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A ética da reciprocidade:
diálogo com Martin Buber
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A ética da reciprocidade:
diálogo com Martin Buber
Luiz José Veríssimo
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2010, by Luiz José Veríssimo
Editora Uapê
Av. Olegário Maciel, 511/303 – CEP. 22621-200 – Tel. (21) 2493-9175
homepage: www.uape.com.br — e-mail: editorauape@terra.com.br
Editora Responsável: Leda Miranda Hühne
Assistente de editoração: Thereza Martins de Oliveira
Revisão: Michele Sudoh
Diagramação: Nathanael Souza
Ilustrações: 1a
Foto do autor
2a
Tela de Monet - As papoulas
3a
Pintura de Helena Felicidade
Contracapa: Pintura de Helena Felicidade
Direitos de edição da obra adquirida pela UAPÊ – Espaço Cultural Barra Ltda.
Av. Olegário Maciel, 511/303 – CEP 22621-200 – Rio de Janeiro – Tel/fax:
(21)2493-9175.
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
V619e		 Veríssimo, Luiz José
		 A ética da reciprocidade : diálogo com Martin Buber / Luiz
José Veríssimo. - Rio de Janeiro : Uapê, 2010.
		 201p. : il.
		 Inclui bibliografia
		 ISBN 978-85-85666-85-9
		 1. Buber, Martin, 1878-1965. 2. Ética. 3. Filosofia e religião.
4. O sagrado. 5. Misticismo. I. Título.
10-0119.						 CDD: 170
						 CDU: 17
11.01.10 12.01.10 						 017071
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Agradecimentos
Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnoló-
gico, pela concessão de bolsa de estudos de doutorado.
Ao meu orientador Professor Doutor Olinto Antônio Pego-
raro, pelo calor humano, apoio repleto de confiança, ensinamen-
tos, modo de concepção da existência, e por me ensinar, até pelo
seu exemplo vivo, o valor ético da pessoa.
Ao meu “eterno mestre” Leonardo Boff pelo seu apoio em
todas as minhas caminhadas, desde o mestrado, sempre com so-
licitude e zelo nas suas avaliações, e com muita fraternidade nos
encontros, abrindo luzes para a construção do meu pensamento
na religião, na psicologia e na filosofia, ajudando-me a compreen-
der um pouco mais, a cada dia, o significado do cuidado.
Às professoras Doutoras Maria Helena Lisboa Cunha e Ma-
ria Luiza P.F. Landim pelo seu toque feminino, tecendo valiosas
observações, com a anima inspirada pela estética do imaginário e
pela natureza.
Ao Professores Doutores Emmanuel Carneiro Leão e Luiz
Eduardo Bicca pelas suas aulas, palestras, escritos, seu espírito
acolhedor, orientador, sua solicitude, pelos seus ensinamentos
que ajudam a tantos alunos como eu a esforçar-se para “aprender
a pensar”.
À Mestra, Tereza Cristina Saldanha Erthal, por se fazer pre-
sente e inspirar a mais autêntica fé na existência.
Às alunas Ana Maria Abreu Pereira da Silva e Tássia Dona-
dello Ferreira por sua reflexão a respeito da relação entre ética e
psicologia.
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Dedico esse trabalho às pessoas muito queridas que
se fazem presentes nas conversas à mesa, nas
aprendizagens do dia a dia, caminhando pela Vida,
para quem o compartilhar ainda faz sentido.
À Marilda, por partilhar a experiência do encontro.
À Família, que me mostra o exemplo vivo da
Comunidade.
Aos queridos Mestres, cuja dádiva do Cuidado não
tem preço.
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Ocuidado somente surge quando a existência de alguém tem
importância para mim. Passo então a dedicar-me a ele.
Disponho-me a participar de seu destino, de suas buscas, de
seus sofrimentos e de seus sucessos, enfim, de sua vida.
Leonardo Boff
Não basta ser senhor de si; ninguém é ético para si mesmo.
Ninguém é virtuoso diante do espelho. Somos éticos em relação
aos outros, visto que o comportamento é sempre transitivo e
recíproco.
Olinto Pegoraro
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Sumário
Prefácio.............................................................................................. 13
Introdução......................................................................................... 17
Capítulo I – Matrizes da experiência religiosa:
o “totalmente outro” e a metafísica.......................... 29
O totalmente outro e o ocaso do ser humano......................... 31
O nada, o tudo e o trágico......................................................... 36
Confronto da fenomenologia de Otto com a metafísica....... 41
O renascimento do ser humano à luz do Ser.......................... 48
O esquecimento do ser humano e o esquecimento
  do sagrado............................................................................... 53
Capítulo II – Interpretação do sagrado a partir da leitura de
Martin Buber............................................................. 55
Eu e Tu como uma relação originária entre
  o ser humano e o sagrado...................................................... 57
Interpretando o sentido de reciprocidade............................... 67
Caminhar pelo abismo............................................................... 72
Capítulo III – A condição humana e o sentido ético
e psicológico da pessoa........................................... 83
A interface da imanência com a transcendência.................... 85
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LUÍZ JOSÉ VERÍSSIMO
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O modo Eu – Isso e o encontro Eu e Tu.................................. 87
O falar com e o falar sobre......................................................... 99
O caráter originariamente simples do encontro................... 112
Considerações sobre o sentimento......................................... 127
O encontro da pessoa com o Tu envolve a mística............... 146
Sobre a noção de comunidade................................................ 161
A construção da pessoa e o modo de ser “egótico”.............. 176
Perspectiva ética acerca da psicologia da pessoa.................. 184
Bibliografia...................................................................................... 193
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Prefácio1
Luiz José Veríssimo acede ao tema da tese com uma bagagem
considerável. Já fizera sua tese de mestrado nesta mesma Casa2
,
sobre a “Experiência religiosa como expressão de si-mesmo a
partir de C.G. Jung”. Agora não dialoga apenas com C.G. Jung,
mas convoca para a mesma roda Martin Buber, Rudolf Otto, Mir-
cea Eliade, Schleiermacher, Kierkegaard e outros. São autores se-
minais dos quais podemos aprender sempre.
O trabalho de Veríssimo mostra um imenso aprendizado
não apenas no convívio com esses mestres, o que seria já muito,
mas a partir deles, de suas provocações e evocações. Ele próprio
pensa por si mesmo municiado por tudo aquilo que aprendeu
deles. E deveria ser assim, pois se trata de uma tese de doutorado
em filosofia.
1
Apreciação de Leonardo Boff da tese de doutoramento “A experiência religiosa
segundo uma ética da reciprocidade: diálogo com Martin Buber”, orientada
pelo Professor Olinto A. Pegoraro, 2002. Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro. A tese foi o ponto de partida para o presente
texto.
2
Referência ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UERJ. A tese de
mestrado, orientada pelo Professor Boff, foi publicada com o título A psicologia
do self e a função religiosa da alma. Um estudo a partir de C.G. Jung. Campinas:
Livro Pleno, 2005.
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LUÍZ JOSÉ VERÍSSIMO
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O candidato deve mostrar que sabe pensar e não apenas que
sabe e conhece. E na minha apreciação cumpriu esse preceito bá-
sico de todo filosofar, desde os tempos pré-socráticos. E quero
parabenizar a Luiz José Veríssimo por este brilhante trabalho de
pensamento.
Ele é muito bem escrito em termos de dicção do discurso e
bem urdido em suas conexões. Mas o que importa mesmo é o
conteúdo, tratado com cuidado e profundidade.
É árduo o tema em tela: o sagrado, a experiência religiosa, a
ética. Rudolf Otto viu a realidade do sagrado, do santo, na oposi-
ção entre racional e irracional. É o que diz claramente o sub-títu-
lo de seu livro clássico Das Heilige de 1917: “Sobre o irracional na
ideia do Divino e sua relação para com o racional”. Mircea Eliade
coloca o sagrado na tensão e oposição entre o cotidiano e o ex­
traordinário.
Todos viram algo verdadeiro. Mas o sagrado possui uma raiz
mais funda. E ela foi vista especialmente por Martin Buber. O sa-
grado emerge da relação eu – tu e, no seu termo, do Tu eterno. É no
campo da relação do “inter”, do intercurso, no interativo que emer-
ge tanto o sagrado quanto o ético. Numa palavra o nicho gerador
de tudo é a reciprocidade como jogo de relações envolvendo a to-
dos e a tudo. Tê-lo demonstrado é o maior mérito deste trabalho.
O totalmente outro, tremendo e fascinante é simultaneamen-
te a presença do Tu infinito. O totalmente outro que me faz fugir
é um momento do totalmente outro que me chama de volta. Pois
ele está num e noutro momento sempre presente e na forma do
tu. Essa presença é carregada de espessura filosófica. Presença
não é estar-aí como pode estar uma pedra. Presença significa uma
densificação do ser, uma irradiação especial que fala e convence
por si. Pois tal é a natureza do sagrado.
O suporte de toda experiência religiosa reside no sagrado. Aí
se fundam as religiões e os caminhos espirituais e se mantém vi-
vos na medida em que organicamente bebem desta fonte.
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PREFÁCIO
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A ética emerge desta mesma experiência do sagrado. Sempre
que o outro fascinante e tremendo se faz presente, estabelece a
reciprocidade de eu-tu, aí nasce a ética como o jogo das relações
que devem ser boas para todos, para a vida e para a Terra. O sa-
grado é a aura que alimenta a ética e que impede que decaia no
moralismo e no fundamentalismo.
Estas e outras ressonâncias se encontram ao largo de toda a
elaboração da tese de Veríssimo. No contexto atual de crise dos
fundamentos, esta reflexão ganha relevância pois ajuda a criar luz
num âmbito tão complexo e com bases geralmente tão escorrega-
dias. Veríssimo não apenas discorre sobre tais coisas. Mais ainda:
revela um engajamento pessoal pela causa do sagrado e do ético
seja manifestados nas linhas e entrelinhas do texto, seja em sua
vida profissional. Vale ainda ressaltar que mostra segurança e boa
orientação sempre que acena para temas teológicos.
Uma vez mais, felicitamos o autor. Ele honra a Casa e forta-
lece uma tradição que se quer fundar de seriedade, criatividade e
contemporaneidade do fazer filosófico em nosso país.
Leonardo Boff
Petrópolis, 25 de maio de 2002
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Introdução
Aexistência se apresenta sob incontáveis formas. Importa, nes-
se momento, para nós a compreensão da modalidade da existên-
cia fundamentada no diálogo. Assumir esse desafio convida a
observar como se constitui a relação que o ser humano estabelece
com uma experiência radical: a experiência de um outro, por ve-
zes sentido e designado como o “totalmente outro”, como “Isso”,
como “Tu”, como o “infinito”... O que é essa experiência radical e
relacional do eu com o outro? É o horizonte a partir do qual de-
sejamos lançar luzes ao nosso estudo.
Seria impossível catalogar todas as formas como o outro é
vivenciado e compreendido. A relação eu – outro se ilumina de
plenitude e transcendência quando revela a constituição da pes-
soa. Ela é formada por uma trama de relações, e seu sentido mais
próprio em Martin Buber (1878-1965) é apresentado na perspec-
tiva da relação Eu e Tu.
O Tu liga-se à dinâmica relacional Eu e Tu formulada por
Martin Buber em sua obra de mesmo nome3
. Essa dinâmica en-
volve um encontro mútuo, reciprocidade, diálogo, troca, abertura
à comunicação. Admitir o Tu remete ao reconhecimento do ou-
tro enquanto tal. O eu4
só faz sentido numa relação com o outro.
3
2a
edição revista. São Paulo: Moraes, 1977.
4
A noção de eu aqui não deve ser confundida com a noção de ego, tanto na
psicanálise quanto na psicologia analítica. A noção de eu aqui apresentada
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LUÍZ JOSÉ VERÍSSIMO
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O eu não é constituído pelo outro, antes, ele é constituído com o
outro: ele vai emergindo na medida das suas relações, uma teia de
relações que se estende ao infinito, que pode incluir a natureza, a
comunidade, o sagrado (um sentido tomado de valor). Buber de-
signa uma palavra para expressar, com toda a intensidade, o sen-
tido do Tu em nossas vidas: encontro.
Na apreciação, em toda a sua amplitude, do pensamento de
Buber, observamos que não basta dirigir a atenção somente ao
eixo Eu e Tu. Faz parte da existência também a relação Eu – Isso.
A representação do outro oscila, ele é apreendido como familiar e
como um estranho por ser deixado como algo à parte, que pouco
ou nada tem a ver comigo, um forasteiro, e deve permanecer dis-
criminado, contido e controlado, quando não subjugado, mesmo
torturado, mutilado e morto. Familiar, enquanto o outro é assimi-
lado a mim, de tal forma que ele se torna uma projeção da subje-
tividade desejante. Esses são determinados modos que compõem
o campo Eu – Isso.
Por outro lado, o outro pode se tornar familiar se ele é con-
vocado para um encontro que propicie uma relação dialogada e
recíproca. Pode surgir como estranho porque ele subverte todas
as representações que são feitas sobre ele. Nessas duas últimas
referências, temos pistas do que se quer pronunciar com a “pala-
vra-princípio” Eu e Tu. O outro, por fim, atrai e assusta, encanta e
amedronta, seduz e suscita sentimento de ameaça. Tomando em-
prestadas expressões do campo do sagrado, admitimos que o ou-
tro é fascinante e amendronta.
O Tu e o Isso se alternam e se misturam nas diversas formas
é fundada numa perspectiva fenomenológica e dialógica, vale dizer, o eu é
entendido basicamente como pessoa: uma totalidade de sentido constituí-
da não só por racionalidade, como por emoção, desejo, corpo, energia vi-
tal, paixões, atravessado pela temporalidade e espacialidade (o habitar) e
que se constitui junto ao nó de relações pela qual transita em comunicação
e diálogo.
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iNTRODUÇÃO
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com que as pessoas se dirigem umas às outras, visam o mundo,
lidam com o conhecimento, estimam a natureza e o insondável.
Ao longo de nosso estudo, pareceu-nos que, para Martin Buber,
o fundamento ético da existência é o Eu e Tu, mas na existência
ele não se mantém permanentemente atualizado, ou seja, viven-
ciado como presença. Frequentemente, o Tu é negligenciado, es-
quecido, e mesmo renegado. Quando o outro é enquadrado como
Isso, as pessoas o avaliam, seja como um mundo à parte, objetal,
caindo em um esquema que modela um “totalmente outro”
(completo estranho, estrangeiro), seja sob a aparência familiar,
sujeito a toda sorte de projeções psicológicas, expectativas e es-
quemas diretivos que antecipam conceitualmente ou “experi-
mentalmente” o que o ser humano “é”, e tentam prever a sua ação.
O jogo do Tu com o Isso é constantemente tematizado por Buber
ao longo da obra Eu e Tu. Através de Buber, notamos que não é
tarefa das mais fáceis acolher o outro, arrancá-lo da condição de
objeto para reconhecê-lo como existente, e, dessa forma, afastar-
nos da arena onde se disputa o “tudo ou nada”. Essa simplificação
do viver e do conviver se resume em duas atitudes, que são, ao
mesmo tempo, sentimentos básicos, sugeridas pelas assertivas-
modelo: “Não sou nada, Tu és Tudo”, meu projeto é girar em tor-
no de Ti, submeter o meu desejo ao teu desejo, ou, ainda, “Eu sou
o centro, Tu és o meu apêndice”, o meu projeto é aplicar o meu
desejo sobre o teu desejo.
Abrimos nossos trabalhos procurando levantar algumas
possibilidades vivenciais do Tu quando compreendido à luz da
experiência religiosa. Em sentido bastante amplo, a experiência
religiosa tem a ver com a adoção de um fundamento que religa
todas as coisas. Em sentido mais específico, a experiência religio-
sa é a experiência do sagrado. Se trabalhamos com essa ideia, jul-
gamos importante apresentar um apanhado geral e introdutório
do sagrado, ao menos em algumas de suas formas características
de vivência e de concepção; por exemplo, o sagrado como fasci-
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LUÍZ JOSÉ VERÍSSIMO
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nante, temido, trágico, irracional, metafísico, paradoxal. O sagra-
do é nomeado por Buber como o Tu Eterno, mas pode ser toma-
do, “decifrado”, e, mesmo, apropriado, como um Isso. Então, ele
se torna “familiar”, é decomposto em fórmulas doutrinárias, e en-
quadrado em conceitos que passam ao largo da vivência. O sagra-
do reduzido ao Isso cria um ambiente de esquematização e nor-
matização das problemáticas emergentes, facilitando a adoção de
um ponto de vista bastante extremado, dogmático ou cético: “Não
sou nada, Tu (o sagrado) és Tudo”, ou, ainda, “Tu (o sagrado) és
nada, estás morto, eu, sujeito, de agora em diante sou o único
sentido que importa na existência”.
Na sequência de nossa pesquisa, abrimos as trilhas para dar
passagem à pessoa e à comunidade. Partindo de algumas consi-
derações complementares acerca da experiência religiosa, toma-
mos o rumo para chegar à vivência cotidiana, onde encontramos
algumas perspectivas de dar sentido ao ser humano que não se
encerram numa singularidade solipsista, nem o achatam frente a
um coletivo indiferenciado ou ideológico-dogmático que abafa o
si-mesmo no ruidoso som das normas indicativas de caminhos
previamente estabelecidos.
Trata-se, nesse ângulo, de uma ontologia, vale dizer, do estu-
do de um ser, o ser humano, que aponta para o vislumbre do ou-
tro enquanto Tu. Só penetraremos no cerne de nossa questão caso
não nos percamos no labirinto de divagações que nos afastem
cada vez mais da vivência. O professor Zuben considera que é na
e pela vivência que poderemos ter oportunidade para abrir clarei-
ras que permitam acessar a ação recíproca entre o Eu e o Outro.
A relação Eu – Tu seria uma relação ontológica e existencial
que precederia o relacionamento cognoscitivo. Poderia mes-
mo afirmar que, antes de conhecer a vivência, o homem a
vive e a relação objetivante é um empobrecimento da densi-
dade vivencial originária. A contemplação no face a face não
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iNTRODUÇÃO
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é uma intuição cognoscitiva, mas doação de um Tu a um Eu.
Este se realiza na relação a um Tu.5
Gostaríamos de aproveitar a introdução de nosso diálogo
para justificar a reciprocidade relacional como uma ética, de acor-
do com a proposição de nosso tema, a compreensão da existência
segundo uma ética da reciprocidade e uma psicologia da pessoa.
Trabalhamos a noção de ética baseando-nos na tese de que a
ética se fundamenta nas interações humanas. Na própria etimolo-
gia da palavra, já temos essa indicação. Um dos significados de
ethos é morada, isto é, o mundo que os indivíduos compartilham.
Entendemos mundo como a totalidade das vivências de cada pes-
soa, seu modo de compreensão da existência, sua interação com as
demais pessoas, com a cultura, a sociedade, a natureza. Dito de
outro modo, o ethos diz respeito à ideia de comunidade como a
morada em comum na qual edificamos as nossas interações, o nos-
so conviver, o nosso viver junto. Esse convívio se dá de muitas for-
mas: na relação com o outro, com os diferentes grupos, com a co-
munidade, com a natureza, nas instituições e nas práticas sociais.
A convivência, o viver junto, é o grande desafio ético, pois
cada um tem uma forma própria de ser, o que gera conflito. Na
convivência, está em jogo uma multiplicidade de valores, crenças,
possibilidades. Diante da infinidade de modos de ser, de interes-
ses, de mentalidades, de perspectivas do agir humano que com-
põem as diversas formas de convivências e interações, o viver se-
gundo um sentido ético nos leva a conscientizar que os pronomes
eu e meu sozinhos não expressam a ética em amplo sentido. A
expressão ética mais apropriada é o eu articulado e confrontado
com o outro, ou seja, o nós: o nosso com-viver, os nossos projetos
em comum, as nossas relações, nossos conflitos, diferenças, iden-
5
Zuben, Newton Aquiles von. Martin Buber. Cumplicidade e diálogo. Bauru:
EDUSC, 2003, p.151.
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LUÍZ JOSÉ VERÍSSIMO
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tificações, a nossa convivência. O pronome nós é, portanto, um
pronome importante para expressar um sentido ético, ou, mais
precisamente, como ressalta Buber, o “entre” é a melhor expressão
para o ethos.
A ética não é somente um conjunto articulado de ideias com
ideais. Ela se torna no campo religioso um profundo ofício de fé,
e, no campo das diversas relações que se estabelecem, uma práti-
ca consistente e coerente justamente no nosso viver cotidiano,
quando temos de lidar com outras pessoas, diferentes de nós,
com desejos diferentes, com a quebra de expectativas, a reformu-
lação das nossas avaliações, e devemos levar em conta a relação
com as pessoas, com os grupos com os quais interagimos, e com
a natureza, segundo um sentido orientado pela gestão da recipro-
cidade e do diálogo. Tal sentido se dá a partir da perspectiva do
Eu com Você. Não se trata de colocar o “eu” em primeiro lugar e
visar somente a si, desejar o outro apenas como meio de satisfa-
ção de desejos próprios, nem de colocar o outro como o centro
das decisões e da vida, o que significa anular-se perante o outro,
mas de visar um projeto e uma praxis em comum com o outro, o
que implica superação de conflitos, participação, inclusão, ternu-
ra e cuidado no trato.
A ética consegue integrar, a um só tempo, a dimensão racio-
nal, pois devemos ponderar a medida de nossas ações e intenções,
e a dimensão afetiva. É nesse ponto que se desvela, no cenário
dialógico, uma ética que enfatiza a alteridade. Ela acredita que a
visada ao Tu promove a ligação fundamental entre mim e o outro.
E isso é uma prática incessante, ou seja, um exercício de elaborar
a convivência através da atitude fundamental do diálogo: o de-
senvolvimento de um pathos relacional nos permite desenvolver
o cuidado, a empatia e a compaixão (de com-paixão, sentir jun-
to). O Tu evoca o reconhecimento, e, mais do que isso, o diligente
interesse pela presença do outro na existência de cada pessoa. E
assim tornamo-nos seres atuais uns para os outros, na medida em
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iNTRODUÇÃO
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que atualização é a realização da interação com a alteridade in-
tencionada como um Tu. A atualização implica uma empatia fun-
damental: colocar-se no lugar do outro, interessar-se por ele, for-
mar a noção de um destino comum. O destino em comum nada
mais é do que a conscientização de que as ações, os projetos de
vida, os modos de ser têm uma amplitude mútua, uma repercus-
são recíproca nos integrantes da relação. Quando estamos inte-
ressados no destino nosso e do outro, conseguimos vislumbrar
que o que fazemos, o que desejamos, o que sentimos ou deixamos
de sentir pode promover o bem comum, assim como pode ins-
taurar e sustentar a dor, a exclusão e o sofrimento. Assim, quando
estamos predispostos a assumir uma ética no sentido dialogal po-
demos vivenciar a solidariedade, a compaixão, o cuidado, enfim,
o revelador e preciso sentido do encontro.
A partir da convivência recíproca, dialogada e responsável,
está fundamentado um dos sentidos fundamentais da pessoa:
manter-se fiel aos valores que levem em consideração não apenas
a nossa individuação (o processo de se converter no modo de ser
próprio, um modo extático, ou seja, que se desenvolve nas diversas
interações estabelecidas), como valores que considerem diligente-
mente os integrantes da relação, suas particularidades e identida-
des, a comunicação entre eles. A individuação e a relação rematam
um sentido de fé como uma lealdade repleta de confiança no que
se afirma e se experimenta como uma existência autêntica, com-
partilhada e dialogada. A forma dialogal envolve reciprocidade,
responsabilidade, cuidado, empatia, decisão, amor, capacidade de
formar e de cultivar vínculos, reconhecimento da diferença.
Buber estima que a condição relacional expressa em toda a
sua amplitude a condição humana. As relações que o ser humano
estabelece não envolvem apenas a consideração para com o outro.
Elas envolvem, igualmente, o ódio, a indiferença, a alienação, a
negação do outro, a manipulação e o desejo de posse do outro
como um objeto-para-mim. A reciprocidade formulada por Bu-
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ber quer dizer, também, que se trato o outro dessa forma, eu mes-
mo me torno um objeto. De acordo com a forma com que deseja-
mos e reconhecemos o outro, estaremos nos projetando como um
Isso ou como um Tu nas relações. E não é pouco comum nos pro-
jetarmos de forma ambivalente em nossas interações. O Isso con-
vive com o Tu, ambos se alternam. Podemos romper com “o mun-
do do Isso”, e nos envolver com a dinâmica do Eu e Tu, da mesma
forma que, a todo momento, estamos retomando o mundo da
causalidade, da necessidade, do objeto e da fascinação por man-
ter-se à parte – o eu isolado, relacionando-se como um átomo so-
breposto ao outro, e, independentemente da relação ser tomada
eventualmente como “íntima”, relacionar-se com ele como se fosse
um forasteiro, mesmo convivendo no mesmo espaço, ou ainda,
mesmo que o espaço entre os corpos seja zero.
Uma última observação diz respeito à presença de uma
orientação não apenas filosófica como psicológica em nosso tra-
balho. Não é de hoje que nutrimos um acentuado interesse pela
analítica junguiana. Jung ressaltou o desdém que uma tradição
cientificista e racionalista nutre contra a psicologia, acusando-a
de mero psicologismo. A psicologia deve ser entendida em amplo
sentido, fenomenológico e existencial.
A psicologia nos conduz a uma hermenêutica que atende a
uma abertura do logos à psique. Entendemos psicologia como um
discurso, uma compreensão, um estudo (logos) acerca da alma
humana (psiqué). Desse modo, a psicologia não se livra tão facil-
mente da esfera metafísica: em algum momento, seus autores
mais arrojados tangenciam com a radicalidade do pensar acerca
dos fundamentos originários do ser humano.
Ocorre que, neste trabalho, em nenhum momento nos
permitimos esquecer que Buber manteve uma acirrada polê-
mica com Jung em torno de certas discussões, principalmente,
sobre a transcendência e imanência de Deus. Buber ataca Jung,
acusando-o de ter reduzido Deus à imanência. Jung se defende
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iNTRODUÇÃO
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argumentando que nada tem a objetar quanto à tese do Eu e
Tu; ele está analisando Deus do ponto de vista psicológico, e
não metafísico, e que a primeira questão é tão decisiva quanto
a última. Enquanto para Buber interessa como o ser humano
se relaciona com o Tu eterno, Jung se dedica ao estudo das for-
mas como o indivíduo e as culturas produzem, interpretam e
reproduzem os conteúdos simbólicos no campo da experiên-
cia religiosa.
Há quem aposte nas noções de Deus como relação e alterida-
de, enquanto, por outro lado, encontramos quem se concentre na
avaliação da “imagem de Deus” como uma imagem originária in-
dissociável do psíquico, sobretudo do si-mesmo, dos arquétipos
do inconsciente coletivo e da individuação da pessoa. Colocadas,
a grosso modo, as afirmações lado a lado, as primeiras assertivas
“pendem mais”, digamos assim, para o pensamento de Buber, as
últimas se afinam especialmente com o sistema de Jung6
. Mas,
ressaltemos que essas apreciações são meras generalizações, pois,
por exemplo, o pensar complexo não admite que a visão de Buber
seja considerada um pensamento do sagrado apenas do ponto de
vista transcendente. Da mesma forma, não aceitamos que Jung se
contente com uma superestima da interioridade em prejuízo da
ética em sua perspectiva relacional. Jung não deixa passar em
branco a consideração da relação para a constituição do ser hu-
mano. Ainda que as projeções psíquicas de um determinado
­sujeito sejam analisadas retrospectivamente até a sua origem,
mesmo assim, permanece a demanda por parte do paciente de
relacionar-se com um ser humano. Aqui, entendemos não apenas
a relação paciente-analista, como todas as perspectivas das rela-
ções humanas. E essa exigência deveria ser satisfeita, “pois o ho-
6
Sobre a importância capital que Jung confere à psique, veja Veríssimo, Luiz
José. A psicologia do self e a função religiosa da alma. Um estudo a partir de C.G.
Jung. Campinas: Livro Pleno, 2005.
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mem, totalmente sem qualquer espécie de relação humana, cai no
vazio”.7
O sofrimento humano não é apenas uma questão pura e
simplesmente individual.
O ponto de vista clínico, por si só, não abarca, nem pode
abarcar, a essência da neurose, pois ela é muito mais um fe-
nômeno psicossocial do que uma doença estrito senso. A
neurose obriga-nos a ampliar o conceito de “doença” além
da ideia de um corpo isolado, perturbado em suas funções, e
a considerar o homem neurótico como um sistema de rela-
ção social enfermo.8
Até mesmo uma relação etiquetada de “profissional” pode
evocar a relação no modo dialógico. Com relação ao encontro
paciente-analista, ele é visto como uma parceria: “Esta relação de
pessoa a pessoa é a pedra de toque de toda análise que não se dá
por satisfeita com um pequeno resultado parcial.” Nessa situação
psicológica, o paciente se coloca diante do médico em igualdade
de condições, “esta forma de relacionamento pessoal corresponde
a um compromisso ou a uma ligação livremente assumida, em
oposição aos grilhões da transferência”.9
Para aqueles que tiverem interesse no fogo cruzado do deba-
te envolvendo Jung e Buber, recomendamos a leitura do livro
Eclipse of God. �������������������������������������������������Studies in the Relation Between Religion and Phi-
losophy (Eclipse de Deus. �����������������������������������������Considerações sobre a relação entre reli-
gião e filosofia), de Martin Buber10
, e os textos de Jung “Religião e
7
Jung, C.G. Ab-reação, análise dos sonhos, transferência. Petrópolis: Vozes, 1987,
p.8, par. 285 (Obras completas, vol. XVI/2).
8
Idem. A prática da psicoterapia. 3a
ed. Petrópolis: Vozes, 1987, p.22, par. 37
(Obras completas, vol. XVI/1).
9
Ibidem (mesma obra), p.8, par. 286, 289 e 290.
10
New Jersey: Humanities Press; Sussex: Harvester Press, 1979 (edição brasilei-
ra: Campinas Verus, 2007). O livro do comentador Maurice Friedman To
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iNTRODUÇÃO
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psicologia: uma resposta a Martin Buber” (em A vida simbólica,
Obras completas, vol. XVIII/2) e “Introdução à problemática da
psicologia religiosa da alquimia” (em Psicologia e alquimia, Obras
completas, vol. XII)11
, onde, apesar de Jung não se referir direta-
mente a Buber, as problemáticas levantadas concernem ao debate
em questão.
Entrar no confronto direto do pensamento de Buber com o
de Jung exige um trabalho todo à parte, assim como teríamos de
fazer o mesmo para acompanhar integralmente as diferenças co-
locadas por Buber quanto ao budismo, ao hinduísmo, à mística
em geral, a Kierkegaard, a Heidegger, a Platão.
Temos aqui um sonho mais modesto: o projeto de desenvol-
ver uma interpretação de Buber que nos ajude a elucidar aspectos
fundamentais da existência quanto ao que religa o ser humano
com os seres humanos e com uma concepção de totalidade, fonte
de nossas pesquisas há alguns anos. Nesse sentido, somos gratos
a uma releitura acerca da existência sob a fonte do pensamento de
Buber. O filósofo inspirou, não somente em nossa consciência,
mas, sobretudo, em nosso coração, a perspectiva relacional de
uma ética do diálogo, que acreditamos ter se insuflado definitiva-
mente em nosso percurso de vida, numa trajetória que provoca
constantemente a consciência da alteridade no horizonte da des-
coberta do si-mesmo.
Deny Our Nothingness. Contemporary Images of Man também se refere ao de-
bate entre Jung e Buber. Veja os capítulos VI.9 e IX.16.
11
Ambas as obras publicadas pela Editora Vozes.
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Capítulo I
Matrizes da experiência religiosa:
o “totalmente outro” e a metafísica
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O totalmente outro e o ocaso do ser humano
Iniciemos o nosso exame do sagrado observando uma forma
frequente pela qual ele é experimentado. Essa forma o reconhece
apenas como uma realidade transcendente ao indivíduo, seguin-
do o sentido convencional de transcendente como aquilo que se
inscreve fora do mundo, e, consequentemente, além do âmbito
humano. Quando o sagrado aparece sob a forma exclusivamente
transcendente, mal podemos vislumbrar uma relação: trata-se,
antes, da marcação de uma posição hierárquica, onde o sagrado
ocupa o lugar central, e o ser humano é apresentado como a figu-
ra de um astro que gira em torno de uma estrela.
Esse ponto de vista reproduz um modo típico de se com­
preender o sagrado: ele supõe a existência de uma realidade que
se impõe ao indivíduo, hierarquicamente superior, que não raras
vezes é entendida como regente do tempo e do destino. Segundo
essa perspectiva, estamos diante de uma relação desigual (se é
que podemos chamar de relação) entre o ser humano e o sagra-
do, caracterizada por um imenso abismo entre a pessoa e o sa­
grado, marcada por categorias como o temor, o terror, a nadifica-
ção do eu, a concepção do indivíduo como finito diante de uma
infinitude ao qual ele deverá se submeter se quiser sublimar a sua
condição trágica. De acordo com essa mentalidade, se resta ao
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LUÍZ JOSÉ VERÍSSIMO
| 32 |
homem algum campo de possibilidades e de liberdade, ele jamais
pode afrontar os desígnios divinos, pois jamais se nivelará ao fun-
damento sagrado que cultua.
Tal aspecto não é ignorado por Rudolf Otto ao fazer uma
apreciação fenomenológica do sagrado. O autor procura analisar,
em O sagrado, como ele é sentido pelo homem que se dirige a
ele em oração, no culto, etc. A sua obra se inicia com a descrição
do aspecto mais assustador do sagrado, o tremendum. O sagrado
é de tal maneira grandioso, fora de qualquer medida conhecida,
dotado de um incomensurável poder, manifesta-se de forma tão
imprevisível e indomável, que para designar tal quadro a cons­
ciência mítico-religiosa apela para o termo “tremendo”.
O tremendo é um sentimento característico da pessoa que se
defronta com o sagrado. Ela sente um verdadeiro terror, que não
se confunde com o que possamos entender ordinariamente como
medo. O terror se apresenta para quem se encontra diante de um
poder avassalador e, de fato, tremendo, que envolve o que é con-
siderado sagrado. “Trata-se de um terror cheio de horror interno
que nenhuma coisa criada, mesmo a mais ameaçadora e mais po-
derosa, pode inspirar.” Otto vê nesse terror justamente a origem
do fenômeno religioso. “Aqui está a origem dos ‘demônios’ e dos
‘deuses’ e de tudo que a ‘percepção mitológica’ ou ‘imaginação’
produziram para objetivar este sentimento.”12
O tremendo causa temor, faz tremer a alma e gera um espan-
to na consciência. Uma primeira impressão que nos deixa a leitu-
ra de Otto é a de que o sagrado é experimentado de tal forma que
diante dele o ser humano se vê esmagado, reduzido a pó e cinzas.
Para ilustrar tal situação, Otto cita a “ousadia” de Abraão ao diri-
gir-se a Deus: “Tive a ousadia de falar contigo, eu que não passo
de pó e cinzas” (Gênesis 18,27). Otto observa que, para tal com-
preensão do sagrado, trata-se do apagamento e do aniquilamento
12
O sagrado. Lisboa: Edições 70, 1992, p. 23-24.
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Matrizes da experiência religiosa: o “totalmente outro” e a metafísica
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da criatura perante um poder soberano numinoso. Isso constitui
nada menos que o “sentimento do estado de criatura”, ou seja, “o
sentimento da criatura que se abisma no seu próprio nada e desa-
parece perante o que está acima de toda a criatura”.13
Nesse cenário, imaginamos que onde entra em cena o sagra-
do, o ser humano se nadifica, submete-se a um poder infinita-
mente superior a ele. Assim, nada menos surpreendente do que
se estabelecer uma relação de terror e temor entre Deus e o ser
humano. Otto nos mostra na cólera de Javé um exemplo do que
institui esse tipo de relação.
A “cólera de Javé” apresenta um caráter estranho que sempre
nos impressionou. Em primeiro lugar, ressalta claramente de
várias passagens do Antigo Testamento que esta “cólera”, ori-
ginariamente, não tem relação alguma com os atributos mo-
rais. “Inflama-se” e revela-se, misteriosamente, “como – diz-
se – uma força escondida da natureza”, como a eletricidade
acumulada se descarrega sobre quem dela se aproxima. É
“incalculável” e “arbitrária”. Quem habitualmente apenas
conceber a divindade sob a forma dos seus predicados racio-
nais, verá na “cólera” um capricho e uma paixão. Mas os ho-
mens piedosos da antiga aliança teriam decerto rejeitado
energicamente esta forma de a considerar. (...) Com efeito,
esta ira é apenas o próprio tremendum, o qual, não sendo de
modo algum racional, deixa-se captar exprimindo-se aqui
de forma primitiva, por analogia com um termo emprestado
ao domínio natural, à vida espiritual do homem.14
13
Ibid., p.19. Otto cita, na p.31 de O Sagrado, G. Greith: “O homem afunda-se e
dissolve-se no seu nada e na sua pequenez. Quanto mais se descobre, clara e
pura a seus olhos, a grandeza de Deus, tanto melhor reconhece a sua própria
pequenez.”
14
Ibid., p.28.
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A cada indivíduo resta a impotência em face da absoluta su-
perioridade de poder; é quando se revela o sentimento do nada
da criatura. Ele conduz ao aniquilamento do eu, e à afirmação da
absoluta e única realidade do transcendente.15
A versão do sagrado com o hemisfério tremendo voltado
para a janela do indivíduo que o espia é encontrada em tradições
como o islamismo, o judaísmo, o cristianismo16
, em imagens da
mitologia grega (veja, mais adiante, a apreciação da noção grega
do destino) etc., e, igualmente, até hoje, na mentalidade de muitas
pessoas.
As observações de Rudolf Otto com relação ao aspecto tre-
mendum do sagrado acentuam uma formulação desenvolvida a
partir da vivência do sagrado como o “totalmente outro”. Essa
ideia da alteridade absoluta nos fornece o nosso ponto de partida,
porque o nosso estudo vai procurar circunscrever os limites dessa
concepção, e sublinhar o caráter dialogal da experiência religiosa
a partir do estudo da perspectiva de Martin Buber. Por outro lado,
não se trata de rejeitar a observação de um “totalmente outro”, ou
mesmo de negar que ele constitua uma das formas mais destaca-
das da experiência religiosa: gostaríamos de ressaltar que essa
proposição não esgota todas as possibilidades de vivência, ex-
pressão e interpretação do sagrado.
Se nos detivermos unicamente no “totalmente outro”, corre-
mos o risco de negligenciar os demais aspectos do sagrado. Por
15
Ibid., p.30.
16
Para Karen Armstrong, “Os profetas de Israel experimentaram o seu Deus
como uma dor física que torcia cada membro e enchia-os de fúria e exaltação.
A realidade a que chamavam de Deus foi repetidas vezes vivenciada pelos
monoteístas sob um estado de [condição] limite: leremos sobre o cume das
montanhas, trevas, desolação, crucificação e terror. A experiência Ocidental
de Deus pareceu particularmente traumática.” A History of God. New York:
Ballantine Books, 1994, p.xxii (edição brasileira. Uma história de Deus. São
Paulo: Companhia Das Letras, 1994, p.12).
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Matrizes da experiência religiosa: o “totalmente outro” e a metafísica
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exemplo, o sagrado afirmado como uma mística associada ao
amor, à compaixão, à solidariedade, à comunhão. Eis outro as-
pecto complementar do tremendum que nos faz admitir o sagra-
do como uma noção complexa: o sagrado apresenta-se também
como o fascinosum. O fascinante é a modalidade do sagrado que
encanta, fascina, irradia amor e misericórdia, que suscita compai-
xão, suprema e doce paz, aquieta a alma, oferece ampla consola-
ção. Mesmo na instância atrativa, o sagrado permanece em Otto
como uma instância completamente extra-humana:
Afirmamos, portanto, de acordo com a via eminentiae et
causalitatis, que o divino é a realidade mais elevada, mais
poderosa, melhor, mais bela e mais querida, coroamento de
tudo o que um homem pode conceber. Mas, de acordo com
a via negationis, dizemos que não é só o fundamento e o su-
perlativo de tudo o que é concebível; Deus é, em si mesmo,
uma essência à parte.17
Da mesma forma que a experiência religiosa pode suscitar o
sentimento do nada da criatura, essa mesma experiência pode se
revelar como a celebração de uma ética afirmadora da existência,
uma ética cuja “fatalidade” é possibilidade. Uma ética da fé fun-
dada no diálogo é uma forma fundamental de religare: ao desco-
brir o sagrado, revela a natureza mais íntima de cada um que se
inclina a ele. Como nas convicções do fundador do hassidismo,
Israel Baal Shem Tov, que tentava descrever a interdependência
entre Deus e a humanidade. Deus não era nenhuma realidade
externa. Os hassidim acreditavam que, ao tomar consciência da
centelha divina dentro deles, se tornariam plenamente humanos.
Nosso começo pretende interrogar o que significa ser “nada”
perante um “tudo”, ser nada mais que “pó e cinzas”. Daí, seguire-
17
O sagrado, p.59.
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mos desenvolvendo temáticas que emergem a cada passo, quase
infindavelmente, tentando amarrar um fio condutor que pode se
desfazer a cada noite. A elaboração de um estudo exige uma tare-
fa heroica de não se apavorar e prosseguir em frente tecendo la-
boriosamente o fio do sentido. No fundo, não nos iludiremos:
cada ponto será apenas uma vírgula, e, cada conclusão, uma pau-
sa no pensar para irrigar o vigor desse mesmo pensar.
O nada, o tudo e o trágico
Procuramos descrever que o modo de aparição do sagrado sob o
aspecto revelado por Otto, segundo as palavras evocadas por ele
em nome de Abraão – “não sou nada, tu és tudo”18
– traz à mostra
o apagamento e o aniquilamento da criatura perante um poder
soberano. Tal poder expressa, não raras vezes, o seu aspecto as-
sustador, como nos mostram vários relatos míticos. Os deuses
gregos podiam tanto auxiliar e proteger os homens quanto ani-
quilá-los de um só golpe, ou podiam armar uma trama que re-
dundaria num destino trágico. Na Bíblia, quando o culto a Javé é
subvertido ao paganismo popular (o culto a Baal), Javé expressa
todo o seu aspecto tremendum, como nos conta Jack Miles:
Moisés volta ao monte por 40 dias e 40 noites, desaparecen-
do em meio a fogo e fumaça (...) O Senhor (...) indica que,
com todo o seu aspecto aterrador, agora veio para ficar. Em
meio a essas instruções, o Senhor prescreve um ritual de
sanguinolência sem precedentes para a investidura dos sa-
cerdotes. Moisés retorna do monte e descobre que o povo
mergulhou na idolatria. Em sua ira, quebra as tábuas da lei e
induz os levitas a uma sangrenta e indiscriminada represália
18
Ibid., p.31.
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Matrizes da experiência religiosa: o “totalmente outro” e a metafísica
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contra os israelitas. Milhares morrem, e, além disso, Deus
atinge a nação com uma praga. Deus prova que em suas
ações junto ao seu povo escolhido será tão violento e perigo-
so quanto em sua primeira e assustadora aparição a eles.19
Estamos diante de uma imagem dramática, em que o ser hu-
mano parece não ter qualquer outra possibilidade a não ser sub-
meter-se ao sagrado da melhor forma que puder, a fim de não
provocar a ira divina e conseguir manter-se sob a sua proteção.
Apesar de reconhecermos o que descrevemos como um sen-
timento frequente em muitas pessoas ao procurarem uma ligação
com o sagrado, não consideramos que os problemas religiosos ter-
minem aqui. Ao contrário, o cenário descrito é o nosso começo, o
ponto em que daremos início a nossa prosa, levantando algumas
questões. O que significa esse aspecto tremendo do sagrado? Em
que medida ele resulta num esmagamento do ser humano, cuja
insurreição contra os mandamentos divinos, sob forma, por exem-
plo da hybris grega (a temida perda da medida divina) ou do pe-
cado judaico-cristão, acarreta um desfecho trágico?
Esse aspecto tremendo expressa simbolicamente certas con-
dições da existência. Todos experimentamos a experiência da di-
laceração, do sentimento de ser como que despedaçado, seja por
pessoas ou situações que nos dão a impressão de nos machucar
profundamente. Alguns golpes do destino, algumas situações da
existência são sentidos como dilaceradores, devastadores, esma-
gadores, e podem afetar sensivelmente o sentimento de determi-
nação de nosso destino e de nossa personalidade. Ocorre-nos uma
passagem do mito de Dioniso, quando o deus ainda se chamava
Zagreu. Os Titãs o dilaceraram criança pequena, cozinharam-no,
e, a seguir, o devoraram. Essa criança pode ser interpretada como
a nossa própria inocência diante de algumas situações que se apre-
19
Deus. Uma biografia. São Paulo: Companhia Das Letras, 1997, p.136.
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sentam a nós. E algumas delas soam como titânicas. Sentimo-nos
como se fôssemos dilacerados, a seguir cozidos e devorados, ou
seja, sentimo-nos como se não sobrasse nada de nós, em outras
palavras, o que parece restar é, de fato, o sentimento do nada da
criatura.
No sentimento do nada da criatura, o indivíduo se sente anu-
lado e impotente perante o sagrado. Tal feição nos leva a pensar o
destino. O sagrado confunde-se com a noção de destino. O pen-
samento grego expressou bem isso: nem Zeus pode com as Moi-
ras, quando muito o pai dos deuses e dos homens é nivelado a
elas, mas nunca lhes é superior. As Moiras determinam o destino
sem apelação. As Moiras são símbolos da fatalidade. Significam,
literalmente, o destino. Essa noção mítica grega acabou desmem-
brando-se em três personagens: Cloto é a fiandeira. Ela tece nada
menos que o fio das tramas da vida de cada pessoa. Láquesis é
aquela que mede o tamanho do fio, a extensão da vida. E, final-
mente, Átropos, do verbo trepein, voltar, logo Átropos é a que não
volta atrás, é a que corta o fio. Elas constituem as tramas de nossa
vida, de nosso destino. Sua tecedura não tem apelação, é o destino
inevitável, quanto ao qual nada se pode fazer, nem Zeus, o todo-
Poderoso pai dos deuses e dos homens pode com elas! Ele é uma
espécie de zelador do que está decretado pela Moira. Quando
Átropos, a que não volta atrás, corta o fio da vida, os liames são
todos desfeitos. Esses liames podem ser compreendidos simboli-
camente como os sentidos que tecemos ao longo de nossa vida,
todos desamarrados, através do ato do corte.20
Ao experimentar-
mos algumas formas do trágico, como a morte, a dilaceração, o
sofrer, o sentimento de ser violentado, estamos soltos, desligados
20
Montaigne refletindo sobre a morte observa que “a sorte aguarda por vezes
nosso último dia, a fim de nos fazer compreender o poder que possui de der-
rubar em um instante o que custou longos anos para edificar”. Somente depois
da morte podemos julgar se fomos felizes ou infelizes em vida. Em Ensaios I
(cap. XIX). São Paulo: Nova Cultural, 1987 (Os pensadores), p.43.
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Matrizes da experiência religiosa: o “totalmente outro” e a metafísica
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do que nos amarrava, desligados daquelas realidades com as quais
nos identificávamos, estamos, afinal, imersos no não sentido.
Volta e meia a vida nos apresenta a morte. A morte como
fato inexorável, como envelhecimento, como a perda de entes
queridos, ou a morte simbólica, quer dizer, as perdas sentidas por
nós como irreparáveis, traumáticas e dolorosas. Estamos volta e
meia diante de golpes do destino. No campo da religião, certos
acontecimentos de conotação aparentemente trágica fazem parte
do destino das divindades, tanto quanto os acontecimentos subli-
mes, beatíficos e conciliadores. A dupla condição finitude-trans-
cendência aparece bem nítida no jogo morte-renascimento que
envolve Dioniso, Cristo e Osíris em um simbolismo afim. Todos
foram deuses que sofreram um violento martírio e, a seguir, res-
surgiram renovados. Osíris foi assassinado por seu irmão Set.
Seus pedaços foram recuperados por sua irmã-esposa Ísis, que,
sendo a deusa da magia, promoveu o seu renascimento e, desde
então, Osiris se torna também o deus dos mortos. Na Grécia
­antiga podemos reconhecer o tema do despedaçamento ou fim
trágico que implique não apenas em uma morte, mas em um re-
nascimento transmutado no mito de Zagreu, despedaçado bru-
talmente pelos Titãs e renascido sob o nome e forma definitiva de
Dioniso, o grande deus das religiões populares. Cristo pregado na
cruz é uma imagem da tensão culminante entre a finitude e a
transcendência. Ele, nada menos que um princípio divino, deve
morrer para poder ressurgir transmutado. Nesses mitos, observa-
mos que o próprio princípio sagrado se submete a uma espécie de
finitude para poder revelar a sua transcendência, e, assim, rein-
gressar na infinitude.
Essa conjugação de vida e morte, geração e destruição, con-
ciliação e dilaceramento compõem o sagrado. Vários povos não
olvidam esse duplo aspecto da existência. Eles celebram, também,
o aspecto tremendum dos deuses. Vendo-os, espelham a si pró-
prios, a sua condição, a sua existência, o mistério que permeia as
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definições e as concepções tradicionais, mistério que deixa a to-
dos espantados, tentando responder às inquietações através de
mitos, ideias, símbolos e ritos para fazer frente à torrencial ava-
lanche de situações-limite postas diante de nós e impostas pelo
próprio existir. As diversas culturas e tradições interpretam e ex-
pressam a existência em sua complexidade, desenvolvendo no-
ções acerca do que é “bom”, assim como do que é “mau”, na tenta-
tiva de organizar, tecer e manter ligadas as tramas dos sentidos
que se formam e com os quais as pessoas se identificam. Dessa
forma, a religião celebra a existência em todos os seus matizes:
celebra o trágico, a vida, a morte, o êxtase, a superação.
Ao expor o “estado de criatura” cuja máxima reza que o indi-
víduo afirma-se como não sou nada, tu és tudo, e sente o sagrado
como um “totalmente outro”21
, constatamos em tal concepção um
fosso entre o ser humano e o sagrado. A distinção entre a condi-
ção humana e o sagrado encontramos, também, por exemplo, na
teologia e na metafísica ocidental, sem, no entanto, reconhecer-
mos uma separação tão drástica entre o humano e o sagrado.
O estado de criatura, apresentado por Otto faz vir a lume um
sentimento que se apresenta ao longo de nossa existência, portan-
to, de caráter ontológico, qual seja, o sentimento de dilaceração
do eu, de não ser nada, de se ver reduzido a pó e cinzas, quando,
por exemplo, encontramo-nos diante das perdas, das rupturas, da
dor. Essa dimensão ontológica nos faz lembrar que a esfera reli-
giosa permite experimentar as condições radicais da existência: a
morte, o renascimento, o tempo. Elas apontam para uma articu-
lação entre o sagrado e a noção do destino, como observamos nas
Moiras. Não é à toa que a escatologia, a preocupação com os fins
últimos da alma, é uma constante em diversas religiões. Quem
evoca uma manifestação do sagrado está, de uma forma ou de
21
O sagrado, cap. 5, B. (Mysterium Tremendum).4. O “totalmente outro”, p.38
e ss.
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outra, defrontando-se com a mais extrema experiência, o destino:
seja pelo desejo de alterá-lo, de barganhar com ele, de aceitá-lo,
de compreendê-lo, de recriá-lo.
Quando lançados na experiência religiosa, o sagrado é como
um oráculo onipresente, cujas respostas suscitam novas inquieta-
ções, para o qual apelamos incessantemente uma imagem ou pa-
lavra que faça sentido, quando, na verdade, essa vivência estranha
e arrebatadora é quem nos interpela sobre um sentido para a exis-
tência. E a existência nada mais é do que o nosso próprio destino.
Confronto da fenomenologia de Otto com a metafísica
A afirmação de uma absoluta realidade transcendente vai fundar,
na filosofia, o campo da metafísica, articulando, numa unidade
indissociável, o ser e o princípio transcendente. No pensamento
metafísico, o homem mantém uma relação com o ser: mediante a
elaboração racional, ele pretende ascender ao conhecimento das
realidades em si mesmas; visa o supremo bem pelo desenvolvi-
mento da ação virtuosa; empenha-se em elevar a sua alma a um
mundo perfeito; mas, por mais que sua alma se esforce, o funda-
mento absoluto é atribuído ao ser. Quer dizer: o homem não se
nivela em dignidade, perfeição e verdade ao fundamento supre-
mo, esfera divina.
Para Otto, semelhante ao que postula a metafísica, o sagrado
é associado a categorias como o ser e o absoluto. Ele as relaciona
com o sentimento da soberania absoluta, isto é, do sagrado en-
quanto poder soberano: essa soberania transforma a plenitude de
“poder” do tremendum em plenitude de “ser”22
. Se Otto reconhe-
ce um caráter ontológico do sagrado, sua imbricação com o ser, as
semelhanças de seu pensamento com a metafísica se detêm aí.
22
Ibid., p. 31.
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A principal diferença entre as análises de Otto e o pensamen-
to metafísico reside no papel da razão, e tudo que está implicado
na razão como fundamento metafísico: a ética, o valor do ser hu-
mano, a racionalidade como ascese ao sagrado, isto é, a justifica-
ção da ideia de uma esfera divina por um crivo que visa transfor-
mar o mistério no inteligível. Para Otto, somente a razão não
pode dar conta dos fenômenos sagrados. O que tem caráter sa-
grado é basicamente sentido. Mas não devemos tomar um passo
em falso e concluir que isso interdita o pensamento a contemplar
o sagrado. Ele pode ser pensado. Otto procura desvendar a rela-
ção entre os elementos racionais e irracionais nos sentimentos,
nas imagens e nas conceituações do sagrado. Os elementos são
para ele formas a priori do fenômeno religioso. Pareceu-nos, no
entanto, que Otto avalia que o mais fundamental é a dimensão de
mistério, para além da moral e da metafísica.23
O sagrado é sentido em primeiro lugar como inefável, irra-
cional e a-moral. A seguir, ao longo do desenvolvimento das con-
cepções referentes ao sagrado, ele é “penetrado” pelos elementos
racionais. O estado “rude” é ultrapassado à medida que o numen
se “revela” à consciência e ao sentimento. Esse é o processo pelo
qual o numinoso é penetrado por elementos racionais, graças aos
quais entra no domínio do compreensível. No entanto, permane-
ce sempre no fundo o elemento imperscrutável, que supera todas
as categorias conceituais, como na música: “O que na música se
pode captar por conceitos já não é a própria música.”24
Assim, Otto procura destrinchar o traço mais marcante do
sagrado, a que chama o numinoso. O sagrado é, antes de mais
nada, uma categoria de interpretação e de avaliação complexa:
23
Talvez aqui possamos reconhecer indicações da influência do pensamento de
Schleiermacher. Otto afirma que a religião não está sob a dependência nem do
telos, ou seja, de uma finalidade metafísica, nem do ethos (no sentido de mo-
ral). Ibid., p.177.
24
Ibid., p.173-4.
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Matrizes da experiência religiosa: o “totalmente outro” e a metafísica
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compreende um elemento com uma qualidade absolutamente es-
pecial, que escapa a tudo o que chamamos racional, constituindo,
enquanto tal, algo de inefável. Apesar de não ser muito proveitoso
achar um nome especial para identificar a natureza mais própria
do sagrado, Otto escolhe um termo, ao menos provisoriamente,
para designar o elemento que bem caracterize o sagrado, abs-
traindo do seu elemento moral e, acrescente-se, de todo elemento
racional. Otto designa tal elemento como o numinoso.25
Falo de uma categoria numinosa como de uma categoria es-
pecial de interpretação e de avaliação e, da mesma maneira,
de um estado de alma numinoso que se manifesta quando
esta categoria se aplica, isto é, sempre que um objeto se con-
cebe como numinoso. Esta categoria é absolutamente sui
generis; como todo o dado originário e fundamental, é obje-
to não de definição no sentido estrito da palavra, mas so-
mente de exame.26
Observando a metafísica seguindo as coordenadas de Otto
acerca do fenômeno religioso, concluímos que ela representa um
esforço de domesticação do avassalador poder do sagrado, a que
Otto chama majestas. Esse poder não pode ser comparado com
nada conhecido, corresponde a uma “preponderância absoluta”,
que se acrescenta a uma “inacessibilidade absoluta”.
A metafísica, no que diz respeito à referência a uma realida-
de divina, passou a montar, através do discurso, um sistema teó-
rico para justificar a relação entre o divino e o ser. Julián Marías
nos dá um fiel retrato dessa mentalidade, quando procura descre-
ver o momento do surgimento da filosofia na Grécia. Ele conclui
25
De numen, designação latina para divindade, poder divino, vontade divina.
Também significa, em sentido abstrato, majestade poder, grandeza.
26
O sagrado, p. 13-5.
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que o homem-filósofo começa a dispensar a magia e o mito: sua
investigação acerca do “transfundo oculto das coisas manifestas”,
ou seja, em última análise acerca do ser, “já não é mais um passivo
recorrer ao oráculo; é dirigir-se ao que toma como realidade e
obrigá-la a responder”.27
No desenvolvimento da metafísica grega, o fundamento divi-
no se torna o resultado de um debate em praça pública, de um
combate entre ideias. O ser resulta de uma pesquisa operada por
um logos que passa a significar o discurso produzido pelo pensa-
mento racional, imbuído de uma lógica que procura anular as
contradições. Tal proposta de racionalidade tenta colocar, de um
lado, o verdadeiro, o ser, o divino, o bem, o belo, a virtude, a me-
dida, a alma, o conhecimento, e, de outro, combatendo-o sistema-
ticamente, o falso, o nada, o mal, o erro, a desmesura, a ignorân-
cia.Roberto Machado comentando a obra de Nietzsche Assim fa-
lou Zaratustra, entende a metafísica como uma máquina de pro-
dução de dicotomias: um mecanismo criado para cindir as inter-
pretações da realidade, a fim de dar ordem ao sentimento de caos
no mundo, mais exatamente, segundo o pensamento de Machado,
“a metafísica é incapaz de expressar o mundo, em sua tragicidade,
pela prevalência que concede à verdade em detrimento da ilusão,
ou pela oposição que estabelece entre a essência e a aparência”.28
Esbocemos uma definição genérica de metafísica.29
Ela de-
signa os sistemas de pensamento que pretendem dizer o que é o
27
Idea de la metafísica. 3a
ed., Columba, 1962, p.15.
28
Zaratustra, tragédia nietzscheana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p.12. Gos-
taríamos de acrescentar que o mundo em sua tragicidade significa “aceitar o
sofrimento como parte integrante da vida”. Palestra proferida no ciclo de de-
bates A cena cultural, I – Os heróis: épico e trágico. Rio de Janeiro, 1999.
29
Uma apreciação ampla e que considera meticulosamente inúmeros aspectos
relevantes da metafísica, assim como a sua articulação, podemos encontrar no
texto de Emmanuel Carneiro Leão “Metafísica e pensamento”. Em Aprenden-
do a pensar Vol. II. Petrópolis: Vozes, 1991, p. 121-9.
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ser, em que ele consiste, o que ele funda, qual a sua origem, assim
como situar o ser humano em relação ao ser. O conceito de ser
adquire tamanha importância, na Grécia filosófica, que se torna
associado à ideia de uma divindade ou princípio supremo: Apolo
(Sócrates), Demiurgo (Platão), Deus (Aristóteles).
Ao lermos Otto, voltamo-nos para observar de perto uma
das faces do sagrado, aquela em que ele é sentido como o indo-
mesticável, o que não se enquadra em nenhum conceito, e, acres-
centamos, o que abre sempre para novas possibilidades de signi-
ficação, institui um permanente mistério, não se sujeita a uma
única logia (psicologia, teologia, antropologia, sociologia, cos-
mologia etc.). O sagrado é “irracional” na medida em que se opõe
às metafísicas que elaboram valores e definições unilaterais. Esse
tipo de arquitetura mental acerca do ser omite a complexidade
das várias dimensões que interagem permanentemente umas
com as outras. A ética (concepções do bem e do mal), o conheci-
mento, o divino, o ser humano, a natureza, os símbolos se articu-
lam intimamente. Tudo isso se encontra imbricado mutuamente,
de tal forma que se torna insuficiente deter-se na proposição da
cisão radical entre o “bem” e o “mal”, o “verdadeiro” e o “falso”, o
ser e o nada, a imagem e o discurso.
É interessante, no estudo desenvolvido por Otto acerca do
fenômeno religioso, a consideração do sagrado de forma mais
abrangente do que as ideias que tiveram a sua gestação na pers-
pectiva metafísica racionalista grega, conferindo ao fenômeno
religioso, ou melhor, restituindo a ele a dimensão do sentimento,
da corporeidade, do mistério. Deus não é apenas objeto de uma
razão rigorosamente ordenadora das realidades a partir do enfo-
que discursivo. Deus é compreendido por uma vivência, pelo
sentimento. Ao mesmo tempo, o autor nos faz lembrar que Deus
tem vida, o que aparece nas expressões simbólicas de paixão, von-
tade, força, movimento, excitação, atividade, impulso. De acordo
com Otto: “A ‘omnipotentia Dei’ afirmada por Lutero no ‘De servo
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arbitrio’ é unicamente a síntese entre majestas, enquanto sobera-
nia absoluta, e a ‘energia’ enquanto força do Deus que não conhe-
ce nem obstáculo nem repouso, que age e subjuga, do Deus ‘vivo’
[grifos nossos].” Otto prossegue a sua análise em um estilo arre-
batador:
No misticismo também aparece este elemento de energia na
sua poderosa vitalidade, pelo menos no misticismo “vo­
luntarista”, o do amor. Encontramo-lo sob uma forma ver­
dadeiramente impressionante, no ardor devorador e na
­impetuosidade do amor cuja aproximação o místico mal
pode suportar; esmagado por este poder, pede que se atenue,
para não morrer.30
Vitalidade quer dizer também que o sagrado apresenta uma
espécie de temperamento, ele pulsa, por vezes até carregado de
eletricidade que descarrega sobre o povo quando irado. Se o sa-
grado, até na forma de Deus, pode mostrar ira31
, provocar temor,
podemos, então, admitir que não há solução de continuidade en-
tre os deuses e o Deus monoteísta. Para Otto, o parentesco teria a
ver com o sentimento do majestas, do tremendum, do terror que
inspira o que possui o caráter sagrado. O elemento de terror
desconcerta quem na divindade apenas quer admitir bonda-
de, doçura, amor, familiaridade e, em geral, os atributos que
unicamente se relacionam com a sua face voltada para o
mundo. Esta ira, que muitas vezes se chama “natural” e que,
na realidade, não é nada natural, já que é numinosa, se ra-
cionaliza, saturando-se de elementos éticos, de ordem racio-
30
O sagrado, p. 34-5.
31
Segundo um místico que Otto não revela, “o amor” não é mais do que uma
cólera extinta”. Ibid., p.35.
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nal, os da justiça divina, justiça distributiva que pune as
transgressões morais. Mas importa observar que na noção
bíblica da justiça divina este novo conteúdo permanece sem-
pre misturado com o elemento primitivo.32
Os filósofos metafísicos rejeitaram um temperamento para
Deus, ou, pelo menos, um caráter irascível, acusando tal avalia-
ção de antropomorfismo. Não percebem, no entanto, que o Deus-
logos racional é um Deus igualmente antropomórfico. Um Deus
com a cara dos valores cultuados por grupos intelectuais e reli-
giosos, que se esforçavam por conferir ao ser absoluto um caráter
de objetividade e moralidade, e basear tal proposição somente na
argumentação. Mas, como lembra Jung, provavelmente inspirado
em Kant,
qualquer pensador honesto é obrigado a reconhecer a inse-
gurança de todas as posições metafísicas, (...) a natureza in-
sustentável de quaisquer afirmações metafísicas e admitir
que não existe uma possibilidade de provar que a inteligên-
cia humana é capaz de arrancar-se a si mesma do tremedal
[pântano], puxando-se pelos próprios cabelos.33
A metafísica antiga e medieval tentou demonstrar a existên-
cia de um princípio divino. E imaginou o seu projeto através de
um pensamento que engendra uma lógica que acolhe certas rea-
lidades em detrimentos de outras, sem se dar conta de que, como
bem apontou Nietzsche, encontramos valores em jogo por detrás
do cenário fleumático dos debates filosóficos. Se esse método é
problemático para a filosofia (especialmente a partir do pensa-
32
Ibid., p.29.
33
Psicologia e religião oriental. 3a
ed. Petrópolis: Vozes, 1986 (Obras completa,
vol. XI), p.3, §764.
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mento moderno), para Otto, tal procedimento não passa de uma
crença supersticiosa e soberba: que reduzindo a variedade das re-
presentações mítico-religiosas a um Deus único, e submetendo
esse Deus à “razão”, estaremos decifrando integralmente o que “é”
o sagrado e, por extensão, que estaremos resguardados do caos,
do sofrimento, da injustiça, do mal, da ignorância, do absurdo, do
trágico, do esquecimento. Para Otto, Deus origina-se de uma ex-
periência originária, o sagrado, e, portanto, não se submete a
nada, pelo contrário, escapa a todos os conceitos, às apreciações
morais, enfim, a qualquer expectativa.
O renascimento do ser humano à luz do Ser
Diante de tal levantamento de problemas para a presente investi-
gação, o que resta ao pensamento perante o sagrado? Admitimos
as problemáticas levantadas por Otto no estudo da religião, mas
consideramos que elas não devem intimidar o pensamento, ao
contrário, o pensamento deve abordar o sagrado como se fosse
uma provocação, um evocar o sagrado para uma aparição diante
de nós, como bem situou Gilberto Kujawski: “Como posso saber
que o transcendente não me responde, se não o interrogo? Toda
interrogação é uma provocação, e provocare significa ‘chamar
para fora’. Só interrogando a transcendência esta se manifesta,
vem para fora, quebrando o selo do indevassável.”34
Não é vão para o pensamento o esforço de penetrar no
­mundo do sagrado. Nesse caminhar, procuramos nos familiarizar
com a estranheza originária que suscita o numinoso. Ela se origi-
na, segundo Otto, na relação fundamental constituinte do fenô-
meno religioso, a relação entre o ser humano e um outro de cará-
ter sagrado. Verificamos que tanto na metafísica quanto na ima-
34
O sagrado existe. São Paulo: Ática, 1994, p.18.
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ginação que somente admite o sagrado como o “totalmente outro”
existe uma separação entre o ser humano e o sagrado. Na metafí-
sica, essa separação não atinge o extremismo e a dramaticidade
que apresentam as análises de Otto acerca da concepção de uma
alteridade absoluta. Se, por um lado, tal concepção recusa-se a
adequar o sagrado aos moldes da metafísica, por outro lado, ela
não só mantém uma separação entre o ser humano e o sagrado,
como a amplia consideravelmente.
Rudolf Otto enriquece a paisagem do sagrado ao dilatar o
horizonte da sua apreciação. Temos aí um considerável ganho na
pesquisa sobre religião. As considerações do autor nos permitem
descobrir que o sagrado é uma noção complexa, o que abre as
portas para o enriquecimento da investigação. No entanto, se o
“totalmente outro” não for suficientemente pensado e experimen-
tado, pode reduzir a sua ampla significação a um sentido que pa-
rece deixar completamente de lado o ser humano, qual seja, o
sentido de que a realidade humana se anula completamente fren-
te à realidade sagrada.
Otto nos orienta para a dimensão do tremendum, aquela em
que o sagrado instiga o sentimento do nada que se é perante o
tudo do sagrado, o que pode alcançar extremos de se pensar que
se é nada mais do que pó e cinzas. E na dimensão fascinosum, na
qual o ser humano, geralmente em êxtase, aspira a uma união
com o numen, quer ascender a ele ou ser tomado por ele, o sa-
grado permanece como uma realidade absolutamente distinta
da condição humana. Para ilustrar tal distinção, Otto cita inú-
meros autores: místicos, teólogos, religiosos e filósofos, entre
eles Goethe:
As pessoas tratam o nome divino como se o Ser supremo,
incompreensível e absolutamente inimaginável fosse igual a
elas. Caso contrário, não diriam: “O Bom Deus”. Se estives-
sem penetradas da sua grandeza deixar-se-iam de palavras
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e, como veneração, não ousariam sequer pronunciar o seu
nome.35
Na metafísica, apesar de se considerar o ser humano distinto
da pura essência transcendente, ele, ao menos, vale alguma coisa,
não se anula completamente perante o divino. Só para citar al-
guns exemplos clássicos: Sócrates dá um vigoroso impulso à filo-
sofia para pensar o ser humano, fundando a antropologia filosó-
fica, promovendo uma virada no pensar, na medida em que abre
mão de especular sobre a realidade cosmogônica para centrar
suas atenções na alma; na metafísica de Platão, que desenvolve,
até certo ponto, o pensamento socrático, o ser humano é um ser
passível de evolução cognitiva, espiritual, ética, política. Em Aris-
tóteles, a referência a um plano arquetípico como modelo para o
ser humano é deixada um pouco de lado em prol da edificação de
uma ética constituída no mundo, o que significa uma valoração
ainda maior da existência e dos problemas humanos.
E aqui reside a principal contribuição do pensamento meta-
físico para a nossa investigação do campo da religião: a dimensão
antropológica. A metafísica não desconsiderou o ser humano
como determinadas vivências do “estado de criatura’”, em que o
indivíduo é pó e cinzas. O indivíduo, na metafísica, não se reduz
a ver-se submetido ao divino como um boneco manipulado por
cordas invisíveis e irrevogáveis. Ao contrário, o ser humano apa-
rece como corresponsável pelo seu destino. A ética se constitui
com o sagrado. Se na metafísica ela não se justifica sem a realida-
de supra-humana, seu telos (meta) é a exaltação da existência, se-
gundo um sentido de divinização da existência. O ser humano
torna-se um ser que deve se elevar aos valores divinos, assim for-
ma-se a ideia de um ser-para o divino. Não há mais o ser humano
35
Escrito a Eckermann, em 31 de dezembro de 1823. Citado por Otto, O sagra-
do, p.46, nota 2.
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de um lado, anulando-se completamente, reduzido a cinzas e, de
outro, a realidade suprema descarregando todo o seu incomensu-
rável poder. Há um ser relacionado com o transcendente. Se ele
quer ser assimilado ao princípio originário, unir-se a ele, seja ex-
taticamente, seja pela prática da devoção, seja pela caridade, seja
por uma compreensão racional do divino, o fundamento de exce-
lência o alicia, ao invés de esmagá-lo e anulá-lo.
No contexto do mundo medieval, o ser humano deseja uni-
ficar-se com Deus. Mas, talvez, seja mais exato pensarmos num
projeto da metafísica que visa a integração do indivíduo com
Deus do que numa anulação do indivíduo perante Deus. E, para
promover tal integração, o indivíduo deve desenvolver uma ética.
Isso é de sua responsabilidade. Na metafísica, não basta apenas a
praxis ritual: o indivíduo tem que manter uma ação ética cons-
tante se quiser religar-se com o divino.
Deixando de lado o ser humano, a concepção que só reconhe-
ce o sagrado como um “totalmente outro” isola ambas as instân-
cias, o sagrado e o humano, tornando inviável uma efetiva relação.
O outro do sagrado se torna de fato um completo estranho, um
totalmente outro. Otto pergunta qual a natureza e a qualidade do
objeto, exterior ao eu, que pressentimos, ou seja, o que é o numi-
noso em si mesmo. Ele define esse mesmo objeto como inacessível
e inconcebível, perante o qual minha consciência mais do que es-
pantar-se, recua: é o “totalmente outro”. O “totalmente outro” é
algo que não entra em nossa esfera de realidade, mas pertence a
uma ordem de realidade absolutamente oposta à realidade huma-
na, que provoca na alma um interesse que não se pode dominar.36
Jung discorda de Otto quanto a se tornar o cerne da expe­
riência religiosa a partir do horizonte de um “totalmente outro”. E
Jung se refere, nessa pontuação, a uma das formas do numinoso,
mais elaboradas, Deus: “É totalmente impensável, do ponto de
36
O sagrado, p.41.
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vista psicológico, que Deus seja apenas o “totalmente outro”, pois
o “totalmente outro” não pode ser o íntimo mais íntimo da alma
– e Deus é.”37
Pode-se contra-argumentar que o “totalmente ou-
tro” seria uma noção mais adequada a um estádio pré-religioso,
ou seja, restrito à magia, ao rito e aos rudimentos de uma mitolo-
gia. Mas, lembremo-nos que Otto se refere ao “totalmente outro”
quando pensa em Abraão, quando ele se depara com a absoluta
superioridade de poder: é o sentimento do nada da criatura. Des-
sa forma, Jung nota o amplo alcance da ideia de um “totalmente
outro”, pelo menos, com raras exceções, no Ocidente, e conclui
com relação ao homem ocidental:
Para ele, a criatura humana é algo de infinitamente pequeno,
um quase nada. Acrescenta-se a isso o fato de que, como diz
Kierkegaard, “o homem está sempre em falta diante de Deus”.
O homem procura conciliar os favores da grande potência me-
diante o temor, a penitência, as promessas, a submissão, a au-
to-humilhação, as obras e os louvores. A grande potência não
é o homem, mas um “totaliter aliter”, o totalmente outro, abso-
lutamente perfeito e exterior, a única realidade existente.38
De fato, a concepção de “um totalmente outro” não leva em
conta a totalidade da experiência originária promovida por uma
vivência do sagrado, no que concerne a sua dimensão que se es-
tende na direção do humano e do mundo. Ou seja: para Otto, o
ser humano, ao se deparar com o que toma por numinoso, vê-se
despertado pelo sentimento do numinoso, mas toma o numinoso
necessariamente como fora dele.
37
Psicologia e alquimia. Petrópolis: Vozes, 1991 (Obras comp., vol. XII), p.23,
§11, nota 4.
38
Psicologia e religião oriental, p.8, §772.
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O esquecimento do ser humano e o esquecimento do
sagrado
O “totalmente outro” é uma proposição que nos interessa. Ela é o
contraponto de nossa argumentação que reconhece o sagrado
também a partir de um modo relacional, segundo um pensamen-
to que considera o ser humano como uma trama de relações. O
nosso ponto de partida residiu na tentativa de compreender um
pouco melhor a concepção do sagrado como o “totalmente ou-
tro”. O sagrado sob essa imagem frequentemente adquire feições
dramáticas: o “tremendo”, o “terrível”, o que causa “tremor e te-
mor”, o que mostra uma ira tenebrosa, por vezes “sinistro”. Essas
significações nos fizeram estabelecer uma associação entre o sa-
grado e o aspecto trágico da existência. Interpretamos os deuses
nessa forma como a expressão fiel de como nos sentimos perante
a existência quando lançados no trágico: na dor, no sentimento
de aniquilação do eu, na perda do sentido, no absurdo.
Estabelecemos, a seguir, uma comparação entre a concepção
do “totalmente outro” e a metafísica, que procura trazer ao campo
religioso a dimensão ética. Ao visar uma ética que reúne o ser hu-
mano ao fundamento sagrado (o ser, Deus), a metafísica tenta res-
gatar o ser humano do trágico, retomar o fio do sentido, perdido
no aniquilamento de um indivíduo reduzido a cinzas. Nisso, ela
resgata a polaridade antropológica da relação entre o ser humano
e o sagrado, mas acaba levando a associação entre o ser e o divino
a uma espécie de domesticação aos moldes de determinados valo-
res: o bem, a lógica que rejeita a contradição, o belo, a desconside-
ração das paixões e do desejo. Maria Helena Cunha nota que
é própria do pensamento reflexivo a dissociação dos referen-
ciais sujeito-objeto, enquanto no pensamento intuitivo e na
vivência processa-se o contrário. O homem aparece, por um
lado, como um ser livre, inventando e fundando a sua exis-
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tência, e por outro, submetido a limitações, a contrarieda-
des. (...) O universo mitológico não conhece distinção entre
mundo do ser imediato e mundo da significação mediata. A
imagem não representa a coisa, ela é a coisa.39
E assim, tanto a convicção que só reconhece um “totalmente
outro” quanto a metafísica deixam de considerar devidamente as-
pectos relevantes da relação entre o ser humano e o sagrado. A
primeira porque, basicamente, esquece a pessoa, e a metafísica
porque não mais tem em conta o sagrado em sua totalidade, e
tenta domá-lo na medida em que nos apresenta um discurso que
anseia por encontrar respostas racionais, e com isso invade o ter-
ritório do mistério, discurso esse que só se detém em parte peran-
te a exaltação da fé na filosofia e na mística medieval.
Acompanhemos, daqui em diante, uma proposição de reli-
gação com o sagrado, que se recusa a considerar a experiência
religiosa como da ordem exclusiva do que está à parte da existên-
cia, permanecendo mais do que um estranho, um interdito ao ser
humano; nem considera o sagrado inteiramente deduzido de cri-
térios racionais.
39
Espaço real, espaço imaginário. 2a
ed. Rio de Janeiro: Uapê, 1998, p.108.
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Capítulo II
Interpretação do sagrado a partir
da leitura de Martin Buber
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Eu e Tu como uma relação originária entre o ser humano e
o sagrado
Na leitura de Martin Buber, chamou-nos a atenção a apresenta-
ção de uma determinada modalidade da experiência religiosa em
que o sagrado se inscreve como relação, quer isso dizer: ele é
constituído na relação Eu e Tu. Ele é apresentado como funda-
mento constituinte de uma relação. Não é mais o único polo cen-
tral da experiência religiosa.
No âmbito do Eu e Tu, procuramos um pensar que não sub-
meta o ser humano a uma concepção de experiência religiosa em
que ele se mantém como uma peça secundária. O que anuncia o
pensamento dialógico a modo Eu e Tu é que o cenário religioso, ao
invés de excluir o ser humano, evoca-o para a relação com o sagra-
do. A tese que aceita o sagrado como um Tu é a de que o sagrado,
a pessoa, a comunidade formam uma identidade relacional.
A confrontação entre um pensamento que adota a perspectiva
relacional e dialogal e a fenomenologia de Otto concernente a de-
terminadas concepções acerca do sagrado atinge o ponto máximo
de tensão quando Otto descreve uma imagem do sagrado segundo
a forma dicotômica que marca uma rigorosa separação entre o eu
e a realidade objetiva, ou melhor, entre um eu e um “objeto” exte-
rior a ele, o sagrado, com o qual o eu se depara. Quando o numi-
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noso é experimentado sob a forma de um “totalmente outro”, ocor-
re uma cisão completa entre sujeito e objeto: o sagrado só é admi-
tido como um absoluto transcendente e como uma realidade em
tudo superior à esfera humana. Segundo essa forma, observa Otto:
“É só aqui que se experimenta a presença do numen, como no caso
de Abraão, em que se pressente algo de caráter numinoso, em que
a alma se desvia de si própria para este objeto.”40
A alma se desvia de si própria? A experiência do sagrado
também remete a alma a si própria. Entendemos esse “desvio” da
alma para o “objeto” numinoso como algo distinto da experiên-
cia mística, quando ela propõe um sair de si (caráter de êxtase).
Não confundimos o “desviar de si própria” da alma com o “sair
de si” da alma (característico da mística). Pois, segundo Otto, o
desviar da alma está relacionado ao numinoso como objeto exte-
rior ao eu, está relacionado ao objeto existente fora do eu. Na pá-
gina 59 de O sagrado, Otto afirma, referindo-se ao aspecto atrati-
vo do sagrado, que Deus é uma essência à parte.
Da mesma forma em que não há sempre desvio, mas, igual-
mente, remetimento, tampouco o encontro com o sagrado pro-
duz necessariamente um recuo, perante a estupefação que susci-
ta41
. Na introdução da célebre obra de Santa Teresa d’Ávila Castelo
interior ou moradas, Jacyntho J.L. Brandão ratifica uma identi-
dade de essência entre a alma e Deus.
Pois esta é a grande descoberta que Teresa pretende divul-
gar: Deus habita no mais íntimo da alma. Tal verdade – com-
preendida por ela através da experiência – é das formulações
mais antigas de seu pensamento. Contra ela se posicionaram
inclusive vários de seus confessores, que admitiam essa pre-
40
O sagrado, p.20.
41
Otto acredita que, frente ao numinoso, debato-me com uma realidade inco-
mensurável perante a qual recuo, tomado de estupefação. Ibid., p.41.
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Interpretação do sagrado a partir da leitura de Martin Buber
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sença divina apenas através da graça, nunca em essência.
Teresa, porém, é clara: Deus se encontra na alma como se
encontra no céu. Por isso mesmo a própria alma é outro céu,
no qual se pode entrar através da oração.42
Ocorre-nos, além da mística, o que estudamos em Jung: o ca-
ráter “religioso” dos símbolos. Ao se remeter ao que é sentido como
sagrado, o ser humano vê sua alma tomada pelos símbolos que ex-
pressam a transcendência, assim como por imagens e ideias que
expressam as formas constituintes de sua existência: a morte, o re-
nascimento, o despedaçamento, o feminino, o masculino, o heroi-
co, o trágico, o sublime, a salvação, o caos etc.43
Buber acentua que, antes de mais nada, não somente Deus se
faz presente, como é presença. “Sem dúvida Deus é o ‘totalmente
Outro’, Ele é porém o totalmente mesmo, o totalmente presente.
Sem dúvida, ele é o ‘mysterium tremendum’ cuja aparição nos
subjuga, mas Ele é também o mistério da evidência que me é mais
próximo do que meu próprio Eu.”44
A experiência religiosa enquanto Eu e Tu concebe o divino
em um modo relacional e dialogal. Buber aposta que o princípio
sagrado existe na medida de sua relação com o ser humano: na
medida não somente em que o indivíduo o evoca, mas, igualmen-
te, na medida em que o sagrado também se dirige a cada um. Essa
relação não está dada. Ela é uma descoberta, é uma revelação que
se abre na medida em que se aceita o sagrado como relação, ao
invés de meramente colocar-se sob a sua proteção ou a sua supos-
ta lei. O sagrado é com o indivíduo. Assim, estabelece-se uma re-
lação única, um encontro singular.
42
Rio de Janeiro: Paulinas, 1981, p.8-9.
43
O símbolo religa o ego ao si-mesmo (self), à totalidade humana. Esse foi o tema
de nosso trabalho citado A psicologia do self e a função religiosa da alma.
44
Eu e Tu, p.92.
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LUÍZ JOSÉ VERÍSSIMO
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Isso nos permite concluir que as imagens do sagrado for-
madas pela humanidade são criadas a partir de genuínos encon-
tros com o sagrado. Concebemos símbolos não apenas por ra-
cionalizações das formas (a geometria, o plano bidimensional
em perspectiva, uma mandala representando a terra em relação
ao cosmo, por exemplo) e abstrações da linguagem, mas tam-
bém, e sobretudo, a partir da nossa vivência. O sentido do sim-
bólico liga-se a uma vivência que é ao mesmo tempo um encon-
tro com o sagrado. Se Deus, por exemplo, permanece sobretudo
como um princípio conceitual, por mais excelente que seja a
forma de sua concepção, a sua “verdade” (a sua argumentação),
se Deus se mantém numa metafísica e numa teologia sem que
essa reflexão se insira na existência, a modo de um permitir a
existência igualmente revolver o pensamento, Deus permanece
apenas um Isso, uma coisa, um objeto, manipulável pelas cate-
gorias a Ele imputadas pela excessiva formalização de ritos, pela
pregação sacerdotal, por dogmas impostos a partir de relações
hierarquizadas.
O sagrado pode ser experimentado e pensado como um ob-
jeto da minha crença, do meu estudo; como uma total alteridade;
como produto de uma fantasia; como uma máscara; como um
grande pai simbólico; como um ser ordenador do mundo, que dá
guarita e sentido que insufla a salvação e a esperança, sublimando
a angústia e o desespero. No entanto, ele escapa a todas essas
achegas. Por exemplo, ele aparece igualmente como uma grande
mãe acolhedora (por vezes acolhedora e simultaneamente temí-
vel), como o Si-mesmo, como o “totalmente próximo”, como
transgressor de todos os limites e ordenações. O sagrado é da es-
fera do simbólico, e pela sua própria natureza, nunca é totalmen-
te acabada a sua feição, os seus contornos são meros esboços, suas
aparições, as formas de culto e veneração são esquecidas, reme-
moradas, comemoradas, renovadas, transformadas. Em suma,
pela sua própria essência o Tu Eterno não pode, Ele próprio, tor-
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Interpretação do sagrado a partir da leitura de Martin Buber
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nar-se um Isso, apesar de ser manipulado e intencionado, volta e
meia, como um objeto.
Os homens têm invocado o seu Tu eterno sob vários nomes.
Quando cantavam aquele que era assim chamado, pensavam
sempre no Tu; os primeiros mitos foram cantos de louvor.
Os nomes entraram, então, na linguagem do Isso; um impul-
so cada vez mais poderoso levou-os a pensarem no seu Tu
Eterno e falar dele como de um Isso. Todos os nomes de
Deus permanecem, no entanto, santificados, pois, não se
fala somente sobre Deus, mas também se fala com Ele.45
A letra viva da palavra que se dirige a Deus e que se origina
do encontro com Ele, que aparece em revelações, relatos e dog-
mas, tem o seu sentido rematado na confrontação de um existen-
te com o Outro existente. O caráter existente de Deus amarra, por
assim dizer, uma identidade íntima entre a pessoa e Deus, mas,
não por isso, reduz Deus à imanência. Para Buber, Deus não se
circunscreve nem num além, nem num aquém, ou seja, Deus não
pode ser afirmado apenas como um “totalmente outro”, tampou-
co, por exemplo, apenas antropologicamente, como produto da
visão de mundo de alguns povos, ou, apenas psicologicamente,
como uma imagem psíquica originária de uma instância profun-
da do inconsciente. O que ressalta uma argumentação dialógica é
a articulação radical do pensamento com a vivência. Donde se
justifica a afirmação de que não apenas se fala “sobre Deus”, mas,
igualmente, se fala “com Ele”.
Dessa forma, a experiência religiosa desenha uma noção
complexa: simultaneamente afetiva e cognitiva. A ênfase no as-
pecto vivencial da experiência religiosa não nos convence a
­confiná-la no campo do irracional, do incognoscível, do inefável.
45
Ibid., p. 87.
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LUÍZ JOSÉ VERÍSSIMO
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A experiência religiosa apresenta uma abertura à compreensão e
ao pensamento na medida em que possibilita um desvelamento
do mistério que anuncia o fundamento sagrado. O ser humano
na fé se depara a um só tempo com o desconhecido e com o fami-
liar, descobrindo o sagrado pela relação que estabelece direta-
mente com ele, e não fora dela (através exclusivamente de mensa-
gens “reveladas”, sujeitas a interpretações exteriores ao sujeito que
se submete à experiência religiosa). Assim, a fé evoca o princípio
sagrado como presença. A religião é entendida mais exatamente
como um contato mútuo, como o encontro genuinamente
recíproco na plenitude da vida, entre uma existência ativa e
outra. Analogamente, entende-se fé como a inserção nesta
reciprocidade, como o ligar-se numa relação com o Ser in-
demonstrável e não comprovável, mas, ainda assim, numa
relação com o Ser cognoscível de quem deriva todo signifi-
cado.46
Aqui, acentuamos a noção de existência referida ao campo
do sagrado. Não apenas o ser humano é um existente. O Tu eter-
no, sem deixar de ser um transcendente, também é um existente.
Quando estudamos a experiência do sagrado como encontro,
concluímos que, segundo essa perspectiva, com respeito ao âma-
go da experiência religiosa, chama-nos a atenção que não se trata
de concebê-la como mera oposição metafísica entre o homem e o
numinoso, entre sujeito e objeto, e sim contemplá-la como um
genuíno encontro – recíproco, nada menos que um encontro en-
tre duas existências. Martin Buber confere não só uma dignidade
ao ser humano quando se projeta numa dimensão religiosa da
existência, pois antes ele se via reduzido a não muito mais do que
pó e cinzas, como lhe confere um caráter ontológico de mesmo
46
Eclipse of God, III, §3, p.33.
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Interpretação do sagrado a partir da leitura de Martin Buber
| 63 |
peso que a realidade sagrada, ao admitir a copertinência do ser
humano e do sagrado à esfera da existência.
Nesse ponto, Buber promove uma ruptura com a noção tra-
dicional que põe de um lado o sagrado como o Ser, a essência, e,
de outro, o ser humano como existente. A proposição de que a
essência fundamenta a existência é uma tese metafísica veemen-
temente contestada por Sartre, que sugere o justo contrário: é a
existência que precede a essência. Até o presente momento, não
encontramos em nossos estudos do pensamento de Buber uma
discussão sobre quem tem a primazia ontológica: a essência ou a
existência. A partir da leitura de sua obra, passamos a nos per-
guntar como podemos admitir o sagrado como existente. Ele se
revela existente, por exemplo, no encontro com os seres huma-
nos, na sua atualidade, vale dizer, no seu fazer-se presente junto
com o ser humano, na inter-ação mútua que se estabelece entre o
sagrado e o ser humano de tal forma que se funda uma ligação
dialogada.
O sagrado se faz presente com o ser humano: com a pessoa e
com a comunidade. Evocar o sagrado implica também ser evocado.
Ambos são com-vocados para um encontro místico, no seguinte
aspecto da mística: ambos se chamam mutuamente ao êxtase, ao
sair de si para o encontro e para o diálogo. Considerar apenas o
sentido mais valioso da existência no ser humano ou no sagrado
nada mais é do que instituir uma presença unilateral, donde se
acredita na morte do sagrado ou na negação do ser humano.
Sem a perspectiva da existência, ousaríamos concluir que
“Deus” é, mas não existe. Sem se constituir como existente o sa-
grado é – um ser solitário e distante: abre-se um abismo inco-
mensurável e sem pontes entre o ser humano e o sagrado. Na
perspectiva do sagrado inserido na existência, esse abismo se
mantém, pois o mistério permanece, no entanto, ele se enche de
possibilidades. A relação entre o ser humano e o sagrado se cons-
titui como possibilidade nos “fatos que não se veem”, que deixam
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LUÍZ JOSÉ VERÍSSIMO
| 64 |
em aberto o destino da relação, sem margem para antecipações
ou controle.
O encontro entre os seres humanos e o sagrado envolve a
disponibilidade para o reconhecimento da sua presença mútua.
“Quem conhece Deus, conhece, sem dúvida o distanciamento de
Deus, e o tormento da seca que ameaça o coração angustiado,
mas não a ausência de presença. Nós é que não estamos sempre
presentes.”47
Na esfera da experiência religiosa, quando não nos fazemos
copresentes com o sagrado, configura-se para Buber o modo Eu-
Isso. O sagrado é, então, eclipsado, para usar um termo do pró-
prio autor, pela visão de mundo da esfera do Isso. Ele é retratado
como uma realidade fechada sobre si mesma, uma instância onde
Deus e homem têm lugar rigorosamente marcado e papéis con-
vencionados. Desse modo, o sagrado aparece simplesmente como
um ser que não permite a ninguém algo mais do que permanecer
como uma criança, ingênua e sem responsabilidade alguma, ou
mesmo como um “não sou nada” perante um soberano da fatali-
dade, do universo e do sentido da existência.
No que toca à reciprocidade quando o sagrado é visado como
um Tu, o ser humano se apresenta perante ele sem desejar se anu-
lar para salvar-se num ideal de alteridade que projeta valores para
fora da existência. Por isso, Buber acentua que “não é necessário
o despojar-se do mundo sensível como um mundo de aparência.
Não há mundo aparente, só existe o mundo que, sem dúvida, se
nos revela duplo, visto que nossa atitude é dupla”.48
Buber quer enfatizar que não deseja sugerir com as instâncias
Eu e Tu e Eu – Isso mais uma dicotomia que separa o mundo do
divino, assim como cava uma fenda intransponível entre o campo
do Isso e a esfera do Tu. Buber não pretende conceber uma sepa-
47
Eu e Tu, p.114.
48
Ibid., p.89.
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Interpretação do sagrado a partir da leitura de Martin Buber
| 65 |
ração entre a alteridade experimentada como Tu do mundo da
realidade humana em suas formas de objetivação, por exemplo, o
campo das dinâmicas psíquicas nas quais o desejo se articula com
os seus objetos, da intencionalidade do outro como objeto, enfim,
o mundo do “Isso”. Se estamos explorando uma ontologia pas­
seando pelo Tu e pelo Isso, trata-se, não somente, de possibilida-
des que se apresentam no enlaçamento da pessoa com o sagrado,
como, antes, de dois modos de ser fundamentais do ser humano.
Eles mantêm uma relação dialética, pois ambos ajudam a definir
um pouco o que é esse fenômeno, o ser humano. Esses modos não
são campos fechados. Eles não se definem em si mesmos. Eles se
põem em função da atitude que tomamos conosco e com o outro,
em como lidamos com o nosso desejo, e, por extensão, como de-
sejamos o outro, em como intencionamos as nossas relações.
A dualidade de atitudes não é definida pelo emprego idênti-
co do “eu” nas possibilidades de relacionamento. Aliás, essas
atitudes, como Tu e como Isso, não são definidas em referên-
cia a diferentes conteúdos determinados, por exemplo, o Tu
representando uma pessoa e o Isso, uma coisa. Tudo aquilo
que se apresenta no mundo diante do “eu”, pode ser um Tu
ou um Isso de acordo com a atitude do “eu”.49
Recusando certas visões tradicionais do tipo o sagrado/es-
sência versus o mundo/aparência, na esfera dialógica o valor de-
positado no sagrado faz sentido a partir da inserção do sagrado
na existência: no dia a dia, no trabalho, na arte, no enlace erótico,
no encantamento amoroso, no conflito, na angústia, na morte, no
sofrimento, no prazer, na vida. Em outras palavras, a existência se
faz presente no sagrado, assim como o sagrado se faz presente na
existência. Isso é para nós um significado importante de recipro-
49
Zuben. Martin Buber: cumplicidade e diálogo, p.119
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A ética da reciprocidade segundo Martin Buber
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A ética da reciprocidade segundo Martin Buber

  • 1.
  • 2.
  • 3. A ética da reciprocidade: diálogo com Martin Buber Ética da reciprocidade.indd 1 16/3/2010 09:38:13
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  • 5. A ética da reciprocidade: diálogo com Martin Buber Luiz José Veríssimo Ética da reciprocidade.indd 3 16/3/2010 09:38:15
  • 6. 2010, by Luiz José Veríssimo Editora Uapê Av. Olegário Maciel, 511/303 – CEP. 22621-200 – Tel. (21) 2493-9175 homepage: www.uape.com.br — e-mail: editorauape@terra.com.br Editora Responsável: Leda Miranda Hühne Assistente de editoração: Thereza Martins de Oliveira Revisão: Michele Sudoh Diagramação: Nathanael Souza Ilustrações: 1a Foto do autor 2a Tela de Monet - As papoulas 3a Pintura de Helena Felicidade Contracapa: Pintura de Helena Felicidade Direitos de edição da obra adquirida pela UAPÊ – Espaço Cultural Barra Ltda. Av. Olegário Maciel, 511/303 – CEP 22621-200 – Rio de Janeiro – Tel/fax: (21)2493-9175. CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ V619e Veríssimo, Luiz José A ética da reciprocidade : diálogo com Martin Buber / Luiz José Veríssimo. - Rio de Janeiro : Uapê, 2010. 201p. : il. Inclui bibliografia ISBN 978-85-85666-85-9 1. Buber, Martin, 1878-1965. 2. Ética. 3. Filosofia e religião. 4. O sagrado. 5. Misticismo. I. Título. 10-0119. CDD: 170 CDU: 17 11.01.10 12.01.10 017071 Ética da reciprocidade.indd 4 16/3/2010 09:38:15
  • 7. | 5 | Agradecimentos Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnoló- gico, pela concessão de bolsa de estudos de doutorado. Ao meu orientador Professor Doutor Olinto Antônio Pego- raro, pelo calor humano, apoio repleto de confiança, ensinamen- tos, modo de concepção da existência, e por me ensinar, até pelo seu exemplo vivo, o valor ético da pessoa. Ao meu “eterno mestre” Leonardo Boff pelo seu apoio em todas as minhas caminhadas, desde o mestrado, sempre com so- licitude e zelo nas suas avaliações, e com muita fraternidade nos encontros, abrindo luzes para a construção do meu pensamento na religião, na psicologia e na filosofia, ajudando-me a compreen- der um pouco mais, a cada dia, o significado do cuidado. Às professoras Doutoras Maria Helena Lisboa Cunha e Ma- ria Luiza P.F. Landim pelo seu toque feminino, tecendo valiosas observações, com a anima inspirada pela estética do imaginário e pela natureza. Ao Professores Doutores Emmanuel Carneiro Leão e Luiz Eduardo Bicca pelas suas aulas, palestras, escritos, seu espírito acolhedor, orientador, sua solicitude, pelos seus ensinamentos que ajudam a tantos alunos como eu a esforçar-se para “aprender a pensar”. À Mestra, Tereza Cristina Saldanha Erthal, por se fazer pre- sente e inspirar a mais autêntica fé na existência. Às alunas Ana Maria Abreu Pereira da Silva e Tássia Dona- dello Ferreira por sua reflexão a respeito da relação entre ética e psicologia. Ética da reciprocidade.indd 5 16/3/2010 09:38:15
  • 8. Ética da reciprocidade.indd 6 16/3/2010 09:38:16
  • 9. | 7 | Dedico esse trabalho às pessoas muito queridas que se fazem presentes nas conversas à mesa, nas aprendizagens do dia a dia, caminhando pela Vida, para quem o compartilhar ainda faz sentido. À Marilda, por partilhar a experiência do encontro. À Família, que me mostra o exemplo vivo da Comunidade. Aos queridos Mestres, cuja dádiva do Cuidado não tem preço. Ética da reciprocidade.indd 7 16/3/2010 09:38:16
  • 10. Ética da reciprocidade.indd 8 16/3/2010 09:38:16
  • 11. | 9 | Ocuidado somente surge quando a existência de alguém tem importância para mim. Passo então a dedicar-me a ele. Disponho-me a participar de seu destino, de suas buscas, de seus sofrimentos e de seus sucessos, enfim, de sua vida. Leonardo Boff Não basta ser senhor de si; ninguém é ético para si mesmo. Ninguém é virtuoso diante do espelho. Somos éticos em relação aos outros, visto que o comportamento é sempre transitivo e recíproco. Olinto Pegoraro Ética da reciprocidade.indd 9 16/3/2010 09:38:16
  • 12. Ética da reciprocidade.indd 10 16/3/2010 09:38:16
  • 13. | 11 | Sumário Prefácio.............................................................................................. 13 Introdução......................................................................................... 17 Capítulo I – Matrizes da experiência religiosa: o “totalmente outro” e a metafísica.......................... 29 O totalmente outro e o ocaso do ser humano......................... 31 O nada, o tudo e o trágico......................................................... 36 Confronto da fenomenologia de Otto com a metafísica....... 41 O renascimento do ser humano à luz do Ser.......................... 48 O esquecimento do ser humano e o esquecimento   do sagrado............................................................................... 53 Capítulo II – Interpretação do sagrado a partir da leitura de Martin Buber............................................................. 55 Eu e Tu como uma relação originária entre   o ser humano e o sagrado...................................................... 57 Interpretando o sentido de reciprocidade............................... 67 Caminhar pelo abismo............................................................... 72 Capítulo III – A condição humana e o sentido ético e psicológico da pessoa........................................... 83 A interface da imanência com a transcendência.................... 85 Ética da reciprocidade.indd 11 16/3/2010 09:38:17
  • 14. LUÍZ JOSÉ VERÍSSIMO | 12 | O modo Eu – Isso e o encontro Eu e Tu.................................. 87 O falar com e o falar sobre......................................................... 99 O caráter originariamente simples do encontro................... 112 Considerações sobre o sentimento......................................... 127 O encontro da pessoa com o Tu envolve a mística............... 146 Sobre a noção de comunidade................................................ 161 A construção da pessoa e o modo de ser “egótico”.............. 176 Perspectiva ética acerca da psicologia da pessoa.................. 184 Bibliografia...................................................................................... 193 Ética da reciprocidade.indd 12 16/3/2010 09:38:17
  • 15. | 13 | Prefácio1 Luiz José Veríssimo acede ao tema da tese com uma bagagem considerável. Já fizera sua tese de mestrado nesta mesma Casa2 , sobre a “Experiência religiosa como expressão de si-mesmo a partir de C.G. Jung”. Agora não dialoga apenas com C.G. Jung, mas convoca para a mesma roda Martin Buber, Rudolf Otto, Mir- cea Eliade, Schleiermacher, Kierkegaard e outros. São autores se- minais dos quais podemos aprender sempre. O trabalho de Veríssimo mostra um imenso aprendizado não apenas no convívio com esses mestres, o que seria já muito, mas a partir deles, de suas provocações e evocações. Ele próprio pensa por si mesmo municiado por tudo aquilo que aprendeu deles. E deveria ser assim, pois se trata de uma tese de doutorado em filosofia. 1 Apreciação de Leonardo Boff da tese de doutoramento “A experiência religiosa segundo uma ética da reciprocidade: diálogo com Martin Buber”, orientada pelo Professor Olinto A. Pegoraro, 2002. Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro. A tese foi o ponto de partida para o presente texto. 2 Referência ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UERJ. A tese de mestrado, orientada pelo Professor Boff, foi publicada com o título A psicologia do self e a função religiosa da alma. Um estudo a partir de C.G. Jung. Campinas: Livro Pleno, 2005. Ética da reciprocidade.indd 13 16/3/2010 09:38:18
  • 16. LUÍZ JOSÉ VERÍSSIMO | 14 | O candidato deve mostrar que sabe pensar e não apenas que sabe e conhece. E na minha apreciação cumpriu esse preceito bá- sico de todo filosofar, desde os tempos pré-socráticos. E quero parabenizar a Luiz José Veríssimo por este brilhante trabalho de pensamento. Ele é muito bem escrito em termos de dicção do discurso e bem urdido em suas conexões. Mas o que importa mesmo é o conteúdo, tratado com cuidado e profundidade. É árduo o tema em tela: o sagrado, a experiência religiosa, a ética. Rudolf Otto viu a realidade do sagrado, do santo, na oposi- ção entre racional e irracional. É o que diz claramente o sub-títu- lo de seu livro clássico Das Heilige de 1917: “Sobre o irracional na ideia do Divino e sua relação para com o racional”. Mircea Eliade coloca o sagrado na tensão e oposição entre o cotidiano e o ex­ traordinário. Todos viram algo verdadeiro. Mas o sagrado possui uma raiz mais funda. E ela foi vista especialmente por Martin Buber. O sa- grado emerge da relação eu – tu e, no seu termo, do Tu eterno. É no campo da relação do “inter”, do intercurso, no interativo que emer- ge tanto o sagrado quanto o ético. Numa palavra o nicho gerador de tudo é a reciprocidade como jogo de relações envolvendo a to- dos e a tudo. Tê-lo demonstrado é o maior mérito deste trabalho. O totalmente outro, tremendo e fascinante é simultaneamen- te a presença do Tu infinito. O totalmente outro que me faz fugir é um momento do totalmente outro que me chama de volta. Pois ele está num e noutro momento sempre presente e na forma do tu. Essa presença é carregada de espessura filosófica. Presença não é estar-aí como pode estar uma pedra. Presença significa uma densificação do ser, uma irradiação especial que fala e convence por si. Pois tal é a natureza do sagrado. O suporte de toda experiência religiosa reside no sagrado. Aí se fundam as religiões e os caminhos espirituais e se mantém vi- vos na medida em que organicamente bebem desta fonte. Ética da reciprocidade.indd 14 16/3/2010 09:38:18
  • 17. PREFÁCIO | 15 | A ética emerge desta mesma experiência do sagrado. Sempre que o outro fascinante e tremendo se faz presente, estabelece a reciprocidade de eu-tu, aí nasce a ética como o jogo das relações que devem ser boas para todos, para a vida e para a Terra. O sa- grado é a aura que alimenta a ética e que impede que decaia no moralismo e no fundamentalismo. Estas e outras ressonâncias se encontram ao largo de toda a elaboração da tese de Veríssimo. No contexto atual de crise dos fundamentos, esta reflexão ganha relevância pois ajuda a criar luz num âmbito tão complexo e com bases geralmente tão escorrega- dias. Veríssimo não apenas discorre sobre tais coisas. Mais ainda: revela um engajamento pessoal pela causa do sagrado e do ético seja manifestados nas linhas e entrelinhas do texto, seja em sua vida profissional. Vale ainda ressaltar que mostra segurança e boa orientação sempre que acena para temas teológicos. Uma vez mais, felicitamos o autor. Ele honra a Casa e forta- lece uma tradição que se quer fundar de seriedade, criatividade e contemporaneidade do fazer filosófico em nosso país. Leonardo Boff Petrópolis, 25 de maio de 2002 Ética da reciprocidade.indd 15 16/3/2010 09:38:18
  • 18. Ética da reciprocidade.indd 16 16/3/2010 09:38:18
  • 19. | 17 | Introdução Aexistência se apresenta sob incontáveis formas. Importa, nes- se momento, para nós a compreensão da modalidade da existên- cia fundamentada no diálogo. Assumir esse desafio convida a observar como se constitui a relação que o ser humano estabelece com uma experiência radical: a experiência de um outro, por ve- zes sentido e designado como o “totalmente outro”, como “Isso”, como “Tu”, como o “infinito”... O que é essa experiência radical e relacional do eu com o outro? É o horizonte a partir do qual de- sejamos lançar luzes ao nosso estudo. Seria impossível catalogar todas as formas como o outro é vivenciado e compreendido. A relação eu – outro se ilumina de plenitude e transcendência quando revela a constituição da pes- soa. Ela é formada por uma trama de relações, e seu sentido mais próprio em Martin Buber (1878-1965) é apresentado na perspec- tiva da relação Eu e Tu. O Tu liga-se à dinâmica relacional Eu e Tu formulada por Martin Buber em sua obra de mesmo nome3 . Essa dinâmica en- volve um encontro mútuo, reciprocidade, diálogo, troca, abertura à comunicação. Admitir o Tu remete ao reconhecimento do ou- tro enquanto tal. O eu4 só faz sentido numa relação com o outro. 3 2a edição revista. São Paulo: Moraes, 1977. 4 A noção de eu aqui não deve ser confundida com a noção de ego, tanto na psicanálise quanto na psicologia analítica. A noção de eu aqui apresentada Ética da reciprocidade.indd 17 16/3/2010 09:38:19
  • 20. LUÍZ JOSÉ VERÍSSIMO | 18 | O eu não é constituído pelo outro, antes, ele é constituído com o outro: ele vai emergindo na medida das suas relações, uma teia de relações que se estende ao infinito, que pode incluir a natureza, a comunidade, o sagrado (um sentido tomado de valor). Buber de- signa uma palavra para expressar, com toda a intensidade, o sen- tido do Tu em nossas vidas: encontro. Na apreciação, em toda a sua amplitude, do pensamento de Buber, observamos que não basta dirigir a atenção somente ao eixo Eu e Tu. Faz parte da existência também a relação Eu – Isso. A representação do outro oscila, ele é apreendido como familiar e como um estranho por ser deixado como algo à parte, que pouco ou nada tem a ver comigo, um forasteiro, e deve permanecer dis- criminado, contido e controlado, quando não subjugado, mesmo torturado, mutilado e morto. Familiar, enquanto o outro é assimi- lado a mim, de tal forma que ele se torna uma projeção da subje- tividade desejante. Esses são determinados modos que compõem o campo Eu – Isso. Por outro lado, o outro pode se tornar familiar se ele é con- vocado para um encontro que propicie uma relação dialogada e recíproca. Pode surgir como estranho porque ele subverte todas as representações que são feitas sobre ele. Nessas duas últimas referências, temos pistas do que se quer pronunciar com a “pala- vra-princípio” Eu e Tu. O outro, por fim, atrai e assusta, encanta e amedronta, seduz e suscita sentimento de ameaça. Tomando em- prestadas expressões do campo do sagrado, admitimos que o ou- tro é fascinante e amendronta. O Tu e o Isso se alternam e se misturam nas diversas formas é fundada numa perspectiva fenomenológica e dialógica, vale dizer, o eu é entendido basicamente como pessoa: uma totalidade de sentido constituí- da não só por racionalidade, como por emoção, desejo, corpo, energia vi- tal, paixões, atravessado pela temporalidade e espacialidade (o habitar) e que se constitui junto ao nó de relações pela qual transita em comunicação e diálogo. Ética da reciprocidade.indd 18 16/3/2010 09:38:19
  • 21. iNTRODUÇÃO | 19 | com que as pessoas se dirigem umas às outras, visam o mundo, lidam com o conhecimento, estimam a natureza e o insondável. Ao longo de nosso estudo, pareceu-nos que, para Martin Buber, o fundamento ético da existência é o Eu e Tu, mas na existência ele não se mantém permanentemente atualizado, ou seja, viven- ciado como presença. Frequentemente, o Tu é negligenciado, es- quecido, e mesmo renegado. Quando o outro é enquadrado como Isso, as pessoas o avaliam, seja como um mundo à parte, objetal, caindo em um esquema que modela um “totalmente outro” (completo estranho, estrangeiro), seja sob a aparência familiar, sujeito a toda sorte de projeções psicológicas, expectativas e es- quemas diretivos que antecipam conceitualmente ou “experi- mentalmente” o que o ser humano “é”, e tentam prever a sua ação. O jogo do Tu com o Isso é constantemente tematizado por Buber ao longo da obra Eu e Tu. Através de Buber, notamos que não é tarefa das mais fáceis acolher o outro, arrancá-lo da condição de objeto para reconhecê-lo como existente, e, dessa forma, afastar- nos da arena onde se disputa o “tudo ou nada”. Essa simplificação do viver e do conviver se resume em duas atitudes, que são, ao mesmo tempo, sentimentos básicos, sugeridas pelas assertivas- modelo: “Não sou nada, Tu és Tudo”, meu projeto é girar em tor- no de Ti, submeter o meu desejo ao teu desejo, ou, ainda, “Eu sou o centro, Tu és o meu apêndice”, o meu projeto é aplicar o meu desejo sobre o teu desejo. Abrimos nossos trabalhos procurando levantar algumas possibilidades vivenciais do Tu quando compreendido à luz da experiência religiosa. Em sentido bastante amplo, a experiência religiosa tem a ver com a adoção de um fundamento que religa todas as coisas. Em sentido mais específico, a experiência religio- sa é a experiência do sagrado. Se trabalhamos com essa ideia, jul- gamos importante apresentar um apanhado geral e introdutório do sagrado, ao menos em algumas de suas formas características de vivência e de concepção; por exemplo, o sagrado como fasci- Ética da reciprocidade.indd 19 16/3/2010 09:38:19
  • 22. LUÍZ JOSÉ VERÍSSIMO | 20 | nante, temido, trágico, irracional, metafísico, paradoxal. O sagra- do é nomeado por Buber como o Tu Eterno, mas pode ser toma- do, “decifrado”, e, mesmo, apropriado, como um Isso. Então, ele se torna “familiar”, é decomposto em fórmulas doutrinárias, e en- quadrado em conceitos que passam ao largo da vivência. O sagra- do reduzido ao Isso cria um ambiente de esquematização e nor- matização das problemáticas emergentes, facilitando a adoção de um ponto de vista bastante extremado, dogmático ou cético: “Não sou nada, Tu (o sagrado) és Tudo”, ou, ainda, “Tu (o sagrado) és nada, estás morto, eu, sujeito, de agora em diante sou o único sentido que importa na existência”. Na sequência de nossa pesquisa, abrimos as trilhas para dar passagem à pessoa e à comunidade. Partindo de algumas consi- derações complementares acerca da experiência religiosa, toma- mos o rumo para chegar à vivência cotidiana, onde encontramos algumas perspectivas de dar sentido ao ser humano que não se encerram numa singularidade solipsista, nem o achatam frente a um coletivo indiferenciado ou ideológico-dogmático que abafa o si-mesmo no ruidoso som das normas indicativas de caminhos previamente estabelecidos. Trata-se, nesse ângulo, de uma ontologia, vale dizer, do estu- do de um ser, o ser humano, que aponta para o vislumbre do ou- tro enquanto Tu. Só penetraremos no cerne de nossa questão caso não nos percamos no labirinto de divagações que nos afastem cada vez mais da vivência. O professor Zuben considera que é na e pela vivência que poderemos ter oportunidade para abrir clarei- ras que permitam acessar a ação recíproca entre o Eu e o Outro. A relação Eu – Tu seria uma relação ontológica e existencial que precederia o relacionamento cognoscitivo. Poderia mes- mo afirmar que, antes de conhecer a vivência, o homem a vive e a relação objetivante é um empobrecimento da densi- dade vivencial originária. A contemplação no face a face não Ética da reciprocidade.indd 20 16/3/2010 09:38:20
  • 23. iNTRODUÇÃO | 21 | é uma intuição cognoscitiva, mas doação de um Tu a um Eu. Este se realiza na relação a um Tu.5 Gostaríamos de aproveitar a introdução de nosso diálogo para justificar a reciprocidade relacional como uma ética, de acor- do com a proposição de nosso tema, a compreensão da existência segundo uma ética da reciprocidade e uma psicologia da pessoa. Trabalhamos a noção de ética baseando-nos na tese de que a ética se fundamenta nas interações humanas. Na própria etimolo- gia da palavra, já temos essa indicação. Um dos significados de ethos é morada, isto é, o mundo que os indivíduos compartilham. Entendemos mundo como a totalidade das vivências de cada pes- soa, seu modo de compreensão da existência, sua interação com as demais pessoas, com a cultura, a sociedade, a natureza. Dito de outro modo, o ethos diz respeito à ideia de comunidade como a morada em comum na qual edificamos as nossas interações, o nos- so conviver, o nosso viver junto. Esse convívio se dá de muitas for- mas: na relação com o outro, com os diferentes grupos, com a co- munidade, com a natureza, nas instituições e nas práticas sociais. A convivência, o viver junto, é o grande desafio ético, pois cada um tem uma forma própria de ser, o que gera conflito. Na convivência, está em jogo uma multiplicidade de valores, crenças, possibilidades. Diante da infinidade de modos de ser, de interes- ses, de mentalidades, de perspectivas do agir humano que com- põem as diversas formas de convivências e interações, o viver se- gundo um sentido ético nos leva a conscientizar que os pronomes eu e meu sozinhos não expressam a ética em amplo sentido. A expressão ética mais apropriada é o eu articulado e confrontado com o outro, ou seja, o nós: o nosso com-viver, os nossos projetos em comum, as nossas relações, nossos conflitos, diferenças, iden- 5 Zuben, Newton Aquiles von. Martin Buber. Cumplicidade e diálogo. Bauru: EDUSC, 2003, p.151. Ética da reciprocidade.indd 21 16/3/2010 09:38:20
  • 24. LUÍZ JOSÉ VERÍSSIMO | 22 | tificações, a nossa convivência. O pronome nós é, portanto, um pronome importante para expressar um sentido ético, ou, mais precisamente, como ressalta Buber, o “entre” é a melhor expressão para o ethos. A ética não é somente um conjunto articulado de ideias com ideais. Ela se torna no campo religioso um profundo ofício de fé, e, no campo das diversas relações que se estabelecem, uma práti- ca consistente e coerente justamente no nosso viver cotidiano, quando temos de lidar com outras pessoas, diferentes de nós, com desejos diferentes, com a quebra de expectativas, a reformu- lação das nossas avaliações, e devemos levar em conta a relação com as pessoas, com os grupos com os quais interagimos, e com a natureza, segundo um sentido orientado pela gestão da recipro- cidade e do diálogo. Tal sentido se dá a partir da perspectiva do Eu com Você. Não se trata de colocar o “eu” em primeiro lugar e visar somente a si, desejar o outro apenas como meio de satisfa- ção de desejos próprios, nem de colocar o outro como o centro das decisões e da vida, o que significa anular-se perante o outro, mas de visar um projeto e uma praxis em comum com o outro, o que implica superação de conflitos, participação, inclusão, ternu- ra e cuidado no trato. A ética consegue integrar, a um só tempo, a dimensão racio- nal, pois devemos ponderar a medida de nossas ações e intenções, e a dimensão afetiva. É nesse ponto que se desvela, no cenário dialógico, uma ética que enfatiza a alteridade. Ela acredita que a visada ao Tu promove a ligação fundamental entre mim e o outro. E isso é uma prática incessante, ou seja, um exercício de elaborar a convivência através da atitude fundamental do diálogo: o de- senvolvimento de um pathos relacional nos permite desenvolver o cuidado, a empatia e a compaixão (de com-paixão, sentir jun- to). O Tu evoca o reconhecimento, e, mais do que isso, o diligente interesse pela presença do outro na existência de cada pessoa. E assim tornamo-nos seres atuais uns para os outros, na medida em Ética da reciprocidade.indd 22 16/3/2010 09:38:20
  • 25. iNTRODUÇÃO | 23 | que atualização é a realização da interação com a alteridade in- tencionada como um Tu. A atualização implica uma empatia fun- damental: colocar-se no lugar do outro, interessar-se por ele, for- mar a noção de um destino comum. O destino em comum nada mais é do que a conscientização de que as ações, os projetos de vida, os modos de ser têm uma amplitude mútua, uma repercus- são recíproca nos integrantes da relação. Quando estamos inte- ressados no destino nosso e do outro, conseguimos vislumbrar que o que fazemos, o que desejamos, o que sentimos ou deixamos de sentir pode promover o bem comum, assim como pode ins- taurar e sustentar a dor, a exclusão e o sofrimento. Assim, quando estamos predispostos a assumir uma ética no sentido dialogal po- demos vivenciar a solidariedade, a compaixão, o cuidado, enfim, o revelador e preciso sentido do encontro. A partir da convivência recíproca, dialogada e responsável, está fundamentado um dos sentidos fundamentais da pessoa: manter-se fiel aos valores que levem em consideração não apenas a nossa individuação (o processo de se converter no modo de ser próprio, um modo extático, ou seja, que se desenvolve nas diversas interações estabelecidas), como valores que considerem diligente- mente os integrantes da relação, suas particularidades e identida- des, a comunicação entre eles. A individuação e a relação rematam um sentido de fé como uma lealdade repleta de confiança no que se afirma e se experimenta como uma existência autêntica, com- partilhada e dialogada. A forma dialogal envolve reciprocidade, responsabilidade, cuidado, empatia, decisão, amor, capacidade de formar e de cultivar vínculos, reconhecimento da diferença. Buber estima que a condição relacional expressa em toda a sua amplitude a condição humana. As relações que o ser humano estabelece não envolvem apenas a consideração para com o outro. Elas envolvem, igualmente, o ódio, a indiferença, a alienação, a negação do outro, a manipulação e o desejo de posse do outro como um objeto-para-mim. A reciprocidade formulada por Bu- Ética da reciprocidade.indd 23 16/3/2010 09:38:21
  • 26. LUÍZ JOSÉ VERÍSSIMO | 24 | ber quer dizer, também, que se trato o outro dessa forma, eu mes- mo me torno um objeto. De acordo com a forma com que deseja- mos e reconhecemos o outro, estaremos nos projetando como um Isso ou como um Tu nas relações. E não é pouco comum nos pro- jetarmos de forma ambivalente em nossas interações. O Isso con- vive com o Tu, ambos se alternam. Podemos romper com “o mun- do do Isso”, e nos envolver com a dinâmica do Eu e Tu, da mesma forma que, a todo momento, estamos retomando o mundo da causalidade, da necessidade, do objeto e da fascinação por man- ter-se à parte – o eu isolado, relacionando-se como um átomo so- breposto ao outro, e, independentemente da relação ser tomada eventualmente como “íntima”, relacionar-se com ele como se fosse um forasteiro, mesmo convivendo no mesmo espaço, ou ainda, mesmo que o espaço entre os corpos seja zero. Uma última observação diz respeito à presença de uma orientação não apenas filosófica como psicológica em nosso tra- balho. Não é de hoje que nutrimos um acentuado interesse pela analítica junguiana. Jung ressaltou o desdém que uma tradição cientificista e racionalista nutre contra a psicologia, acusando-a de mero psicologismo. A psicologia deve ser entendida em amplo sentido, fenomenológico e existencial. A psicologia nos conduz a uma hermenêutica que atende a uma abertura do logos à psique. Entendemos psicologia como um discurso, uma compreensão, um estudo (logos) acerca da alma humana (psiqué). Desse modo, a psicologia não se livra tão facil- mente da esfera metafísica: em algum momento, seus autores mais arrojados tangenciam com a radicalidade do pensar acerca dos fundamentos originários do ser humano. Ocorre que, neste trabalho, em nenhum momento nos permitimos esquecer que Buber manteve uma acirrada polê- mica com Jung em torno de certas discussões, principalmente, sobre a transcendência e imanência de Deus. Buber ataca Jung, acusando-o de ter reduzido Deus à imanência. Jung se defende Ética da reciprocidade.indd 24 16/3/2010 09:38:21
  • 27. iNTRODUÇÃO | 25 | argumentando que nada tem a objetar quanto à tese do Eu e Tu; ele está analisando Deus do ponto de vista psicológico, e não metafísico, e que a primeira questão é tão decisiva quanto a última. Enquanto para Buber interessa como o ser humano se relaciona com o Tu eterno, Jung se dedica ao estudo das for- mas como o indivíduo e as culturas produzem, interpretam e reproduzem os conteúdos simbólicos no campo da experiên- cia religiosa. Há quem aposte nas noções de Deus como relação e alterida- de, enquanto, por outro lado, encontramos quem se concentre na avaliação da “imagem de Deus” como uma imagem originária in- dissociável do psíquico, sobretudo do si-mesmo, dos arquétipos do inconsciente coletivo e da individuação da pessoa. Colocadas, a grosso modo, as afirmações lado a lado, as primeiras assertivas “pendem mais”, digamos assim, para o pensamento de Buber, as últimas se afinam especialmente com o sistema de Jung6 . Mas, ressaltemos que essas apreciações são meras generalizações, pois, por exemplo, o pensar complexo não admite que a visão de Buber seja considerada um pensamento do sagrado apenas do ponto de vista transcendente. Da mesma forma, não aceitamos que Jung se contente com uma superestima da interioridade em prejuízo da ética em sua perspectiva relacional. Jung não deixa passar em branco a consideração da relação para a constituição do ser hu- mano. Ainda que as projeções psíquicas de um determinado ­sujeito sejam analisadas retrospectivamente até a sua origem, mesmo assim, permanece a demanda por parte do paciente de relacionar-se com um ser humano. Aqui, entendemos não apenas a relação paciente-analista, como todas as perspectivas das rela- ções humanas. E essa exigência deveria ser satisfeita, “pois o ho- 6 Sobre a importância capital que Jung confere à psique, veja Veríssimo, Luiz José. A psicologia do self e a função religiosa da alma. Um estudo a partir de C.G. Jung. Campinas: Livro Pleno, 2005. Ética da reciprocidade.indd 25 16/3/2010 09:38:22
  • 28. LUÍZ JOSÉ VERÍSSIMO | 26 | mem, totalmente sem qualquer espécie de relação humana, cai no vazio”.7 O sofrimento humano não é apenas uma questão pura e simplesmente individual. O ponto de vista clínico, por si só, não abarca, nem pode abarcar, a essência da neurose, pois ela é muito mais um fe- nômeno psicossocial do que uma doença estrito senso. A neurose obriga-nos a ampliar o conceito de “doença” além da ideia de um corpo isolado, perturbado em suas funções, e a considerar o homem neurótico como um sistema de rela- ção social enfermo.8 Até mesmo uma relação etiquetada de “profissional” pode evocar a relação no modo dialógico. Com relação ao encontro paciente-analista, ele é visto como uma parceria: “Esta relação de pessoa a pessoa é a pedra de toque de toda análise que não se dá por satisfeita com um pequeno resultado parcial.” Nessa situação psicológica, o paciente se coloca diante do médico em igualdade de condições, “esta forma de relacionamento pessoal corresponde a um compromisso ou a uma ligação livremente assumida, em oposição aos grilhões da transferência”.9 Para aqueles que tiverem interesse no fogo cruzado do deba- te envolvendo Jung e Buber, recomendamos a leitura do livro Eclipse of God. �������������������������������������������������Studies in the Relation Between Religion and Phi- losophy (Eclipse de Deus. �����������������������������������������Considerações sobre a relação entre reli- gião e filosofia), de Martin Buber10 , e os textos de Jung “Religião e 7 Jung, C.G. Ab-reação, análise dos sonhos, transferência. Petrópolis: Vozes, 1987, p.8, par. 285 (Obras completas, vol. XVI/2). 8 Idem. A prática da psicoterapia. 3a ed. Petrópolis: Vozes, 1987, p.22, par. 37 (Obras completas, vol. XVI/1). 9 Ibidem (mesma obra), p.8, par. 286, 289 e 290. 10 New Jersey: Humanities Press; Sussex: Harvester Press, 1979 (edição brasilei- ra: Campinas Verus, 2007). O livro do comentador Maurice Friedman To Ética da reciprocidade.indd 26 16/3/2010 09:38:22
  • 29. iNTRODUÇÃO | 27 | psicologia: uma resposta a Martin Buber” (em A vida simbólica, Obras completas, vol. XVIII/2) e “Introdução à problemática da psicologia religiosa da alquimia” (em Psicologia e alquimia, Obras completas, vol. XII)11 , onde, apesar de Jung não se referir direta- mente a Buber, as problemáticas levantadas concernem ao debate em questão. Entrar no confronto direto do pensamento de Buber com o de Jung exige um trabalho todo à parte, assim como teríamos de fazer o mesmo para acompanhar integralmente as diferenças co- locadas por Buber quanto ao budismo, ao hinduísmo, à mística em geral, a Kierkegaard, a Heidegger, a Platão. Temos aqui um sonho mais modesto: o projeto de desenvol- ver uma interpretação de Buber que nos ajude a elucidar aspectos fundamentais da existência quanto ao que religa o ser humano com os seres humanos e com uma concepção de totalidade, fonte de nossas pesquisas há alguns anos. Nesse sentido, somos gratos a uma releitura acerca da existência sob a fonte do pensamento de Buber. O filósofo inspirou, não somente em nossa consciência, mas, sobretudo, em nosso coração, a perspectiva relacional de uma ética do diálogo, que acreditamos ter se insuflado definitiva- mente em nosso percurso de vida, numa trajetória que provoca constantemente a consciência da alteridade no horizonte da des- coberta do si-mesmo. Deny Our Nothingness. Contemporary Images of Man também se refere ao de- bate entre Jung e Buber. Veja os capítulos VI.9 e IX.16. 11 Ambas as obras publicadas pela Editora Vozes. Ética da reciprocidade.indd 27 16/3/2010 09:38:22
  • 30. Ética da reciprocidade.indd 28 16/3/2010 09:38:23
  • 31. Capítulo I Matrizes da experiência religiosa: o “totalmente outro” e a metafísica Ética da reciprocidade.indd 29 16/3/2010 09:38:25
  • 32. Ética da reciprocidade.indd 30 16/3/2010 09:38:25
  • 33. | 31 | O totalmente outro e o ocaso do ser humano Iniciemos o nosso exame do sagrado observando uma forma frequente pela qual ele é experimentado. Essa forma o reconhece apenas como uma realidade transcendente ao indivíduo, seguin- do o sentido convencional de transcendente como aquilo que se inscreve fora do mundo, e, consequentemente, além do âmbito humano. Quando o sagrado aparece sob a forma exclusivamente transcendente, mal podemos vislumbrar uma relação: trata-se, antes, da marcação de uma posição hierárquica, onde o sagrado ocupa o lugar central, e o ser humano é apresentado como a figu- ra de um astro que gira em torno de uma estrela. Esse ponto de vista reproduz um modo típico de se com­ preender o sagrado: ele supõe a existência de uma realidade que se impõe ao indivíduo, hierarquicamente superior, que não raras vezes é entendida como regente do tempo e do destino. Segundo essa perspectiva, estamos diante de uma relação desigual (se é que podemos chamar de relação) entre o ser humano e o sagra- do, caracterizada por um imenso abismo entre a pessoa e o sa­ grado, marcada por categorias como o temor, o terror, a nadifica- ção do eu, a concepção do indivíduo como finito diante de uma infinitude ao qual ele deverá se submeter se quiser sublimar a sua condição trágica. De acordo com essa mentalidade, se resta ao Ética da reciprocidade.indd 31 16/3/2010 09:38:25
  • 34. LUÍZ JOSÉ VERÍSSIMO | 32 | homem algum campo de possibilidades e de liberdade, ele jamais pode afrontar os desígnios divinos, pois jamais se nivelará ao fun- damento sagrado que cultua. Tal aspecto não é ignorado por Rudolf Otto ao fazer uma apreciação fenomenológica do sagrado. O autor procura analisar, em O sagrado, como ele é sentido pelo homem que se dirige a ele em oração, no culto, etc. A sua obra se inicia com a descrição do aspecto mais assustador do sagrado, o tremendum. O sagrado é de tal maneira grandioso, fora de qualquer medida conhecida, dotado de um incomensurável poder, manifesta-se de forma tão imprevisível e indomável, que para designar tal quadro a cons­ ciência mítico-religiosa apela para o termo “tremendo”. O tremendo é um sentimento característico da pessoa que se defronta com o sagrado. Ela sente um verdadeiro terror, que não se confunde com o que possamos entender ordinariamente como medo. O terror se apresenta para quem se encontra diante de um poder avassalador e, de fato, tremendo, que envolve o que é con- siderado sagrado. “Trata-se de um terror cheio de horror interno que nenhuma coisa criada, mesmo a mais ameaçadora e mais po- derosa, pode inspirar.” Otto vê nesse terror justamente a origem do fenômeno religioso. “Aqui está a origem dos ‘demônios’ e dos ‘deuses’ e de tudo que a ‘percepção mitológica’ ou ‘imaginação’ produziram para objetivar este sentimento.”12 O tremendo causa temor, faz tremer a alma e gera um espan- to na consciência. Uma primeira impressão que nos deixa a leitu- ra de Otto é a de que o sagrado é experimentado de tal forma que diante dele o ser humano se vê esmagado, reduzido a pó e cinzas. Para ilustrar tal situação, Otto cita a “ousadia” de Abraão ao diri- gir-se a Deus: “Tive a ousadia de falar contigo, eu que não passo de pó e cinzas” (Gênesis 18,27). Otto observa que, para tal com- preensão do sagrado, trata-se do apagamento e do aniquilamento 12 O sagrado. Lisboa: Edições 70, 1992, p. 23-24. Ética da reciprocidade.indd 32 16/3/2010 09:38:25
  • 35. Matrizes da experiência religiosa: o “totalmente outro” e a metafísica | 33 | da criatura perante um poder soberano numinoso. Isso constitui nada menos que o “sentimento do estado de criatura”, ou seja, “o sentimento da criatura que se abisma no seu próprio nada e desa- parece perante o que está acima de toda a criatura”.13 Nesse cenário, imaginamos que onde entra em cena o sagra- do, o ser humano se nadifica, submete-se a um poder infinita- mente superior a ele. Assim, nada menos surpreendente do que se estabelecer uma relação de terror e temor entre Deus e o ser humano. Otto nos mostra na cólera de Javé um exemplo do que institui esse tipo de relação. A “cólera de Javé” apresenta um caráter estranho que sempre nos impressionou. Em primeiro lugar, ressalta claramente de várias passagens do Antigo Testamento que esta “cólera”, ori- ginariamente, não tem relação alguma com os atributos mo- rais. “Inflama-se” e revela-se, misteriosamente, “como – diz- se – uma força escondida da natureza”, como a eletricidade acumulada se descarrega sobre quem dela se aproxima. É “incalculável” e “arbitrária”. Quem habitualmente apenas conceber a divindade sob a forma dos seus predicados racio- nais, verá na “cólera” um capricho e uma paixão. Mas os ho- mens piedosos da antiga aliança teriam decerto rejeitado energicamente esta forma de a considerar. (...) Com efeito, esta ira é apenas o próprio tremendum, o qual, não sendo de modo algum racional, deixa-se captar exprimindo-se aqui de forma primitiva, por analogia com um termo emprestado ao domínio natural, à vida espiritual do homem.14 13 Ibid., p.19. Otto cita, na p.31 de O Sagrado, G. Greith: “O homem afunda-se e dissolve-se no seu nada e na sua pequenez. Quanto mais se descobre, clara e pura a seus olhos, a grandeza de Deus, tanto melhor reconhece a sua própria pequenez.” 14 Ibid., p.28. Ética da reciprocidade.indd 33 16/3/2010 09:38:26
  • 36. LUÍZ JOSÉ VERÍSSIMO | 34 | A cada indivíduo resta a impotência em face da absoluta su- perioridade de poder; é quando se revela o sentimento do nada da criatura. Ele conduz ao aniquilamento do eu, e à afirmação da absoluta e única realidade do transcendente.15 A versão do sagrado com o hemisfério tremendo voltado para a janela do indivíduo que o espia é encontrada em tradições como o islamismo, o judaísmo, o cristianismo16 , em imagens da mitologia grega (veja, mais adiante, a apreciação da noção grega do destino) etc., e, igualmente, até hoje, na mentalidade de muitas pessoas. As observações de Rudolf Otto com relação ao aspecto tre- mendum do sagrado acentuam uma formulação desenvolvida a partir da vivência do sagrado como o “totalmente outro”. Essa ideia da alteridade absoluta nos fornece o nosso ponto de partida, porque o nosso estudo vai procurar circunscrever os limites dessa concepção, e sublinhar o caráter dialogal da experiência religiosa a partir do estudo da perspectiva de Martin Buber. Por outro lado, não se trata de rejeitar a observação de um “totalmente outro”, ou mesmo de negar que ele constitua uma das formas mais destaca- das da experiência religiosa: gostaríamos de ressaltar que essa proposição não esgota todas as possibilidades de vivência, ex- pressão e interpretação do sagrado. Se nos detivermos unicamente no “totalmente outro”, corre- mos o risco de negligenciar os demais aspectos do sagrado. Por 15 Ibid., p.30. 16 Para Karen Armstrong, “Os profetas de Israel experimentaram o seu Deus como uma dor física que torcia cada membro e enchia-os de fúria e exaltação. A realidade a que chamavam de Deus foi repetidas vezes vivenciada pelos monoteístas sob um estado de [condição] limite: leremos sobre o cume das montanhas, trevas, desolação, crucificação e terror. A experiência Ocidental de Deus pareceu particularmente traumática.” A History of God. New York: Ballantine Books, 1994, p.xxii (edição brasileira. Uma história de Deus. São Paulo: Companhia Das Letras, 1994, p.12). Ética da reciprocidade.indd 34 16/3/2010 09:38:26
  • 37. Matrizes da experiência religiosa: o “totalmente outro” e a metafísica | 35 | exemplo, o sagrado afirmado como uma mística associada ao amor, à compaixão, à solidariedade, à comunhão. Eis outro as- pecto complementar do tremendum que nos faz admitir o sagra- do como uma noção complexa: o sagrado apresenta-se também como o fascinosum. O fascinante é a modalidade do sagrado que encanta, fascina, irradia amor e misericórdia, que suscita compai- xão, suprema e doce paz, aquieta a alma, oferece ampla consola- ção. Mesmo na instância atrativa, o sagrado permanece em Otto como uma instância completamente extra-humana: Afirmamos, portanto, de acordo com a via eminentiae et causalitatis, que o divino é a realidade mais elevada, mais poderosa, melhor, mais bela e mais querida, coroamento de tudo o que um homem pode conceber. Mas, de acordo com a via negationis, dizemos que não é só o fundamento e o su- perlativo de tudo o que é concebível; Deus é, em si mesmo, uma essência à parte.17 Da mesma forma que a experiência religiosa pode suscitar o sentimento do nada da criatura, essa mesma experiência pode se revelar como a celebração de uma ética afirmadora da existência, uma ética cuja “fatalidade” é possibilidade. Uma ética da fé fun- dada no diálogo é uma forma fundamental de religare: ao desco- brir o sagrado, revela a natureza mais íntima de cada um que se inclina a ele. Como nas convicções do fundador do hassidismo, Israel Baal Shem Tov, que tentava descrever a interdependência entre Deus e a humanidade. Deus não era nenhuma realidade externa. Os hassidim acreditavam que, ao tomar consciência da centelha divina dentro deles, se tornariam plenamente humanos. Nosso começo pretende interrogar o que significa ser “nada” perante um “tudo”, ser nada mais que “pó e cinzas”. Daí, seguire- 17 O sagrado, p.59. Ética da reciprocidade.indd 35 16/3/2010 09:38:26
  • 38. LUÍZ JOSÉ VERÍSSIMO | 36 | mos desenvolvendo temáticas que emergem a cada passo, quase infindavelmente, tentando amarrar um fio condutor que pode se desfazer a cada noite. A elaboração de um estudo exige uma tare- fa heroica de não se apavorar e prosseguir em frente tecendo la- boriosamente o fio do sentido. No fundo, não nos iludiremos: cada ponto será apenas uma vírgula, e, cada conclusão, uma pau- sa no pensar para irrigar o vigor desse mesmo pensar. O nada, o tudo e o trágico Procuramos descrever que o modo de aparição do sagrado sob o aspecto revelado por Otto, segundo as palavras evocadas por ele em nome de Abraão – “não sou nada, tu és tudo”18 – traz à mostra o apagamento e o aniquilamento da criatura perante um poder soberano. Tal poder expressa, não raras vezes, o seu aspecto as- sustador, como nos mostram vários relatos míticos. Os deuses gregos podiam tanto auxiliar e proteger os homens quanto ani- quilá-los de um só golpe, ou podiam armar uma trama que re- dundaria num destino trágico. Na Bíblia, quando o culto a Javé é subvertido ao paganismo popular (o culto a Baal), Javé expressa todo o seu aspecto tremendum, como nos conta Jack Miles: Moisés volta ao monte por 40 dias e 40 noites, desaparecen- do em meio a fogo e fumaça (...) O Senhor (...) indica que, com todo o seu aspecto aterrador, agora veio para ficar. Em meio a essas instruções, o Senhor prescreve um ritual de sanguinolência sem precedentes para a investidura dos sa- cerdotes. Moisés retorna do monte e descobre que o povo mergulhou na idolatria. Em sua ira, quebra as tábuas da lei e induz os levitas a uma sangrenta e indiscriminada represália 18 Ibid., p.31. Ética da reciprocidade.indd 36 16/3/2010 09:38:27
  • 39. Matrizes da experiência religiosa: o “totalmente outro” e a metafísica | 37 | contra os israelitas. Milhares morrem, e, além disso, Deus atinge a nação com uma praga. Deus prova que em suas ações junto ao seu povo escolhido será tão violento e perigo- so quanto em sua primeira e assustadora aparição a eles.19 Estamos diante de uma imagem dramática, em que o ser hu- mano parece não ter qualquer outra possibilidade a não ser sub- meter-se ao sagrado da melhor forma que puder, a fim de não provocar a ira divina e conseguir manter-se sob a sua proteção. Apesar de reconhecermos o que descrevemos como um sen- timento frequente em muitas pessoas ao procurarem uma ligação com o sagrado, não consideramos que os problemas religiosos ter- minem aqui. Ao contrário, o cenário descrito é o nosso começo, o ponto em que daremos início a nossa prosa, levantando algumas questões. O que significa esse aspecto tremendo do sagrado? Em que medida ele resulta num esmagamento do ser humano, cuja insurreição contra os mandamentos divinos, sob forma, por exem- plo da hybris grega (a temida perda da medida divina) ou do pe- cado judaico-cristão, acarreta um desfecho trágico? Esse aspecto tremendo expressa simbolicamente certas con- dições da existência. Todos experimentamos a experiência da di- laceração, do sentimento de ser como que despedaçado, seja por pessoas ou situações que nos dão a impressão de nos machucar profundamente. Alguns golpes do destino, algumas situações da existência são sentidos como dilaceradores, devastadores, esma- gadores, e podem afetar sensivelmente o sentimento de determi- nação de nosso destino e de nossa personalidade. Ocorre-nos uma passagem do mito de Dioniso, quando o deus ainda se chamava Zagreu. Os Titãs o dilaceraram criança pequena, cozinharam-no, e, a seguir, o devoraram. Essa criança pode ser interpretada como a nossa própria inocência diante de algumas situações que se apre- 19 Deus. Uma biografia. São Paulo: Companhia Das Letras, 1997, p.136. Ética da reciprocidade.indd 37 16/3/2010 09:38:27
  • 40. LUÍZ JOSÉ VERÍSSIMO | 38 | sentam a nós. E algumas delas soam como titânicas. Sentimo-nos como se fôssemos dilacerados, a seguir cozidos e devorados, ou seja, sentimo-nos como se não sobrasse nada de nós, em outras palavras, o que parece restar é, de fato, o sentimento do nada da criatura. No sentimento do nada da criatura, o indivíduo se sente anu- lado e impotente perante o sagrado. Tal feição nos leva a pensar o destino. O sagrado confunde-se com a noção de destino. O pen- samento grego expressou bem isso: nem Zeus pode com as Moi- ras, quando muito o pai dos deuses e dos homens é nivelado a elas, mas nunca lhes é superior. As Moiras determinam o destino sem apelação. As Moiras são símbolos da fatalidade. Significam, literalmente, o destino. Essa noção mítica grega acabou desmem- brando-se em três personagens: Cloto é a fiandeira. Ela tece nada menos que o fio das tramas da vida de cada pessoa. Láquesis é aquela que mede o tamanho do fio, a extensão da vida. E, final- mente, Átropos, do verbo trepein, voltar, logo Átropos é a que não volta atrás, é a que corta o fio. Elas constituem as tramas de nossa vida, de nosso destino. Sua tecedura não tem apelação, é o destino inevitável, quanto ao qual nada se pode fazer, nem Zeus, o todo- Poderoso pai dos deuses e dos homens pode com elas! Ele é uma espécie de zelador do que está decretado pela Moira. Quando Átropos, a que não volta atrás, corta o fio da vida, os liames são todos desfeitos. Esses liames podem ser compreendidos simboli- camente como os sentidos que tecemos ao longo de nossa vida, todos desamarrados, através do ato do corte.20 Ao experimentar- mos algumas formas do trágico, como a morte, a dilaceração, o sofrer, o sentimento de ser violentado, estamos soltos, desligados 20 Montaigne refletindo sobre a morte observa que “a sorte aguarda por vezes nosso último dia, a fim de nos fazer compreender o poder que possui de der- rubar em um instante o que custou longos anos para edificar”. Somente depois da morte podemos julgar se fomos felizes ou infelizes em vida. Em Ensaios I (cap. XIX). São Paulo: Nova Cultural, 1987 (Os pensadores), p.43. Ética da reciprocidade.indd 38 16/3/2010 09:38:28
  • 41. Matrizes da experiência religiosa: o “totalmente outro” e a metafísica | 39 | do que nos amarrava, desligados daquelas realidades com as quais nos identificávamos, estamos, afinal, imersos no não sentido. Volta e meia a vida nos apresenta a morte. A morte como fato inexorável, como envelhecimento, como a perda de entes queridos, ou a morte simbólica, quer dizer, as perdas sentidas por nós como irreparáveis, traumáticas e dolorosas. Estamos volta e meia diante de golpes do destino. No campo da religião, certos acontecimentos de conotação aparentemente trágica fazem parte do destino das divindades, tanto quanto os acontecimentos subli- mes, beatíficos e conciliadores. A dupla condição finitude-trans- cendência aparece bem nítida no jogo morte-renascimento que envolve Dioniso, Cristo e Osíris em um simbolismo afim. Todos foram deuses que sofreram um violento martírio e, a seguir, res- surgiram renovados. Osíris foi assassinado por seu irmão Set. Seus pedaços foram recuperados por sua irmã-esposa Ísis, que, sendo a deusa da magia, promoveu o seu renascimento e, desde então, Osiris se torna também o deus dos mortos. Na Grécia ­antiga podemos reconhecer o tema do despedaçamento ou fim trágico que implique não apenas em uma morte, mas em um re- nascimento transmutado no mito de Zagreu, despedaçado bru- talmente pelos Titãs e renascido sob o nome e forma definitiva de Dioniso, o grande deus das religiões populares. Cristo pregado na cruz é uma imagem da tensão culminante entre a finitude e a transcendência. Ele, nada menos que um princípio divino, deve morrer para poder ressurgir transmutado. Nesses mitos, observa- mos que o próprio princípio sagrado se submete a uma espécie de finitude para poder revelar a sua transcendência, e, assim, rein- gressar na infinitude. Essa conjugação de vida e morte, geração e destruição, con- ciliação e dilaceramento compõem o sagrado. Vários povos não olvidam esse duplo aspecto da existência. Eles celebram, também, o aspecto tremendum dos deuses. Vendo-os, espelham a si pró- prios, a sua condição, a sua existência, o mistério que permeia as Ética da reciprocidade.indd 39 16/3/2010 09:38:28
  • 42. LUÍZ JOSÉ VERÍSSIMO | 40 | definições e as concepções tradicionais, mistério que deixa a to- dos espantados, tentando responder às inquietações através de mitos, ideias, símbolos e ritos para fazer frente à torrencial ava- lanche de situações-limite postas diante de nós e impostas pelo próprio existir. As diversas culturas e tradições interpretam e ex- pressam a existência em sua complexidade, desenvolvendo no- ções acerca do que é “bom”, assim como do que é “mau”, na tenta- tiva de organizar, tecer e manter ligadas as tramas dos sentidos que se formam e com os quais as pessoas se identificam. Dessa forma, a religião celebra a existência em todos os seus matizes: celebra o trágico, a vida, a morte, o êxtase, a superação. Ao expor o “estado de criatura” cuja máxima reza que o indi- víduo afirma-se como não sou nada, tu és tudo, e sente o sagrado como um “totalmente outro”21 , constatamos em tal concepção um fosso entre o ser humano e o sagrado. A distinção entre a condi- ção humana e o sagrado encontramos, também, por exemplo, na teologia e na metafísica ocidental, sem, no entanto, reconhecer- mos uma separação tão drástica entre o humano e o sagrado. O estado de criatura, apresentado por Otto faz vir a lume um sentimento que se apresenta ao longo de nossa existência, portan- to, de caráter ontológico, qual seja, o sentimento de dilaceração do eu, de não ser nada, de se ver reduzido a pó e cinzas, quando, por exemplo, encontramo-nos diante das perdas, das rupturas, da dor. Essa dimensão ontológica nos faz lembrar que a esfera reli- giosa permite experimentar as condições radicais da existência: a morte, o renascimento, o tempo. Elas apontam para uma articu- lação entre o sagrado e a noção do destino, como observamos nas Moiras. Não é à toa que a escatologia, a preocupação com os fins últimos da alma, é uma constante em diversas religiões. Quem evoca uma manifestação do sagrado está, de uma forma ou de 21 O sagrado, cap. 5, B. (Mysterium Tremendum).4. O “totalmente outro”, p.38 e ss. Ética da reciprocidade.indd 40 16/3/2010 09:38:28
  • 43. Matrizes da experiência religiosa: o “totalmente outro” e a metafísica | 41 | outra, defrontando-se com a mais extrema experiência, o destino: seja pelo desejo de alterá-lo, de barganhar com ele, de aceitá-lo, de compreendê-lo, de recriá-lo. Quando lançados na experiência religiosa, o sagrado é como um oráculo onipresente, cujas respostas suscitam novas inquieta- ções, para o qual apelamos incessantemente uma imagem ou pa- lavra que faça sentido, quando, na verdade, essa vivência estranha e arrebatadora é quem nos interpela sobre um sentido para a exis- tência. E a existência nada mais é do que o nosso próprio destino. Confronto da fenomenologia de Otto com a metafísica A afirmação de uma absoluta realidade transcendente vai fundar, na filosofia, o campo da metafísica, articulando, numa unidade indissociável, o ser e o princípio transcendente. No pensamento metafísico, o homem mantém uma relação com o ser: mediante a elaboração racional, ele pretende ascender ao conhecimento das realidades em si mesmas; visa o supremo bem pelo desenvolvi- mento da ação virtuosa; empenha-se em elevar a sua alma a um mundo perfeito; mas, por mais que sua alma se esforce, o funda- mento absoluto é atribuído ao ser. Quer dizer: o homem não se nivela em dignidade, perfeição e verdade ao fundamento supre- mo, esfera divina. Para Otto, semelhante ao que postula a metafísica, o sagrado é associado a categorias como o ser e o absoluto. Ele as relaciona com o sentimento da soberania absoluta, isto é, do sagrado en- quanto poder soberano: essa soberania transforma a plenitude de “poder” do tremendum em plenitude de “ser”22 . Se Otto reconhe- ce um caráter ontológico do sagrado, sua imbricação com o ser, as semelhanças de seu pensamento com a metafísica se detêm aí. 22 Ibid., p. 31. Ética da reciprocidade.indd 41 16/3/2010 09:38:29
  • 44. LUÍZ JOSÉ VERÍSSIMO | 42 | A principal diferença entre as análises de Otto e o pensamen- to metafísico reside no papel da razão, e tudo que está implicado na razão como fundamento metafísico: a ética, o valor do ser hu- mano, a racionalidade como ascese ao sagrado, isto é, a justifica- ção da ideia de uma esfera divina por um crivo que visa transfor- mar o mistério no inteligível. Para Otto, somente a razão não pode dar conta dos fenômenos sagrados. O que tem caráter sa- grado é basicamente sentido. Mas não devemos tomar um passo em falso e concluir que isso interdita o pensamento a contemplar o sagrado. Ele pode ser pensado. Otto procura desvendar a rela- ção entre os elementos racionais e irracionais nos sentimentos, nas imagens e nas conceituações do sagrado. Os elementos são para ele formas a priori do fenômeno religioso. Pareceu-nos, no entanto, que Otto avalia que o mais fundamental é a dimensão de mistério, para além da moral e da metafísica.23 O sagrado é sentido em primeiro lugar como inefável, irra- cional e a-moral. A seguir, ao longo do desenvolvimento das con- cepções referentes ao sagrado, ele é “penetrado” pelos elementos racionais. O estado “rude” é ultrapassado à medida que o numen se “revela” à consciência e ao sentimento. Esse é o processo pelo qual o numinoso é penetrado por elementos racionais, graças aos quais entra no domínio do compreensível. No entanto, permane- ce sempre no fundo o elemento imperscrutável, que supera todas as categorias conceituais, como na música: “O que na música se pode captar por conceitos já não é a própria música.”24 Assim, Otto procura destrinchar o traço mais marcante do sagrado, a que chama o numinoso. O sagrado é, antes de mais nada, uma categoria de interpretação e de avaliação complexa: 23 Talvez aqui possamos reconhecer indicações da influência do pensamento de Schleiermacher. Otto afirma que a religião não está sob a dependência nem do telos, ou seja, de uma finalidade metafísica, nem do ethos (no sentido de mo- ral). Ibid., p.177. 24 Ibid., p.173-4. Ética da reciprocidade.indd 42 16/3/2010 09:38:29
  • 45. Matrizes da experiência religiosa: o “totalmente outro” e a metafísica | 43 | compreende um elemento com uma qualidade absolutamente es- pecial, que escapa a tudo o que chamamos racional, constituindo, enquanto tal, algo de inefável. Apesar de não ser muito proveitoso achar um nome especial para identificar a natureza mais própria do sagrado, Otto escolhe um termo, ao menos provisoriamente, para designar o elemento que bem caracterize o sagrado, abs- traindo do seu elemento moral e, acrescente-se, de todo elemento racional. Otto designa tal elemento como o numinoso.25 Falo de uma categoria numinosa como de uma categoria es- pecial de interpretação e de avaliação e, da mesma maneira, de um estado de alma numinoso que se manifesta quando esta categoria se aplica, isto é, sempre que um objeto se con- cebe como numinoso. Esta categoria é absolutamente sui generis; como todo o dado originário e fundamental, é obje- to não de definição no sentido estrito da palavra, mas so- mente de exame.26 Observando a metafísica seguindo as coordenadas de Otto acerca do fenômeno religioso, concluímos que ela representa um esforço de domesticação do avassalador poder do sagrado, a que Otto chama majestas. Esse poder não pode ser comparado com nada conhecido, corresponde a uma “preponderância absoluta”, que se acrescenta a uma “inacessibilidade absoluta”. A metafísica, no que diz respeito à referência a uma realida- de divina, passou a montar, através do discurso, um sistema teó- rico para justificar a relação entre o divino e o ser. Julián Marías nos dá um fiel retrato dessa mentalidade, quando procura descre- ver o momento do surgimento da filosofia na Grécia. Ele conclui 25 De numen, designação latina para divindade, poder divino, vontade divina. Também significa, em sentido abstrato, majestade poder, grandeza. 26 O sagrado, p. 13-5. Ética da reciprocidade.indd 43 16/3/2010 09:38:30
  • 46. LUÍZ JOSÉ VERÍSSIMO | 44 | que o homem-filósofo começa a dispensar a magia e o mito: sua investigação acerca do “transfundo oculto das coisas manifestas”, ou seja, em última análise acerca do ser, “já não é mais um passivo recorrer ao oráculo; é dirigir-se ao que toma como realidade e obrigá-la a responder”.27 No desenvolvimento da metafísica grega, o fundamento divi- no se torna o resultado de um debate em praça pública, de um combate entre ideias. O ser resulta de uma pesquisa operada por um logos que passa a significar o discurso produzido pelo pensa- mento racional, imbuído de uma lógica que procura anular as contradições. Tal proposta de racionalidade tenta colocar, de um lado, o verdadeiro, o ser, o divino, o bem, o belo, a virtude, a me- dida, a alma, o conhecimento, e, de outro, combatendo-o sistema- ticamente, o falso, o nada, o mal, o erro, a desmesura, a ignorân- cia.Roberto Machado comentando a obra de Nietzsche Assim fa- lou Zaratustra, entende a metafísica como uma máquina de pro- dução de dicotomias: um mecanismo criado para cindir as inter- pretações da realidade, a fim de dar ordem ao sentimento de caos no mundo, mais exatamente, segundo o pensamento de Machado, “a metafísica é incapaz de expressar o mundo, em sua tragicidade, pela prevalência que concede à verdade em detrimento da ilusão, ou pela oposição que estabelece entre a essência e a aparência”.28 Esbocemos uma definição genérica de metafísica.29 Ela de- signa os sistemas de pensamento que pretendem dizer o que é o 27 Idea de la metafísica. 3a ed., Columba, 1962, p.15. 28 Zaratustra, tragédia nietzscheana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p.12. Gos- taríamos de acrescentar que o mundo em sua tragicidade significa “aceitar o sofrimento como parte integrante da vida”. Palestra proferida no ciclo de de- bates A cena cultural, I – Os heróis: épico e trágico. Rio de Janeiro, 1999. 29 Uma apreciação ampla e que considera meticulosamente inúmeros aspectos relevantes da metafísica, assim como a sua articulação, podemos encontrar no texto de Emmanuel Carneiro Leão “Metafísica e pensamento”. Em Aprenden- do a pensar Vol. II. Petrópolis: Vozes, 1991, p. 121-9. Ética da reciprocidade.indd 44 16/3/2010 09:38:30
  • 47. Matrizes da experiência religiosa: o “totalmente outro” e a metafísica | 45 | ser, em que ele consiste, o que ele funda, qual a sua origem, assim como situar o ser humano em relação ao ser. O conceito de ser adquire tamanha importância, na Grécia filosófica, que se torna associado à ideia de uma divindade ou princípio supremo: Apolo (Sócrates), Demiurgo (Platão), Deus (Aristóteles). Ao lermos Otto, voltamo-nos para observar de perto uma das faces do sagrado, aquela em que ele é sentido como o indo- mesticável, o que não se enquadra em nenhum conceito, e, acres- centamos, o que abre sempre para novas possibilidades de signi- ficação, institui um permanente mistério, não se sujeita a uma única logia (psicologia, teologia, antropologia, sociologia, cos- mologia etc.). O sagrado é “irracional” na medida em que se opõe às metafísicas que elaboram valores e definições unilaterais. Esse tipo de arquitetura mental acerca do ser omite a complexidade das várias dimensões que interagem permanentemente umas com as outras. A ética (concepções do bem e do mal), o conheci- mento, o divino, o ser humano, a natureza, os símbolos se articu- lam intimamente. Tudo isso se encontra imbricado mutuamente, de tal forma que se torna insuficiente deter-se na proposição da cisão radical entre o “bem” e o “mal”, o “verdadeiro” e o “falso”, o ser e o nada, a imagem e o discurso. É interessante, no estudo desenvolvido por Otto acerca do fenômeno religioso, a consideração do sagrado de forma mais abrangente do que as ideias que tiveram a sua gestação na pers- pectiva metafísica racionalista grega, conferindo ao fenômeno religioso, ou melhor, restituindo a ele a dimensão do sentimento, da corporeidade, do mistério. Deus não é apenas objeto de uma razão rigorosamente ordenadora das realidades a partir do enfo- que discursivo. Deus é compreendido por uma vivência, pelo sentimento. Ao mesmo tempo, o autor nos faz lembrar que Deus tem vida, o que aparece nas expressões simbólicas de paixão, von- tade, força, movimento, excitação, atividade, impulso. De acordo com Otto: “A ‘omnipotentia Dei’ afirmada por Lutero no ‘De servo Ética da reciprocidade.indd 45 16/3/2010 09:38:30
  • 48. LUÍZ JOSÉ VERÍSSIMO | 46 | arbitrio’ é unicamente a síntese entre majestas, enquanto sobera- nia absoluta, e a ‘energia’ enquanto força do Deus que não conhe- ce nem obstáculo nem repouso, que age e subjuga, do Deus ‘vivo’ [grifos nossos].” Otto prossegue a sua análise em um estilo arre- batador: No misticismo também aparece este elemento de energia na sua poderosa vitalidade, pelo menos no misticismo “vo­ luntarista”, o do amor. Encontramo-lo sob uma forma ver­ dadeiramente impressionante, no ardor devorador e na ­impetuosidade do amor cuja aproximação o místico mal pode suportar; esmagado por este poder, pede que se atenue, para não morrer.30 Vitalidade quer dizer também que o sagrado apresenta uma espécie de temperamento, ele pulsa, por vezes até carregado de eletricidade que descarrega sobre o povo quando irado. Se o sa- grado, até na forma de Deus, pode mostrar ira31 , provocar temor, podemos, então, admitir que não há solução de continuidade en- tre os deuses e o Deus monoteísta. Para Otto, o parentesco teria a ver com o sentimento do majestas, do tremendum, do terror que inspira o que possui o caráter sagrado. O elemento de terror desconcerta quem na divindade apenas quer admitir bonda- de, doçura, amor, familiaridade e, em geral, os atributos que unicamente se relacionam com a sua face voltada para o mundo. Esta ira, que muitas vezes se chama “natural” e que, na realidade, não é nada natural, já que é numinosa, se ra- cionaliza, saturando-se de elementos éticos, de ordem racio- 30 O sagrado, p. 34-5. 31 Segundo um místico que Otto não revela, “o amor” não é mais do que uma cólera extinta”. Ibid., p.35. Ética da reciprocidade.indd 46 16/3/2010 09:38:31
  • 49. Matrizes da experiência religiosa: o “totalmente outro” e a metafísica | 47 | nal, os da justiça divina, justiça distributiva que pune as transgressões morais. Mas importa observar que na noção bíblica da justiça divina este novo conteúdo permanece sem- pre misturado com o elemento primitivo.32 Os filósofos metafísicos rejeitaram um temperamento para Deus, ou, pelo menos, um caráter irascível, acusando tal avalia- ção de antropomorfismo. Não percebem, no entanto, que o Deus- logos racional é um Deus igualmente antropomórfico. Um Deus com a cara dos valores cultuados por grupos intelectuais e reli- giosos, que se esforçavam por conferir ao ser absoluto um caráter de objetividade e moralidade, e basear tal proposição somente na argumentação. Mas, como lembra Jung, provavelmente inspirado em Kant, qualquer pensador honesto é obrigado a reconhecer a inse- gurança de todas as posições metafísicas, (...) a natureza in- sustentável de quaisquer afirmações metafísicas e admitir que não existe uma possibilidade de provar que a inteligên- cia humana é capaz de arrancar-se a si mesma do tremedal [pântano], puxando-se pelos próprios cabelos.33 A metafísica antiga e medieval tentou demonstrar a existên- cia de um princípio divino. E imaginou o seu projeto através de um pensamento que engendra uma lógica que acolhe certas rea- lidades em detrimentos de outras, sem se dar conta de que, como bem apontou Nietzsche, encontramos valores em jogo por detrás do cenário fleumático dos debates filosóficos. Se esse método é problemático para a filosofia (especialmente a partir do pensa- 32 Ibid., p.29. 33 Psicologia e religião oriental. 3a ed. Petrópolis: Vozes, 1986 (Obras completa, vol. XI), p.3, §764. Ética da reciprocidade.indd 47 16/3/2010 09:38:31
  • 50. LUÍZ JOSÉ VERÍSSIMO | 48 | mento moderno), para Otto, tal procedimento não passa de uma crença supersticiosa e soberba: que reduzindo a variedade das re- presentações mítico-religiosas a um Deus único, e submetendo esse Deus à “razão”, estaremos decifrando integralmente o que “é” o sagrado e, por extensão, que estaremos resguardados do caos, do sofrimento, da injustiça, do mal, da ignorância, do absurdo, do trágico, do esquecimento. Para Otto, Deus origina-se de uma ex- periência originária, o sagrado, e, portanto, não se submete a nada, pelo contrário, escapa a todos os conceitos, às apreciações morais, enfim, a qualquer expectativa. O renascimento do ser humano à luz do Ser Diante de tal levantamento de problemas para a presente investi- gação, o que resta ao pensamento perante o sagrado? Admitimos as problemáticas levantadas por Otto no estudo da religião, mas consideramos que elas não devem intimidar o pensamento, ao contrário, o pensamento deve abordar o sagrado como se fosse uma provocação, um evocar o sagrado para uma aparição diante de nós, como bem situou Gilberto Kujawski: “Como posso saber que o transcendente não me responde, se não o interrogo? Toda interrogação é uma provocação, e provocare significa ‘chamar para fora’. Só interrogando a transcendência esta se manifesta, vem para fora, quebrando o selo do indevassável.”34 Não é vão para o pensamento o esforço de penetrar no ­mundo do sagrado. Nesse caminhar, procuramos nos familiarizar com a estranheza originária que suscita o numinoso. Ela se origi- na, segundo Otto, na relação fundamental constituinte do fenô- meno religioso, a relação entre o ser humano e um outro de cará- ter sagrado. Verificamos que tanto na metafísica quanto na ima- 34 O sagrado existe. São Paulo: Ática, 1994, p.18. Ética da reciprocidade.indd 48 16/3/2010 09:38:31
  • 51. Matrizes da experiência religiosa: o “totalmente outro” e a metafísica | 49 | ginação que somente admite o sagrado como o “totalmente outro” existe uma separação entre o ser humano e o sagrado. Na metafí- sica, essa separação não atinge o extremismo e a dramaticidade que apresentam as análises de Otto acerca da concepção de uma alteridade absoluta. Se, por um lado, tal concepção recusa-se a adequar o sagrado aos moldes da metafísica, por outro lado, ela não só mantém uma separação entre o ser humano e o sagrado, como a amplia consideravelmente. Rudolf Otto enriquece a paisagem do sagrado ao dilatar o horizonte da sua apreciação. Temos aí um considerável ganho na pesquisa sobre religião. As considerações do autor nos permitem descobrir que o sagrado é uma noção complexa, o que abre as portas para o enriquecimento da investigação. No entanto, se o “totalmente outro” não for suficientemente pensado e experimen- tado, pode reduzir a sua ampla significação a um sentido que pa- rece deixar completamente de lado o ser humano, qual seja, o sentido de que a realidade humana se anula completamente fren- te à realidade sagrada. Otto nos orienta para a dimensão do tremendum, aquela em que o sagrado instiga o sentimento do nada que se é perante o tudo do sagrado, o que pode alcançar extremos de se pensar que se é nada mais do que pó e cinzas. E na dimensão fascinosum, na qual o ser humano, geralmente em êxtase, aspira a uma união com o numen, quer ascender a ele ou ser tomado por ele, o sa- grado permanece como uma realidade absolutamente distinta da condição humana. Para ilustrar tal distinção, Otto cita inú- meros autores: místicos, teólogos, religiosos e filósofos, entre eles Goethe: As pessoas tratam o nome divino como se o Ser supremo, incompreensível e absolutamente inimaginável fosse igual a elas. Caso contrário, não diriam: “O Bom Deus”. Se estives- sem penetradas da sua grandeza deixar-se-iam de palavras Ética da reciprocidade.indd 49 16/3/2010 09:38:32
  • 52. LUÍZ JOSÉ VERÍSSIMO | 50 | e, como veneração, não ousariam sequer pronunciar o seu nome.35 Na metafísica, apesar de se considerar o ser humano distinto da pura essência transcendente, ele, ao menos, vale alguma coisa, não se anula completamente perante o divino. Só para citar al- guns exemplos clássicos: Sócrates dá um vigoroso impulso à filo- sofia para pensar o ser humano, fundando a antropologia filosó- fica, promovendo uma virada no pensar, na medida em que abre mão de especular sobre a realidade cosmogônica para centrar suas atenções na alma; na metafísica de Platão, que desenvolve, até certo ponto, o pensamento socrático, o ser humano é um ser passível de evolução cognitiva, espiritual, ética, política. Em Aris- tóteles, a referência a um plano arquetípico como modelo para o ser humano é deixada um pouco de lado em prol da edificação de uma ética constituída no mundo, o que significa uma valoração ainda maior da existência e dos problemas humanos. E aqui reside a principal contribuição do pensamento meta- físico para a nossa investigação do campo da religião: a dimensão antropológica. A metafísica não desconsiderou o ser humano como determinadas vivências do “estado de criatura’”, em que o indivíduo é pó e cinzas. O indivíduo, na metafísica, não se reduz a ver-se submetido ao divino como um boneco manipulado por cordas invisíveis e irrevogáveis. Ao contrário, o ser humano apa- rece como corresponsável pelo seu destino. A ética se constitui com o sagrado. Se na metafísica ela não se justifica sem a realida- de supra-humana, seu telos (meta) é a exaltação da existência, se- gundo um sentido de divinização da existência. O ser humano torna-se um ser que deve se elevar aos valores divinos, assim for- ma-se a ideia de um ser-para o divino. Não há mais o ser humano 35 Escrito a Eckermann, em 31 de dezembro de 1823. Citado por Otto, O sagra- do, p.46, nota 2. Ética da reciprocidade.indd 50 16/3/2010 09:38:32
  • 53. Matrizes da experiência religiosa: o “totalmente outro” e a metafísica | 51 | de um lado, anulando-se completamente, reduzido a cinzas e, de outro, a realidade suprema descarregando todo o seu incomensu- rável poder. Há um ser relacionado com o transcendente. Se ele quer ser assimilado ao princípio originário, unir-se a ele, seja ex- taticamente, seja pela prática da devoção, seja pela caridade, seja por uma compreensão racional do divino, o fundamento de exce- lência o alicia, ao invés de esmagá-lo e anulá-lo. No contexto do mundo medieval, o ser humano deseja uni- ficar-se com Deus. Mas, talvez, seja mais exato pensarmos num projeto da metafísica que visa a integração do indivíduo com Deus do que numa anulação do indivíduo perante Deus. E, para promover tal integração, o indivíduo deve desenvolver uma ética. Isso é de sua responsabilidade. Na metafísica, não basta apenas a praxis ritual: o indivíduo tem que manter uma ação ética cons- tante se quiser religar-se com o divino. Deixando de lado o ser humano, a concepção que só reconhe- ce o sagrado como um “totalmente outro” isola ambas as instân- cias, o sagrado e o humano, tornando inviável uma efetiva relação. O outro do sagrado se torna de fato um completo estranho, um totalmente outro. Otto pergunta qual a natureza e a qualidade do objeto, exterior ao eu, que pressentimos, ou seja, o que é o numi- noso em si mesmo. Ele define esse mesmo objeto como inacessível e inconcebível, perante o qual minha consciência mais do que es- pantar-se, recua: é o “totalmente outro”. O “totalmente outro” é algo que não entra em nossa esfera de realidade, mas pertence a uma ordem de realidade absolutamente oposta à realidade huma- na, que provoca na alma um interesse que não se pode dominar.36 Jung discorda de Otto quanto a se tornar o cerne da expe­ riência religiosa a partir do horizonte de um “totalmente outro”. E Jung se refere, nessa pontuação, a uma das formas do numinoso, mais elaboradas, Deus: “É totalmente impensável, do ponto de 36 O sagrado, p.41. Ética da reciprocidade.indd 51 16/3/2010 09:38:33
  • 54. LUÍZ JOSÉ VERÍSSIMO | 52 | vista psicológico, que Deus seja apenas o “totalmente outro”, pois o “totalmente outro” não pode ser o íntimo mais íntimo da alma – e Deus é.”37 Pode-se contra-argumentar que o “totalmente ou- tro” seria uma noção mais adequada a um estádio pré-religioso, ou seja, restrito à magia, ao rito e aos rudimentos de uma mitolo- gia. Mas, lembremo-nos que Otto se refere ao “totalmente outro” quando pensa em Abraão, quando ele se depara com a absoluta superioridade de poder: é o sentimento do nada da criatura. Des- sa forma, Jung nota o amplo alcance da ideia de um “totalmente outro”, pelo menos, com raras exceções, no Ocidente, e conclui com relação ao homem ocidental: Para ele, a criatura humana é algo de infinitamente pequeno, um quase nada. Acrescenta-se a isso o fato de que, como diz Kierkegaard, “o homem está sempre em falta diante de Deus”. O homem procura conciliar os favores da grande potência me- diante o temor, a penitência, as promessas, a submissão, a au- to-humilhação, as obras e os louvores. A grande potência não é o homem, mas um “totaliter aliter”, o totalmente outro, abso- lutamente perfeito e exterior, a única realidade existente.38 De fato, a concepção de “um totalmente outro” não leva em conta a totalidade da experiência originária promovida por uma vivência do sagrado, no que concerne a sua dimensão que se es- tende na direção do humano e do mundo. Ou seja: para Otto, o ser humano, ao se deparar com o que toma por numinoso, vê-se despertado pelo sentimento do numinoso, mas toma o numinoso necessariamente como fora dele. 37 Psicologia e alquimia. Petrópolis: Vozes, 1991 (Obras comp., vol. XII), p.23, §11, nota 4. 38 Psicologia e religião oriental, p.8, §772. Ética da reciprocidade.indd 52 16/3/2010 09:38:33
  • 55. Matrizes da experiência religiosa: o “totalmente outro” e a metafísica | 53 | O esquecimento do ser humano e o esquecimento do sagrado O “totalmente outro” é uma proposição que nos interessa. Ela é o contraponto de nossa argumentação que reconhece o sagrado também a partir de um modo relacional, segundo um pensamen- to que considera o ser humano como uma trama de relações. O nosso ponto de partida residiu na tentativa de compreender um pouco melhor a concepção do sagrado como o “totalmente ou- tro”. O sagrado sob essa imagem frequentemente adquire feições dramáticas: o “tremendo”, o “terrível”, o que causa “tremor e te- mor”, o que mostra uma ira tenebrosa, por vezes “sinistro”. Essas significações nos fizeram estabelecer uma associação entre o sa- grado e o aspecto trágico da existência. Interpretamos os deuses nessa forma como a expressão fiel de como nos sentimos perante a existência quando lançados no trágico: na dor, no sentimento de aniquilação do eu, na perda do sentido, no absurdo. Estabelecemos, a seguir, uma comparação entre a concepção do “totalmente outro” e a metafísica, que procura trazer ao campo religioso a dimensão ética. Ao visar uma ética que reúne o ser hu- mano ao fundamento sagrado (o ser, Deus), a metafísica tenta res- gatar o ser humano do trágico, retomar o fio do sentido, perdido no aniquilamento de um indivíduo reduzido a cinzas. Nisso, ela resgata a polaridade antropológica da relação entre o ser humano e o sagrado, mas acaba levando a associação entre o ser e o divino a uma espécie de domesticação aos moldes de determinados valo- res: o bem, a lógica que rejeita a contradição, o belo, a desconside- ração das paixões e do desejo. Maria Helena Cunha nota que é própria do pensamento reflexivo a dissociação dos referen- ciais sujeito-objeto, enquanto no pensamento intuitivo e na vivência processa-se o contrário. O homem aparece, por um lado, como um ser livre, inventando e fundando a sua exis- Ética da reciprocidade.indd 53 16/3/2010 09:38:33
  • 56. LUÍZ JOSÉ VERÍSSIMO | 54 | tência, e por outro, submetido a limitações, a contrarieda- des. (...) O universo mitológico não conhece distinção entre mundo do ser imediato e mundo da significação mediata. A imagem não representa a coisa, ela é a coisa.39 E assim, tanto a convicção que só reconhece um “totalmente outro” quanto a metafísica deixam de considerar devidamente as- pectos relevantes da relação entre o ser humano e o sagrado. A primeira porque, basicamente, esquece a pessoa, e a metafísica porque não mais tem em conta o sagrado em sua totalidade, e tenta domá-lo na medida em que nos apresenta um discurso que anseia por encontrar respostas racionais, e com isso invade o ter- ritório do mistério, discurso esse que só se detém em parte peran- te a exaltação da fé na filosofia e na mística medieval. Acompanhemos, daqui em diante, uma proposição de reli- gação com o sagrado, que se recusa a considerar a experiência religiosa como da ordem exclusiva do que está à parte da existên- cia, permanecendo mais do que um estranho, um interdito ao ser humano; nem considera o sagrado inteiramente deduzido de cri- térios racionais. 39 Espaço real, espaço imaginário. 2a ed. Rio de Janeiro: Uapê, 1998, p.108. Ética da reciprocidade.indd 54 16/3/2010 09:38:34
  • 57. | 55 | Capítulo II Interpretação do sagrado a partir da leitura de Martin Buber Ética da reciprocidade.indd 55 16/3/2010 09:38:37
  • 58. Ética da reciprocidade.indd 56 16/3/2010 09:38:37
  • 59. | 57 | Eu e Tu como uma relação originária entre o ser humano e o sagrado Na leitura de Martin Buber, chamou-nos a atenção a apresenta- ção de uma determinada modalidade da experiência religiosa em que o sagrado se inscreve como relação, quer isso dizer: ele é constituído na relação Eu e Tu. Ele é apresentado como funda- mento constituinte de uma relação. Não é mais o único polo cen- tral da experiência religiosa. No âmbito do Eu e Tu, procuramos um pensar que não sub- meta o ser humano a uma concepção de experiência religiosa em que ele se mantém como uma peça secundária. O que anuncia o pensamento dialógico a modo Eu e Tu é que o cenário religioso, ao invés de excluir o ser humano, evoca-o para a relação com o sagra- do. A tese que aceita o sagrado como um Tu é a de que o sagrado, a pessoa, a comunidade formam uma identidade relacional. A confrontação entre um pensamento que adota a perspectiva relacional e dialogal e a fenomenologia de Otto concernente a de- terminadas concepções acerca do sagrado atinge o ponto máximo de tensão quando Otto descreve uma imagem do sagrado segundo a forma dicotômica que marca uma rigorosa separação entre o eu e a realidade objetiva, ou melhor, entre um eu e um “objeto” exte- rior a ele, o sagrado, com o qual o eu se depara. Quando o numi- Ética da reciprocidade.indd 57 16/3/2010 09:38:37
  • 60. LUÍZ JOSÉ VERÍSSIMO | 58 | noso é experimentado sob a forma de um “totalmente outro”, ocor- re uma cisão completa entre sujeito e objeto: o sagrado só é admi- tido como um absoluto transcendente e como uma realidade em tudo superior à esfera humana. Segundo essa forma, observa Otto: “É só aqui que se experimenta a presença do numen, como no caso de Abraão, em que se pressente algo de caráter numinoso, em que a alma se desvia de si própria para este objeto.”40 A alma se desvia de si própria? A experiência do sagrado também remete a alma a si própria. Entendemos esse “desvio” da alma para o “objeto” numinoso como algo distinto da experiên- cia mística, quando ela propõe um sair de si (caráter de êxtase). Não confundimos o “desviar de si própria” da alma com o “sair de si” da alma (característico da mística). Pois, segundo Otto, o desviar da alma está relacionado ao numinoso como objeto exte- rior ao eu, está relacionado ao objeto existente fora do eu. Na pá- gina 59 de O sagrado, Otto afirma, referindo-se ao aspecto atrati- vo do sagrado, que Deus é uma essência à parte. Da mesma forma em que não há sempre desvio, mas, igual- mente, remetimento, tampouco o encontro com o sagrado pro- duz necessariamente um recuo, perante a estupefação que susci- ta41 . Na introdução da célebre obra de Santa Teresa d’Ávila Castelo interior ou moradas, Jacyntho J.L. Brandão ratifica uma identi- dade de essência entre a alma e Deus. Pois esta é a grande descoberta que Teresa pretende divul- gar: Deus habita no mais íntimo da alma. Tal verdade – com- preendida por ela através da experiência – é das formulações mais antigas de seu pensamento. Contra ela se posicionaram inclusive vários de seus confessores, que admitiam essa pre- 40 O sagrado, p.20. 41 Otto acredita que, frente ao numinoso, debato-me com uma realidade inco- mensurável perante a qual recuo, tomado de estupefação. Ibid., p.41. Ética da reciprocidade.indd 58 16/3/2010 09:38:38
  • 61. Interpretação do sagrado a partir da leitura de Martin Buber | 59 | sença divina apenas através da graça, nunca em essência. Teresa, porém, é clara: Deus se encontra na alma como se encontra no céu. Por isso mesmo a própria alma é outro céu, no qual se pode entrar através da oração.42 Ocorre-nos, além da mística, o que estudamos em Jung: o ca- ráter “religioso” dos símbolos. Ao se remeter ao que é sentido como sagrado, o ser humano vê sua alma tomada pelos símbolos que ex- pressam a transcendência, assim como por imagens e ideias que expressam as formas constituintes de sua existência: a morte, o re- nascimento, o despedaçamento, o feminino, o masculino, o heroi- co, o trágico, o sublime, a salvação, o caos etc.43 Buber acentua que, antes de mais nada, não somente Deus se faz presente, como é presença. “Sem dúvida Deus é o ‘totalmente Outro’, Ele é porém o totalmente mesmo, o totalmente presente. Sem dúvida, ele é o ‘mysterium tremendum’ cuja aparição nos subjuga, mas Ele é também o mistério da evidência que me é mais próximo do que meu próprio Eu.”44 A experiência religiosa enquanto Eu e Tu concebe o divino em um modo relacional e dialogal. Buber aposta que o princípio sagrado existe na medida de sua relação com o ser humano: na medida não somente em que o indivíduo o evoca, mas, igualmen- te, na medida em que o sagrado também se dirige a cada um. Essa relação não está dada. Ela é uma descoberta, é uma revelação que se abre na medida em que se aceita o sagrado como relação, ao invés de meramente colocar-se sob a sua proteção ou a sua supos- ta lei. O sagrado é com o indivíduo. Assim, estabelece-se uma re- lação única, um encontro singular. 42 Rio de Janeiro: Paulinas, 1981, p.8-9. 43 O símbolo religa o ego ao si-mesmo (self), à totalidade humana. Esse foi o tema de nosso trabalho citado A psicologia do self e a função religiosa da alma. 44 Eu e Tu, p.92. Ética da reciprocidade.indd 59 16/3/2010 09:38:38
  • 62. LUÍZ JOSÉ VERÍSSIMO | 60 | Isso nos permite concluir que as imagens do sagrado for- madas pela humanidade são criadas a partir de genuínos encon- tros com o sagrado. Concebemos símbolos não apenas por ra- cionalizações das formas (a geometria, o plano bidimensional em perspectiva, uma mandala representando a terra em relação ao cosmo, por exemplo) e abstrações da linguagem, mas tam- bém, e sobretudo, a partir da nossa vivência. O sentido do sim- bólico liga-se a uma vivência que é ao mesmo tempo um encon- tro com o sagrado. Se Deus, por exemplo, permanece sobretudo como um princípio conceitual, por mais excelente que seja a forma de sua concepção, a sua “verdade” (a sua argumentação), se Deus se mantém numa metafísica e numa teologia sem que essa reflexão se insira na existência, a modo de um permitir a existência igualmente revolver o pensamento, Deus permanece apenas um Isso, uma coisa, um objeto, manipulável pelas cate- gorias a Ele imputadas pela excessiva formalização de ritos, pela pregação sacerdotal, por dogmas impostos a partir de relações hierarquizadas. O sagrado pode ser experimentado e pensado como um ob- jeto da minha crença, do meu estudo; como uma total alteridade; como produto de uma fantasia; como uma máscara; como um grande pai simbólico; como um ser ordenador do mundo, que dá guarita e sentido que insufla a salvação e a esperança, sublimando a angústia e o desespero. No entanto, ele escapa a todas essas achegas. Por exemplo, ele aparece igualmente como uma grande mãe acolhedora (por vezes acolhedora e simultaneamente temí- vel), como o Si-mesmo, como o “totalmente próximo”, como transgressor de todos os limites e ordenações. O sagrado é da es- fera do simbólico, e pela sua própria natureza, nunca é totalmen- te acabada a sua feição, os seus contornos são meros esboços, suas aparições, as formas de culto e veneração são esquecidas, reme- moradas, comemoradas, renovadas, transformadas. Em suma, pela sua própria essência o Tu Eterno não pode, Ele próprio, tor- Ética da reciprocidade.indd 60 16/3/2010 09:38:39
  • 63. Interpretação do sagrado a partir da leitura de Martin Buber | 61 | nar-se um Isso, apesar de ser manipulado e intencionado, volta e meia, como um objeto. Os homens têm invocado o seu Tu eterno sob vários nomes. Quando cantavam aquele que era assim chamado, pensavam sempre no Tu; os primeiros mitos foram cantos de louvor. Os nomes entraram, então, na linguagem do Isso; um impul- so cada vez mais poderoso levou-os a pensarem no seu Tu Eterno e falar dele como de um Isso. Todos os nomes de Deus permanecem, no entanto, santificados, pois, não se fala somente sobre Deus, mas também se fala com Ele.45 A letra viva da palavra que se dirige a Deus e que se origina do encontro com Ele, que aparece em revelações, relatos e dog- mas, tem o seu sentido rematado na confrontação de um existen- te com o Outro existente. O caráter existente de Deus amarra, por assim dizer, uma identidade íntima entre a pessoa e Deus, mas, não por isso, reduz Deus à imanência. Para Buber, Deus não se circunscreve nem num além, nem num aquém, ou seja, Deus não pode ser afirmado apenas como um “totalmente outro”, tampou- co, por exemplo, apenas antropologicamente, como produto da visão de mundo de alguns povos, ou, apenas psicologicamente, como uma imagem psíquica originária de uma instância profun- da do inconsciente. O que ressalta uma argumentação dialógica é a articulação radical do pensamento com a vivência. Donde se justifica a afirmação de que não apenas se fala “sobre Deus”, mas, igualmente, se fala “com Ele”. Dessa forma, a experiência religiosa desenha uma noção complexa: simultaneamente afetiva e cognitiva. A ênfase no as- pecto vivencial da experiência religiosa não nos convence a ­confiná-la no campo do irracional, do incognoscível, do inefável. 45 Ibid., p. 87. Ética da reciprocidade.indd 61 16/3/2010 09:38:39
  • 64. LUÍZ JOSÉ VERÍSSIMO | 62 | A experiência religiosa apresenta uma abertura à compreensão e ao pensamento na medida em que possibilita um desvelamento do mistério que anuncia o fundamento sagrado. O ser humano na fé se depara a um só tempo com o desconhecido e com o fami- liar, descobrindo o sagrado pela relação que estabelece direta- mente com ele, e não fora dela (através exclusivamente de mensa- gens “reveladas”, sujeitas a interpretações exteriores ao sujeito que se submete à experiência religiosa). Assim, a fé evoca o princípio sagrado como presença. A religião é entendida mais exatamente como um contato mútuo, como o encontro genuinamente recíproco na plenitude da vida, entre uma existência ativa e outra. Analogamente, entende-se fé como a inserção nesta reciprocidade, como o ligar-se numa relação com o Ser in- demonstrável e não comprovável, mas, ainda assim, numa relação com o Ser cognoscível de quem deriva todo signifi- cado.46 Aqui, acentuamos a noção de existência referida ao campo do sagrado. Não apenas o ser humano é um existente. O Tu eter- no, sem deixar de ser um transcendente, também é um existente. Quando estudamos a experiência do sagrado como encontro, concluímos que, segundo essa perspectiva, com respeito ao âma- go da experiência religiosa, chama-nos a atenção que não se trata de concebê-la como mera oposição metafísica entre o homem e o numinoso, entre sujeito e objeto, e sim contemplá-la como um genuíno encontro – recíproco, nada menos que um encontro en- tre duas existências. Martin Buber confere não só uma dignidade ao ser humano quando se projeta numa dimensão religiosa da existência, pois antes ele se via reduzido a não muito mais do que pó e cinzas, como lhe confere um caráter ontológico de mesmo 46 Eclipse of God, III, §3, p.33. Ética da reciprocidade.indd 62 16/3/2010 09:38:39
  • 65. Interpretação do sagrado a partir da leitura de Martin Buber | 63 | peso que a realidade sagrada, ao admitir a copertinência do ser humano e do sagrado à esfera da existência. Nesse ponto, Buber promove uma ruptura com a noção tra- dicional que põe de um lado o sagrado como o Ser, a essência, e, de outro, o ser humano como existente. A proposição de que a essência fundamenta a existência é uma tese metafísica veemen- temente contestada por Sartre, que sugere o justo contrário: é a existência que precede a essência. Até o presente momento, não encontramos em nossos estudos do pensamento de Buber uma discussão sobre quem tem a primazia ontológica: a essência ou a existência. A partir da leitura de sua obra, passamos a nos per- guntar como podemos admitir o sagrado como existente. Ele se revela existente, por exemplo, no encontro com os seres huma- nos, na sua atualidade, vale dizer, no seu fazer-se presente junto com o ser humano, na inter-ação mútua que se estabelece entre o sagrado e o ser humano de tal forma que se funda uma ligação dialogada. O sagrado se faz presente com o ser humano: com a pessoa e com a comunidade. Evocar o sagrado implica também ser evocado. Ambos são com-vocados para um encontro místico, no seguinte aspecto da mística: ambos se chamam mutuamente ao êxtase, ao sair de si para o encontro e para o diálogo. Considerar apenas o sentido mais valioso da existência no ser humano ou no sagrado nada mais é do que instituir uma presença unilateral, donde se acredita na morte do sagrado ou na negação do ser humano. Sem a perspectiva da existência, ousaríamos concluir que “Deus” é, mas não existe. Sem se constituir como existente o sa- grado é – um ser solitário e distante: abre-se um abismo inco- mensurável e sem pontes entre o ser humano e o sagrado. Na perspectiva do sagrado inserido na existência, esse abismo se mantém, pois o mistério permanece, no entanto, ele se enche de possibilidades. A relação entre o ser humano e o sagrado se cons- titui como possibilidade nos “fatos que não se veem”, que deixam Ética da reciprocidade.indd 63 16/3/2010 09:38:40
  • 66. LUÍZ JOSÉ VERÍSSIMO | 64 | em aberto o destino da relação, sem margem para antecipações ou controle. O encontro entre os seres humanos e o sagrado envolve a disponibilidade para o reconhecimento da sua presença mútua. “Quem conhece Deus, conhece, sem dúvida o distanciamento de Deus, e o tormento da seca que ameaça o coração angustiado, mas não a ausência de presença. Nós é que não estamos sempre presentes.”47 Na esfera da experiência religiosa, quando não nos fazemos copresentes com o sagrado, configura-se para Buber o modo Eu- Isso. O sagrado é, então, eclipsado, para usar um termo do pró- prio autor, pela visão de mundo da esfera do Isso. Ele é retratado como uma realidade fechada sobre si mesma, uma instância onde Deus e homem têm lugar rigorosamente marcado e papéis con- vencionados. Desse modo, o sagrado aparece simplesmente como um ser que não permite a ninguém algo mais do que permanecer como uma criança, ingênua e sem responsabilidade alguma, ou mesmo como um “não sou nada” perante um soberano da fatali- dade, do universo e do sentido da existência. No que toca à reciprocidade quando o sagrado é visado como um Tu, o ser humano se apresenta perante ele sem desejar se anu- lar para salvar-se num ideal de alteridade que projeta valores para fora da existência. Por isso, Buber acentua que “não é necessário o despojar-se do mundo sensível como um mundo de aparência. Não há mundo aparente, só existe o mundo que, sem dúvida, se nos revela duplo, visto que nossa atitude é dupla”.48 Buber quer enfatizar que não deseja sugerir com as instâncias Eu e Tu e Eu – Isso mais uma dicotomia que separa o mundo do divino, assim como cava uma fenda intransponível entre o campo do Isso e a esfera do Tu. Buber não pretende conceber uma sepa- 47 Eu e Tu, p.114. 48 Ibid., p.89. Ética da reciprocidade.indd 64 16/3/2010 09:38:40
  • 67. Interpretação do sagrado a partir da leitura de Martin Buber | 65 | ração entre a alteridade experimentada como Tu do mundo da realidade humana em suas formas de objetivação, por exemplo, o campo das dinâmicas psíquicas nas quais o desejo se articula com os seus objetos, da intencionalidade do outro como objeto, enfim, o mundo do “Isso”. Se estamos explorando uma ontologia pas­ seando pelo Tu e pelo Isso, trata-se, não somente, de possibilida- des que se apresentam no enlaçamento da pessoa com o sagrado, como, antes, de dois modos de ser fundamentais do ser humano. Eles mantêm uma relação dialética, pois ambos ajudam a definir um pouco o que é esse fenômeno, o ser humano. Esses modos não são campos fechados. Eles não se definem em si mesmos. Eles se põem em função da atitude que tomamos conosco e com o outro, em como lidamos com o nosso desejo, e, por extensão, como de- sejamos o outro, em como intencionamos as nossas relações. A dualidade de atitudes não é definida pelo emprego idênti- co do “eu” nas possibilidades de relacionamento. Aliás, essas atitudes, como Tu e como Isso, não são definidas em referên- cia a diferentes conteúdos determinados, por exemplo, o Tu representando uma pessoa e o Isso, uma coisa. Tudo aquilo que se apresenta no mundo diante do “eu”, pode ser um Tu ou um Isso de acordo com a atitude do “eu”.49 Recusando certas visões tradicionais do tipo o sagrado/es- sência versus o mundo/aparência, na esfera dialógica o valor de- positado no sagrado faz sentido a partir da inserção do sagrado na existência: no dia a dia, no trabalho, na arte, no enlace erótico, no encantamento amoroso, no conflito, na angústia, na morte, no sofrimento, no prazer, na vida. Em outras palavras, a existência se faz presente no sagrado, assim como o sagrado se faz presente na existência. Isso é para nós um significado importante de recipro- 49 Zuben. Martin Buber: cumplicidade e diálogo, p.119 Ética da reciprocidade.indd 65 16/3/2010 09:38:40