmo e a jornada de trabalho e dimi-
Não deve haver restrições ao investimento direto nuíam o valor da força de trabalho”, descreve o econo-
Empresas estatais devem ser privatizadas mista brasileiro Venâncio de Oliveira.
Temos, então, a imagem usada pelo economista
Atividades econômicas devem ser desregulamentadas
Win Dierckxsens, na qual o “bolo” crescido no perío-
Prover melhores garantias aos direitos de propriedade do desenvolvimentista precisava agora ser fatiado.
8 Reflexos da Privatização
8. Neoliberalismo
Período neoliberal: a
economia dita a falta de soberania
Economista aponta esvaziamento ideológico, hegemonia do capital
financeiro e perda de soberania política sobre os rumos do país como
principais elementos da política no neoliberalismo.
O
neoliberalismo produziu um elogio ao in- cos. Por trás dos bastidores, a venda das estatais,
dividualismo, caracterizando-se como um segundo o governo, serviria para atrair dólares, redu-
projeto com grande capacidade para cap- zindo a dívida do Brasil com o resto do mundo e ‘sal-
turar a subjetividade das pessoas. “Auto-ajuda e mer- vando’ o real. O dinheiro arrecadado com a venda
cado. Ele destrói o senso de coletivo e implanta o serviria ainda para reduzir também a dívida interna –
individualismo, as pessoas não reconhecem mais o dívida que nunca chegou a ser quitada (10). De acor-
espaço público como algo público”, define o econo- do com o mecanismo do “fluxo de caixa desconta-
mista Pablo Diaz, diretor do Sindicato dos Bancários do”, as empresas foram avaliadas por preços de mer-
de Curitiba e Região. cado, sem levar em conta o patrimônio, o capital cons-
Houve um esvaziamento das decisões políticas e tante e a logística dos grupos estatais.
perda de margem de ação. “Dentro da lógica A infra-estrutura brasileira foi colocada à venda:
neoliberal, melhor ter um Estado enxuto e eficiente, Vale do Rio Doce, Eletrobrás, Petrobras e Telebrás,
que promovesse a segurança, que é a repressão. Ao Rede Ferroviária Federal (RFFSA) foram leiloadas,
Estado define-se este papel, educação básica e ren- a partir de manipulação de preços, que elevou o in-
das compensatórias, omitindo-se de políticas públi- vestimento estatal em um primeiro momento, para
cas. Passa a valorizar o político administrativo e não em um segundo instante vendê-las com um preço
a política social, o que cabe dentro do discurso de inferior ao seu patrimônio. Apenas no governo FHC,
maximização dos resultados. A população acredita entre 1997 e 2002, 133 empresas passaram ao con-
nisso, pois não consegue fazer o vínculo, por exem- trole de grupos privados, 78 delas ligadas à produção
plo, entre aumento da violência e fim do Estado soci- e não-financeiras (IBGE). De 1993 a 1997, 300 em-
al”, comenta. presas brasileiras compradas por estrangeiros. O
surgimento das agências reguladoras é a síntese de
Brasil: o neoliberalismo uma transição do Estado. De planejador, passaria a
SEEB Curitiba
aplicado à exaustão
Ainda era 1993. O atacante Romário prometia o
título mundial da Copa do Mundo para o povo brasileiro,
depois de duas décadas sem vitórias e uma classifica-
ção apertada nas eliminatórias. Surgiu aos olhos de to-
dos como o salvador que a nação necessitava. Outra
grande promessa com a qual uma geração inteira de
brasileiros se deparou, mas não chegou a ver o resulta-
do final: a venda das estatais brasileiras representaria
maior investimento nos setores essenciais (Saúde, Edu-
cação, etc), uma maior qualidade e melhores preços no
acesso da população ao mundo dos serviços, a partir de
maior competitividade entre as empresas.
O atacante brasileiro cumpriu sua promessa e a
seleção ergueu a taça da Copa. O Plano Real e o
início do governo FHC tiveram apelo parecido no
imaginário popular. Mas o movimento concreto da
política econômica brasileira foi percebido por pou- PABLO Diaz: neoliberalismo destrói o senso de coletivo
Reflexos da Privatização 9
9. Neoliberalismo
Honduras, 2006. A América Central e países como El Salvador,
Guatemala, Nicarágua sofreram com a luta armada, nos anos 1980, e a
aplicação do livre comércio, abandono do campo e migração de
mão de obra. A resistência do movimento popular em
Honduras, após o golpe contra o presidente Manoel
Zelaya, é um primeiro marco de mobilização popular de
resistência contra o modelo neoliberal.
Venezuela, 1989. O episódio
do “Caracazo”, levante dos
México, 1994. O país viveu duas fraudes marginalizados da capital (Ca-
eleitorais, em 1988 e 2006, nas quais venceu racas), durou cerca de 3 meses
a fração conservadora do país. No dia primei- e deixou saldo de mais de 3 mil
ro de janeiro de 1994, a implantação do Tra- mortos, durante o governo do
tado de Livre Comércio (TL-Cam), com Ca- presidente Carlos Andrés Perez.
nadá e EUA, produziu uma rebelião, do esta- Em 1992, uma tentativa frustra-
do de Chiapas para o México todo, devi- da de rebelião militar, coman-
do ao termo do Tratado que ameaça dada pelo então coronel Hugo
a propriedade comunal indígena. Chávez, abre a possibilidade de
uma ruptura no sistema de
poder vene-zuelano
para um governo po-
Equador, 2000 a 2005. Três presidentes foram pular.
depostos em cinco anos, sob a palavra de ordem
de “Que se vayan todos”. O último deles, Lúcio
Gutiérrez, elegeu-se com uma proposta naciona-
lista e vinculada ao movimento indígena, mas ape-
nas aprofundou as relações com os
Estados Unidos e teve de refugiar-
se na embaixada brasileira.
Bolívia, 2003 e 2005. O presiden-
te Sanchez de Losada, responsá-
Peru, 1994. O governo Fujimori, apesar do contro- vel pela morte de 67 lutadores so-
le inflacionário, aumentou a pobreza de menos de ciais, em 2003, no episódio conhe-
30% para mais de 60% da população de cerca cido como “Guerra do Gás”, refu-
de 23 milhões de pessoas. O presidente che- giou-se nos Estados Unidos, após
ga ao terceiro mandato, é acusado de uma crise institucional. Em
corrupção e refugiado pela sua condi- 2005, o vice Carlos Mesa
ção de estrangeiro. chegou a renunciar de-
vido à pressão do mo-
vimento social.
Argentina, 2001. O processo de privatização argentino desem-
pregou 350 mil trabalhadores e a atividade privada ou-
tros 200 mil, resultado da política de Menem. O
governo posterior seguiu o mesmo rigor neoliberal
de Menem. A crise econômica de 2001 na qual o
país emerge derruba cinco presidentes.
Presidentes neoliberais e o
descontentamento da população FONTE: E se o capitalismo acabasse?, de Luiz Carlos Correa Soares, janeiro de 2001, editora do autor
10 Reflexos da Privatização
10. Neoliberalismo
ser um fiscalizador neste período. “Houve uma reversão
de todo o Estado moderno, em primeiro lugar foi colocado
Atuação do BNDES nas privatizações*
o econômico, e depois o governo faria a política com o Receita Dívidas Resultado da
Programa de Venda Transferidas Desestatização
que sobrar”, comenta o economista Pablo Diaz.
Na prática, o Banco Nacional de Desenvolvimen- Estadual 27.948,8 6.750,2 34.699,0
to Econômico e Social (BNDES), por meio do Pro- PND 30.824,2 9.201,4 40.025,6
grama Nacional de Desestatização (PND), financiou Telecom 29.049,5 2.125,0 31.174,5
as transnacionais que dominaram os setores estraté-
Resultado 87.822,5 18.076,6 105.899,1
gicos do parque industrial brasileiro. * Em US$ milhões Fonte: A Opção Brasileira, editora Contraponto, 1998
Os primeiros setores leiloados pelo PND concentram-
se nos ramos siderúrgico, elétrico, de mineração, O BNDES e os investimentos
petroquímico, ferroviário e de fertilizantes. O PND foi leva- nas privatizações
do a cabo com energia pelo presidente FHC, quem inseriu
em suas Cartas de Intenção ao FMI a privatização da pre-
O investimento do BNDES na privatização da Light
vidência, de bancos estaduais e empresas elétricas (11).
foi de R$ 730 bilhões, em 1998 (após o apagão do Rio de
Decreto presidencial desta época inviabilizou o empréstimo
Janeiro). Na privatização da Companhia Siderúrgica Na-
do BNDES para empresas públicas, impossibilitando o pró-
cional (CSN): R$ 1,1 bilhão para execução de um plano
prio sentido do banco desde a fundação, em 1952. “O
de expansão de cinco anos. Investiu R$ 4,7 bilhões na
BNDES recebe 40 bilhões de dólares do Fundo Monetário
Açominas, antes de privatizá-la. Já na Petrobras (1997),
Internacional (FMI), pega o dinheiro que era para promo-
uma articulação com pouco mais de 20 sócios, investe
ver o ‘crescimento’, e empresta subsidiado para a compra
R$ 140 milhões e conta com R$ 60 milhões do BNDES,
das companhias por estrangeiros”, comenta Diaz.
uma sociedade (Sociedade de Propósito Especial) para
captar no mercado internacional R$ 1,3 bi (justamente o
Cronologia do valor do investimento de R$ 1 bi previsto no orçamento do
Programa Nacional de Estado, cortado em 99), e essa jogada resultou num aporte
Desestatização (PND) de R$ 1,5 bi para negócio com previsão de faturamento
de R$ 5 bilhões em médio prazo.
1993-1994 - Eliminação da discriminação contra in- Referências
vestidores estrangeiros, permitindo sua participação em até 1.A Opção Brasileira, ed. Contraponto (1998). BENJAMIN, Cesar (org).
2.Idem.
100% do capital votante das empresas a serem alienadas. 3.Idem 1 e 2.
1997 - Junto à venda de 68 empresas produtivas 4.(COSTAS, Lapavitsas, o capitalismo financiarizado,
federais, intensificam-se as privatizações de âmbito tradução livre).
5.Jornal Valor Econômico, fevereiro de 2010.
estadual, com a venda de 40 empresas estaduais. 6.Subcomandante Insurgente MARCOS, Don D. de La Lacandona.
2002 - O Programa concentra-se em outros se- 7.GENNARI, Emílio. Base de dados para a análise de conjuntura de 2010.
8.CHESNAIS, François. A Mundialização do Capital.
tores, não mais o setor siderúrgico, como no início 9.O Brasil Privatizado. BIONDI, Aloysio.
dos anos 1980. O setor elétrico, hidrelétricas, portos, 10.Auditoria Cidadã da Dívida.
malhas fluviais passam a constar nas licitações. 11.Idem.
Dez principais países beneficiários do Prograna Nacional de Desestatização (PND)
País PND Estaduais Tele- comunicações Total
Estados Unidos 4.31 15,1 6.024 21,6 3.692 12,8 14.034 16,5
Espanha 3.606 12,6 4.027 14,4 5.042 17,5 12.675 14,9
Portugal 1 0,0 658 2,4 4.224 14,7 4.882 5,7
Itália - - 143 0,6 2.479 8,6 2.621 3,1
Chile - - 1.006 3,6 - - 1.006 1,2
Bélgica 880 3,1 - - - - 880 1,0
Inglaterra 2 0,0 692 2,5 21 0,1 715 0,8
Canadá 21 0,1 - - 671 2,3 692 0,8
Suécia - - - - 599 2,1 599 0,7
França 479 1,7 196 0,7 10 0,0 686 0,8
Participação Estrangeira 11.210 36,4 13.654 48,9 17.270 59,4 42.134 48,0
Total 30.824,2 100 27.948,8 100 29.049.5 100 87.822,5 100
- US$ milhões - % Atualizado em: 31/12/02 FONTE: BNDES
Reflexos da Privatização 11
11. Opinião
Regulação e desregulação
“As agências têm servido também como espaços para compadrio e
nepotismo, além de se tornarem “raposas cuidando dos galinheiros”. Há
exceções? Talvez sim, mas é difícil dizer onde e quando”, afirma no artigo
abaixo o ex-presidente do Senge-PR, Luis Carlos Correa Soares.
R
egulação é um sistema ou processo de con ça está nas respectivas dimensões de espaço-tempo:
trole; regulamentação é um conjunto de a ética é tão abrangente no espaço e permanente no
instrumentos e mecanismos pelos quais é tempo quanto seja possível estabelecer; a moral, ao
exercido um determinado siste- contrário, é restrita quanto à
ma ou processo de regulação. No Brasil neoliberal ambiência e/ou à temporalidade.
Ambos devem ser norteados por A quem cabe regular? No
princípios éticos, morais e demo- o princípio da contexto econômico e financei-
cráticos, orientados para os inte- divinização do ro internacional as chamadas
resses da nação, como um todo. mercado, o falso agências de fomento (tipo o
Os sistemas de controle dos FMI, o BID, o Bird) - ao esta-
mito do Estado míni-
Estados nacionais da Era Moder- belecerem regras comporta-
na não poderiam prescindir de mo, o crescimento mentais para os países periféri-
modernos sistemas e processos de da dívida e o cos e carentes de recursos para
regulação, sob os princípios acima. aceleramento sustentação das suas economi-
Entretanto, aprofundou-se o fosso as, permanentemente abaladas
entre os sistemas de regulação ide-
da nossa trajetória pelo processo sanguessuga do
ais e os possíveis. A explicação é para a subserviência capital -, nada mais são do que
simples mas deve ser precedida de se aprofundaram agências internacionais de
conceitos muito claros. de forma efetiva regulação desses países. Acres-
De modo conciso pode-se çam-se os acordos multilaterais
conceituar ética e moral como e desastrosa. (tipo OMC,AMI, a nati-mortaAlca
conjuntos de princípios nortea- etc), onde normalmente prevale-
dores e referenciais para os usos, costumes e inter- cem os interesses dos países centrais do capitalismo.
relações dos indivíduos e das sociedades. Todavia, No Brasil neoliberal o princípio da divinização do
ética e moral não se confundem. A principal diferen- mercado, o falso mito do Estado mínimo, o cresci-
Senge-PR Comunicação
SENGE-PR: luta contínua contra agências reguladoras.
12 Reflexos da Privatização
12. Opinião
mento da dívida e o aceleramento da nossa trajetória
para a subserviência se aprofundaram de forma efeti-
Agência reguladoras em quatro pontos
va e desastrosa. Um dos instrumentos essenciais para 1 - os processos de regulação e de regulamentação de-
esse processo, além das privatizações – tema de capa vem ser norteados por princípios éticos, morais e democráti-
desta Revista - tem sido a desregulamentação proce- cos, considerando os interesses da nação.
dida em setores estratégicos essenciais, mediante a 2 - um Estado fraco não detém condições de autonomia
retirada de controles do âmbito do Estado brasileiro. para regular setores básicos no rumo do interesse social.
Mesmo que tais controles fossem frágeis, eram muito 3 - a estruturação da nação brasileira (território, povo,
melhores do que tudo o que foi inventado depois. autonomia e Estado) foi sempre fragmentada e sofreu imensos
Para simulacro de regulação por meio das “agên- descompassos, produzindo um país economicamente forte mas
cias reguladoras que pouco ou nada regulam” e, com socialmente injusto.
o processo privatizante já em estágio avançado, foi ela- 4 - no Brasil, em grande medida, as agências reguladoras
borada a Lei 9.986/2000 para definir as regras de fun- operam sob influências políticas, burocracias, clientelismos e
cionamento dessas agências. Além de débeis e ten- com parafernálias jurídicas absurdas e inúteis.
denciosas, as regras foram aplicadas de modo tardio.
Atualmente, existem nove agências: Anvisa (vigi- rias e suficientes para estabelecer marcos regulatórios
lância sanitária), ANS (saúde), ANA (águas), Aneel efetivos em setores-chave e estratégicos.
(energia Elétrica), Anatel (telecomunicações), ANTT Poderíamos encerrar este texto com um dito po-
(transportes terrestres), Antaq (transportes aquaviários), pular que, de forma publicável, diz mais ou menos
Ancine (cinema). assim: “quanto mais a gente se abaixa, mais as coisas
Algumas agências incorporaram estruturas de de- aparecem...”. Porém preferimos usar uma parte da
partamentos e secretarias de ministérios extintos. To- poesia “Quem morre?”, de Pablo Neruda.
das têm funcionários cedidos por empresas privadas e
órgãos governamentais. Ou funcionários temporários, “Morre lentamente quem se transforma
contratados por intermédio de organismos internacio- em escravo do hábito,
repetindo todos os dias os mesmos trajetos.
nais ou por processo seletivo simplificado e admissões
Morre lentamente quem abandona
com durações pré-determinadas. Além dos cargos de um projeto antes de iniciá-lo,
livre indicação. Indicação de quem? Ora, pois... não pergunta sobre um assunto que desconhece
Em resumo, as agências têm servido também como ou não responde quando lhe indagam
espaços para compadrio e nepotismo, além de se tor- sobre algo que sabe.
narem “raposas cuidando dos galinheiros”. Há exce- Evitemos a morte em doses suaves, recordando
ções? Talvez sim, mas é difícil dizer onde, quando e em sempre que estar vivo
que circunstâncias, porque o processo e o sistema es- exige um esforço muito maior que o
tão viciados desde a origem e os fundamentos. simples fato de respirar.
Além disso, vem sendo criado um imenso e caóti- Somente a perseverança fará com que
co processo legisferante que tem produzido tanto a conquistemos um estágio esplêndido de felicidade.”
Senge-PR Comunicação
glória dos juristas – dado o novo filão de atuação pro-
fissional - como também o seu desespero, dadas as
mutações quase diárias nos regulamentos emitidos.
E bem assim, o desespero dos usuários porque
inexistem condições para se conhecer com profundi-
dade e amplitude o emaranhado normativo que está
sendo gerado continuamente. É inevitável perguntar:
qual é a real utilidade dessa parafernália?
O Estado mínimo neoliberal, quando abdicou de
exercer, ele mesmo, as atividades produtivas e de
serviços, deveria ao menos executar funções regula-
doras, de modo direto, com eficiência e eficácia, na
direção dos interesses da população em geral.
Todavia, claro está que essa não era e nunca será
a ideia predominante, bem ao contrário, tanto na con-
juntura mundial como brasileira. Os Estados prisio-
neiros de interesses específicos de grupos e grupelhos,
sem independência e soberania, com princípios
fundantes tais como “tudo ao mercado” e “obediên-
cia cega a contratos”, não detém condições necessá- SOARES: agências têm sido espaços para compadrio e nepotismo
Reflexos da Privatização 13
13. Internacional
Mundo de uma nota só
Durante o período neoliberal, hegemonia estadunidense é mantida pelo
controle da indústria de armas, ideologia e pela emissão de moeda.
Nação substitui a produção pela emissão de moedas, pelo
endividamento e aumento do déficit público.
A
partir da década de 1990, o mundo passa Enquanto todos os demais países participantes da
a ser controlado por uma nação Segunda Guerra haviam tido perdas sensíveis, a ren-
hegemônica. Isto se dá no plano político e da nacional aumentara nos EUA de 91 bilhões de
militar, econômico e cultural. Os dólares em 1939, para 211 bi-
EUA lançam mão da superiori- O discurso do liberalismo lhões em 1945. Ao final de 1945,
dade militar para controlar o os EUA detinham 50% da ri-
acesso aos mercados, em nome é aplicado para além- queza, mas somente 6% da po-
da manutenção de taxas de lu- mar, uma vez que Esta- pulação mundial. No plano mili-
cro em franca queda desde a dos Unidos e Europa tar, os gastos da elite desse país
década de 1970.
persistem no protecionis- com armamentos superam, com
Armas, palavra, dinheiro. A folga, a soma dos gastos reali-
imagem usada pelo cientista po- mo dentro de suas fron- zados pelos outros 14 países que
lítico Emir Sader (foto) explica teiras, sobretudo nos integram a lista dos 15 mais bem
a base do poderio dos Estados setores de produção armados do mundo (1).
Unidos. No plano econômico, os Hoje em dia, apesar do
EUA passam a controlar a emis-
agrícola, enquanto o surgimento do grupo dos BRIC
são do dinheiro mundial sem obe- receituário aplicado era (Brasil, Rússia, Índia, China),
diência a nenhuma regra, ao a venda do patrimônio esta hegemonia mantém-se no
romperem unilateralmente o Tra- público e abertura plano militar, embora a Rússia
tado de Bretton Woods. A moe- se mantenha como a segunda
da passa a circular dissociada dos mercados. potência nuclear. “Um gasto
dos circuitos produtivos reais, na militar em ascenso em uma base
busca pela valorização do capital no menor período econômica em declive não pode ser sustentado, como
de tempo possível, num mundo onde a regulação dramaticamente mostrou o colapso do bloco soviéti-
financeira foi destruída. co”, analisa o economista holandês, radicado na
América Central, Win Dierckxsens (2).
O país do norte define-se como uma nação im-
portadora, sendo que 10% de seu consumo industri-
al depende de bens cujos custos de importação não
são cobertos pelas exportações. Hoje, a dívida pú-
blica dos Estados Unidos chega a ser 350% maior
que a produção industrial. A produção é descentra-
lizada para outras nações, e a dívida interna no país
é maior que o Produto Interno Bruto (PIB). Os EUA
absorvem parte da produção do crescente mercado
chinês. Ao mesmo tempo se endividam.
A China é o principal credor dos Estados Unidos
– sendo que o Brasil é o quarto comprador de Títu-
los do Tesouro Americano. Em 2009, o governo dos
EUA amarga um déficit público de um trilhão e 414
bilhões de dólares e, para 2010, a previsão é de que,
apesar de uma eventual redução dos gastos públi-
cos não relacionados à segurança, a dívida se man-
tenha em altos patamares (3).
EMIR: armas, palavra e dinheiro: símbolos da hegemonia dos EUA Nos debates políticos sobre o período neoliberal,
14 Reflexos da Privatização
14. Internacional
expressões como “transnacionais”, corporações e da Amazônia, onde está concentrado 60% do esto-
financeirização da economia tornam-se correntes que genético do planeta.
em nosso vocabulário. Trata-se do domínio mundial
destes grandes conglomerados, expansão que lança Referências
a base para a livre circulação de moeda. 1. Consulta Popular. Imperialismo, o principal inimigo da humanida-
O poder das corporações transnacionais se tra- de, cartilha número 19, 2007.
2. Dierckxsens, Win. El movimiento social ante la crisis del capitalis-
duz da seguinte forma: dentre as 50 principais mo;América Latina hacia uma alternativa, in Imperialismo, Resistencia
corporações hoje, 66% são de propriedade y Nueva Izquierda. RR Editores, El Salvador.
estadunidense e, entre as 20 maiores, 70% são de 3. Gennari, Emílio. Base de dados para análise de conjuntura de 2010.
propriedade do país do Norte (veja box).
O discurso do liberalismo é aplicado para além-
mar, uma vez que Estados Unidos e Europa persis- Corporações e Economia
tem no protecionismo dentro de suas fronteiras, so-
Transnacionais, nos anos 2000. 35% do PIB mundial.
bretudo nos setores de produção agrícola, enquanto
- Representam um poder de 5, 35 trilhão de dólares.
o receituário aplicado era a venda do patrimônio pú- - 1990. 100 grupos, responsáveis por um terço do Investimento
blico e abertura dos mercados. A Área de Livre Externo Direto (IED), 3,2 trilhões de dólares em ativos, com o comércio
Comércio das Américas (Alca) – não assinada com aumentando entre Europa, Japão e EUA (de 13 para 17%); UNCTNC
a totalidade dos países americanos devido a mani- - Nos EUA, US$ 1,9 trilhão, dívida das famílias e empresas
festações e plebiscitos populares – deu lugar aos (crédito ao consumidor, leasing)
Tratados de Livre Comércio (TLC), assinados em Papel das corporações na economia mundial
cada país, junto aos corredores regionais e áreas de - 50 principais corporações hoje, 66% são de propriedade
livre comércio, como o IIRSA (confira na próxima estadunidense;
- Entre as 20 maiores, 70% são de propriedade do país do Norte.
matéria). Se em dado período histórico o objetivo
era dividir para reinar, agora passou a ser integrar Participação das 200 maiores corporações no PIB mundial:
para subordinar todos a uma mesma política. Hoje, - 17% em 1965
- 35% no final dos anos 1990.
um dos objetivos prioritários é o controle dos recur- Fonte: UNCTAD, citado em Chesnais, Mundialização do capital, 1996
sos naturais. Um dos alvos o controle do território - PETRAS, James. DIERCKXSENS, Win, 2004 - PETRAS, James
Linha do Tempo
1945. O dólar é adotado como 1974-1975. Companhi-
1914. A econo- 1971.
moeda padrão no mundo intei- as multinacionais buscam
Mercado-
mia é lastreada ro, a partir dos tratados de saída para queda crescen-
ria moeda desaparece
no padrão-ouro, que cumpria pa- Breton Woods. Inicia-se o perí- te da taxa de lucros. Au-
com o desmantelamento
pel de meio de pagamento, equi- odo de acúmulo do capitalismo, apro- mento da dívida externa
do sistema Bretton
valente geral e entesouramento. funda-se o Estado de Bem-Estar Soci- dos Estados da América do
Woods, substituída por
al na Europa e EUA, e o desenvolvi- Sul e África.
moeda de crédito.
mentismo na América Latina.
1931. No Brasil, realizada audito-
ria da dívida externa. O período 1990. Capitais circulam com
foi caracterizado pelo facilidade no Brasil, atraídos
início da industrialização. 1973. Choque dos pelas altas taxas de juros, dí-
preços do petró- vida pública interna
1969. Ofensiva leo, controla- aumenta.
do mercado especulativo con- dos pelos paí-
tra a libra esterlina. ses integrados
a Opep.
1980. EUA aumentam os ju-
ros. O dólar, por ser moeda
internacional, endividou
ainda mais os países peri-
féricos.
Fonte: Dierckxsens, Win. El movimiento social ante la crisis del capitalismo; América Latina hacia uma alternativa, in Imperialismo,
Resistencia y Nueva Izquierda. RR Editores, El Salvador.
Reflexos da Privatização 15
15. BNDES
Transnacionais brasileiras, a ponte
entre a política ontem e hoje
De elaborador e gestor da política de privatizações no Brasil, o BNDES passa
a financiar a política baseada na “exportação da natureza”, incentivo ao
agronegócio e às transnacionais brasileiras que atuam noutros países, sem-
pre às avessas do interesse das populações
A
criação do Programa Nacional de foram pagos com “moedas pobres” e títulos desvaloriza-
Desestatização (PND - lei 8.031/90), em dos. Hoje, as empresas desestatizadas, vinculadas ao ca-
1990, colocou a privatização na ponta-de-lan- pital financeiro, ao lado de grupos privados nacionais, re-
ça das reformas econômicas conduzidas pelos governos cebem o financiamento do banco público e passam a uma
que se seguiram desde então. O PND concentrou esfor- forte ofensiva, expandindo-se noutros países. “No caso
ços na venda de estatais produtivas, com a inclusão de das grandes empresas estatais, a passagem do controle
empresas siderúrgicas, petroquímicas e demais setores diretamente para grandes grupos econômicos nacionais e
responsáveis pela indústria de base nacional. Na compra internacionais permitiu não só o aumento da presença do
das estatais, a prioridade para o ajuste fiscal traduziu-se capital internacional no espaço econômico nacional, mas
no uso das chamadas “moedas de privatização”, títulos também que as empresas privatizadas sob controle da
representativos da dívida pública federal. Tal caracteriza- burguesia local ganhassem corpo e pudessem se lançar
ção do PND pode ser encontrada no site do Banco Na- ao mercado internacional, na forma de multinacionais bra-
cional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), sileiras”, descreve o economista Fábio Bueno, da organi-
instituição que, apesar de pública e de codinome social, foi zação Consulta Popular.
a gestora do programa de privatização no Brasil. Se as remessas para o exterior foram um dos proble-
Trata-se de um processo levado “ao limite da respon- mas nacionais enfrentados no período neoliberal, neste
sabilidade”, na famigerada afirmação do presidente momento assistimos também ao movimento inverso, ou
Fernando Henrique Cardoso (FHC) ao presidente do seja: a remessa de lucros das empresas brasileiras no
BNDES à época, Luiz Carlos Mendonça de Barros. exterior: ao todo, foram US$ 641 milhões de remessas de
Nacionalmente, o processo de privatizações foi marcado empresas brasileiras no estrangeiro em 2005, número que
por irregularidades, como esta: 95% do valor das estatais aumentou para US$ 928 milhões em 2006.
Senge-PR Comunicação
Responsável por 20% de todo o crédito disponibilizado
no Brasil, o orçamento do BNDES em 2010 deve che-
gar a R$ 166 bilhões, ou cinco vezes o orçamento da
instituição verificado em 2003, primeiro ano do governo
Lula. O dado confirma que o BNDES é, junto com o
Banco Central e a Petrobras, um dos três vértices do tripé
de poder econômico no Brasil hoje. No ciclo recente de
crise econômica mundial, o BNDES financiou ações de
empresas que de alguma forma se vinculam à própria
crise. Nesse período, ele financiou fusões (casos da Oi
com a Brasil Telecom) e aquisições (casos dos frigorífi-
cos JBS e Friboi), além da compra da Aracruz pelo grupo
Votorantin, quando já era pública a perda que a corporação
de papel e celulose teve no mercado. Os principais gru-
pos que recebem investimento estão em setores concen-
trados e voltados para a exportação: etanol, agronegócio,
mineração, siderurgia e construção civil, com destaque
para o grupo Odebrecht, atuante com uma vasta carteira
de negócios em todo o continente latino-americano.
“Enquanto no Brasil a hegemonia dos grandes ban-
LUTA pela reestatização da Vale, privatizada com auxílio do BNDES cos e investidores financeiros locais e internacionais se
16 Reflexos da Privatização
16. BNDES
consolidava na década de 1990 pelas mãos de Collor
e dos tucanos, o BNDES foi direcionado para tais
Orçamento do BNDES
interesses. Já na década de 2000, quando o governo Ano 1999 2000 2001 2002 2003* 2004* 2005* 2006* 2007* 2008*
petista empreende a ascensão da fração industrial De- 18 23 25.2 37.4 33.5 39.8 47 51.3 65 90.9
que se internacionaliza à condição de hegemônica, (valor em bilhões de reais) - Fonte: BNDES
sem tocar nas frações financeiras, o BNDES passa Histórico
a atuar com força nos processos de concentração e
centralização que envolvem a fração internacionali- O BNDES surgiu em 1952, para financiar o Modelo de
zada, organizando e incentivando todos os grandes Substituição de Importações (MSI). Com a ditadura de 1964,
processos de fusão e aquisição que presenciamos nos torna-se o principal canal de importação de novas formas de
últimos anos. Portanto, na condição de instrumento gestão estatal, que àquela época apontavam a retirada do Es-
de política econômica, o BNDES seguiu, segue e se- tado da economia. O BNDES estabeleceu conexões com o
guirá os ditames e interesses de quem comanda a Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), o Banco
política e a economia no capitalismo dependente bra- Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI). Hoje,
sileiro”, explica Bueno. apresenta tamanho semelhante aos dois.
Na década de 1980, uma série de empresas brasilei-
De onde vêm os ras se lançava no mercado internacional, estabelecendo
recursos do BNDES? depósitos, subsidiárias, etc. O banco público passa a fi-
nanciar corredores de livre comércio e integração, como
Desde 1999, observa-se um aumento constante a ta- forma de intensificar a exploração econômica em outros
xas crescentes no orçamento do BNDES, que recebe de países. O BNDES desenvolve os primeiros estudos que
basicamente quatro fontes os recursos que empresta: em 2000 resultariam no lançamento da Iniciativa de
- O FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador), res- Integração da Infraestrutura da Região Sulamericana
ponsável por cerca de 50% do orçamento do Banco; (IIRSA), que consiste na construção de uma infraestrutura
- Retorno dos empréstimos; de comunicações, transportes e geração de energia que
-Aportes conseguidos junto ao mercado internacional; constitua um dinâmico sistema circulatório que permitia
- Empréstimos do Tesouro Nacional. enlaçar as economias regionais ao mercado mundial.
Quadro das empresas brasileiras no mundo
Canadá- trabalhadores
da empresa Inco,
comprada pela Vale,
manifestaram-se contra as
condições de trabalho na
Equador- a atua- produção de níquel.
ção da Petrobras
causa problemas
ambientais e crí- Costa Rica,
Panamá, Uruguai- o BNDES dá
ticas dos indígenas suporte às empresas que
amazônicos, sendo Venezuela-
Atuação da desnacionalizam os
que a empresa atua poucos setores dinâmicos
em outros 26 Odebrecht em
construção de da economia local:
países do agronegócio e frigorífico.
mundo. estradas.
Friboi e a Marfrig
controlam mais de África- o caso mais
70% da exportação recente é o da abertura do
de carne derivada do escritório da Embrapa em
Uruguai. Moçambique. Seu primeiro
projeto é o desenvolvimento
Peru- a
agrícola da região de Moatize,
Votorantim
onde estão as minas de carvão
(capitalizada Argentina- a Camargo Corrêa na mira da Vale, que deverão
pelo Banco) (“cliente” assídua dos contar com recursos do
comprou a companhia financiamentos do BNDES) BNDES.
mineira MinCo, que tem comprou a maior fábrica de
66% das jazidas desse que é cimento do país, a Loma Negra.
o principal produto mineral Durante a crise argentina (2001),
do país. A Gerdau comprou a 24% das aquisições de empresas
SiderPeru, maior siderúrgica na Argentina foram feitas por
peruana, também com capitais brasileiros.
recursos do BNDES.
(Fonte: Transnacionais Brasileiras, ed. Expressão Popular; IBASE)
Reflexos da Privatização 17
17. BNDES
Companhia Vale, Subavaliação das
uma relação íntima riquezas minerais
A privatização dos setores ligados à infra-estrutura Em 1997, o governo deixa de ser o acionista ma-
aprofunda o vínculo das unidades de produção no Brasil joritário da Vale e o consórcio Valepar arrebata 52,3%
com a expansão sobre mercados de outras nações. Nes- das ações. O consórcio conta com a participação do
ta lógica se equilibra a relação do BNDES com a banco Bradesco. A participação do banco privado no
mineradora Vale (nome comercial da Companhia Vale do leilão da Vale é questionada em mais de 100 ações
Rio Doce) e com outras transnacionais brasileiras. “Junto populares, uma vez que o Bradesco foi ao mesmo
com outros grandes grupos privados, a Vale integra o se- tempo avaliador e investidor do leilão.
leto círculo de empresas cujos projetos estão previamente A realidade é que, como avaliador, o Bradesco já
bem avaliados pelo Banco e que, assim, têm trâmite de havia sido um fracasso. A Vale é a companhia síntese
liberação de recursos acelerado. O BNDES a vê como da subavaliação que marcou a privatização das em-
uma companhia de boa saúde financeira e pré-aprova presas brasileiras. Quando foi leiloada e arrebatada
seus projetos, independentemente de suas características pelo valor de R$ 3,3 bilhões, desconsiderou-se uma
específicas”, descreve Carlos Tautz, do Instituto Brasi- estrutura complexa, um capital constante formatado
leiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase). ao longo de 53 anos, o que significa: ferrovias com 9
Uma relação sem divulgação às claras, como denun- mil quilômetros de extensão e dois sistemas completos
ciam os movimentos sociais, articulados na “Plataforma de mina-ferrovia-porto. Uma grande gama de mine-
BNDES” (veja abaixo). a Vale é um dos principais clien- rais foi subavaliada, tais como as reservas brasileiras
tes do mesmo banco que gerenciou a privatização da com- de titânio (72% das jazidas mundiais), além de calcário,
panhia, dentro do Programa Nacional de Desestatização dolomito, fosfato, estanho, cassiterita, granito, zinco,
(PND). “Nos relatórios de desempenho operacional do grafita, nada disto foi tomado em conta pelo leilão.
Banco, os empréstimos para a construção de sistemas de Reservas de quartzo, matéria-prima da indústria de fi-
transporte ferroviário da mineradora são estrategicamen- bras óticas, e nióbio (85% das reservas mundiais),
te localizados em rubricas gerais de ‘infra-estrutura’, para matéria-prima para a indústria aeroespacial, encontram-
não deixar claro que a operação favorece determinado se nas jazidas da Vale e não foram tomadas em conta.
grupo e que este utiliza essas vias não para transporte
público, mas exclusivamente dentro de sua própria estra- Plataforma BNDES e
tégia de logística”, de acordo com análise do Ibase.
crítica aos mega-projetos
No dia 25 de novembro, os movimentos sociais e or-
ganizações não-governamentais do Brasil, Equador e
Bolívia, reunidos no I Encontro Sul-americano das popu-
lações impactadas por projetos financiados pelo BNDES,
elaboraram uma carta de repúdio ao modelo de desenvol-
vimento adotado pelo Brasil.
Trata-se de um esforço de articulação dos povos afe-
tados pelos mega-projetos destinados às obras de infra-
estrutura que privilegiam empreendimentos de
agrocombustíveis, pecuária, eucalipto e extração mineral,
fontes de sérios impactos sócio-ambientais.
“Parece uma iniciativa com forte potencial de
politização das organizações e populações em suas lutas
específicas e convergência em lutas mais generalizantes.
Podemos encarar o I Encontro Internacional dos Atingi-
dos pela Vale como um desdobramento dessa sensibilização
dos movimentos e organizações de camponeses, indíge-
nas, quilombolas, ribeirinhos, pescadores, enfim, trabalha-
dores e trabalhadoras em torno do questionamento do
atual modelo de desenvolvimento”, comenta o advogado
Danilo Uler, da Plataforma brasileira de direitos humanos
econômicos sociais e ambientais (DHESCA).
*Informações desta reportagem baseadas no livro Empresas transnacionais brasileiras
na América Latina, um debate necessário, Editora Expressão Popular; e no Instituto
VALE: prejuízos internos e expansão a outros países brasileiro de análises sociais e econômicas (Ibase)
18 Reflexos da Privatização
18. Ferrovias
A infraestrutura fragmentada
em interesses particulares
As ferrovias são o exemplo mais gritante do mau aproveitamento que o período
neoliberal fez da infraestrutura e da capacidade produtiva do país. O atual
modelo retira das ferrovias a dinâmica de transporte de passageiros e cargas.
S
aulo de Tarso, engenheiro civil, trabalhou du 12 bilhões de dólares.
rante 28 anos na Rede Ferroviária Federal Tarso relata que assistiu a RFFSA desmontada
(RFFSA). Antes dele, seu pai havia traba- durante a década de 1990, devido a erros de investi-
lhado durante 39 anos. Duas trajetórias diferentes, ape- mento (veja mais na entrevista abaixo). O engenhei-
sar de a companhia ser a mesma. O pai de Tarso ro civil contesta o debate hegemônico de que a
vivenciou o modelo de desenvolvimento estatal, entre os privatização nos setores estratégicos da economia e
anos de 1950 e 1970. Viu o país passar de uma popula- infraestrutura garantiu a entrada de novas tecnologias
ção de 90 milhões pessoas, quando 57% da população no país, além do que as empresas teriam atingido a efici-
vivia nas cidades, para um cenário que hoje se aprofunda. ência apenas a partir das privatizações. Para ele, esta
Pelo censo de 1991, 75% da população reside em áreas tese não confere. “Hoje temos uma demanda que há
urbanas. De maneira contínua, de acordo com Saulo de quinze anos atrás não existia. Que se registre que o Bra-
Tarso, a demanda do país por infra-estrutura aumentou, sil se abriu para o mercado mundial desde 1993, com
assim como a necessidade de investimentos em educa- mudanças como a banda larga, por exemplo. Não é a
ção, saúde e outros serviços. privatização a mãe deste desenvolvimento, a mãe disto
Entre 1938 e 1980, a produção industrial foi mul- chama-se tecnologia computacional, que se desmistifique
tiplicada 27 vezes. Os governos, diante deste cená- este santo de barro da privatização”, coloca.
rio, precisaram investir em rodovias, portos, ferrovi-
as, energia. “O desenvolvimento era focado em es- Na contramão
tatais, com bancos de fomento em infra-estrutura, o
que gerou grande dívida externa, entre 1970 e 1980, do interesse público
um endividamento brutal do Estado”, analisa Tarso.
O endividamento externo corresponde a 54 bilhões “Se estivermos preocupados com o futuro do pla-
de dólares em 1979, ao passo que, em 1973, eram neta, hoje temos que pensar na matriz de transporte,
isto porque interfere diretamente na matriz energética
que queremos para o nosso país”, afirma o engenhei-
ro civil e diretor do Senge-PR, Paulo Sidnei Ferraz.
“Desde o final dos anos 60, o governo frequente- As ferrovias e rodovias brasileiras estão cada vez
AEN
mente usou as estatais para ‘segurar’ a inflação ou bene-
ficiar certos setores da economia, geralmente por serem
considerados ‘estratégicos’ para o país. Como assim?
Houve períodos em que o governo evitou reajustes de
preços e tarifas de produtos (como o aço) e serviços
fornecidos pelas estatais, na tentativa de reduzir as pres-
sões e controlar as taxas de inflação. Esses ‘achatamen-
tos’ e ‘congelamentos’ foram os principais responsáveis
por prejuízos ou baixos lucros apresentados por algu-
mas estatais, que passavam a acumular dívidas ao longo
dos anos – sofrendo então nova ‘sangria’, representada
pelos juros que tinham de pagar sobre essas dívidas.
Certo ou errado, as estatais foram usadas como arma
contra a inflação por governos que achavam que o com-
bate à carestia era a principal prioridade do país”, Aloysio
Biondi, economista, autor de O Brasil privatizado.
SAULO: Com ou sem neoliberalismo, Brasil avançaria tecnologicamente
Reflexos da Privatização 19