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A disciplina do amor
Foi na França, durante a segunda grande
guerra. Um jovem tinha um cachorro que
todos os dias, pontualmente, ia esperá-lo
voltar do trabalho. Postava-se na esquina,
um pouco antes das seis da tarde. Assim
que via o dono, ia correndo ao seu encontro
e, na maior alegria, acompanhava-o com
seu passinho saltitante de volta a casa.
A vila inteira já conhecia o cachorro e as
pessoas que passavam faziam-lhe festinhas
e ele correspondia, chegava a correr todo
animado atrás dos mais íntimos para logo voltar atento ao seu posto e ali ficar sentado até o
momento em que seu dono apontava lá longe.
Mas eu avisei que o tempo era de guerra, o jovem foi convocado. Pensa que o cachorro
deixou de esperá-lo? Continuou a ir diariamente até a esquina, fixo o olhar ansioso naquele
único ponto, a orelha em pé, atenta ao menor ruído que pudesse indicar a presença do dono
bem-amado. Assim que anoitecia, ele voltava para casa e levava a sua vida normal de cachorro
até chegar o dia seguinte.
Então, disciplinadamente, como se tivesse um relógio preso à pata, voltava ao seu posto de
espera. O jovem morreu num bombardeio, mas no pequeno coração do cachorro não morreu
a esperança. Quiseram prendê-lo, distraí-lo. Tudo em vão. Quando ia chegando aquela hora
ele disparava para o compromisso assumido, todos os dias. Todos os dias.
Com o passar dos anos (a memória dos homens!) as pessoas foram se esquecendo do jovem
soldado que não voltou. Casou-se a noiva com um primo. Os familiares voltaram-se para
outros familiares. Os amigos, para outros amigos.
Só o cachorro já velhíssimo (era jovem quando o jovem partiu) continuou a esperá-lo na sua
esquina. As pessoas estranhavam, mas quem esse cachorro está esperando?... Uma tarde (era
inverno) ele lá ficou, o focinho sempre voltado para “aquela” direção.
(TELLES, Lygia Fagundes. A disciplina do amor. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1980. p.99-100)
No fragmento que dá título à obra, Lygia conta a história de um cachorro que durante a
Segunda Guerra, na França, todos os dias refazia o antigo percurso do dono morto no
combate. "Com o passar dos anos (a memória dos homens!) as pessoas foram se
esquecendo do jovem soldado que não voltou... Só o cachorro já velhíssimo continuava a
esperá-lo na esquina."
O livro olha o mundo atentamente, às vezes com um olhar desencantado, mas sempre
compreensivo e terno, na busca da única hipótese de sabedoria nos nossos
tempos: “controlar essa loucura razoável”, seguindo o exemplo da “disciplina
indisciplinada” dos apaixonados.
Já li e gostei:
A disciplina do amor, 1980
Ciranda de pedra, 1954

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