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Zero Hora – Como é a sua rotina aqui, o seu dia-a-dia
em Wad-Ras?
Bruna Bayer Frasson– O centro está organizado em cinco
módulos: Ingressos (Entradas), Enfermagem, Polivalente
ou Residencial, Mães e Preventivas. Quando alguém
chega passa os três primeiros dias em Ingressos, se
habituando a horários, ao relevo - à contagem: pela
manhã, contam quantas pessoas tem dentro do quarto, e
daí a porta já fica aberta para fazer as atividades
previstas. Às 7h30, abrem a porta. Cada módulo tem um
horário de café da manhã. Atualmente, eu tomo café às
8h. E, às 9h30, todo mundo tem que estar pronto para
as atividades, não deve ter ninguém dentro das
habitações. Às 13h é o almoço, e, às 14h30, fazem
outra contagem. As gurias que estão em Preventivas são
trancadas outra vez no quarto, até as 16h, quando saem
de novo para atividades. No Residencial, não fecham os
quartos, e no Módulo de Mães elas nunca estão
trancadas porque estão com as crianças.
ZH – Você agora está no residencial?
Bruna –De Ingressos passei para Preventivas, onde
fiquei só o primeiro mês. Em dois anos, quase dois
anos, minha rotina mudou bastante. Eu tinha muito medo
de todo mundo, eu nem olhava para as pessoas. Eu só
lia. No primeiro mês aqui, eu li trinta livros, eu só
lia. Não falava com ninguém. Eu não conseguia dormir,
pensando, então eu preferia ler a ficar chorando ou
pensando. Era obrigada a descer para o pátio, e eu
sempre estava lendo. Eu passava muito tempo na
biblioteca, conheci o bibliotecário, Luis, e comecei a
trabalhar na biblioteca, pela tarde. Então no primeiro
mês eu já estava trabalhando – para te darem um
trabalho aqui demoram normalmente uns seis meses.
Também comecei a fazer um curso no salão de beleza, de
cabeleireira. Aprendi a cortar e a fazer chapinha. E
logo me subiram para residencial, onde se supõe que
estão as pessoas com bom comportamento, que não têm
problemas, antecedentes. Tardam uns quatro meses para
transferir alguém para ali, eu entrei no primeiro mês.
ZH –E, atualmente, você é uma das responsáveis pela
cozinha do centro.
Bruna – Com o Luis, na biblioteca, estive um ou dois
meses, e logo comecei a trabalhar na administração,
que é um trabalho de confiança. Não é administração do
Centro, é organizar e distribuir o material de limpeza
e de escritório entre os módulos. Toda quarta-feira,
cada cabo – as responsáveis de cada módulo – entrega
uma lista do que precisam, e a administração é
responsável por recolher esse papel, descer aos
armazéns e distribuir o material entre os módulos.
Quando se organizava alguma festa, ajudava a montar as
mesas, essas coisas. Fiquei trabalhando nisso quatro
meses, mais ou menos. Nesse momento, todo o serviço de
cozinha foi assumido pelo CIRE (Centre d'Iniciatives
per a laReinserció - Centro de Iniciativas para a
Reinserção), um órgão do governo catalão responsável
por todos os talleres (oficinas de trabalho
remunerado) do centro. E me propuseram ser encarregada
de cozinha. Já me conheciam, o pai tinha estado aqui,
tinha dado meu currículo para a administradora. Para a
cafeteira dos funcionários, eu só seleciono a matéria
prima, recebo a nota fiscal e coloco a informação do
que entra e sai no computador. Com a cozinha das
internas é um contato mais direto. É mais
administrativo, também, como nutricionista de
alimentação coletiva no Brasil. Dou entrada em todas
as notas fiscais, organizo o que entra e o que vai
sair. Desde o custo, que não pode passar de 3,90 euros
por pessoa. Para as três refeições, por dia. É muito
pouco. E eu tenho que manter esse custo, organizar o
menu– café da manhã, almoço e janta, com sobremesa e
frutas – dentro desse valor, e com uma matéria prima
decente.
ZH – Você já tinha trabalhado com nutrição coletiva
antes?
Bruna – No Brasil é o que mais tem área, só que
nenhuma nutricionista gosta, porque é muito
administrativo. Eu trabalhei na Puras, de estagiária,
e no Hospital Conceição. Estudei na Universidade
Federal de Ciências da Saúde, então fiz três anos de
teoria e o último ano de práticas na Santa Casa. Nos
hospitais, o problema é adequar a alimentação com cada
enfermidade, e muitas vezes as pessoas estão ranzinzas
pela doença ou pela debilidade. Aqui, juntam-se todas
as nacionalidades possíveis e imaginárias: as
africanas que só querem comer a sua comida, por
exemplo. O orçamento é muito pequeno, as
nacionalidades são muitas. Eu escuto reclamação desde
a hora em que acordo. Outro dia me perguntaram como eu
definiria meu trabalho na cozinha. Resolver problema!
Eu organizo o horário das gurias que trabalham comigo.
Se elas têm vis-à-vis, tem que trocar o horário.
ZH – Além de trabalhar na cozinha, que outras
atividades você faz?
Bruna – Pintar pela manhã, passo toda a manhã na
oficina de artes plásticas. Agora, a gente está em
período de férias escolares. Antes eu estava fazendo
uma pós-graduação por internet, pela Universidade de
Barcelona, em Nutrição Comunitária. É uma pós-
graduação à distância, de um ano. Como agora não tenho
internet, porque a sala está fechada, eu acabo
passando toda a manhã no ateliê de artes plásticas.
Mas eu dividia minha manhã entre a pós-graduação e
pintar, e, pela tarde, trabalho na cozinha e na
informática, onde eu podia escrever cartas para me
comunicar com a família e escutar alguma música nossa,
MPB que eu adoro. Eu nunca vou ao pátio. É o lugar
onde eu mais me sinto no cárcere. Esse lugar me faz
muito mal, eu nunca vou ao pátio. E nunca estou no
quarto. Só para dormir. Eu sempre estou no ateliê, ou
trabalhando, ou estudando. Em preventivas estão
somente os quartos e o refeitório. No residencial
temos mesas e cadeiras, computadores para escutar
música ou jogar.
ZH – Como está sendo a sua experiência com a pós-
graduação?
Bruna – É muito autodidata. Eu recebia tudo em forma
de capítulos: a explicação, uma bibliografia muito
boa, tanto de livros como de coisas que posso buscar
por internet, e os exercícios com as respostas. Houve
dois formulários de autoavaliação, e no final de tudo
eu presto uma prova. Em outubro deste ano eu posso
prestar a prova para acabar, ou posso esperar para
fazer em fevereiro. Eu vou esperar. É um curso
particular, meu pai está pagando. Às vezes as pessoas
me veem com a pasta e ficam bastante surpresas, não
sabem que se poderia fazer isso. A sala que eu uso
para estudar é para as pessoas que estão cursando
ensino médio aqui dentro, à distância também. Tenho
acesso durante a aula de informática, sob supervisão.
Quase tudo é bloqueado, então eu uso mais para
estudar. Eu também fiz catalão por um tempo, pela
tarde, antes de trabalhar na cozinha. Sempre me
mantive muito ocupada. Nunca estou na habitação, só
vou pra dormir, de noite.
ZH – Você divide o quarto com quantas pessoas?
Bruna – Somos seis, em um espaço muito pequeno. A
gente mediu outro dia, tem mais ou menos 3 metros por
1,5 metros. Eu sou uma das poucas que já está aqui há
dois anos, e sou a única que tem uma cama há um ano e
meio. Tem uma brasileira no meu quarto, e também uma
senhora colombiana, de uns 60 anos ou mais. Como eu já
estou aí há tanto tempo, as pessoas associam como
minha casa. O espaço aqui é um tema muito forte. Mas
eu não tenho problema de convivência, não tenho
manias. Não me incomoda o barulho para dormir. Eu
gosto de limpeza, mas não sou maniática. Eu acho que
sou fácil de conviver. E no residencial temos muito
mais liberdade que as outras internas. Temos que
respeitar as horas de comida, mas as atividades são
mais livres e nos finais de semana podemos saltar o
café da manhã. Parece um colégio interno, não parece
uma prisão. Eu acho que eu entrei nesse universo
paralelo por isso.
ZH – Como é a sua relação com as outras internas?
Bruna – Eu tenho algumas coisas claras sobre isso, eu
comecei a estudar muito sobre prisões e cheguei à
conclusão de que nenhuma reabilita ninguém. Uma pessoa
que não tem uma base familiar boa, que está envolvida
em alguma drogadição, é muito difícil que saia. Sai e
volta. Mas tem muita gente que antes de entrar aqui
não tem noção do que é isso. A maioria das pessoas com
quem eu convivo está acusada de delito contra a saúde
pública, que é tráfico. A maioria é mula. Essas
pessoas não têm noção de que é um crime. A maioria das
brasileiras, por exemplo, estavam em um momento em que
precisavam muito de dinheiro: um filho estava doente,
perdeu o trabalho, e pensou, vou fazer isso pra sair
dessa merda. O tráfico é um dinheiro muito fácil. É um
ciclo vicioso. Tem muita diferença entre quem tem uma
família por trás e quem não. Eu tenho claro que não
posso sair daqui e manter contato com alguém que
trabalha com isso. Tem gente que eu tenho muito
carinho, mas eu não quero estar aqui de novo.
ZH – O seu trabalho artístico, desenvolvido aqui
dentro, foi premiado em duas ocasiões, e hoje, 6 de
setembro, você inaugura uma exposição individual em
uma galeria no centro de Barcelona. Como você define
seu trabalho artístico?
Bruna – Na Casa de Cultura Mário Quintana tem uma
oficina de artes para crianças, que eu frequentava. Eu
acho que a primeira recordação que tenho de criança é
essa. Quando eu estava nessa fase da adolescência,
tentando escolher universidade, o pai me deu muito
apoio para fazer artes plásticas. Mas eu tinha tanto
medo! O artista no Brasil – no mundo inteiro – é tão
desvalorizado. Pensei, não posso fazer uma
universidade e correr o risco de depender da minha
família. Eu sempre gostei da área da saúde, também, e
acabei fazendo nutrição. Aqui, eu entrei no ateliê de
pintura porque eu precisava de um espaço para estudar.
O monitor de artes me ofereceu a sala, porque
normalmente as pessoas estão pintando em silêncio.
Hoje eu estudo na sala de estudos de Ensino Médio.
Mas, quando vi, eu já estava em pintura. Dividi a
manhã entre a pintura e estudar. Aprendi a fazer
retratos e óleo. Meu primeiro quadro a óleo acabou
ganhando um concurso. E uma pessoa que estava no júri
pediu para ficar com o quadro. Logo depois, houve uma
visita da Direção Geral de Prisões, e essa pessoa se
apresentou, perguntou se eu tinha ficado brava. Eu sei
que tudo o que faço aqui não é meu, não produzo para
mim. Ela me disse que o quadro está no Ministério de
Justiça, no escritório dela. Meu primeiro quadro está
no Ministério da Justiça enquanto eu estou na prisão!
Eu chamava de Monstra, o quadro. É uma mulher azul e
muito triste. Eu pensei que ela é que ia ficar. Nunca
vou levar pra casa, pensei, é meu primeiro quadro, mas
vai ficar aí. Mas ela foi e eu fiquei! O segundo
concurso foi mais preparado, tinha um montão de gente
pintando. Eu apresentei uns oito quadros e uma
instalação, que ganhou. E quase tudo o que está na
exposição é aquarela, que é o que eu mais gosto no
momento.
ZH – Você escolheu algum tema para a exposição?
Bruna – Decidimos apresentar um pouco de tudo o que eu
produzi. A exposição foi uma proposta da monitora de
fotografia, a Francesca Nocivelli, e do monitor de
artes plásticas do centro, o Abel. Ela se interessou
por mim, se informou sobre o meu caso, ofereceu ajuda.
Quando sugeriu a exposição, ela queria que eu buscasse
um fio condutor, mas o Abel disse que, como não sou
profissional, poderia mostrar um pouco de tudo. Eu
gostei dessa ideia. Eu pinto muito mulheres, eu adoro
mulheres: o rosto, fotografia, eu faço muito esse
trabalho de retrato. E me perguntam porque elas são
tristes. Eu tenho dois sorrisos em dois anos
trabalhando! Eu não sei se eu sou isso ou se é porque
eu estou aqui. Tenho que sair e continuar pintando pra
saber se isso vai modificar a minha obra.
ZH – A pintura também tem um lado terapêutico para
você?
Bruna – Muito! Com tudo isso que me aconteceu, eu
nunca tive pesadelos, sempre dormi bem. Eu sonho com a
pintura, eu acordo sabendo o que eu quero pintar. Às
vezes eu vou dormir pensando em como faço para
melhorar alguma coisa, e acordo com a resposta. Eu
acho que a pintura me ajudou a sofrer muito menos. Eu
tenho muito medo de ficar com um trauma. Será? Das
áreas da nutrição eu sempre gostei de trabalhar com
pacientes com câncer, e para trabalhar nisso eu fiz
muito trabalho psicológico. Cursos aplicados à
nutrição e ao câncer. E num desses cursos eu aprendi
que na vida a gente precisa de conexões. Quando a
gente perde essa conexão com alguém muito próximo,
seja por morte, separação, prisão, passamos por um
luto. Representa a morte. Eu vivo com uma menina que
já foi presa nos Estados Unidos, onde é muito pior.
Uma coisa que me aterroriza aqui é o barulho das
chaves. Quando tu escutas o barulho de chaves, sabes
que está vindo um funcionário. Pela manhã, eles abrem
a porta para fazer a contagem, e eu acordo com o
barulho de chaves, eu vou dormir com o barulho de
chaves, e eu sei que alguém está chegando, e eu tenho
que cuidar o que estou fazendo ou falando, pra não ser
mal interpretada e punida, pelo barulho das chaves.
ZH – Você tem planos para seguir com a arte?
Bruna – Eu não sei o que vai ser do meu futuro, é
muito difícil planejar um futuro. Na verdade tem que
planejar umas cinco opções, porque tu não sabe o que
vai acontecer. Mas é como eu disse, eu sempre tive
claro que eu gostava, só queria conseguir uma
liberdade financeira para poder fazer o que eu
gostava. Eu penso em fazer uma universidade de artes
plásticas. Eu tenho a impressão de que vai ser assim
como aconteceu com a nutrição. Tu passas por diversas
áreas e pode ver o que tu realmente quer fazer. Eu
tenho sempre essa necessidade de saber todas as minhas
possibilidades. O que eu gosto mais, o que me vai
melhor, eu sigo, mas eu gosto muito de ter todo o
leque aberto. Parece que se tu tens o leque aberto, os
caminhos estão abertos.
ZH – Além da arte, o que mais te ajudou a adquirir
autoconfiança?
Bruna – Tudo me ajudou, a situação em si. Eu sempre
fui boa aluna, eu tenho um jeito carinhoso, e às vezes
eu não sabia se eu conseguia as coisas pelo meu jeito,
porque eu caía bem e as pessoas iam com a minha cara.
Eu sempre tive essa insegurança: o quanto era meu e o
quanto eu fiz por merecer. Mas se eu conseguir vencer
aqui, onde eu não vou conseguir? É um lugar bastante
duro. E às vezes eu penso: Bruna, que feio, vencer
aqui! Claro que tu vais vencer aqui! És uma das poucas
pessoas que tem uma base familiar, estudo. Mas eu
consegui por mérito: eu tenho um trabalho de
confiança, eu sou muito respeitada pelas pessoas. Eu
não tento provar a minha inocência pra ninguém, porque
isso a gente vai ver no julgamento. No começo, eu
chorava e dizia que eu não fiz isso, que eu tenho que
sair daqui. Eu demorei uma semana para tirar minhas
roupas da sacola que me deram, porque todo dia eu
esperava que alguém me chamaria, me tiraria daqui.
Depois de uma semana, eu tirei as coisas da sacola e
pensei: em um mês eu vou embora. E cada vez eu fui
aumentando esse tempo. Depois de um mês, seis meses.
Em seis meses vou aprender tudo o que tenho que
aprender, aproveitar tudo de positivo, e depois vou
embora. Depois de seis meses, um ano. Quando fez um
ano, eu disse: cinco, vou colocar o período de cinco
anos. Meu tutor me perguntava como eu conseguia estar
sempre tão bem, e eu dizia: é um dia a menos de cinco
anos. Isso tudo me deu confiança. Eu ganhei a
confiança dos funcionários também, porque a maioria
pensa que eu sou uma delinquente, como todas as
pessoas que estão aqui. Mas por algum motivo, confiam
em mim. E consigo transmitir isso, e acho que é uma
vitória, ganhar a confiança de alguém.
ZH – Você ficou 11 dias sem falar com a sua família,
porque isso aconteceu?
Bruna – Eu fui presa e sempre soube que não devia
estar presa. Quando eu chegar em casa, eu conto tudo.
Não preciso preocupar a minha família agora com isso.
Eu me dei o tempo de uma semana. Eles pensavam que eu
estava trabalhando no navio, e pensava: eu chego em
casa e a gente ri tomando chimarrão. Quando se chega
aqui, você tem direito a uma chamada para a Espanha,
não se pode fazer ligação internacional. Eu tinha que
ativar um número para poder fazer a ligação
internacional, e em uma semana poderia ligar. Mas eu
pensei que ia embora e não dei alta. Nesse meio tempo,
minha família já estava me procurando. Um dia um
funcionário me chamou e disse que o consulado tinha
entrado em contato a pedido do meu pai, que era para
eu ligar pra casa.
ZH – Em junho deste ano, você e sua família decidiram
tornar o seu caso público. Por quê?
Bruna – Eu criei um universo paralelo, e sou
consciente disso. Eu confio muito no meu pai e na mãe.
O pai sempre foi muito guerreiro, e desde que entrei
aqui ele buscou gente que pudesse me ajudar. E sempre
houve essa alternativa. Mas ele nunca quis fazer
público. O dia em que ele me perguntou se eu queria,
eu disse que ele era quem podia avaliar melhor. É meu
pai, e eu conheço meu pai. Eu não tô aí fora, eu não
sei o resultado, eu não sei a dimensão. Mas eu confio
em ti. Claro que eu tinha medo, eu tenho muito medo de
chegar no Brasil e encontrar com um monte de gente. Eu
não tenho vontade de falar sobre isso com ninguém, eu
não tenho vontade de dar explicação, eu tenho medo de
ser olhada na rua. Eu pensava que não quero ser
apontada, que falem de mim. Eu preciso conseguir um
trabalho, e tenho que sentar e estar no mesmo nível
que as outras pessoas que estão tentando conseguir
esse trabalho. Se a pessoa que está me entrevistando
sabe que fui presa, até que ponto ela vai avaliar isso
ou não, negativamente? Mas eu disse pra ele, eu confio
plenamente em ti. Depois, pensando com mais calma, dá
igual. O povo brasileiro é roubado todos os anos pelos
mesmos governantes, e quatro anos depois vota nessas
mesmas pessoas. Não vão lembrar de mim. Foi assim que
eu comecei a levar as coisas. As pessoas gostam de
notícia, gostam de fofoca, e depois esquecem.
ZH – Essa publicidade conseguiu trazer para o seu
julgamento uma comitiva formada pelo Secretário de
Justiça e Direitos Humanos do Rio Grande do Sul e
membros da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia
Legislativa, e está tornando público um tema muito
mais amplo, a exploração do trabalho nos cruzeiros e
os abusos e crimes cometidos em navios. Como você vê
isso?
Bruna – Às vezes eu começo a contar pra pessoas o que
era o trabalho no barco, e isso também me fez ter mais
facilidade para viver aqui. Alguém que trabalhou num
barco tem facilidade para viver em qualquer lugar. O
barco é pior do que estar aqui. Trabalhava 15 horas,
dormia 4 horas, quando dormia muito, e não são nem
quatro horas seguidas, porque o teu turno de trabalho
às vezes é de 7 horas de trabalho, uma hora de
descanso, 8 horas, uma hora de descanso… Nem as tuas
quatro horas de sono são seguidas. Quando eu começo a
contar, eu penso: por que eu passei por isso? Por que
alguém passa por isso? Não sei. Eu, particularmente,
sempre fui muito teimosa e tenho dificuldade de não
acabar uma coisa que comecei. É o que eu disse do
leque de opções. Tudo na minha vida eu encarei assim.
Quando eu fui trabalhar no navio, às vezes eu tinha
saudade e reclamava que estava trabalhando muito. Mas
logo pensava que parecia tão pesado porque eu nunca
tinha trabalhado assim - e meu inglês está melhorando!
Quando cheguei aqui, meu inglês estava muito bom, eu
conhecia lugares, ilhas que nunca iria conhecer. Hoje,
quando falo nisso, a balança não equilibra. É como
aqui: todo mundo está no mesmo universo. Quando
comparas com outra coisa igual, não parece tão feio.
Agora, quando comparas com uma vida normal, a gente vê
que é completamente anormal. Que é surreal. Pra mim
tudo é muito surreal: como eu aguentei estar aí? Foi
surreal o barco, é surreal isso aqui. E eu consigo
estar aqui muito bem porque eu vim desse barco. Eu não
trabalho 15 horas aqui. Eu como melhor aqui do que eu
comia lá. Claro que tem funcionários que não te tratam
como gente, mas eu sou melhor tratada aqui do que no
barco.
ZH – Que perspectivas você tinha com o trabalho no
navio?
Bruna – Em princípio eu queria fazer os oito meses de
contrato, como experiência. Eu comecei na Europa e
depois fui para o Brasil. O navio fez temporada no
Brasil e estava voltando para a Europa para depois ir
para a Ásia. Eu fiz toda a Europa na ida, e quando eu
estava no Brasil, tentei desembarcar. Mas eu tentei
ficar em Santa Catarina, e me disseram que lá era
proibido descer, porque não tem Polícia Federal ou
algum órgão necessário para poder desembarcar. Então,
não permitiram meu desembarque. Se eu desembarcasse no
Rio teria que pagar minha passagem, e eu não tinha
muito dinheiro. Eram US$ 400, o que eu recebia.
ZH – O mesmo que você ganha aqui.
Bruna – Sim, aqui eu ganho 320 euros (US$ 419). E
gasto muito menos, eu fiz poupança aqui. Num barco não
tem como juntar dinheiro. A não ser que tu não saias
do navio, como faz a maioria dos filipinos, por
exemplo. A moeda deles é muito desvalorizada, então
com o que ganham podem comprar casa, carro, tudo. Eles
são conhecidos por trabalhar muitas horas. Nos navios,
muita gente usa uma droga chamada cristal, que te
permite ficar acordado durante três dias seguidos, e
muito ativo, que é o que tem que ser para um navio.
São os melhores funcionários. Dormem um dia, outra vez
cristal, três dias de trabalho, e assim seguem. O
trabalho varia conforme a temporada. Na Europa são
super rígidos com o horário. Quando chega no Brasil,
precisam de alguém que fale português, da alegria
brasileira _ o brasileiro gosta de ser atendido por
brasileiro _, e já não são tão rígidos com o horário,
dão mais folgas. São 40 navios, e como acontece aqui,
onde eles dispõem da minha vida e podem me mandar para
outra prisão, lá eles podem me mandar para outro
navio. Esse navio em que eu estava ia para a Ásia, e
já começavam a recrutar mais asiáticos. Quando eu fui
presa tinha mais ou menos 20 brasileiros no navio.
Chegou a ter uns 50, 60. Em uma tripulação de 200
pessoas, éramos bastantes.
ZH – A sua intenção é seguir denunciando essa
situação?
Bruna – Eu, agora, tento não ter muito acesso sobre o
que está saindo. Espero que ajude a muita gente, o que
passou comigo. É uma denúncia que devia ter sido feita
antes. Acontece muita coisa feia aí, as pessoas vivem
com medo dentro de um barco. Mulheres são estupradas,
apanham. São muitas nacionalidades, e algumas culturas
ainda mais machistas do que a nossa. A menina não
denuncia porque tem medo de sofrer alguma punição,
represália. Tu é uma mulher. Que provavelmente fez
alguma coisa para merecer isso. Essa é a imagem.
ZH – Você viveu e presenciou diversas formas de
discriminação no barco. E com relação à Justiça, houve
alguma discriminação?
Bruna – No navio havia discriminação por ser mulher e
por ser brasileira. As sul-americanas em geral são
vistas como mulheres fáceis, a liberdade se confunde
com prostituição. Eu acho que é porque são mulheres
mais donas das suas vidas. Aqui eu percebo
discriminação por ser estrangeira. A gente está em um
centro de mulheres, então eu não tenho comparação para
saber como é tratado um homem. Mas como estrangeira,
eu tenho certeza que sim. Eu tenho muita facilidade de
falar com todas, me sinto muito querida. A maioria das
sul-americanas aqui têm dificuldade de se relacionar
com as africanas, pelas diferenças culturais. Eu
consigo entrar em todos os grupos, e me sinto muito
feliz por isso. E uma africana que vive aqui há 16
anos me explicava que mesmo com papéis, já tendo sido
julgada, em um caso como o meu, com muita gente, só
ela segue presa. Só ela não é europeia. Todas as
outras estão na rua. Em dois anos eu já vi muita coisa
para ter certeza de que os estrangeiros são tratados
de forma diferente, muito diferente. A xenofobia é
muito forte, aqui. Na Espanha, a pena está dividida em
quatro partes. Tu tens que estar a primeira quarta
parte aqui, em reclusão, e se desconta o período em
que você está esperando julgamento. Eu já teria
cumprido essa quarta parte se fosse condenada. Na
segunda quarta parte tu vais para seção aberta, faz
alguma coisa durante o dia fora e vem dormir. Na
terceira fase tem que vir assinar um papel a cada
quinze dias. E na quarta parte, dependendo do
comportamento e dos informes, é liberada. Um
estrangeiro sem papéis passa metade da condena dentro
da prisão e depois pode ser expulso sem poder retornar
em um período de 10 a 15 anos.
ZH – A sua defesa tentou conseguir que você esperasse
o julgamento em liberdade, havia uma família que te
receberia e diversas garantias legais. O Itamaraty
também manteve seis reuniões com representantes
espanhóis com essa intenção. Mas esse direito foi
negado pela Justiça espanhola. O que foi alegado?
Bruna – Meu pai demonstrou também que poderia me
ajudar economicamente, a família daqui me oferecia
trabalho. A justificativa do juiz foi que eu cheguei
do Brasil para embarcar em um navio na Grécia, falo
inglês, e demonstro uma grande capacidade de locomoção
internacional. O que significa que eu fugiria
facilmente do país! Porque eu tive escolaridade, falo
mais de uma língua? Por não ter vínculos aqui,
alegaram risco de fuga.
ZH – O seu julgamento começa no dia 9, segunda-feira.
Como você se sente?
Bruna – Uma coisa que eu aprendi aqui é que tudo
chega. A hora de sofrer vai chegar. Eu posso ser
condenada, e nessa hora eu vou chorar o que eu estiver
sofrendo. Uma coisa que eu tenho de casa é que a gente
brindava sempre por uma coisa boa que aconteceu
durante o dia. O dia tem 24 horas e sempre acontece
alguma coisa boa. Meu pai sempre lembra o ditado
"fazer do limão uma limonada". A gente tem que tomar
limonada! Pra que ficar com a amargura do limão se ele
tem tantas coisas boas? Tem muita vitamina C, é
antioxidante. E é isso: o julgamento, segunda-feira
começa. E se for mal, eu começo a chorar na segunda-
feira. Minha debilidade é minha família. Enquanto eles
estiverem bem, eu estou bem. Agora, ver o pai mal? Eu
acho que ter meu pai no julgamento vai ser difícil. Eu
não queria que ele passasse por isso. Eu entendo que
ele queira estar. As pessoas que eu acho que são mais
fortes aqui são pessoas que têm uma família, filhos,
vínculo familiar fora, uma base estruturada. São
pouquíssimas. Eu penso fazer universidade aqui, se eu
tiver que ficar. Eu não tenho trauma com a Espanha. Eu
gosto muito de Barcelona, que eu já conhecia. Acho uma
energia boa. Barcelona era um lugar que eu queria
voltar. Não teria problemas em viver aqui. Quero estar
com a minha família, mas quero voltar pra cá. Não
quero ter essa experiência como a última da Espanha.
Quem sabe com esse trabalho da exposição? Talvez no
Rio Grande do Sul eu seja nutricionista, e na Espanha,
uma artista.

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Entrevista - Bruna Bayer Frasson

  • 1. Zero Hora – Como é a sua rotina aqui, o seu dia-a-dia em Wad-Ras? Bruna Bayer Frasson– O centro está organizado em cinco módulos: Ingressos (Entradas), Enfermagem, Polivalente ou Residencial, Mães e Preventivas. Quando alguém chega passa os três primeiros dias em Ingressos, se habituando a horários, ao relevo - à contagem: pela manhã, contam quantas pessoas tem dentro do quarto, e daí a porta já fica aberta para fazer as atividades previstas. Às 7h30, abrem a porta. Cada módulo tem um horário de café da manhã. Atualmente, eu tomo café às 8h. E, às 9h30, todo mundo tem que estar pronto para as atividades, não deve ter ninguém dentro das habitações. Às 13h é o almoço, e, às 14h30, fazem outra contagem. As gurias que estão em Preventivas são trancadas outra vez no quarto, até as 16h, quando saem de novo para atividades. No Residencial, não fecham os quartos, e no Módulo de Mães elas nunca estão trancadas porque estão com as crianças. ZH – Você agora está no residencial? Bruna –De Ingressos passei para Preventivas, onde fiquei só o primeiro mês. Em dois anos, quase dois anos, minha rotina mudou bastante. Eu tinha muito medo de todo mundo, eu nem olhava para as pessoas. Eu só lia. No primeiro mês aqui, eu li trinta livros, eu só lia. Não falava com ninguém. Eu não conseguia dormir, pensando, então eu preferia ler a ficar chorando ou pensando. Era obrigada a descer para o pátio, e eu sempre estava lendo. Eu passava muito tempo na biblioteca, conheci o bibliotecário, Luis, e comecei a trabalhar na biblioteca, pela tarde. Então no primeiro mês eu já estava trabalhando – para te darem um trabalho aqui demoram normalmente uns seis meses. Também comecei a fazer um curso no salão de beleza, de cabeleireira. Aprendi a cortar e a fazer chapinha. E logo me subiram para residencial, onde se supõe que estão as pessoas com bom comportamento, que não têm problemas, antecedentes. Tardam uns quatro meses para transferir alguém para ali, eu entrei no primeiro mês. ZH –E, atualmente, você é uma das responsáveis pela cozinha do centro. Bruna – Com o Luis, na biblioteca, estive um ou dois meses, e logo comecei a trabalhar na administração, que é um trabalho de confiança. Não é administração do Centro, é organizar e distribuir o material de limpeza
  • 2. e de escritório entre os módulos. Toda quarta-feira, cada cabo – as responsáveis de cada módulo – entrega uma lista do que precisam, e a administração é responsável por recolher esse papel, descer aos armazéns e distribuir o material entre os módulos. Quando se organizava alguma festa, ajudava a montar as mesas, essas coisas. Fiquei trabalhando nisso quatro meses, mais ou menos. Nesse momento, todo o serviço de cozinha foi assumido pelo CIRE (Centre d'Iniciatives per a laReinserció - Centro de Iniciativas para a Reinserção), um órgão do governo catalão responsável por todos os talleres (oficinas de trabalho remunerado) do centro. E me propuseram ser encarregada de cozinha. Já me conheciam, o pai tinha estado aqui, tinha dado meu currículo para a administradora. Para a cafeteira dos funcionários, eu só seleciono a matéria prima, recebo a nota fiscal e coloco a informação do que entra e sai no computador. Com a cozinha das internas é um contato mais direto. É mais administrativo, também, como nutricionista de alimentação coletiva no Brasil. Dou entrada em todas as notas fiscais, organizo o que entra e o que vai sair. Desde o custo, que não pode passar de 3,90 euros por pessoa. Para as três refeições, por dia. É muito pouco. E eu tenho que manter esse custo, organizar o menu– café da manhã, almoço e janta, com sobremesa e frutas – dentro desse valor, e com uma matéria prima decente. ZH – Você já tinha trabalhado com nutrição coletiva antes? Bruna – No Brasil é o que mais tem área, só que nenhuma nutricionista gosta, porque é muito administrativo. Eu trabalhei na Puras, de estagiária, e no Hospital Conceição. Estudei na Universidade Federal de Ciências da Saúde, então fiz três anos de teoria e o último ano de práticas na Santa Casa. Nos hospitais, o problema é adequar a alimentação com cada enfermidade, e muitas vezes as pessoas estão ranzinzas pela doença ou pela debilidade. Aqui, juntam-se todas as nacionalidades possíveis e imaginárias: as africanas que só querem comer a sua comida, por exemplo. O orçamento é muito pequeno, as nacionalidades são muitas. Eu escuto reclamação desde a hora em que acordo. Outro dia me perguntaram como eu
  • 3. definiria meu trabalho na cozinha. Resolver problema! Eu organizo o horário das gurias que trabalham comigo. Se elas têm vis-à-vis, tem que trocar o horário. ZH – Além de trabalhar na cozinha, que outras atividades você faz? Bruna – Pintar pela manhã, passo toda a manhã na oficina de artes plásticas. Agora, a gente está em período de férias escolares. Antes eu estava fazendo uma pós-graduação por internet, pela Universidade de Barcelona, em Nutrição Comunitária. É uma pós- graduação à distância, de um ano. Como agora não tenho internet, porque a sala está fechada, eu acabo passando toda a manhã no ateliê de artes plásticas. Mas eu dividia minha manhã entre a pós-graduação e pintar, e, pela tarde, trabalho na cozinha e na informática, onde eu podia escrever cartas para me comunicar com a família e escutar alguma música nossa, MPB que eu adoro. Eu nunca vou ao pátio. É o lugar onde eu mais me sinto no cárcere. Esse lugar me faz muito mal, eu nunca vou ao pátio. E nunca estou no quarto. Só para dormir. Eu sempre estou no ateliê, ou trabalhando, ou estudando. Em preventivas estão somente os quartos e o refeitório. No residencial temos mesas e cadeiras, computadores para escutar música ou jogar. ZH – Como está sendo a sua experiência com a pós- graduação? Bruna – É muito autodidata. Eu recebia tudo em forma de capítulos: a explicação, uma bibliografia muito boa, tanto de livros como de coisas que posso buscar por internet, e os exercícios com as respostas. Houve dois formulários de autoavaliação, e no final de tudo eu presto uma prova. Em outubro deste ano eu posso prestar a prova para acabar, ou posso esperar para fazer em fevereiro. Eu vou esperar. É um curso particular, meu pai está pagando. Às vezes as pessoas me veem com a pasta e ficam bastante surpresas, não sabem que se poderia fazer isso. A sala que eu uso para estudar é para as pessoas que estão cursando ensino médio aqui dentro, à distância também. Tenho acesso durante a aula de informática, sob supervisão. Quase tudo é bloqueado, então eu uso mais para estudar. Eu também fiz catalão por um tempo, pela tarde, antes de trabalhar na cozinha. Sempre me
  • 4. mantive muito ocupada. Nunca estou na habitação, só vou pra dormir, de noite. ZH – Você divide o quarto com quantas pessoas? Bruna – Somos seis, em um espaço muito pequeno. A gente mediu outro dia, tem mais ou menos 3 metros por 1,5 metros. Eu sou uma das poucas que já está aqui há dois anos, e sou a única que tem uma cama há um ano e meio. Tem uma brasileira no meu quarto, e também uma senhora colombiana, de uns 60 anos ou mais. Como eu já estou aí há tanto tempo, as pessoas associam como minha casa. O espaço aqui é um tema muito forte. Mas eu não tenho problema de convivência, não tenho manias. Não me incomoda o barulho para dormir. Eu gosto de limpeza, mas não sou maniática. Eu acho que sou fácil de conviver. E no residencial temos muito mais liberdade que as outras internas. Temos que respeitar as horas de comida, mas as atividades são mais livres e nos finais de semana podemos saltar o café da manhã. Parece um colégio interno, não parece uma prisão. Eu acho que eu entrei nesse universo paralelo por isso. ZH – Como é a sua relação com as outras internas? Bruna – Eu tenho algumas coisas claras sobre isso, eu comecei a estudar muito sobre prisões e cheguei à conclusão de que nenhuma reabilita ninguém. Uma pessoa que não tem uma base familiar boa, que está envolvida em alguma drogadição, é muito difícil que saia. Sai e volta. Mas tem muita gente que antes de entrar aqui não tem noção do que é isso. A maioria das pessoas com quem eu convivo está acusada de delito contra a saúde pública, que é tráfico. A maioria é mula. Essas pessoas não têm noção de que é um crime. A maioria das brasileiras, por exemplo, estavam em um momento em que precisavam muito de dinheiro: um filho estava doente, perdeu o trabalho, e pensou, vou fazer isso pra sair dessa merda. O tráfico é um dinheiro muito fácil. É um ciclo vicioso. Tem muita diferença entre quem tem uma família por trás e quem não. Eu tenho claro que não posso sair daqui e manter contato com alguém que trabalha com isso. Tem gente que eu tenho muito carinho, mas eu não quero estar aqui de novo. ZH – O seu trabalho artístico, desenvolvido aqui dentro, foi premiado em duas ocasiões, e hoje, 6 de setembro, você inaugura uma exposição individual em
  • 5. uma galeria no centro de Barcelona. Como você define seu trabalho artístico? Bruna – Na Casa de Cultura Mário Quintana tem uma oficina de artes para crianças, que eu frequentava. Eu acho que a primeira recordação que tenho de criança é essa. Quando eu estava nessa fase da adolescência, tentando escolher universidade, o pai me deu muito apoio para fazer artes plásticas. Mas eu tinha tanto medo! O artista no Brasil – no mundo inteiro – é tão desvalorizado. Pensei, não posso fazer uma universidade e correr o risco de depender da minha família. Eu sempre gostei da área da saúde, também, e acabei fazendo nutrição. Aqui, eu entrei no ateliê de pintura porque eu precisava de um espaço para estudar. O monitor de artes me ofereceu a sala, porque normalmente as pessoas estão pintando em silêncio. Hoje eu estudo na sala de estudos de Ensino Médio. Mas, quando vi, eu já estava em pintura. Dividi a manhã entre a pintura e estudar. Aprendi a fazer retratos e óleo. Meu primeiro quadro a óleo acabou ganhando um concurso. E uma pessoa que estava no júri pediu para ficar com o quadro. Logo depois, houve uma visita da Direção Geral de Prisões, e essa pessoa se apresentou, perguntou se eu tinha ficado brava. Eu sei que tudo o que faço aqui não é meu, não produzo para mim. Ela me disse que o quadro está no Ministério de Justiça, no escritório dela. Meu primeiro quadro está no Ministério da Justiça enquanto eu estou na prisão! Eu chamava de Monstra, o quadro. É uma mulher azul e muito triste. Eu pensei que ela é que ia ficar. Nunca vou levar pra casa, pensei, é meu primeiro quadro, mas vai ficar aí. Mas ela foi e eu fiquei! O segundo concurso foi mais preparado, tinha um montão de gente pintando. Eu apresentei uns oito quadros e uma instalação, que ganhou. E quase tudo o que está na exposição é aquarela, que é o que eu mais gosto no momento. ZH – Você escolheu algum tema para a exposição? Bruna – Decidimos apresentar um pouco de tudo o que eu produzi. A exposição foi uma proposta da monitora de fotografia, a Francesca Nocivelli, e do monitor de artes plásticas do centro, o Abel. Ela se interessou por mim, se informou sobre o meu caso, ofereceu ajuda. Quando sugeriu a exposição, ela queria que eu buscasse um fio condutor, mas o Abel disse que, como não sou profissional, poderia mostrar um pouco de tudo. Eu
  • 6. gostei dessa ideia. Eu pinto muito mulheres, eu adoro mulheres: o rosto, fotografia, eu faço muito esse trabalho de retrato. E me perguntam porque elas são tristes. Eu tenho dois sorrisos em dois anos trabalhando! Eu não sei se eu sou isso ou se é porque eu estou aqui. Tenho que sair e continuar pintando pra saber se isso vai modificar a minha obra. ZH – A pintura também tem um lado terapêutico para você? Bruna – Muito! Com tudo isso que me aconteceu, eu nunca tive pesadelos, sempre dormi bem. Eu sonho com a pintura, eu acordo sabendo o que eu quero pintar. Às vezes eu vou dormir pensando em como faço para melhorar alguma coisa, e acordo com a resposta. Eu acho que a pintura me ajudou a sofrer muito menos. Eu tenho muito medo de ficar com um trauma. Será? Das áreas da nutrição eu sempre gostei de trabalhar com pacientes com câncer, e para trabalhar nisso eu fiz muito trabalho psicológico. Cursos aplicados à nutrição e ao câncer. E num desses cursos eu aprendi que na vida a gente precisa de conexões. Quando a gente perde essa conexão com alguém muito próximo, seja por morte, separação, prisão, passamos por um luto. Representa a morte. Eu vivo com uma menina que já foi presa nos Estados Unidos, onde é muito pior. Uma coisa que me aterroriza aqui é o barulho das chaves. Quando tu escutas o barulho de chaves, sabes que está vindo um funcionário. Pela manhã, eles abrem a porta para fazer a contagem, e eu acordo com o barulho de chaves, eu vou dormir com o barulho de chaves, e eu sei que alguém está chegando, e eu tenho que cuidar o que estou fazendo ou falando, pra não ser mal interpretada e punida, pelo barulho das chaves. ZH – Você tem planos para seguir com a arte? Bruna – Eu não sei o que vai ser do meu futuro, é muito difícil planejar um futuro. Na verdade tem que planejar umas cinco opções, porque tu não sabe o que vai acontecer. Mas é como eu disse, eu sempre tive claro que eu gostava, só queria conseguir uma liberdade financeira para poder fazer o que eu gostava. Eu penso em fazer uma universidade de artes plásticas. Eu tenho a impressão de que vai ser assim como aconteceu com a nutrição. Tu passas por diversas áreas e pode ver o que tu realmente quer fazer. Eu tenho sempre essa necessidade de saber todas as minhas
  • 7. possibilidades. O que eu gosto mais, o que me vai melhor, eu sigo, mas eu gosto muito de ter todo o leque aberto. Parece que se tu tens o leque aberto, os caminhos estão abertos. ZH – Além da arte, o que mais te ajudou a adquirir autoconfiança? Bruna – Tudo me ajudou, a situação em si. Eu sempre fui boa aluna, eu tenho um jeito carinhoso, e às vezes eu não sabia se eu conseguia as coisas pelo meu jeito, porque eu caía bem e as pessoas iam com a minha cara. Eu sempre tive essa insegurança: o quanto era meu e o quanto eu fiz por merecer. Mas se eu conseguir vencer aqui, onde eu não vou conseguir? É um lugar bastante duro. E às vezes eu penso: Bruna, que feio, vencer aqui! Claro que tu vais vencer aqui! És uma das poucas pessoas que tem uma base familiar, estudo. Mas eu consegui por mérito: eu tenho um trabalho de confiança, eu sou muito respeitada pelas pessoas. Eu não tento provar a minha inocência pra ninguém, porque isso a gente vai ver no julgamento. No começo, eu chorava e dizia que eu não fiz isso, que eu tenho que sair daqui. Eu demorei uma semana para tirar minhas roupas da sacola que me deram, porque todo dia eu esperava que alguém me chamaria, me tiraria daqui. Depois de uma semana, eu tirei as coisas da sacola e pensei: em um mês eu vou embora. E cada vez eu fui aumentando esse tempo. Depois de um mês, seis meses. Em seis meses vou aprender tudo o que tenho que aprender, aproveitar tudo de positivo, e depois vou embora. Depois de seis meses, um ano. Quando fez um ano, eu disse: cinco, vou colocar o período de cinco anos. Meu tutor me perguntava como eu conseguia estar sempre tão bem, e eu dizia: é um dia a menos de cinco anos. Isso tudo me deu confiança. Eu ganhei a confiança dos funcionários também, porque a maioria pensa que eu sou uma delinquente, como todas as pessoas que estão aqui. Mas por algum motivo, confiam em mim. E consigo transmitir isso, e acho que é uma vitória, ganhar a confiança de alguém. ZH – Você ficou 11 dias sem falar com a sua família, porque isso aconteceu? Bruna – Eu fui presa e sempre soube que não devia estar presa. Quando eu chegar em casa, eu conto tudo. Não preciso preocupar a minha família agora com isso. Eu me dei o tempo de uma semana. Eles pensavam que eu
  • 8. estava trabalhando no navio, e pensava: eu chego em casa e a gente ri tomando chimarrão. Quando se chega aqui, você tem direito a uma chamada para a Espanha, não se pode fazer ligação internacional. Eu tinha que ativar um número para poder fazer a ligação internacional, e em uma semana poderia ligar. Mas eu pensei que ia embora e não dei alta. Nesse meio tempo, minha família já estava me procurando. Um dia um funcionário me chamou e disse que o consulado tinha entrado em contato a pedido do meu pai, que era para eu ligar pra casa. ZH – Em junho deste ano, você e sua família decidiram tornar o seu caso público. Por quê? Bruna – Eu criei um universo paralelo, e sou consciente disso. Eu confio muito no meu pai e na mãe. O pai sempre foi muito guerreiro, e desde que entrei aqui ele buscou gente que pudesse me ajudar. E sempre houve essa alternativa. Mas ele nunca quis fazer público. O dia em que ele me perguntou se eu queria, eu disse que ele era quem podia avaliar melhor. É meu pai, e eu conheço meu pai. Eu não tô aí fora, eu não sei o resultado, eu não sei a dimensão. Mas eu confio em ti. Claro que eu tinha medo, eu tenho muito medo de chegar no Brasil e encontrar com um monte de gente. Eu não tenho vontade de falar sobre isso com ninguém, eu não tenho vontade de dar explicação, eu tenho medo de ser olhada na rua. Eu pensava que não quero ser apontada, que falem de mim. Eu preciso conseguir um trabalho, e tenho que sentar e estar no mesmo nível que as outras pessoas que estão tentando conseguir esse trabalho. Se a pessoa que está me entrevistando sabe que fui presa, até que ponto ela vai avaliar isso ou não, negativamente? Mas eu disse pra ele, eu confio plenamente em ti. Depois, pensando com mais calma, dá igual. O povo brasileiro é roubado todos os anos pelos mesmos governantes, e quatro anos depois vota nessas mesmas pessoas. Não vão lembrar de mim. Foi assim que eu comecei a levar as coisas. As pessoas gostam de notícia, gostam de fofoca, e depois esquecem. ZH – Essa publicidade conseguiu trazer para o seu julgamento uma comitiva formada pelo Secretário de Justiça e Direitos Humanos do Rio Grande do Sul e membros da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa, e está tornando público um tema muito mais amplo, a exploração do trabalho nos cruzeiros e
  • 9. os abusos e crimes cometidos em navios. Como você vê isso? Bruna – Às vezes eu começo a contar pra pessoas o que era o trabalho no barco, e isso também me fez ter mais facilidade para viver aqui. Alguém que trabalhou num barco tem facilidade para viver em qualquer lugar. O barco é pior do que estar aqui. Trabalhava 15 horas, dormia 4 horas, quando dormia muito, e não são nem quatro horas seguidas, porque o teu turno de trabalho às vezes é de 7 horas de trabalho, uma hora de descanso, 8 horas, uma hora de descanso… Nem as tuas quatro horas de sono são seguidas. Quando eu começo a contar, eu penso: por que eu passei por isso? Por que alguém passa por isso? Não sei. Eu, particularmente, sempre fui muito teimosa e tenho dificuldade de não acabar uma coisa que comecei. É o que eu disse do leque de opções. Tudo na minha vida eu encarei assim. Quando eu fui trabalhar no navio, às vezes eu tinha saudade e reclamava que estava trabalhando muito. Mas logo pensava que parecia tão pesado porque eu nunca tinha trabalhado assim - e meu inglês está melhorando! Quando cheguei aqui, meu inglês estava muito bom, eu conhecia lugares, ilhas que nunca iria conhecer. Hoje, quando falo nisso, a balança não equilibra. É como aqui: todo mundo está no mesmo universo. Quando comparas com outra coisa igual, não parece tão feio. Agora, quando comparas com uma vida normal, a gente vê que é completamente anormal. Que é surreal. Pra mim tudo é muito surreal: como eu aguentei estar aí? Foi surreal o barco, é surreal isso aqui. E eu consigo estar aqui muito bem porque eu vim desse barco. Eu não trabalho 15 horas aqui. Eu como melhor aqui do que eu comia lá. Claro que tem funcionários que não te tratam como gente, mas eu sou melhor tratada aqui do que no barco. ZH – Que perspectivas você tinha com o trabalho no navio? Bruna – Em princípio eu queria fazer os oito meses de contrato, como experiência. Eu comecei na Europa e depois fui para o Brasil. O navio fez temporada no Brasil e estava voltando para a Europa para depois ir para a Ásia. Eu fiz toda a Europa na ida, e quando eu estava no Brasil, tentei desembarcar. Mas eu tentei ficar em Santa Catarina, e me disseram que lá era proibido descer, porque não tem Polícia Federal ou algum órgão necessário para poder desembarcar. Então,
  • 10. não permitiram meu desembarque. Se eu desembarcasse no Rio teria que pagar minha passagem, e eu não tinha muito dinheiro. Eram US$ 400, o que eu recebia. ZH – O mesmo que você ganha aqui. Bruna – Sim, aqui eu ganho 320 euros (US$ 419). E gasto muito menos, eu fiz poupança aqui. Num barco não tem como juntar dinheiro. A não ser que tu não saias do navio, como faz a maioria dos filipinos, por exemplo. A moeda deles é muito desvalorizada, então com o que ganham podem comprar casa, carro, tudo. Eles são conhecidos por trabalhar muitas horas. Nos navios, muita gente usa uma droga chamada cristal, que te permite ficar acordado durante três dias seguidos, e muito ativo, que é o que tem que ser para um navio. São os melhores funcionários. Dormem um dia, outra vez cristal, três dias de trabalho, e assim seguem. O trabalho varia conforme a temporada. Na Europa são super rígidos com o horário. Quando chega no Brasil, precisam de alguém que fale português, da alegria brasileira _ o brasileiro gosta de ser atendido por brasileiro _, e já não são tão rígidos com o horário, dão mais folgas. São 40 navios, e como acontece aqui, onde eles dispõem da minha vida e podem me mandar para outra prisão, lá eles podem me mandar para outro navio. Esse navio em que eu estava ia para a Ásia, e já começavam a recrutar mais asiáticos. Quando eu fui presa tinha mais ou menos 20 brasileiros no navio. Chegou a ter uns 50, 60. Em uma tripulação de 200 pessoas, éramos bastantes. ZH – A sua intenção é seguir denunciando essa situação? Bruna – Eu, agora, tento não ter muito acesso sobre o que está saindo. Espero que ajude a muita gente, o que passou comigo. É uma denúncia que devia ter sido feita antes. Acontece muita coisa feia aí, as pessoas vivem com medo dentro de um barco. Mulheres são estupradas, apanham. São muitas nacionalidades, e algumas culturas ainda mais machistas do que a nossa. A menina não denuncia porque tem medo de sofrer alguma punição, represália. Tu é uma mulher. Que provavelmente fez alguma coisa para merecer isso. Essa é a imagem.
  • 11. ZH – Você viveu e presenciou diversas formas de discriminação no barco. E com relação à Justiça, houve alguma discriminação? Bruna – No navio havia discriminação por ser mulher e por ser brasileira. As sul-americanas em geral são vistas como mulheres fáceis, a liberdade se confunde com prostituição. Eu acho que é porque são mulheres mais donas das suas vidas. Aqui eu percebo discriminação por ser estrangeira. A gente está em um centro de mulheres, então eu não tenho comparação para saber como é tratado um homem. Mas como estrangeira, eu tenho certeza que sim. Eu tenho muita facilidade de falar com todas, me sinto muito querida. A maioria das sul-americanas aqui têm dificuldade de se relacionar com as africanas, pelas diferenças culturais. Eu consigo entrar em todos os grupos, e me sinto muito feliz por isso. E uma africana que vive aqui há 16 anos me explicava que mesmo com papéis, já tendo sido julgada, em um caso como o meu, com muita gente, só ela segue presa. Só ela não é europeia. Todas as outras estão na rua. Em dois anos eu já vi muita coisa para ter certeza de que os estrangeiros são tratados de forma diferente, muito diferente. A xenofobia é muito forte, aqui. Na Espanha, a pena está dividida em quatro partes. Tu tens que estar a primeira quarta parte aqui, em reclusão, e se desconta o período em que você está esperando julgamento. Eu já teria cumprido essa quarta parte se fosse condenada. Na segunda quarta parte tu vais para seção aberta, faz alguma coisa durante o dia fora e vem dormir. Na terceira fase tem que vir assinar um papel a cada quinze dias. E na quarta parte, dependendo do comportamento e dos informes, é liberada. Um estrangeiro sem papéis passa metade da condena dentro da prisão e depois pode ser expulso sem poder retornar em um período de 10 a 15 anos. ZH – A sua defesa tentou conseguir que você esperasse o julgamento em liberdade, havia uma família que te receberia e diversas garantias legais. O Itamaraty também manteve seis reuniões com representantes espanhóis com essa intenção. Mas esse direito foi negado pela Justiça espanhola. O que foi alegado? Bruna – Meu pai demonstrou também que poderia me ajudar economicamente, a família daqui me oferecia trabalho. A justificativa do juiz foi que eu cheguei do Brasil para embarcar em um navio na Grécia, falo
  • 12. inglês, e demonstro uma grande capacidade de locomoção internacional. O que significa que eu fugiria facilmente do país! Porque eu tive escolaridade, falo mais de uma língua? Por não ter vínculos aqui, alegaram risco de fuga. ZH – O seu julgamento começa no dia 9, segunda-feira. Como você se sente? Bruna – Uma coisa que eu aprendi aqui é que tudo chega. A hora de sofrer vai chegar. Eu posso ser condenada, e nessa hora eu vou chorar o que eu estiver sofrendo. Uma coisa que eu tenho de casa é que a gente brindava sempre por uma coisa boa que aconteceu durante o dia. O dia tem 24 horas e sempre acontece alguma coisa boa. Meu pai sempre lembra o ditado "fazer do limão uma limonada". A gente tem que tomar limonada! Pra que ficar com a amargura do limão se ele tem tantas coisas boas? Tem muita vitamina C, é antioxidante. E é isso: o julgamento, segunda-feira começa. E se for mal, eu começo a chorar na segunda- feira. Minha debilidade é minha família. Enquanto eles estiverem bem, eu estou bem. Agora, ver o pai mal? Eu acho que ter meu pai no julgamento vai ser difícil. Eu não queria que ele passasse por isso. Eu entendo que ele queira estar. As pessoas que eu acho que são mais fortes aqui são pessoas que têm uma família, filhos, vínculo familiar fora, uma base estruturada. São pouquíssimas. Eu penso fazer universidade aqui, se eu tiver que ficar. Eu não tenho trauma com a Espanha. Eu gosto muito de Barcelona, que eu já conhecia. Acho uma energia boa. Barcelona era um lugar que eu queria voltar. Não teria problemas em viver aqui. Quero estar com a minha família, mas quero voltar pra cá. Não quero ter essa experiência como a última da Espanha. Quem sabe com esse trabalho da exposição? Talvez no Rio Grande do Sul eu seja nutricionista, e na Espanha, uma artista.