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VIA CAMPESINA DO BRASIL
UM REFERENCIAL PARA
O CAMPESINATO NO BRASIL
(versão preliminar)
CURITIBA, MAIO DE 2004
INDICE
Prefácio.....3
1. Camponeses no capitalismo.....4
1.1 . Controvérsia central.....4
1.2 . Controvérsia no Brasil....8
1.3 . O fim do campesinato? (Bernardo Mançano Fernandes)....12
2. Atualidade do campesinato no Brasil.....14
2.1. Classificação por critério de oportunidade.....14
2.2. Dados básicos.....20
3. Diversidade do campesinato..... 22
3.1. Multiplicidade de situações.....22
3.2. Campesinato paraense (Jean Hebette)....24
3.3. Os pescadores de pequena escala no Pará (Maria Cristina Maneschy).....32
3.4. Territorialidades tradicionais e perspectivas de sustentabilidade nos Cerrados
(Carlos Eduardo Mazzetto da Silva).....35
3.5. O Eldorado do Brasil Central: ambiente, democracia e saberes populares no
Cerrado (Ricardo Ferreira Ribeiro).....48
4. Um novo referencial teórico.....54
4.1. Modo de ser e de viver: uma utopia camponesa?.....55
4.2. Uma teoria econômica do campesinato (Francisco Assis Costa)....63
4.3. Dimensão sociológica e política.....74
4.3.1. Elementos do padrão reprodutivo do campesinato.....74
4.3.2. A importância dos novos referenciais sociais para o campesinato (Horacio
Martins de Carvalho)..... 76
4.4. Dimensão ecológica (Marcos Flávio da Silva Borba).....81
4.5. Dimensão tecnológica e agroecológica..... 86
4.5.1. Mudanças na matriz e nas práticas de produção (Horacio Martins de
Carvalho).....87
4.5.2. Transição agroecológica (Silvio Gomes de Almeida e Gabriel Bianconi
Fernandes) .....89
5. Literatura citada.....93
2
PREFÁCIO
Está-se entrando no século XXI, segundo o calendário hegemônico no mundo
ocidental, e os camponeses não dão sinais de que poderão deixar de marcar presença ativa
nas formações econômicas e sociais em todas as partes do mundo.
Com maior ou menor relevância econômica, social e política, e se reproduzindo
socialmente sob centenas de formas de vida social, os camponeses afirmam e reafirmam
seus modos de ser e de viver, marcando diferenças com relação aos estilos de vida
dominantes e com as formas de conceber as suas relações sociais de produção e aquelas
com a natureza.
Porque estão sempre presentes na história, os camponeses têm sido objeto das mais
diversas interpretações teóricas e de um sem número de predições sobre o seu destino. A
ampla gama de paixões políticas controversas que desperta o seu modo de ser e de viver
nos vários períodos do desenrolar da história moderna até nossos dias, em particular a partir
do desenvolvimento do modo de produção capitalista, exige de todos os interessados no seu
conhecimento e na sua transformação que se resgate continuadamente os pontos teóricos
mais polêmicos com respeito à sua reprodução social.
Enquanto um texto1
, entre diversos outros, para estudo e debate no interior da Via
Campesina do Brasil – Via, este documento objetiva ressaltar alguns aspectos do debate
teórico e da atualidade da questão camponesa no Brasil, de maneira que sirva de motivação
para o aprofundamento de estudos sobre a matéria e de subsídio para a formulação de
estratégias de médio e longo prazo para as ações da Via de apoio e de desenvolvimento da
reprodução social do campesinato no Brasil.
Por esses motivos é que se utilizou o expediente “citações longas” de textos
considerados de referência, alguns de caráter teórico outros de estudos empíricos, para que
servisse de base de estudo e reflexão e de encaminhamento para as obras originais dos
autores citados.
Por outro lado, e como corolário dessa forma de informação sobre conhecimentos
gerados, este texto tem como objetivo delimitar, ainda que de maneira preliminar, os
marcos conceituais, a atualidade e a diversidade do campesinato no Brasil. Pretende, num
esforço continuado, iniciar a construção de um novo referencial teórico para dar conta da
reprodução social do campesinato no Brasil.
1
Este documento foi organizado por Horacio Martins de Carvalho após as sugestões resultantes de seminário
de representantes da Via Campesina do Brasil e técnicos convidados, realizado em Florianópolis nos dias 19 e
20 de abril de 2004.
3
Este texto adota uma abordagem teórica, conforme apresentado na seção 4, adiante,
cuja referência é a releitura contemporânea das teorias de Chayanov acrescidas das
dimensões sociológica, política e ecológica em debate na atualidade.
1. CAMPONESES NO CAPITALISMO
1.1. Controvérsia central
Há, uma passagem na obra “Marxismo e Agricultura: o Camponês Polonês”, de
Jerzy Tepicht (1973), que provoca de imediato a reflexão e estimula o debate sobre a
atualidade do campesinato. Tepicht (idem: 17-18) afirma:
“(...) Nós falaremos aqui da economia camponesa como de um modo de produção,
este termo sendo tomado num sentido próximo daquele ‘marxiano’2
, ou seja, o conjunto
coerente e distinto de forças produtivas e relações de produção entre os homens. Se nossa
acepção não é senão ‘próxima’ daquela de Marx, é que de fato Marx e seus numerosos
discípulos aplicam este termo só ocasionalmente à economia, e por isso (:) é utilizado junto
àquele de formação econômica, conjunto que deve conter toda uma estrutura de classe, com
uma classe dominante na escala da sociedade global, e toda uma superestrutura, sobretudo
política. Ora, o modo de produção camponês, tal como nós o compreendemos aqui, não é
gerador de uma formação particular, ele se incrusta numa série de formações, ele se adapta,
interioriza a seu modo as leis econômicas de cada uma delas e deixa, ao mesmo tempo, com
maior ou menor intensidade, em cada uma delas a sua marca. É aí que reside, na nossa
opinião, o segredo da surpreendente longevidade que inspiraram as predições sobre a sua
perenidade. A maior parte dos marxistas prediz, ao contrário, o sabemos, uma
decomposição rápida (...)
(...) mas seu modo de inserção no capitalismo é particular: inclusive no seu sistema
de circulação sangüínea, o mercado, ela [forma de vida social]3
continua a amadurecer,
depois a envelhecer como um ser à parte, com seus próprios princípios de existência, que
ela transporta mesmo no seio das economias socialistas, tais como elas se apresentam ao
menos até aqui. Ela forma no seio destas economias um setor econômico ‘não como os
outros’, o que admite explicitamente ou implicitamente os princípios de organização, de
trocas intersetoriais, de direção planificada --- a despeito de todas as tendências desta à
uniformização.”
A aludida predição dos marxistas, para a decomposição do campesinato,
anteriormente referida por Tepicht, pode ser aclarada pelos comentários de Costa (1994: 7-
11):
“Marx era particularmente pessimista em relação ao futuro do campesinato no
capitalismo. Sua análise, para aí desembocar, supõe que a relação campesinato/capitalismo
2
Conforme Tepicht (nota de rodapé 1 à p.17): “nós leremos neste livro (a expressão) ‘marxiano’ (marxien)
cada vez que se trata de sublinhar que um pensamento, fórmula ou abordagem é do próprio Marx; ‘marxista’
quando a distinção entre Marx e seus discípulos não nos parece necessária.”
3
As anotações entre colchetes que aparecerão daqui em diante são do organizador deste documento.
4
far-se-ia sob condições particulares estabelecidas tanto no plano da distribuição quanto no
plano da troca enquanto instâncias mediadoras distintas da produção e do consumo.”
“No plano da distribuição, a forma de produzir camponesa caracterizar-se-ia por
entregar de graça parte do trabalho excedente por ela produzida para a sociedade (Marx,
1985: 923-924). Tal afirmativa funda-se na constatação de uma especificidade dos
camponeses quando comparados aos empresários capitalistas: eles não param de concorrer
entre si enquanto o lucro e a renda da terra estão sendo corroídos por preços de mercado
sistematicamente abaixo do valor, mantendo-se produtivos mesmo quando o seu
rendimento equipara-se apenas ao salário médio de mercado, ou mesmo, se situa abaixo
deste (idem: 923) Tal forma de produzir não poderia, assim, absorver os progressos
tecnológicos necessários ao enfrentamento das empresas capitalistas, compulsivamente
inovadoras na busca concorrencial do lucro (ibidem: 924) (...) No plano da distribuição,
pois, estabelece-se uma exploração não localizável, sistêmica (...)”
“(...) No plano da troca, Marx enfatiza a mediação do capital mercantil e usurário
como bloqueadora do desenvolvimento técnico dos camponeses (...)”
“[As dificuldades das unidades camponeses quanto ao investimento e, portanto,
quanto à sua capacidade de permanência, estão relacionadas com o aumento ou diminuição
da taxa de lucro do capital mercantil assim como com a maior ou menor deterioração das
relações de troca, esta expressa pela relação entre o valor médio de mercado do produto
camponês e uma ponderação dos valores médios dos produtos industriais consumidos pelos
camponeses]4
.”
“(...) A teoria de Marx, nesta matéria [problemas do campesinato no capitalismo],
poderia ser resumida como segue: acossadas por suas contradições mediante o mercado
(concorrência além do limite que permitiria a incorporação na unidade de produção
camponesa do sobre-trabalho por ela gerado) e exauridas pelas formas ‘anti-diluvianas’ de
capital as estruturas camponesas sucumbiriam inexoravelmente, uma vez que sua
produtividade, pela ausência de formação de capital, tenderia a cair continuadamente, ou,
na melhor das hipóteses, se estável, tenderia a se confrontar com uma produtividade média
crescente para o conjunto da produção (derivada tão somente da cada vez mais presente
produção capitalista) aumentando inexoravelmente ω (relação que mede a desproporção
entre produtividade local e nacional) e a exploração α (taxa de exploração tendencial maior
que zero para um produtor individual) das estruturas camponesas. Sob o capitalismo, a
produção camponesa constituiria, destarte, um sistema sem sustentabilidade,
economicamente inviável.”
Essas interpretações de Marx sobre o campesinato no capitalismo apoiadas no O
Capital (edição do vol. I em 1867) foram pontualmente repensadas pelo próprio Marx em
relação à comuna russa em 1881. Em 1881, Marx, em carta a Vera Zasúlich, embatucou (na
expressão de Ianni, 1985: 5) quando esta lhe indagou (Zasúlich, in Marx, 1980a) sobre as
alternativas do destino da “comuna russa” na via socialista. A resposta de Marx foi:
4
Esse parágrafo entre colchetes é uma leitura em prosa, realizada por Horacio Martins de Carvalho, de uma
dedução matemática sobre a matéria realizada por Costa (1994:10)
5
“(...) Analisando a gênese da produção capitalista digo:
No fundo do sistema capitalista está, pois, a separação radical entre produtor e
meios de produção... a base de toda esta evolução é a expropriação dos camponeses5
.
Todavia, não se realizou de uma maneira radical senão na Inglaterra...Mas, todos os demais
países da Europa ocidental vão pelo mesmo caminho. (O Capital, edição francesa, p. 316
A ‘fatalidade histórica’ deste movimento está, pois, expressamente restrita aos
países da Europa ocidental. O por quê desta restrição está indicado nesta passagem do
capítulo xxxii:
A propriedade privada, fundada no trabalho pessoal...vai ser suplantada pela
propriedade privada capitalista, fundada na exploração do trabalho de outros, no sistema
assalariado (op. cit., p. 340).
Neste movimento ocidental se trata, pois, da transformação de uma forma de
propriedade privada em outra forma de propriedade privada. Entre os camponeses russos,
ao contrário, haveria que transformar sua propriedade comum em propriedade privada.
A análise apresentada no O Capital não dá, pois, razões, nem em prol nem contra da
vitalidade da comunidade rural, mas o estudo especial que fiz sobre ela, e cujos materiais
fui buscar em fontes originais, me convenceram de que esta comunidade é o ponto de apoio
da regeneração social na Rússia, mas para que possa funcionar como tal será preciso
eliminar primeiramente as influências deletérias que a acossam por todas as partes e, em
seguida, assegurar-lhe as condições normais para um desenvolvimento espontâneo.” Marx e
Engels (1980: 60-61).
Para Costa (1994: 6-7) “Uma das questões mais controversas no debate sobre o
campesinato no capitalismo refere-se à sua capacidade de permanência. O debate, desde
mais de um século, polariza-se nas posições que defendem, de um lado uma incapacidade
estrutural das unidades camponesas de internalizarem sobre-trabalho (...) De outro lado vê-
se na unidade de produção familiar uma microeconomia particular, responsável por uma
propensão especialmente alta aos investimentos e, portanto, alta capacidade estrutural de
internalização de inovações.”
“A produção econômica de Marx é a matriz da primeira posição6
, enquanto as
teorias do russo Chayanov encontram-se na base da segunda (...)”
Costa (1994: 11-12) com relação a Chayanov (1923) comenta: “Ao contrário de
Marx, cuja perspectiva parte do sistema econômico para a análise da relação
campesinato/capitalismo, e dos que o sucedem insistindo na dominância das mesmas
tendências, a teoria chayanoviana do campesinato parte de uma perspectiva
microeconômica. Enquanto no primeiro caso se chegava à visualização de unidades
produtivas cujo comportamento específico (quando comparado ao comportamento
5
As expressões assinaladas em itálico e as entre acentos constam do texto original.
6
Posição de Marx comentada sucintamente em parágrafos anteriores.
6
capitalista) levaria a resultados homogêneos (a não internalização do sobre trabalho...), para
a perspectiva chayanoviana o caráter específico da unidade camponesa leva a uma
economia sem determinações derivadas das grandezas socialmente estabelecidas, seja do
lucro seja da renda da terra, seja do salário. Partindo daí, Chayanov formula sua teoria do
investimento camponês.”
“Para Chayanov a família é o fundamento da empresa camponesa --- na sua
condição de economia sem assalariamento, uma vez que é tanto o ponto de partida quanto o
objetivo da sua atividade econômica. Como única fonte de força de trabalho a família é o
suposto da produção, cujo objetivo nada mais é [que] o de garantir a própria existência. A
unidade camponesa é, pois, a um só tempo unidade de produção e unidade de consumo e
encerra, concomitantemente, as funções das esferas de produção e reprodução de tal modo
que ‘(...) a família e as relações que dela resultam tem que ser o único elemento
organizador da economia sem assalariados’ (Chayanov, 1923: 9) (...) Para a unidade
camponesa, pois, não existe uma dimensão econômica que tenha que ser necessariamente
atingida e que seja estabelecida por um rendimento socialmente determinado de cada
unidade de trabalho aplicada --- como é o caso da empresa capitalista frente ao salário. Aí,
a atividade econômica mínima terá que produzir valores pelo”. menos equivalentes ao
conjunto dos salários pagos e cada trabalhador trabalhará necessariamente pelo menos até
o ponto em que o rendimento das suas atividades cubra o preço de mercado da sua força de
trabalho. Para a empresa camponesa, o que existe é um nível de atividade a ser
necessariamente atingida que determina com que rendimento cada unidade de trabalho da
família tem que contribuir. Em outras palavras: não pertence à realidade da produção
camponesa um rendimento por unidade de trabalho que seja determinante, como o é, para a
empresa capitalista, o rendimento correspondente ao salário enquanto grandeza socialmente
determinada, mas, sim, um rendimento por unidade de trabalho determinado pelas
necessidades anuais da família camponesa --- pelo caráter, pois, da empresa camponesa
enquanto unidade de consumo.”
É oportuno relembrar a observação de Archetti (1974) sobre a obra de Chayanov.
“Esta escola discute, então, a necessidade de construir uma teoria que parta do suposto de
que a economia camponesa não é tipicamente capitalista, portanto não se pode determinar
objetivamente os custos de produção pela ausência da categoria ‘salários”. Desta maneira, o
retorno que obtém o camponês após o final do ano econômico não pode ser conceituado
como formando parte de algo que os empresários capitalistas chamam ‘lucro’. O camponês,
ao utilizar a força de trabalho de sua família como a dele mesmo, percebe esse ‘excedente’
como uma retribuição ao seu próprio trabalho e não como um ‘lucro’. Esta retribuição
aparece corporificada no consumo familiar de bens e serviços.”
“O problema da modernização e tecnificação colocava, portanto, um conjunto de
questões que deveriam ser resolvidas construindo uma teoria diferente da teoria da empresa
capitalista. É a esta tarefa que Chayanov, a partir de 1911, vai dedicar toda sua obra.”
(Archetti, op, cit.: 8)
Wolf comentando o dilema camponês, à luz das idéias de Chayanov, ressalta que “o
eterno problema da vida do camponês consiste, portanto, em contrabalançar as exigências
do mundo exterior, em relação às necessidades que ele encontra no atendimento às
7
necessidades de seus familiares. Ainda em relação a esse problema o camponês pode seguir
duas estratégias diametralmente opostas. A primeira dela é incrementar a produção; a
segunda, reduzir o consumo”.
“Se o camponês escolhe a primeira estratégia, deverá elevar o rendimento do
trabalho às suas próprias custas, tendo em vista levantar a produção e o aumento da
produtividade, com que entrará no mercado (...) A estratégia que se apresenta como
alternativa é a de solucionar o problema básico através da redução do consumo. O
camponês pode reduzir seu consumo de calorias restringindo sua alimentação apenas aos
alimentos básicos; pode limitar suas compras no mercado ao essencial e, em vez disso,
pode confiar tanto quanto possível na capacidade de seu grupo doméstico de produzir tanto
os alimentos como os objetos necessários, sem precisar sair dos limites da sua terra (...)”.
“(...) Ao contrário do que dizem os clichês literários, os camponeses não se
encontram estáticos, mas em permanente estado dinâmico, movendo-se continuadamente
entre dois pólos em busca de uma solução para seu dilema fundamental.”
“A existência de uma vida camponesa não envolve meramente relação entre
camponeses e não-camponeses, mas um tipo de adaptação, uma combinação de atitudes e
atividades destinadas a sustentar o cultivador em sua luta pela sobrevivência individual e de
toda a sua espécie, dentro de uma ordem social que o ameaça de extinção (...)” (Wolf,
(1976: 31ss)
“Theodor Shanin (1982 e 1983) detectou nas análises sobre a dinâmica agrária russa
pré-revolução, problemas que, segundo ele, são constatados nas análises das presenças
camponesas nas sociedades capitalistas em geral. As abordagens inclinar-se-iam a produzir
visões reduzidas em dinâmicas necessariamente polares, apresentando as sociedades
camponesas ou em dissolução por diferenciações sociais e econômicas produzidas pela
penetração capitalista, ou em oposição a tal penetração. A primeira posição seria o
resultado de um determinismo econômico e, a segunda, de um determinismo biológico.”
(citado por Costa, 2000:101).
As posições teóricas que poderiam configurar um ‘determinismo econômico’ nas
relações entre o campesinato e o capitalismo tem sido resultados das leituras particulares
sobre o campesinato nas obras clássicas de Marx, Engels, Lenin e Kautsky por seus
discípulos e intérpretes.
“Além da redução economicista, Shanin alerta para o que chama de determinismo
biológico. E, dado o problema empírico que aborda [dinâmica agrária russa pré-revolução],
refere-se basicamente às abordagens lideradas por Chayanov para o caso russo. Contudo, há
um outro approach clássico, não obstante mais recente, do poder de determinação da
reprodução biológica da população na dinâmica agrária. Refiro-me a Esther Boserup e sua
explanação sobre a relação entre intensidade do uso do solo e crescimento populacional.”
“Para Baserup, existiria uma seqüência rígida, uma trajetória de mudanças técnicas
difícil de transgredir na agricultura tradicional: ao cultivo de pousio longo, seguir-se-ia uma
fase de cultivo com pousio arbustivo, sucedido por cultivo de pousio curto, cultivo anual e,
8
finalmente, cultivos múltiplos (Boserup, 1987:13-28). Tal sucessão seria derivada da tensão
gerada pela densidade populacional ---entendida como variável autônoma e incontornável.
Tensão indispensável, dado que cada fase configuraria uma forma de uso do solo a exigir
sempre mais esforço de cada trabalhador para o mesmo resultado em termos reais, embora
apresentem pari passu produtividade por área decrescente.”
“As proposições teóricas de Chayanov (1974; Costa 1989 e 1995) fornecem os
fundamentos de uma tal generalização, partindo da família e seus fundamentos
reprodutivos. A dinâmica demográfica é, aqui, endógena ao fundamento estrutural da
realidade agrária baseada no campesinato, constituindo fundamento para ações e decisões,
inclusive quanto à inovação. Chayanov, contudo, não propõe a generalização que faz
Boserup. Em compensação, muitos dos argumentos desta última sustentam-se tão somente
se as hipóteses chayanovianas funcionarem. O que fazem, os dois autores, sob muitos
aspectos, complementares.” (Costa, 2000: 112-113)
1.2. Controvérsia no Brasil
Aos fundamentos em debate nessa controvérsia geral sobre o campesinato e o
capitalismo foram acrescidos, no Brasil, temas como o campesinato e os modos de
produção, os resquícios do colonialismo e do escravagismo no campo, a expansão da
fronteira agrícola, a reforma agrária e o papel do Estado na reprodução do campesinato.
É diversa e abundante, para os padrões acadêmicos e culturais dominantes, a
literatura que tratou dessas temáticas. Não é pertinente neste texto o resgate dessa literatura
ou mesmo a indicação de algumas obras que abrangessem tal temática e as abordagens
utilizadas para dar conta dessa complexa tarefa teórica e histórica.
O que se deseja ressaltar, no entanto, é que as leituras históricas da natureza e
caráter do campesinato no Brasil foram marcadas, em graus de intensidade distintos, pelo
‘determinismo econômico’, seja no âmbito da explicação teórica e da pesquisa acadêmica,
seja no âmbito da ideologia dominante (concepção de mundo). A denominada vertente
chayanoviana, ainda que presente em ‘locus’ particulares desses universos científico e
ideológico, foi sendo gradativamente relegada a plano secundário pela pujança autoritária
das idéias neoliberais, em especial desde meados da década de 80 do século XX.
Ainda que defendendo de maneira relativa a reprodução e a inserção do campesinato
na dinâmica da reprodução capitalista, as organizações e movimentos sociais e sindicais de
mediação dos seus interesses, sejam localizados, sejam os universais (de classe e
corporativos), não dedicaram parte de seus esforços institucionais para um aprofundamento
dessa controvérsia sobre o campesinato no capitalismo. De maneira geral, e instigados pelas
necessidades imediatas dos camponeses, canalizaram seus esforços para o âmbito da
reivindicação e do protesto (Carvalho, 1992 e 2004) perante os governos. Mesmo os
esforços políticos e ideológicos, assim como os empíricos, de luta pela terra pouco
contribuíram para o aprofundamento dessa controvérsia geral aqui em apreço.
9
As idéias dominantes que repousavam nas concepções da diferenciação do
campesinato tornaram-se as idéias hegemônicas (envolvendo classes dominantes e
dominadas). Essas idéias materializaram-se seja na concepção e prática das políticas
públicas seja nas palavras de ordem por vezes reinantes nos movimentos e organizações
sociais e sindicais do campesinato quando defendiam a “inserção competitiva da agricultura
da familiar no mercado” (sic).
As próprias dificuldades de enquadramento conceitual das dezenas de formas
sociais de reprodução das unidades familiares produtoras e extrativistas autônomas no
campo por parte tanto dos organismos governamentais como daqueles de mediação dos
interesses dos camponeses são evidências de que novos esforços teóricos e empíricos
necessitam ser realizados para se dar conta da atualidade e da diversidade camponesa no
Brasil (ver cap. 2 e 3 adiantes).
O referencial teórico hegemônico no Brasil sobre o campesinato tem como uma das
origens conceituais (a outra poderá ser identificada como em Mendras, 1959 e 1976) na
vertente expressa pelo determinismo econômico anteriormente comentado e que pode ser
sintetizado na expressão de Ellis (1988: 234): “(...) camponeses são unidades familiares de
produção agrícola caracterizadas pelo engajamento parcial em mercados incompletos...”,
postura intelectual bastante distinta daquela assumida por Chayanov (1974), que tem como
premissa a centralidade na reprodução da família camponesa. De acordo com (Costa, 2000:
116) “(...) Uma das justificativas do autor para o conceito e resultado que obtém de seu uso
explicita o cerne das nossas divergências:
...[o caráter parcial da integração no mercado] serve para diferenciar os camponeses
tanto das empresas capitalistas (baseadas no trabalho assalariado) como de pequenos
produtores mercantis que operam em contexto de mercados de fatores e produtos
plenamente formados ...(Ellis: 234) [e] ...no longo prazo, a dominância das relações
capitalistas significa o desaparecimento dos camponeses, mas não, necessariamente,
o fim das formas familiares de produção agrícola. (op. cit.: 238. Tradução de
Costa)”
Ainda conforme Costa (op.cit. :116) “Trata-se de uma diferenciação fraca demais
quando se refere a formas capitalistas de produção e forte demais quando se refere a
diferenças da própria produção familiar rural. Fraca demais no primeiro caso, porque não
expõe a constituição essencial das diferenças a ressaltar; forte demais no segundo caso,
porque atribui capacidade distintiva a um fenômeno cuja determinação é, a rigor, traço de
igualdade das formas de produção familiar rural.”
“Diferentemente desta, a nossa proposição de centralidade da reprodução na
percepção da especificidade camponesa permite diferenciar de fora vigorosa a unidade
camponesa de outras estruturas presentes no agrário nas sociedades capitalistas, em
particular da empresa capitalista. Empresas capitalistas supõem a centralidade no lucro
como fundamento da racionalidade de seus componentes...”
10
Num outro sentido, a hipótese de que o processo de redução da distinção entre o
rural e urbano conduziria a “...um continuum dominado pela cena urbana, como já foi
formulado no tocante à realidade européia (Lefebvre, 1972; Duby, 1984; Mendras, 1959;
entre outros) e para a realidade brasileira (Graziano da Silva, 1996; Ianni, 1996; entre
outros” (conforme Carneiro, 1998: 53) não corresponde à dinâmica de mudanças que se
verificam em todo o território brasileiro. “(...) Ainda que os efeitos da expansão da
‘racionalidade urbana’ sobre o campo, provocada pela generalização da lógica do processo
de trabalho e da produção capitalista intensificado pelos mecanismos da globalização não
possam, de forma alguma, ser tratados com negligência, é precipitado concluir que tal
processo resultaria na dissolução do agrário, e na tendência à transformação unificadora das
condições de vida no campo.” (idem, op. cit.:53)
“(...) Em contraposição, tanto à visão dicotômica quanto à do continuum, alguns
autores sustentam a necessidade de proceder análises mais específicas do rural, centradas
nas relações sociais que se desenvolvem a partir de processos de integração das aldeias à
economia global. Nesta visão, esse processo, ao invés de diluir as diferenças pode propiciar
o reforço de identidades apoiadas no pertencimento a uma localidade. Essa âncora
territorial seria a base sobre a qual a cultura realizaria a interação entre o rural e o urbano de
um modo determinado, ou seja, mantendo uma lógica própria que lhe garantiria a
manutenção de uma identidade (Chamborredon, 1980 e Rambaud, 1969 e 1981).”
(Carneiro, op. cit. 57)
Tanto a visão economicista do campesinato como aquela da inexorabilidade da
homogeneização urbana do espaço rural conduzem política e ideologicamente a
compreensões que reafirmam a absorção/exclusão social do campesinato pela expansão e
consolidação da empresa capitalista no campo.
As expressões agricultura familiar, pequeno produtor rural e pequenos agricultores
adquiriram desde o início da década de 90 conotações ideológicas, não porque imprecisas
ou insuficientes para dar conta da diversidade de formas sociais de reprodução das unidades
de produção/extração centradas na reprodução da vida familiar presentes e em
desenvolvimento no país, mas, sobretudo, porque foram disseminadas no interior de um
discurso teórico e político que afirmava a diferenciação e fim do campesinato em duas
categorias: aquela que seria transformada em empresas capitalistas pelo desenvolvimento
das forças produtivas e aquelas que se proletarizariam ou permaneceriam dependentes de
apoios sociais das políticas públicas.
A revivificação dos conceitos de camponês e campesinato propõe resgatar e afirmar
a perspectiva teórica da reprodução social do campesinato na sociedade capitalista a partir
das teses da centralidade da reprodução da família camponesa e da sua especificidade no
contexto da formação econômica e social capitalista. Objetiva, deveras, abranger nesses
conceitos a totalidade das formas de reprodução das unidades de produção familiar no rural
brasileira.
11
1.3. O fim do campesinato?7
Bernardo Mançano Fernandes
(...) O processo de formação do campesinato remonta à gênese da história da
humanidade. Essa leitura histórica é importante para a compreensão da lógica da
persistência do campesinato nos diferentes tipos de sociedades. A existência do
campesinato nas sociedades escravocratas, feudal, capitalista e socialista é um referencial
para entendermos o sentido dessa perseverança.
A coexistência e a participação do campesinato nesses diferentes tipos de sistemas
sócio-políticos e econômicos e a sua constância quando do fim ou crise dessas sociedades
demonstram que essa firmeza precisa ser considerada como uma qualidade intrínseca dessa
forma de organização social.
Por essa razão, desde o século XIX, surgiram diversas teorias a respeito da
existência e das perspectivas do campesinato no capitalismo. O desenvolvimento dessas
teorias por meio de pesquisas e debates políticos acirrados constituiu três distintos modelos
de interpretação do campesinato ou paradigmas.
De modo objetivo, discutimos esses paradigmas e os denominamos a partir de suas
perspectivas para o campesinato. O paradigma do fim do campesinato compreende que este
está em vias de extinção. O paradigma do fim do fim do campesinato entende a sua
existência a partir de sua resistência. O paradigma da metamorfose do campesinato
acredita na sua mudança em agricultor familiar.
Ainda é muito forte o paradigma do fim do campesinato. Esse modelo de
interpretação do campesinato tem duas leituras. Uma está baseada na diferenciação gerada
pela renda capitalizada da terra que destrói o campesinato, transformando pequena parte em
capitalista e grande parte em assalariado. A outra leitura do fim do campesinato acredita
simplesmente na inviabilidade da agricultura camponesa perante a supremacia da
agricultura capitalista.
O paradigma do fim do fim do campesinato tem uma leitura mais ampla que o
anterior. Entende que a destruição do campesinato pela sua diferenciação não determina o
seu fim. É fato que o capital ao se apropriar da riqueza produzida pelo trabalho familiar
camponês, por meio da renda capitalizada da terra, gera a diferenciação e a destruição do
campesinato. Mas, igualmente, é fato que ao capital interessa a continuação desse processo
para o seu próprio desenvolvimento. Em diferentes condições, a apropriação da renda
capitalizada da terra é mais interessante ao capital do que o assalariamento. Por essa razão,
os proprietários de terra e capitalistas oferecem suas terras em arrendamento aos
camponeses ou oferecem condições para a produção nas propriedades camponesas.
O arrendamento é uma possibilidade de recriação do campesinato, outra é pela
compra da terra e outra é pela ocupação da terra. Essas são as três formas de recriação do
7
Esta seção está constituída por extratos do documento Delimitação Conceitual do Campesinato de
Bernardo Mançano Fernandes (2004)
12
campesinato. E assim se desenvolve num constante processo de territorialização de
desterritorialização da agricultura camponesa, ou de destruição e recriação do campesinato.
O que é compreendido como fim também tem o seu fim na poderosa vantagem que o
capital tem sobre a renda capitalizada da terra, gerada pelo trabalho familiar.
Ainda nesta compreensão, o campesinato é visto como uma importante forma de
organização social para o desenvolvimento humano em diferentes escalas geográficas. A
produção familiar provoca impactos sócioterritoriais contribuindo para o desenvolvimento
regional e contribuindo com a melhoria a qualidade de vida.
O paradigma do fim do fim do campesinato tem duas vertentes. Uma desenvolve
ações para o crescimento do número de camponeses por meio de uma política de reforma
agrária e pela territorialização da luta pela terra. Outra desenvolve ações para a manutenção
do número de camponeses, acreditando que garantir a existência é suficiente.
O paradigma da metamorfose do campesinato surgiu na última década do século
XX e é uma espécie de “terceira via” à questão do campesinato. Acredita no fim do
campesinato, mas não no fim do trabalho familiar na agricultura. Desse modo utiliza o
conceito de agricultor familiar como eufemismo do conceito de camponês. A partir de uma
lógica dualista de atrasado e moderno, classifica o camponês como atrasado e o agricultor
familiar como moderno. Essa lógica dualista é processual, pois o camponês para ser
moderno precisa se metamorfosear em agricultor familiar.
Esse processo de transformação do sujeito camponês em sujeito agricultor familiar
sugere também uma mudança ideológica. O camponês metamorfoseado em agricultor
familiar perde a sua história de resistência, fruto da sua pertinácia, e se torna um sujeito
conformado com o processo de diferenciação que passa a ser um processo natural do
capitalismo.
Os limites dos espaços políticos de ação do então moderno agricultor familiar
fecham-se nas dimensões da diferenciação gerada na produção da renda capitalizada da
terra. A sua existência, portanto, está condicionada dentro das condições geradas pelo
capital. Logo as suas perspectivas estão limitadas às seguintes condições: agricultor
familiar consolidado; agricultor familiar intermediário e agricultor familiar periférico. Da
condição de periférico à condição de consolidado formam-se os espaços políticos de sua
existência. Esse seria o seu universo possível.
Nessa lógica não cabem os sem-terra, porque não se discute a exclusão. Discutem-se
apenas os incluídos no espaço do processo de diferenciação. Nesse sentido, esse paradigma
possui uma interface com a vertente do paradigma do fim do fim do campesinato que se
preocupa apenas com a manutenção do campesinato.
Essa leitura é marcada por uma importante diferença entre o paradigma da
metamorfose do campesinato dos outros paradigmas. Os paradigmas do fim do campesinato
e do fim do fim do campesinato têm como fundamento a questão agrária. O paradigma da
metamorfose do campesinato tem como fundamento o capitalismo agrário.
13
O debate a respeito da questão agrária tem se desenvolvido a partir do princípio da
superação. Essa condição implica na luta contra o capital e na perspectiva de construção de
experiências para a transformação da sociedade. O debate a respeito do capitalismo agrário
tem se desenvolvido a partir do princípio da conservação das condições existentes da
sociedade capitalista (...)
(...) Afora o princípio conservador do paradigma da metamorfose do campesinato,
destacam-se os limites de sua lógica dualista. Por não conseguir explicar a persistência do
campesinato, a sua existência e atualidade e nem suas perspectivas, procura transformá-lo
por meio do esvaziamento de sua história. O camponês fica com o passado e o agricultor
familiar com o futuro (...)
2. ATUALIDADE DO CAMPESINATO NO BRASIL
2.1. Classificação por critérios de oportunidade8
As classificações vigentes e hegemônicas para identificar a “agricultura familiar”
são imprecisas e insuficientes para darem conta da diversidade das formas encontradas
pelas famílias que “tendo acesso à terra e aos recursos naturais que esta suporta, resolvem
seus problemas reprodutivos a partir da produção rural --- extrativista, agrícola e não
agrícola [e pesqueira e de parcela dos povos indígenas]9
--- desenvolvida de tal modo que
não se diferencia o universo dos que decidem sobre a alocação do trabalho, dos que
sobrevivem com o resultado dessa alocação” (Costa, 2000: 114), e que aqui são
denominadas genericamente de camponesas.
A essa delimitação conceitual do campesinato pode-se acrescentar outros matizes
fundamentais. Hebette (2004: 2) afirma que “o modo de vida que, neste ensaio, será
chamado camponês, e as populações que dele vivem, também chamadas camponesas, se
oferecem ao nosso olhar mediante algumas características fundamentais. Os camponeses
são produtores livres de dependência pessoal direta – são ‘autônomos’; sua sobrevivência
de homens livres lhes impõe laços de solidariedade cuja quebra ou enfraquecimento
ameaçam seu modo de vida; esses laços mais primários são os de parentesco e de
vizinhança que os levam a procurar se agrupar em ‘comunidade’; a busca de sua
permanência e reprodução numa mesma ‘terra’ (ou no mesmo ‘terroir’, como se diz em
francês), traduzidos como apego à terra, é a marca do sucesso de seu modo de vida e a fonte
de seu cuidado com seu ambiente: a migração para ele é uma fatalidade, a expulsão, uma
degradação inaceitável.” [grifos no original]
As delimitações conceituais e empíricas da “agricultura familiar”, no nível da
formulação das políticas públicas dos organismos de governo, têm sido bastante
influenciadas pelas concepções teóricas de caráter acentuadamente economicista. Essas
opções, indiretamente, facilitam o exercício de práticas governamentais que aderem à
8
As informações constantes deste item são extraídas de Moreira (2003).
9
Complemento acrescentado por Horacio Martins de Carvalho à conceituação original de Costa.
14
perspectiva de estímulo à diferenciação do campesinato e de ajuste funcional de se
desenvolvimento á dinâmica do mercado. Constituiu-se, assim, um processo de delimitação
empírica do campesinato onde algumas das classificações foram estabelecidas a partir de
situações conjunturais. A esse processo denominou-se aqui de processo classificatório de
oportunidade.
Por exemplo, no Plano Safra 2003/2004 se calculou que 4,1 milhões de
estabelecimentos seriam considerados como de “agricultura familiar”. Essa cifra
acompanha de perto as cifras do Censo Agropecuário do IBGE 1995/96 que permitiu
enquadrar 4,139 milhões de estabelecimentos como de “agricultura familiar” (Tab. 1,
adiante), abrangendo 85,2% do total de estabelecimento do país. Deste total 49,7% (2,055
milhões de estabelecimentos familiares) encontra-se no Nordeste brasileiro.
Tabela 1
Brasil. Agricultura familiar. Número de
estabelecimentos e percentagem da área por
região do país.
Região/País n° estabel. Área %
Nordeste 2.055.157 31,6%
Centro-Oeste 162.062 12,7%
Norte 380.895 20,3%
Sudeste 633.620 17,4%
Sul 907.635 18,0%
Brasil 4.139.369 100,0%
Fonte: Censo Agropecuário 1995/96
FAO/INCRA
As classificações adotadas pela Secretaria de Agricultura Familiar – SAF do
Ministério do Desenvolvimento Agrário – MDA são exemplos do processo classificatório
de oportunidade no qual parcelas da população rural supostamente consideradas
“agricultores familiares” são enquadradas sem que necessariamente se dê conta diversidade
das formas sociais de reprodução dos camponeses do país.
Conforme Moreira (2003: 13-17) “a produção teórica e conceitual do governo
federal iniciou-se a partir de 1996 e sustentou a elaboração de um programa de âmbito
nacional que é o PRONAF. Esta produção deveu-se a cooperações com organismos
internacionais como a Food Agriculture Organization – FAO, o Programa das Nações
Unidas para o Desenvolvimento – PNUD e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária – INCRA10
. Segundo o Ministério do Desenvolvimento Agrário (2000:13), o
10
O Projeto BRA/98/012 “Agricultura Familiar no Contexto do Desenvolvimento Local Sustentável”
constituiu-se em um destes projetos de cooperação do PRONAF, coordenado pela então Secretaria de
Desenvolvimento Rural (SDR). O INCRA por sua vez estabeleceu convênio - Projetos de Cooperação
Técnica – com a FAO entre 1996 e 1999. Esta cooperação FAO/INCRA realizou estudos baseados na
metodologia de sistemas agrários desenvolvidos pela escola francesa de estudos agrários. Para o Convênio
FAO/INCRA estes estudos “(...) vem permitindo uma melhor compreensão da lógica e dinâmica das unidades
familiares e dos assentamentos, assim como dos sistemas de produção por eles adotados nas diversas regiões
15
debate sobre os conceitos e a importância relativa da ‘agricultura familiar’ também é
intenso, produzindo inúmeras concepções, interpretações e propostas, oriundas das
diferentes entidades representativas dos ‘pequenos agricultores’, dos intelectuais que
estudam a área rural e dos técnicos governamentais encarregados de elaborar as políticas
para o setor rural brasileiro.”
“Documento Referencial editado pelo PRONAF discorre sobre o dito ‘bi-modelism’
da agricultura brasileira, isto é, a existência de dois modelos gerais. Para o PRONAF ‘(...)
pode-se intervir objetivamente na estrutura da agricultura brasileira considerando dois
modelos gerais: o modelo da agricultura patronal e o modelo da agricultura familiar.’
(PRONAF, 1999: 4)”
“Referindo-se às características da agricultura brasileira os documentos
FAO/INCRA sugerem características diferenciadas para cada um dos modelos, como
mostra o Quadro 1.”
“Ao diferenciar os tipos ou ‘modalidades’ no interior dos dois modelos
FAO/INCRA, identificaram-se seis modalidades, sendo três para a agricultura patronal:
agribusiness, agricultura patronal de base empresarial e agricultura patronal de base
fundiária, e três para a agricultura familiar: agricultura familiar consolidada, agricultura
familiar de transição e agricultura familiar periférica, como pode ser observado no Quadro
2.”
“Ao caracterizar as modalidades, FAO/INCRA utiliza indicadores11
tais como:
parâmetros empresariais, gestão empresarial, padrão empresarial, capital, integração ao
mercado, acessibilidade à tecnologia e às políticas públicas, viabilização econômica,
integração produtiva à economia nacional.”
“A SAF, para delimitar o ‘universo familiar’12
, usou informações disponíveis no
Censo Agropecuário do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, propondo-se
a definir um ‘novo retrato da agricultura familiar’. Segundo o Censo Agropecuário
1995/96 - IBGE, existiam no Brasil 4.859.864 estabelecimentos rurais ocupando uma área
de 353,6 milhões de hectares, sendo que os estabelecimentos familiares ocupavam 30,2 %
desta área, a despeito de representar 85,2% do total dos estabelecimentos rurais brasileiros
(Tab. 2). De outro lado, a categoria agricultura patronal ocupava 67,9% da área total e
representava apenas 11,4% dos estabelecimentos rurais. A quantidade de estabelecimentos
na categoria familiar era 7,5 vezes maior que o número da categoria patronal. A quantidade
do país.” (FAO/INCRA, 1999)
11
Por exemplo: agribusiness: sua gestão é conduzida em moldes empresariais; agricultura patronal de base
fundiária: o capital principal é a terra, a gestão do empreendimento não atende parâmetros empresariais;
agricultura familiar consolidada: integrada ao mercado, a maioria funciona em padrões empresariais.
12
Como a SAF caracterizou o “O universo familiar”? “... foi caracterizado pelos estabelecimentos que
atendiam simultaneamente, às seguintes condições: a) a direção dos trabalhos do estabelecimento era
exercida pelo produtor; b) o trabalho familiar era superior ao trabalho contratado”. Adicionalmente, foi
elaborada uma área máxima regional como limite superior para a área total dos estabelecimentos familiares”.
(MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO AGRÁRIO, 2000:18)
16
de terras ocupadas pela categoria patronal era mais que o dobro (2,3 vezes) das ocupadas
pela agricultura familiar.”
Quadro 1. Características dos Modelos Patronal e Familiar
Modelo Patronal Modelo Familiar
completa separação entre gestão e
trabalho
trabalho e gestão intimamente
relacionados
organização centralizada direção do processo produtivo assegurada
diretamente pelo agricultor e sua família
ênfase na especialização ênfase na diversificação
ênfase em práticas agrícolas
padronizáveis
ênfase na durabilidade dos recursos e na
qualidade de vida
trabalho assalariado predominante trabalho assalariado complementar
tecnologias dirigidas à eliminação de
decisões “de terreno” e “de momento”
decisões imediatas, adequadas ao alto
grau de imprevisibilidade no processo
produtivo
Fonte: PRONAF (1996)
Tab. 2. Brasil – Estabelecimentos Totais e Área Total por Categorias Familiar e
Patronal, 2000.
Categorias Estabelecimentos
Total
% Estab. s/
total
Área Total
(mil ha)
Área Total
%
Familiar 4.139.369 85,2 107.768 30,5
patronal 554.501 11,4 240.042 67,9
Outros (
*) 165.994 3,4 5.801 1,6
Total 4.859.864 100,0 353.611 100,0
Fonte: Censo Agropecuário 1995/1996 – IBGE. Adaptado de Novo Retrato da Agricultura Familiar – O
Brasil Redescoberto / MDA/ SNAF.2000
(*) Instituições religiosas, entidades públicas e não identificados.
Tab. 3 Agricultores familiares – Percentual dos estabelecimentos,
segundo a condição do produtor.
Região Proprietário Arrendatário Parceiro Ocupante
Nordeste 65 6,9 8,4 19,3
Centro-Oeste 89,8 3,4 1,3 5,6
Norte 84,6 0,7 1,4 13,2
Sudeste 85,7 4,1 5,2 5,0
Sul 80,8 6,4 6,0 6,7
Brasil 74,6 5,7 6,4 13,3
Fonte dos dados: Censo Agropecuário 1995/96 – IBGE. Adaptado de Novo
Retrato da Familiar no Brasil/ SNAF-MDA.2000.
17
Quadro 2. Os dois modelos de agricultura no Brasil : suas modalidades e
características
Modelo Modalidades  Características
Agricultura
Patronal
a) Agribusiness  Integração vertical das atividades no
agro-industrial.
 Agroindústria com gestão empresarial
b) Agricultura patronal
de base empresarial
 Uso intensivo de tecnologias, alta
produtividade, gestão empresarial.
c) Agricultura patronal
de base fundiária
 Latifúndio, gestão não empresarial,
agropecuária extensiva e nem sempre
produtiva, tendo a terra como capital
principal.
Agricultura
Familiar
a) Agricultura familiar
Consolidada
 Integração ao mercado, acesso a
inovações tecnológicas e políticas públicas,
maioria funcionando em padrões
empresariais.
b) Agricultura familiar
de Transição
 Acesso parcial à tecnologia e ao mercado,
sem acesso à maioria das políticas e
programas governamentais, não consolidados
como empresas.
 Amplo potencial para a viabilização
econômica
c) Agricultura familiar
Periférica
 Inadequação em termos de infra-
estrutura, dependente de programas de
reforma agrária, crédito, pesquisa, assistência
técnica e extensão rural e comercialização.
Fonte: PRONAF (1996)
“Do Censo Agropecuário 1995/96 podem-se extrair três informações (...) A
primeira: a condição dos agricultores em relação ao uso da terra; a segunda: a estrutura
fundiária; e a terceira: o pessoal ocupado. De acordo com a SNAF, ‘a situação dos
agricultores familiares, segundo a condição de uso da terra demonstra que 74,6% são
proprietários, 5,7% são arrendatários, 6,4% são parceiros e 13,3% são ocupantes’ (Tab.
3)”.
“Para a SNAF, os dados do Censo Agropecuário 1995/1996 demonstram que não é
apenas a propriedade da terra o único elemento a ser considerado para o que chama de
‘reestruturação fundiária no Brasil’ (BRASIL, 2000:26). Também deve ser verificado o
tamanho das propriedades dos agricultores familiares. ‘(...) muitos possuem menos de 5 ha,
o que, na maioria dos casos, inviabiliza sua sustentabilidade econômica (...)’. De fato, o
18
Censo Agropecuário revelou que, no Brasil, 94,55% dos estabelecimentos no modelo de
agricultura familiar têm menos de 100 ha de terra. 39,8% das propriedades dos agricultores
familiares têm menos de 5 ha, como pode ser visto na Tabela 4. Este índice chega a 58,8%
na região Nordeste.”
Tab. 4 Agricultores Familiares – Percentagem de estabelecimentos segundo
grupos de área total
Região M5 a 20 ha 20 a 50 ha 50 a 100 ha 100a 150MR13
Nordeste 58,8 21,9 11,0 4,8 3,4
Centro-Oeste 8,7 20,5 27,3 18,8 24,6
Norte 21,3 20,8 22,5 17,9 17,4
Sudeste 25,5 35,6 22,7 9,9 6,3
Sul 20,0 47,9 23,2 5,9 2,9
Brasil 39,8 30,0 17,1 7,6 5,9
Fonte: Censo Agropecuário 1995/96 – IBGE. Adaptado de Novo Retrato da Agricultura Familiar no
Brasil/ SNAF-MDA.2000.
O critério tamanho do estabelecimento ou o de imóvel rural, a renda familiar e o
estabelecimento segundo a condição do produtor, como exemplos, não são nem necessários
nem suficientes para darem conta da diversidade de situações (formas sociais de reprodução
da família) daquelas famílias que se enquadrariam sob o conceito de camponês. Por
exemplo, as quebradeiras de coco babaçu que extraem o coco de babaçuais “livres”, mas
que se encontram em terras privadas, ou os varzeiros (como exemplos aqueles das várzeas
da bacia hidrográfica do rio Amazonas) que exercitam o extrativismo pesqueiro e florestal,
a agricultura ocasional (nas vazantes dos rios) e produzem artesanatos, e não tem, um e
outro (quebradeiras de coco e varzeiros), como referência nem a posse nem o domínio da
terra e cujos rendimentos são de difícil identificação formal, são camponeses e não são
contemplados pelas estatísticas oficiais.
“De acordo com os dados do Censo Demográfico de 2000, cinco milhões de
famílias rurais vivem com menos de dois salários mínimos mensais – cifra esta que, com
pequenas variações, é encontrada em todas as regiões do país. (Tabela 5)” (Proposta de
PNRA, 2003: 6).
Apesar da informação estratificada (Tab. 5) seria difícil se afirmar que os
camponeses seriam aquelas famílias residentes em domicílios permanentes na zona rural
que se encontram nos estratos de até 5 salários de rendimento mensal nominal,
considerando-se que há número relevante de camponeses com rendimento nominal mensal
muito superior a 5 salários mínimos.
13
15MR: 15 vezes o Módulo Regional
19
Tabela 5 – Brasil - Famílias residentes em domicílios permanentes na zona rural por classe
de rendimento familiar, rendimento nominal médio mensal e valor nominal
mediano mensal.
Classe de rendimento
nominal mensal em salários
mínimos
Nº de
famílias
%
Participação
acumulada
Renda
média
Renda
Mediana
Total Rural 7.890.548 100,00 429,44 250,00
Até ½ 970.836 12,30 12,30 3,41 0,00
Mais de ¼ a ½ 331.535 4,20 16,50 55,28 50,00
Mais de ½ a 1 1.653.419 20,95 37,45 131,62 150,00
Mais de 1 a 2 2.021.284 25.61 63,06 248,22 250,00
Mais de 2 a 3 1.022.719 12,96 76,02 387,41 391,00
Mais de 3 a 5 976.858 12,38 88,40 585,05 581,00
Mais de 5 a 10 628.877 8,00 96,40 1.032,23 1.000,00
Mais de 10 a 15 135.709 1,70 98,10 1.849,32 1.831,00
Mais de 15 a 20 58.737 0,75 98,85 2.637,41 2.600,00
Mais de 10 a 30 43.341 0,55 99,40 3.672,97 3.600,00
Mais de 30 47.234 0,60 100,00 10.023,87 6.500,00
Fonte dos dados: Censo Demográfico 2000/IBGE.
Fonte da tabela: Proposta de Plano Nacional de Reforma Agrária, Brasília, outubro de 2003.
2.2. Os dados básicos
“(...) O Brasil dispõe de duas categorias para cadastramento e censo de terras, quais
sejam: estabelecimento ou unidade de exploração, que é adotada pelos censos
agropecuários do IBGE, e imóvel rural ou unidade de domínio, que é adotada pelo
cadastro do INCRA, para fins tributários. Todas as estatísticas que configuram a estrutura
agrária atém-se a estas e somente a estas categorias. As terras indígenas, em decorrência da
figura da tutela, são registradas no Serviço do Patrimônio da União. As terras das
comunidades remanescentes de quilombo, também recuperadas pela Constituição Federal
de 1988, através do Art. 68 do ADCT, devem ser convertidas, pela titulação definitiva, em
imóveis rurais. Claúsulas de inalienabilidade, domínio coletivo e costumes e uso comum
dos recursos juntamente com fatores étnicos, tem levantado questões para uma visão
tributarista que só vê a terra como mercadoria passível de taxação, menosprezando
dimensões simbólicas. Em suma, uma nova concepção de” cadastramento se impõe,
rompendo com a insuficiência das categorias censitárias instituídas e levando em
consideração as realidades localizadas e a especificidade dos diferentes processos de
territorialização.
Sem haver ruptura explícita com tais categorias assiste-se a tentativas várias de
cadastramento parcial como apregoa a Portaria n.06 de 1o
. de março de 2004 da Fundação
Cultural Palmares, que institui o Cadastro Geral de Remanescentes das Comunidades de
Quilombo, nomeando-as sob as denominações seguintes: ‘terras de preto, mocambos,
comunidades negras, quilombos’ dentre outras denominações (Almeida, 1989).
20
Ora, a própria necessidade de um cadastro aparte releva uma insuficiência das duas
categorias classificatórias, ao mesmo tempo em que confirma e chama a atenção para uma
diversidade de categorias de uso na vida social que demandam reconhecimento formal.
Aliás, desde 1985, há uma tensão dentro dos órgãos fundiários oficiais para o
reconhecimento de situações de ocupação e uso comum da terra, ditadas por “tradição e
costumes”, por práticas de autonomia produtiva - erigidas a partir da desagregação das
plantations (algodoeira, açucareira, cafeeira) e das empresas mineradoras - e por
mobilizações sociais para afirmação étnica e de direitos elementares. Um eufemismo criado
no INCRA em 1985-86 dizia respeito a “ocupações especiais”, no Cadastro de Glebas,
onde se incluíam nos documentos de justificativa, as chamadas terras de preto, terras de
santo, terras de índio, os fundos de pasto e os faxinais dentre outros.
O advento destas práticas e a pressão pelo seu reconhecimento têm aumentado
desde 1988, sobretudo na região amazônica, com o surgimento de múltiplas formas
associativas agrupadas por diferentes critérios tais como: raízes locais profundas, fatores
político-organizativos, autodefinições coletivas, consciência ambiental e elementos de
identidade. A estas formas associativas expressas pelos novos movimentos sociais, que
objetivam os sujeitos em existência coletiva (Conselho Nacional dos Seringueiros,
Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu, Coordenação Nacional de
Articulação das comunidades negras rurais quilombolas, Movimento dos Fundos de
Pasto...) correspondem territorialidades específicas onde realizam sua maneira de ser e sua
reprodução física e social.” (Almeida, 2004: 2)
O tamanho da área do imóvel é um critério impreciso e insuficiente, tendo em vista
que parte substancial dos camponeses não possue o domínio do imóvel. Se definirmos, à
guisa de hipótese, que são camponesas aquelas famílias que possuem o domínio e ou a
posse de imóveis com área abaixo de 50 hectares, como se enquadrariam os
agroextrativistas do látex da borracha que demandam como mínimo três “colocações” que
abrangem área sempre muito superior a essa? E aqueles varzeiros de certas regiões do rio
Amazonas que em função do regime de vazantes e cheias e do formato da calha do rio
demandam até 200 hectares de terras para darem conta de exercerem uma das suas
atividades que é plantar na vazante?
Como exemplo pode-se citar a constatação de Hebette (op. cit.: 14) com relação ao
Estado do Pará: “Quantos são, finalmente, embora aproximativamente, os estabelecimentos
camponeses do Pará? Aceitando que, no caso do Pará, o critério de área inferior a 200ha
seja válido para circunscrever o campesinato; o número de estabelecimentos seria de
193.453, ou seja 93,7% do total dos estabelecimentos paraenses, cobrindo 7.162.289 ha, ou
seja 31,8% do total da área desses estabelecimentos.”
A desigual distribuição do acesso à terra no país demonstrada pa estrutura fundiária,
ainda que injusta, não informa se os proprietários de imóveis menores do que 50 hectares
são camponeses ou não. Mesmo quando se constata, como a citação adiante, que a maior
parte das famílias que habitam no campo e situam-se abaixo da linha da pobreza poderiam
ser consideradas como camponesas, pois o fato de residirem no campo não as identifica
como camponesas segundo a conceituação aqui empregada. Por exemplo, os assalariados
21
permanentes e os temporários não são camponeses, a não ser que acumulem essas duas
práticas sociais: camponês e ocasionalmente venda da força de trabalho.
“A estrutura fundiária brasileira caracteriza-se pela elevada concentração da
propriedade da terra. Esta característica dá origem a relações econômicas, sociais, políticas
e culturais cristalizadas em uma estrutura agrária inibidora do desenvolvimento, entendido
este como: crescimento econômico, justiça social e extensão da cidadania democrática à
população do campo. (Tabela 6)”
“Essa estrutura agrária, herança de 500 anos de história, gera pobreza, desigualdade
e exclusão no meio rural. Não obstante a modernização da agricultura brasileira nestes
últimos 30 anos e o bom desempenho desse setor, tanto na conformação do PIB brasileiro
quanto na balança comercial, a maior parte das famílias que habitam no campo situa-se
abaixo da linha de pobreza.” (Proposta de PNRA, 2003: 5).
Tabela 6. – Estrutura Fundiária Brasileira - 2003
Estratos de área
total
imóveis
%
dos imóveis
área total % de área área média
Até 10 há 1.338.711 31,6 7.616.113 1,8 5,7
De 10 a 25 há 1.102.999 26,0 18.985.869 4,5 17,2
De 25 a 50 há 684.237 16,1 24.141.638 5,7 35,3
De 50 a 100 há 485.482 11,5 33.630.240 8,0 69,3
De 100 a 500 há 482.677 11,4 100.216.200 23,8 207,6
De 500 a 1000 há 75.158 1,8 52.191.003 12,4 694,4
De 1000 a 2000 ha 36.859 0,9 50.932.790 12,1 1.381,8
Mais de 2000 há 32.264 0,8 132.631.509 31,6 4.110,8
Total 4.238.421 100 420.345.382 100 99,2
Fonte dos dados: Cadastro do Incra – situação em agosto de 2003
Fonte da tabela: Proposta de Plano Nacional de Reforma Agrária, Brasília, outubro de 2003.
Se utilizarmos a categoria imóvel para delimitarmos empiricamente os camponeses
seria impossível utilizar o estrato menos de 200 has, conforme sugerida por Hebette. Se
adotarmos como limite máximo o estrato menos de 100 has teríamos um total de 3,6
milhões de imóveis supostamente ce camponeses, ou seja, 85,2 % do total dos imóveis.
Segundo o Censo Agropecuário de 95/96 seriam estabelecimentos familiares um total de
4,14 milhões de estabelecimentos ocupando uma de 85,2% da área total de
estabelecimentos do país. O MDA/SAF para o Plano de Safra 2003/2004 considera 4,1
milhões de “agricultores familiares”. Há, portanto, insuficiência empírica na quantificação
do que aqui se denomina de campesinato.
3. Diversidade do campesinato
3.1. Multiplicidade de situações
Um total de 64,6% dos estabelecimentos considerados como “agricultura familiar”
se localiza nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Nessas regiões, por diversos fatores
22
históricos da sua formação, há uma grande diversidade de formas sociais de reprodução do
campesinato.
Referindo-se a essa diversidade no Pará, Hebette (2004: 12-13), arrola as seguintes
denominações ou autodenominações regionais: lavradores, agricultores, camponeses,
ribeirinhos, varzeiros, quilombolas, extratores, posseiros, colonos, assentados, atingidos por
barragem, catadores de babaçu, castanheiros, seringueiros, pescadores, catadores de
caranguejos e catadores de siris. Outra denominações ou auto-denominações poderiam ser
arroladas como quilombolas, quebradeiras de coco babaçu, fundos de pastos...
Com relação aos pescadores artesanais, Maneschy (2003: 1) ressalta: “Os
pescadores, pescadores-lavradores, ribeirinhos, lavradores e extrativistas no Pará e, por
extensão, na Amazônia, partilham uma origem histórica comum que remonta à colonização
e ao processo de desestruturação das populações indígenas, sua conversão no “índio
genérico”, destribalizado, formador das populações rurais amazônicas.”
Almeida (2004: 3-4) ao analisar os novos padrões de relação política no campo e na
cidade ressalta: “A nova estratégia do discurso dos movimentos sociais no campo, ao
designar os sujeitos da ação, não aparece atrelada à conotação política que em décadas
passadas estava associada principalmente ao termo camponês. Politiza-se aqueles termos e
denominações de uso local. Seu uso cotidiano e difuso coaduna com a politização das
realidades localizadas, isto é, os agentes sociais se erigem em sujeitos da ação ao adotarem
como designação coletiva as denominações pelas quais se autodefinem e são representados
na vida cotidiana (...) Tal multiplicidade de categorias cinde, portanto, com o monopólio
político do significado dos termos camponês e trabalhador rural, que até então eram
utilizados com prevalência por partidos políticos, pelo movimento sindical centralizado na
CONTAG (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura) e pelas entidades
confessionais (CPT, CIMI, ACR). Tal ruptura ocorre sem destituir o atributo político
daquelas categorias de mobilização. As novas denominações que designam os movimentos
e que espelham um conjunto de práticas organizativas, traduz transformações políticas mais
profundas na capacidade de mobilização destes grupos face ao poder do Estado e em defesa
de seus territórios (...)” (grifos no original)
“Em virtude disto é que se pode dizer que mais que uma estratégia de discurso tem-
se o advento de categorias que se afirmam através de uma existência coletiva, politizando
não apenas as nomeações da vida cotidiana, mas também práticas rotineiras no uso da terra.
A complexidade de elementos identitários, próprios de autodenominações afirmativas de
culturas e símbolos, que fazem da etnia um tipo organizacional (BARTH: 1969), foi trazida
para o campo das relações políticas, verificando-se uma ruptura profunda com a atitude
colonialista homogeneizante, que historicamente apagou diferenças étnicas e a diversidade
cultural, diluindo-as em classificações que enfatizavam a subordinação dos “nativos”,
“selvagens” e ágrafos ao conhecimento erudito do colonizador.”
“Não obstante diferentes planos de ação e de organização e de relações distintas
com os aparelhos de poder, tais unidade de mobilização podem ser interpretadas como
potencialmente tendendo a se constituir em forças sociais. Nesta ordem elas não
representam apenas simples respostas a problemas localizados. Suas práticas alteram
23
padrões tradicionais de relação política com os centros de poder e com as instâncias de
legitimação, possibilitando a emergência de lideranças que prescindem dos que detém o
poder local. Destaque-se, neste particular, que mesmo distantes da pretensão de serem
movimentos para a tomada do poder político logram generalizar o localismo das
reivindicações e mediante estas práticas de mobilização aumentam seu poder de barganha
face ao governo e ao estado, deslocando os ‘mediadores tradicionais’ (grandes proprietários
de terras, comerciantes de produtos extrativos-seringalistas, donos de castanhais e
babaçuais). Deriva daí a ampliação das pautas reivindicatórias e a”. multiplicação das
instâncias de interlocução dos movimentos sociais com os aparatos político-
administrativos, sobretudo com os responsáveis pelas políticas agrárias e ambientais (já que
não se pode dizer que exista uma política étnica bem delineada).”
Tudo leva a crer que parte significativa dessas categorias sociais, sejam elas
autodenominadas sejam denominadas pelo outro, esteja de certa maneira contempladas sob
nas estatísticas que identificam os estabelecimentos rurais. Isso não significa que essa
diversidade de categorias sociais passíveis de serem envoltas pela expressão camponês.
Para evidenciar a complexidade dessa diversidade se apresenta a seguir alguns
extratos de textos resultantes de estudos sobre o campesinato nas regiões Norte e Centro-
Oeste do país.
3.2. O Campesinato Paraense14
Jean Hebette
Observações metodológicas preliminares
As reflexões sobre o campesinato constantes deste texto sofrem de evidentes
limitações que requerem uma informação sobre as suas fontes e seus procedimentos
analíticos.
Estas reflexões são baseadas em duas fontes principais e desiguais: por um lado, as
fontes oficiais, principalmente as mais acessíveis e mais extensivas ao universo geográfico
abordado – o Pará - e, por outro lado, as que resultam de minhas observações pessoais de
muitos anos no Pará e na Amazônia em geral, que se dividem entre trabalho de pesquisa (a
maior parte publicada em livros e revistas) e observações ocasionais acumuladas sem o
mesmo rigor instrumental. Estes conhecimentos têm graus diversificados de precisão, uma
vez que trabalhei, sobretudo, no sudeste paraense e na Bragantina paraense.
São conhecidas as limitações das informações, mesmo as das fontes mais úteis e de
maior confiabilidade geral, como as do IBGE e, em certos casos, as do INCRA. Não
precisa estender-se sobre estas limitações. Convém, entretanto, chamar a atenção sobre o
uso feito das estatísticas do IBGE para falar do campesinato, uma categoria conceitual
fundamental para este estudo, mas que é desconhecida do IBGE.
14
O texto desta seção é constituído pela Primeira Parte do documento O Campesinato Paraense do estudo
Agriculturas Camponesas Paraenses, elaborado por Jean Hebette (2004).
24
Em que nicho, ou em que gruta das tabelas, dos gráficos e dos mapas do IBGE se
esconde o campesinato? Algumas tabelas do último Censo agropecuário – o de 1995-1996
– oferecem condições de cruzamento entre variáveis, como as categorias de condição do
produtor, de grupo de atividade econômica e grupos de área total ou específica (colheita...),
de tipo de produto, destino da produção. Um teste de cruzamento entre essas variáveis me
levou a privilegiar, para circunscrever a categoria camponesa, a variável “área total do
estabelecimento”, escolhendo como mais representativas do campesinato as áreas abaixo de
200 hectares. É para essas áreas que convergem, no caso do Pará, outras variáveis que
conhecemos como mais típicas do campesinato paraense, tais como: importância das
lavouras temporárias, uso limitado de insumos externos aos lotes, ausência de
equipamentos agrícolas ou outros utilitários como veículos, nível baixo da comercialização
dos produtos.
Quem são os camponeses?
O modo de vida que, neste ensaio, será chamado camponês, e as populações que
dele vivem, também chamadas camponesas, se oferecem ao nosso olhar mediante algumas
características fundamentais. Os camponeses são produtores livres de dependência pessoal
direta – são “autônomos”; sua sobrevivência de homens livres lhes impõe laços de
solidariedade cuja quebra ou enfraquecimento ameaçam seu modo de vida; esses laços
mais primários são os de parentesco e de vizinhança que os levam a procurar se agrupar em
“comunidade”; a busca de sua permanência e reprodução numa mesma “terra” (ou no
mesmo “terroir”, como se diz em francês), traduzidas como apego à terra, é a marca do
sucesso de seu modo de vida e a fonte de seu cuidado com seu ambiente: A migração para
ele é uma fatalidade, a expulsão, uma degradação inaceitável.
No Brasil, a palavra camponês desapareceu do léxico oficial; cheira o atraso do
homem do campo. Desapareceu também do dicionário de muitos cientistas da agronomia e
até das ciências sociais, pois o conhecimento do homem do campo postula do estudioso um
trabalho persistente de campo. Lhe é preferida a expressão vaga e homogeneizadora de
“agricultor familiar” cuja fácil identificação se reduz a algumas variáveis quantitativas de
números de trabalhadores, familiares e exteriores à ela, e de quantidade de meses de
trabalho externos ao grupo doméstico (ver a brilhante crítica de Delma Passanha). Esta
opção metodológica adotada nas esferas oficiais facilita, evidentemente, a utilização da
estatística graças a seu poder de homogeneização redutora de uma categoria social muito
complexa e diversificada.
A raiz desta diversidade tem suas explicações, que, obviamente, não se encontram
apenas nas predisposições e nas práticas das famílias que vamos analisar. Elas exigem a
recomposição da história, das políticas públicas e, acima de tudo, na Amazônia, dessa
complexa teia de relações entre as diversas categorias de exploradores da terra, que está
embutida na história e nas políticas públicas. Estes aspectos serão examinados brevemente
numa primeira parte deste trabalho; a secunda parte será dedicada ao exame de três
situações típicas do Estado do Pará: o Oeste, o Sudeste, a Bragantina. [A segunda parte do
estudo de Hebette não está aqui incluída].
25
O contexto contraditório do nascimento do campesinato paraense: um pouco de história
O campesinato sobrevive no Brasil em proporções e densidade muito diversificadas
segundo as regiões e segundo suas modalidades. A referência ao campesinato sempre foi a
referência à Europa continental Ocidental; é lá que os governos foram buscar os colonos
quando findou o regime escravagista; estes se fixaram sobretudo no Sul e no Centro-Sul do
país, regiões mais próximas da Europa em termos ambientais, onde deram origem a um
campesinato original. Daqui em diante, o “tipo ideal brasileiro” do campesinato se tornou o
campesinato do Sul e Centro-Sul. É esta referência que orientou todas as políticas públicas
brasileiras para o campesinato --- quando houve!, inclusive as políticas recentes de
colonização. O Norte ficou o refúgio dos camponeses atrasados, os “caboclos”.
Na Amazônia, quando o Estado do Maranhão e Grão-Pará era ainda distinto do
Estado do Brasil, o progressista Marquês de Pombal, tentou criar também um campesinato.
Nos idos de 1750, tentou aculturar como agricultores livres no Amapá e no Nordeste
paraense colonos expulsos da praça forte de Mazagão, no Marrocos. Não teve êxito.
Na verdade o primeiro campesinato totalmente livre que surgiu e se manteve no
Pará, foi formado pelos quilombolas que fugiram da escravidão, aos quais se juntaram,
mais tarde, os rebeldes cabanos que escaparam do massacre pelas tropas legalistas do
Império. Esperaram até o fim do século XX para ter algum reconhecimento público de sua
identidade e de seu direito à terra duramente conquistada.
Vieram em Santarém homens do campo derrotados no sul do Estados Unidos na
Guerra de Secessão. Nas proximidades de Belém, em Benevides, vieram alguns migrantes
franceses denominados canadinos. Não persistiram e não formaram campesinato.
Foi uma grave seca que assolou todos os trópicos do mundo nos anos 1870,
inclusive os sertões do Nordeste brasileiro, que arrancou de suas terras e do domínio de
seus donos, levas de migrantes nordestinos que procuraram sua sobrevivência na
Amazônia, região imune, por suas águas, ao flagelo. Muitos deles foram se escravizar no
duro serviço dos seringais. Outros ficaram nas cercanias das cidades de Belém, penetrando
para o leste do Pará, acompanhando uma ferrovia que progredia penosa e vagarosamente
nas matas bragantinas. Estes foram os que criaram no Pará um primeiro campesinato denso,
articulado, e de certa maneira próspero, considerando-se as outras categorias de
trabalhadores. Um dado de importância fundamental para a constituição de um campesinato
efetivamente autônomo na Bragantina, foi a alocação aos colonos de lotes de terra
claramente delimitados pelo governo e de tamanho adequado a um tipo de exploração
familiar (média de 30 ha).
A falta de delimitação oficial das terras camponesas nas áreas ribeirinhas da rede
fluvial Amazônica manteve, muitas vezes, na dependência social dos grandes proprietários,
as famílias que, por tradição secular ou por presença mais recente, moravam nas regiões
banhadas pelo rio Amazonas e seus afluentes. As famílias donas de grandes fazendas,
residentes no seu domínio rural ou na cidade ou ainda alternativamente num e na outra,
26
donas também, geralmente de cargos políticos, de cartório, ou de comércio e de transporte
exerciam e continuam exercendo sobre essas famílias camponesas diversas formas de
pressão, de obrigações e de dominação.
As vias e as condições de transporte e de comunicação são de extrema importância
para as populações rurais; geralmente, estas distâncias aumentam ou diminuem conforme a
densidade da população. O fato de a colonização da Bragantina ter avançado ao ritmo da
implantação de um ferrovia pública dos anos de 1880 a 1920, assim como o módulo de 30
ha para as terras das colônias, contribuiu bastante para a constituição de um campesinato
relativamente denso, organizado em torno das estações do trem que se tornaram
progressivamente centros de comércio e de serviços. A condição de serviço público da
ferrovia, por outro lado, preservou as populações de uma dependência paternalista dos
donos de empresas privadas. As populações ribeirinhas dos rios organizadas após a
escravidão e reforçadas pela volta àquelas regiões dos seringueiros, não se beneficiaram das
mesmas vantagens e permaneceram mais tempo na dependência dos grandes donos de terra.
Mas diferente foi o impacto sobre o campo das vias de comunicação quando
deixaram de ser locais, ou simplesmente regionais. Foi o que aconteceu a partir do
momento em que a indústria brasileira, aproveitando o parêntese da Segunda Guerra
mundial, penetrou no ramo da construção automobilística que se ampliou nos anos de 1970
e 1980. Este interesse pela construção e/ou montagem de caminhões, carros e ônibus
acompanhou-se necessariamente do desenvolvimento da rede rodoviária de dimensões
nacionais. O Pará foi inicialmente afetado pela nova política de transporte com a construção
da rodovia conhecida como Belém-Brasília que, nos anos de 1950 e 1960, penetrando nas
bandas nordestinas do Estado, passou a interligar as duas capitais com fluxos de veículos
crescentes à medida que a rodovia estava completando a sua infra-estrutura física e de
serviços. Ela foi acompanhada pela implantação de um novo latifúndio madeireiro e
pecuário mais dinâmico, empresarial e impessoal, que contrastava com o latifúndio
paternalista dos tempos passados. Enquanto este novo latifúndio estava irrigado de
generosos incentivos fiscais, o campesinato recebia apenas uma minguada assistência
técnica. Marcou o início do enfraquecimento da colonização bragantina.
A implantação da rodovia Transamazônica no sentido leste-oeste nos anos 1970
teve, também, impacto profundo no Sudeste paraense, mas ela apresentava características
diferentes. Primeiro, os objetivos básicos dessa implantação: tratava-se de povoar uma
imensa parte do país de densidade populacional ínfima para despovoar outra parte – a do
Nordeste – cujas densidades aumentavam o caráter potencialmente explosivo das
contradições agrárias. Trazia no seu bojo o modelo rural supostamente integrador de
atividades agropecuárias empresariais e camponesas, de desenvolvimento empresarial
eficiente de latifúndios improdutivos concedidos pelo governo no Sul do Pará nos anos de
1950, e de um programa de colonização agrícola oficial.
O governo não contava com o potencial organizativo dos pequenos produtores que,
desprezando os planos governamentais de organização colonizadora, procuravam sua
autonomia, fugindo do cativeiro da terra no Nordeste. O projeto de colonização ao longo da
Transamazônica envolvia a transferência, do domínio estadual para a jurisdição federal, das
terras cortadas pela rodovia, com a conseqüência da montagem de um novo organismo
27
governamental representando a União nas terras de colonização: uma forma autoritária de
intervenção federal que retirava do governo estadual a competência em termos de infra-
estrutura, educação, saúde, assistência técnica, crédito nas áreas de colonização, criando
uma superpotência prepotente, o INCRA. Este autoritarismo, casado com uma prepotência
que excluía o diálogo, estimulou a formação de um tipo de organização sindical
particularmente forte respondendo à imposição pela imposição até que se chegasse a um
princípio de diálogo.
Esta força sindicalista estava também estruturando-se no meio às populações
tradicionais do Oeste Paraense, mais precisamente no raio de ação da cidade de Santarém,
alastrando-se ao longo da Transamazônica e nos municípios do Baixo Amazonas. A
influência do movimento sindical no Sudeste paraense foi determinante na construção de
um “novo campesinato”.
Entretanto, este campesinato regional em formação, desprovido de um apoio
competente dos governos estaduais e federal, sofria uma tremenda pressão dos novos
latifundiários, estes apoiados pelo grande e médio capital, ele mesmo apoiado pelo estado.
Hoje, salta aos olhos a estratégia tenaz de ocupação da Amazônia tanto denunciada, sem
sucesso, pelos estudiosos da Amazônia, pesquisadores e jornalistas, desde 1970. Ela pode
ser esquematizada, no Pará da maneira seguinte:
⋅ ocupação militar graças aos programas de infra-estrutura e de ocupação camponesa;
⋅ ocupação empresarial de grande monta (mineração, indústria siderúrgica,
hidrelétrica...);
⋅ penetração das matas pelos madeireiros e fazendeiros, na seguinte seqüência:
⋅ 1º: desmatamento e pecuária extensiva (aliança madeireiras/pecuaristas) ao
longo das grandes rodovias (Belém-Brasília, Transamazônica, PA 70 e 150),
inclusive graças à mão de obra rural vinda do Nordeste brasileiro;
⋅ 2º: desenvolvimento de uma pecuária moderna, principalmente no Sul e Sudeste
paraenses;
⋅3º: introdução da soja, principalmente ao longo do traçado da rodovia Cuibá-
Santarém (fase atual).
Estas estratégias repousam numa visão de médio e longo prazo e têm uma grande
coerência interna tipicamente capitalista. Ela se sintetizava no projeto do Grande Carajás, o
Carajazão, de Delfim Netto, que, já em 1980, previa “800 mil hectares de soja plantados”
e, isto, “apesar da inexistência de resultados definitivos que possam fundamentar a
introdução da cultura” (boletim Relatório reservado, de novembro de 1980). A Embrapa
encarregar-se-ia de adaptar a soja aos ecossistemas amazônicos ‘transgenicados’ e a miséria
rural encarregar-se-ia de fornecer uma mão-de-obra semi-escrava para a realização dos
planos ‘delfinicos’.
Neste quadro megalomânico e desumano, conseguiu-se nascer e se organizar o que
já chamei “um novo campesinato paraense” (Sudeste paraense e transamazônico de terra
firme) e começar a se organizar um campesinato de tradição ribeirinho-varzeira de matiz
28
ambiental (ao longo do rio Amazonas): dois tipos originais de campesinato brasileiro
totalmente desconhecidos fora da região.
O Pará camponês e seu entorno
Segundo o Censo de 2000, o Estado do Pará mede 1.227.530 km2
; a população, em
2000, se elevava a apenas 6.192.307 habitantes, representando uma densidade populacional
muito abaixo da dos Estados mais ao sul (5 hab/km2
) - número este geralmente interpretado
como negativo e como sinal de subdesenvolvimento. A presença e o modo de vida das
populações indígenas e do campesinato testemunham que não é bem assim.
Esta população paraense está distribuída de uma maneira desigual: 33% dela reside
na região metropolitana de Belém, área considerada pelo IBGE como quase totalmente
“urbana”; além desta área metropolitana, somente três cidades têm mais de 100.000
habitantes (Santarém, Castanhal e Marabá). A população designada pelo IBGE como
”rural”, por sua vez, representa 33,5% do total paraense. Onde estão os outros 33%? No
“campo” e em sedes de municípios indevidamente chamadas “urbanos”, mas que são na
realidade pequenos centros rurais de serviços (de 20 a 50.000 habitantes, entre os quais
muitos agricultores).
A área dos estabelecimentos agropecuários calculada pelo Censo Agropecuário de
1995-96 era de 22.520.229 ha (18,35% do Estado), sendo que a área dos 193.453
estabelecimentos de menos de 200 ha somava 7.162.291 há (32% deste total), enquanto 158
estabelecimentos de mais de 10.000 ou mais ha cobriam, na época do censo, 5.369.196 ha,
ou seja, 23,8% da área total dos estabelecimentos! E o resto do espaço estadual? Ele se
dividia entre “reservas” de diferente natureza (mineração, remansos de barragens para
hidrelétricas, áreas de titulação irregular etc,) num total de 40 milhões de hectares. Além
destas áreas inacessíveis à população em geral, há áreas acessíveis para uma população
reduzida devido às normas de conservação, notadamente as florestas nacionais, os parques
nacionais, as reservas extrativas e as reservas biológicas que soma um total 46,53 milhões
de hectares. As terras indígenas somam um total, no Estado do Pará, de 27, 67 milhões de
hectares. Como terras de uso restrito (áreas da aeronáutica e outras) tem-se 31,4 milhões de
hectares.
O espaço camponês paraense
O que representava, em 2000, o campesinato no conjunto desta população paraense?
O Censo demográfico não nos informa a este respeito, e nem em relação às
populações indígenas. Com certeza, ela população camponesa não se mede pela população
rural, porque, primeiro, nem toda a população rural é camponesa, e, segundo, há muitos
camponeses recenseados como “urbanos” nas cidades do interior. Deve-se, portanto,
utilizar outras referências que o trabalho de campo permite identificar, cruzando diversas
“variáveis”; entre elas, por exemplo, a dimensão da terra do estabelecimento, o tipo de
produtos, as tecnologias usadas, os equipamentos disponíveis. Cada uma destas variáveis
devendo ser considerada dentro do contexto sóciocultural e tecnológico da região e inter-
relacionadas, nenhuma delas sendo significativa isoladamente.
29
O teste pragmático de representatividade da identidade camponesa experimentado,
no contexto paraense e com base em dados disponíveis, resultou na escolha da variável
tamanho da terra como a mais satisfatória – não em si, mas dentro do contexto paraense e
em confronto com a nossa experiência de campo.
Esta informação, infelizmente, só é disponível no último Censo Agropecuário,
defasado em quase 10 anos, o que é muito, considerando-se o dinamismo demográfico da
região Norte, cuja população cresceu, de 1960 a 2000, a uma taxa anual de 2,86% (de longe
a maior de todas as regiões do país), sendo a taxa de crescimento “urbano” de 4,82%, bem
mais ainda do que a taxa das outras regiões, enquanto a população rural baixava de 0,62%,
de longe, a menor de todas as regiões) (IBGE, 2000, p. 31). Além desta limitação, deve-se
levar ainda em conta a imprecisão e a confiabilidade limitada de alguns dados dos censos,
particularmente em contexto amazônico. Apesar destas restrições, são os dados daquele
censo que nos foi possível utilizar.
A grande tendência da evolução da agropecuária camponesa paraense
O Censo Agropecuário dá uma idéia aproximativa da tendência de crescimento em
termos de estabelecimentos e de pessoas na agropecuária do Estado. Para efeito de
comparação foram adotados como início do período os anos de 1960 que caracterizam a
abertura da fronteira amazônica, e como final do período o ano de 1995, ano do último
Censo Agropecuário.
Como dito acima, o Censo de 1995-96 registrou uma área de 22.520. 229 ha
(18,35% do Estado) pertencentes a 206.404 estabelecimentos agropecuários, incluindo
lavouras, pastagens, florestas, pesca e áreas não utilizadas.
A Tabela 7 mostra a evolução do número de estabelecimentos daqui em diante
considerados representativos do campesinato e a Tabela 8, a evolução das áreas daqueles
estabelecimentos, com seus respectivos percentuais em relação ao total da agropecuária
paraense.
Essas tabelas mostram que, ao longo do período, o número relativo (%) de
estabelecimentos aqui considerados camponeses se manteve no nível de 92-93% do total, e
o volume da área em torno de 31-33%, confirmando a enorme concentração da terra.
O número de estabelecimentos camponeses aumentou muito menos do que os das
outras categorias, pelo menos se incluir na comparação um grande número de
estabelecimentos sem declaração no Censo de 1960; pode-se, inclusive, conjeturar que
estes estabelecimentos omitidos eram precisamente os maiores.
30
Tabela 7 . Evolução do número de estabelecimentos agropecuários
por grupos de área total dos estabelecimentos. Pará 1960-1996
Área
(ha)
1 9 6 0 1 9 9 6
∆% (b/a)Nº de
estab.
(a)
%
Nº de
estab.
(b)
%
< 10
10 a < 100
100 a < 200
Subtotal
200 a < 10.000
10.000 e mais
Subtotal
Sem declaração
Total
34.770
39.040
3.054
76.864
3.306
33
3.339
2.977
83.180
41,80
46,93
3,67
92,41
3,98
0,03
4,01
3.58
100%
64.838
104.435
24.180
193.453
12.584
162
12.746
205
206.404
31.41
50.60
11.72
93,72
6,10
0,08
6.18
0,10
100%
86
167
692
152
280
391
282
-94
148%
Fonte: IBGE. Censo Agropecuário 1995-1997. Pará. Tabela 1
Tabela 8. Evolução da Área dos Estabelecimentos Agropecuários
por Grupos de área total dos estabelecimentos. Pará 1960-1996
Área
(ha)
1 9 6 0 1 9 9 6 ∆% (b/a)
Nº estab.
(a) %
Nº estab.
(b) %
<10
10 a < 100
100 a < 200
Subtotal
200 a < 10.000
10.000 e mais
Subtotal
Total
131.294
1.215.059
415.341
1,761.694
2.542.902
948.676
3.491.578
5.253.272
2,50
23,13
7,90
33,53
48,41
18,06
66,47
100%
210.417
4.117.745
2.834.129
7.162.291
9.988.743
5.369.196
15.357.939
22.520.230
0,93
18,28
12,58
31,78
44,36
23,84
68,20
100%
60
229
582
307
293
566
340
324
31
No que se refere ao campesinato, aumentou muito o número de estabelecimentos na
faixa entre 100 e menos na faixa de 200 hectares, o que se deve, pode-se acreditar, ao
módulo de 100 hectares fixado inicialmente pelo INCRA na época da colonização oficial.
Está faixa representa os 12% de camponeses, mas dotados de terra. Em sentido contrário,
os minifúndios tenderam a declinar. O forte do campesinato e sua maior tendência ao
crescimento estão, entretanto, na faixa intermediária de 10 a menos de 100 hectares.
Quantos são, finalmente, embora aproximativamente, os estabelecimentos
camponeses do Pará?
Aceitando que, no caso do Pará, o critério de área inferior a 200 ha seja válido para
circunscrever o campesinato; o número de estabelecimentos seria de 193.453, ou seja,
93,7% do total dos estabelecimentos paraenses, cobrindo 7.162.289 ha, ou seja 31,8% do
total da área desses estabelecimentos.
3.3. Os pescadores de pequena escala no Pará15
Maria Cristina Maneschy
“O Estado do Pará tem grande parcela de sua população vivendo no meio rural ou
dele dependendo para obter seus meios de vida. Parte significativa dos que residem nas
pequenas e médias cidades do Estado trabalha no campo, de maneira exclusiva ou parcial.
Neste Estado, como aliás na região como um todo, as águas ocupam lugar de destaque e,
nesse contexto, a pesca sobressai como atividade produtiva. Com seus dois segmentos -
artesanal e industrial, conforme a terminologia oficial – o Pará é o maior produtor de
pescado do país, tendo suplantado o Estado de Santa Catarina, tradicional pólo pesqueiro
do Brasil.
Os pescadores artesanais que, em sua maioria, são pescadores de pequena escala,
podem ser considerados como parte do campesinato, por compartilharem um conjunto de
características com os camponeses de base agrícola. Ademais, as categorias ‘pescadores’ e
‘agricultores’ não raramente se confundem, embora menos hoje do que em um passado não
muito distante. Os mesmos produtores que exercem a pesca, podem exercer a agricultura
ou, ainda, diversos tipos de extrativismo. Nesses casos, a identificação profissional com a
pesca ou a agricultura - feita por exemplo para inscrição no sindicato e para requisitar
direitos vinculados ao estatuto profissional – pode ocorrer por fatores diversos, como o
tempo de dedicação a uma ou outra, ou o seu grau de contribuição para o orçamento
doméstico. Há que se considerar, também, que por vezes a participação das famílias nas
atividades em terra e nas águas obedecerá a um padrão de divisão do trabalho por sexo e
por idade. Assim, conforme o lugar, podem-se encontrar famílias em que os homens
pescam e as mulheres trabalham regularmente na roça, podendo praticar pesca de beira e
15
Esta seção é constituída por extratos do documento Diversidade camponesa: os pescadores de pequena
escala no Estado do Pará, de Maria Cristina Maneschy (2003).
32
realizar tarefas complementares à pesca dos parentes. Em outros casos, os homens podem
pescar e trabalhar na terra e as mulheres na terra e no beneficiamento de mariscos.
Há, portanto, muitas situações em que pescadores e agricultores se confundem. Mas
há, também, uma grande proporção de pescadores, dedicando-se integralmente às lides
pesqueiras, o que é comum nas cidades portuárias. De todo modo, a despeito da
importância da pesca nesta região, importância econômica e social, vale ainda lembrar que
não se trata de uma região de “grande tradição” pesqueira, como ocorre em certos países
costeiros, capaz de conformar padrões culturais absolutamente distintos entre as
comunidades de pesca, notadamente as marítimas, e as comunidades terrestres. Os
pescadores, pescadores-lavradores, ribeirinhos, lavradores e extrativistas no Pará e, por
extensão, na Amazônia, partilham uma origem histórica comum que remonta à colonização
e ao processo de desestruturação das populações indígenas, sua conversão no “índio
genérico”, destribalizado, formador das populações rurais amazônicas.
Evidentemente, a partir de meados do século XX, com as políticas de crescimento
econômico e de ‘integração’ regional por meio dos grandes eixos rodoviários, a ocupação
das terras firmes distantes dos cursos dos grandes rios provocou mudanças no perfil
demográfico e cultural. Assim como levas de migrantes assentados ao longo das rodovias
especializaram-se nas atividades agrícolas, também levas de antigos pescadores-lavradores
dirigiram-se para cidades e se especializaram na pesca.
Os pescadores artesanais ou de pequena escala, exclusivos ou não, são aqui
considerados como parte do campesinato, como já referido, pois partilham características -
e, também, problemas para sua reprodução social – com os camponeses de base agrícola.
Dentre essas características destaca-se a condição de produtores autônomos, a importância
da família na produção, que pode se dar na composição das unidades de trabalho –
tripulações – ou na realização de tarefas pré e pós-captura, quando as mulheres ou filhas de
pescadores ocupam-se do conserto ou confecção de instrumentos de pesca (notadamente as
redes) e beneficiam o produto trazido pelos parentes. A proximidade de interesses de ambas
as categorias evidencia-se no fato de que participam de mobilizações em conjunto, como é
o caso dos Gritos da Terra, quando pressionam por políticas de apoio, reconhecimento e
direitos.” (Mareschy, 2003: 1-2)
“(...) A despeito da importância indiscutível do setor pesqueiro na região, do ponto
de vista econômico e social permanece a grande carência de estudos sistemáticos sobre suas
características básicas, formas de organização e problemas vivenciados dia a dia pelos
pescadores e pelas comunidades pesqueiras em geral. A falta de estatísticas sobre o
contingente humano envolvido tem sido observada em vários estudos, não somente no Pará,
como em outras regiões do país, como analisou Diegues (1995). A ausência de dados ou
políticas setoriais consistentes são expressões do lugar secundário com que a atividade
ainda é vista na região.
Os pescadores exploram diversos ambientes. O Estado do Pará oferece
possibilidades de pesca marítima, costeira (nas praias, nas águas ao largo, sobre bancos de
areia, nas baías...), fluvial (ao longo dos rios, cabeceiras ou foz de rios e igarapés), pesca
lacustre (com destaque para os lagos do Baixo Amazonas, da ilha de Marajó e o lago de
33
Tucuruí) e, ainda, nos manguezais da costa. Os que executam pescarias móveis podem
efetuar grandes deslocamentos, chegando mesmo aos estados vizinhos. Os deslocamentos
podem estar se modificando tanto por fatores ambientais quanto pela escassez decorrente de
acentuada pressão sobre os estoques e a ausência de medidas sistemáticas de manejo
pesqueiro, obrigando os pescadores a procurar pesqueiros (locais de pesca) mais distantes.
Há, portanto, modalidades bastante diferentes de pesca no Estado, que requerem
disponibilidade de meios de trabalho, de tempo e de mão-de-obra, muito diferentes. No que
diz respeito a medidas concretas de apoio à categoria, tais diferenças devem ser levadas em
conta. De acordo com o dirigente de uma associação de pescadores no município de Porto
de Moz, em entrevista no ano de 2000, as especificidades locais devem ser consideradas
inclusive nas pesquisas aplicadas.
“... Tocantins é diferente do Xingu, diferente do Tapajós, do Amazonas, do Salgado
[zona costeira]; então, seria [preciso] insistir nessas pesquisas por região, certo, pra poder
ter um crescimento de conhecimento, porque cada região tem o seu conhecimento, tem a
sua cultura, tem o seu jeito de trabalhar. Então, aí vai ser difícil traçar uma política única,
por exemplo, que é feita para o Salgado, que dá certo, mas no Baixo Amazonas não dá. Se
foi um política lá no Tocantins, lá tem um sistema diferente do Xingu. Então é isso que eu
falo da questão de uma política assim voltada (...) Com relação ao estudo eu me refiro que
o governo tem os seus órgãos de pesquisa, então é necessário liberar mais recursos para
os órgãos de pesquisas, pra poderem fazer essas pesquisas aqui na região”. 16
(Mareschy,
op. cit.: 6-7)
“(...) Uma categoria de pescadores numericamente importante no litoral é composta
pelos “tiradores” de caranguejos, que atuam nos exuberantes manguezais da área.17
É uma
categoria cuja formação é relativamente recente, pois decorreu do incentivo à
comercialização trazido pelas estradas, a partir dos anos 1970. Há indícios de que ela vem
crescendo numericamente. SILVA (2004) observou um acréscimo no número de pessoas
nessa atividade nos últimos cinco anos, que teria ocorrido pela “falha” (diminuição) de
peixes de maior valor comercial na região costeira.
Os tiradores estão inseridos na categoria mais ampla de pescadores, mas apresentam
particularidades. O grau em que dependem da “tiração” como fonte de renda varia
conforme o local. Em pesquisa de campo em 1990 no município de São Caetano de
Odivelas sobre os tiradores de caranguejos, MANESCHY (1993) verificou grande número
deles atuando somente nessa atividade, sobretudo no caso dos residentes na cidade. Eles
entremeavam a tiração eventualmente com a pesca em rios ou com serviços (por exemplo,
16
Sr. Pedro Maciel, então presidente da Associação de Pescadores Artesanais de Porto de Moz (ASPA).
Entrevista concedida a Ana Laíde Barbosa, coordenadora regional do Conselho Pastoral de Pescadores.
17
Ainda que não se trate de determinismo ambiental, compreender a presença desses trabalhadores implica
considerar a grande extensão dos manguezais ao longo da costa paraense e dos estados vizinhos: “A costa
brasileira possui uma das maiores áreas contínuas de manguezal do mundo, em torno de 1,38 milhões de
hectares, cuja vegetação apresenta sua maior exuberância nas latitudes próximas à linha do Equador, no litoral
amazônico...”. Fonte: FERNANDES, M. E. B. (org.) Os manguezais da costa norte brasileira. Maranhão,
Fundação Rio Bacanga, 2003. (Prefácio) No Pará, os manguezais ocupam 4.500 km2 (conforme PAIVA,
1981, apud SUDEPE, 1988), correspondendo a cerca de 1/5 dos manguezais do país.
34
capinação de ruas). Já no caso de povoados, era mais comum encontrar tiradores que eram
também agricultores.” (Maneschy, p. cit.: 16)
3.4. Territorialidades tradicionais e perspectivas de sustentabilidade nos cerrados18
Carlos Eduardo Mazzeto da Silva
Introdução
Os Cerrados se constituem no segundo maior bioma brasileiro após a Floresta
Amazônica, ocupando praticamente um quarto do território brasileiro (Figura I) -
equivalente, por exemplo, à área da Europa ocidental -, presente em 13 unidades federativas
do Brasil19
, e abrigando um rico patrimônio de recursos naturais renováveis adaptados às
duras condições climáticas, edáficas e hídricas que determinam sua própria existência.
Mesmo se identificando na denominação internacional de savanas, os Cerrados são uma
formação única no mundo, só presente em nosso território.
A dimensão da biodiversidade dos Cerrados ainda não está completamente
conhecida. Estimativas apontam para a existência de mais de 6.000 espécies só de árvores.
Dias (1996) ressalta no universo vegetal dos Cerrados, 14 grupos de plantas úteis:
forrageiras, madeireiras, alimentícias, condimentares, têxteis, corticeiras, taníferas, com
exudatos no tronco, produtoras de óleo, medicinais, ornamentais, empregadas no
artesanato, apícolas e aparentadas de cultivos comerciais.
As estimativas sobre a diversidade de espécies animais se encontra no quadro 3.
Quadro 3 – Estimativa de número de espécies de répteis,
anfíbios, mamíferos e aves do Cerrado
Tipo de animal Número de espécies
Répteis (Cerrado) 180
Répteis (Pantanal) 113
Anfíbios (Cerrado) 113
Aves (Cerrado) 837
Mamíferos (Cerrado) 195
Mamíferos (Pantanal) 132
Fonte: WWF, 2000 a partir de dados de Marinho Filho, 1998 e Cardoso, 1998.
18
Esta seção é constituída pela Parte II – Territórios tradicionais e a perspectiva da sustentabilidade dos
cerrados, do documento Conhecimento Local e Sustentabilidade: lugares e saberes das ruralidades não-
modernas dos cerrados, de Carlos Eduardo Mazzeto da Silva (2002).
19
Bahia (oeste e Chapada Diamantina), Ceará (enclaves nas Chapadas Araripe e Ibiapaba), Distrito Federal,
Goiás, Maranhão (sul e leste), Mato Grosso (sul), Mato Grosso do Sul, Minas Gerais (centro-oeste, noroeste,
parte do norte e nordeste e Serra do Espinhaço), Pará (enclaves no sudeste), Piauí (sudoeste e norte),
Rondônia (área centro-leste), São Paulo (enclaves no centro-leste) e Tocantins (exceto extremo norte).
35
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Da infungibilidade do marxismo final 123
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Disciplina iii unb (texto 3)
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Via campesina camponeses no brasil

  • 1. VIA CAMPESINA DO BRASIL UM REFERENCIAL PARA O CAMPESINATO NO BRASIL (versão preliminar) CURITIBA, MAIO DE 2004
  • 2. INDICE Prefácio.....3 1. Camponeses no capitalismo.....4 1.1 . Controvérsia central.....4 1.2 . Controvérsia no Brasil....8 1.3 . O fim do campesinato? (Bernardo Mançano Fernandes)....12 2. Atualidade do campesinato no Brasil.....14 2.1. Classificação por critério de oportunidade.....14 2.2. Dados básicos.....20 3. Diversidade do campesinato..... 22 3.1. Multiplicidade de situações.....22 3.2. Campesinato paraense (Jean Hebette)....24 3.3. Os pescadores de pequena escala no Pará (Maria Cristina Maneschy).....32 3.4. Territorialidades tradicionais e perspectivas de sustentabilidade nos Cerrados (Carlos Eduardo Mazzetto da Silva).....35 3.5. O Eldorado do Brasil Central: ambiente, democracia e saberes populares no Cerrado (Ricardo Ferreira Ribeiro).....48 4. Um novo referencial teórico.....54 4.1. Modo de ser e de viver: uma utopia camponesa?.....55 4.2. Uma teoria econômica do campesinato (Francisco Assis Costa)....63 4.3. Dimensão sociológica e política.....74 4.3.1. Elementos do padrão reprodutivo do campesinato.....74 4.3.2. A importância dos novos referenciais sociais para o campesinato (Horacio Martins de Carvalho)..... 76 4.4. Dimensão ecológica (Marcos Flávio da Silva Borba).....81 4.5. Dimensão tecnológica e agroecológica..... 86 4.5.1. Mudanças na matriz e nas práticas de produção (Horacio Martins de Carvalho).....87 4.5.2. Transição agroecológica (Silvio Gomes de Almeida e Gabriel Bianconi Fernandes) .....89 5. Literatura citada.....93 2
  • 3. PREFÁCIO Está-se entrando no século XXI, segundo o calendário hegemônico no mundo ocidental, e os camponeses não dão sinais de que poderão deixar de marcar presença ativa nas formações econômicas e sociais em todas as partes do mundo. Com maior ou menor relevância econômica, social e política, e se reproduzindo socialmente sob centenas de formas de vida social, os camponeses afirmam e reafirmam seus modos de ser e de viver, marcando diferenças com relação aos estilos de vida dominantes e com as formas de conceber as suas relações sociais de produção e aquelas com a natureza. Porque estão sempre presentes na história, os camponeses têm sido objeto das mais diversas interpretações teóricas e de um sem número de predições sobre o seu destino. A ampla gama de paixões políticas controversas que desperta o seu modo de ser e de viver nos vários períodos do desenrolar da história moderna até nossos dias, em particular a partir do desenvolvimento do modo de produção capitalista, exige de todos os interessados no seu conhecimento e na sua transformação que se resgate continuadamente os pontos teóricos mais polêmicos com respeito à sua reprodução social. Enquanto um texto1 , entre diversos outros, para estudo e debate no interior da Via Campesina do Brasil – Via, este documento objetiva ressaltar alguns aspectos do debate teórico e da atualidade da questão camponesa no Brasil, de maneira que sirva de motivação para o aprofundamento de estudos sobre a matéria e de subsídio para a formulação de estratégias de médio e longo prazo para as ações da Via de apoio e de desenvolvimento da reprodução social do campesinato no Brasil. Por esses motivos é que se utilizou o expediente “citações longas” de textos considerados de referência, alguns de caráter teórico outros de estudos empíricos, para que servisse de base de estudo e reflexão e de encaminhamento para as obras originais dos autores citados. Por outro lado, e como corolário dessa forma de informação sobre conhecimentos gerados, este texto tem como objetivo delimitar, ainda que de maneira preliminar, os marcos conceituais, a atualidade e a diversidade do campesinato no Brasil. Pretende, num esforço continuado, iniciar a construção de um novo referencial teórico para dar conta da reprodução social do campesinato no Brasil. 1 Este documento foi organizado por Horacio Martins de Carvalho após as sugestões resultantes de seminário de representantes da Via Campesina do Brasil e técnicos convidados, realizado em Florianópolis nos dias 19 e 20 de abril de 2004. 3
  • 4. Este texto adota uma abordagem teórica, conforme apresentado na seção 4, adiante, cuja referência é a releitura contemporânea das teorias de Chayanov acrescidas das dimensões sociológica, política e ecológica em debate na atualidade. 1. CAMPONESES NO CAPITALISMO 1.1. Controvérsia central Há, uma passagem na obra “Marxismo e Agricultura: o Camponês Polonês”, de Jerzy Tepicht (1973), que provoca de imediato a reflexão e estimula o debate sobre a atualidade do campesinato. Tepicht (idem: 17-18) afirma: “(...) Nós falaremos aqui da economia camponesa como de um modo de produção, este termo sendo tomado num sentido próximo daquele ‘marxiano’2 , ou seja, o conjunto coerente e distinto de forças produtivas e relações de produção entre os homens. Se nossa acepção não é senão ‘próxima’ daquela de Marx, é que de fato Marx e seus numerosos discípulos aplicam este termo só ocasionalmente à economia, e por isso (:) é utilizado junto àquele de formação econômica, conjunto que deve conter toda uma estrutura de classe, com uma classe dominante na escala da sociedade global, e toda uma superestrutura, sobretudo política. Ora, o modo de produção camponês, tal como nós o compreendemos aqui, não é gerador de uma formação particular, ele se incrusta numa série de formações, ele se adapta, interioriza a seu modo as leis econômicas de cada uma delas e deixa, ao mesmo tempo, com maior ou menor intensidade, em cada uma delas a sua marca. É aí que reside, na nossa opinião, o segredo da surpreendente longevidade que inspiraram as predições sobre a sua perenidade. A maior parte dos marxistas prediz, ao contrário, o sabemos, uma decomposição rápida (...) (...) mas seu modo de inserção no capitalismo é particular: inclusive no seu sistema de circulação sangüínea, o mercado, ela [forma de vida social]3 continua a amadurecer, depois a envelhecer como um ser à parte, com seus próprios princípios de existência, que ela transporta mesmo no seio das economias socialistas, tais como elas se apresentam ao menos até aqui. Ela forma no seio destas economias um setor econômico ‘não como os outros’, o que admite explicitamente ou implicitamente os princípios de organização, de trocas intersetoriais, de direção planificada --- a despeito de todas as tendências desta à uniformização.” A aludida predição dos marxistas, para a decomposição do campesinato, anteriormente referida por Tepicht, pode ser aclarada pelos comentários de Costa (1994: 7- 11): “Marx era particularmente pessimista em relação ao futuro do campesinato no capitalismo. Sua análise, para aí desembocar, supõe que a relação campesinato/capitalismo 2 Conforme Tepicht (nota de rodapé 1 à p.17): “nós leremos neste livro (a expressão) ‘marxiano’ (marxien) cada vez que se trata de sublinhar que um pensamento, fórmula ou abordagem é do próprio Marx; ‘marxista’ quando a distinção entre Marx e seus discípulos não nos parece necessária.” 3 As anotações entre colchetes que aparecerão daqui em diante são do organizador deste documento. 4
  • 5. far-se-ia sob condições particulares estabelecidas tanto no plano da distribuição quanto no plano da troca enquanto instâncias mediadoras distintas da produção e do consumo.” “No plano da distribuição, a forma de produzir camponesa caracterizar-se-ia por entregar de graça parte do trabalho excedente por ela produzida para a sociedade (Marx, 1985: 923-924). Tal afirmativa funda-se na constatação de uma especificidade dos camponeses quando comparados aos empresários capitalistas: eles não param de concorrer entre si enquanto o lucro e a renda da terra estão sendo corroídos por preços de mercado sistematicamente abaixo do valor, mantendo-se produtivos mesmo quando o seu rendimento equipara-se apenas ao salário médio de mercado, ou mesmo, se situa abaixo deste (idem: 923) Tal forma de produzir não poderia, assim, absorver os progressos tecnológicos necessários ao enfrentamento das empresas capitalistas, compulsivamente inovadoras na busca concorrencial do lucro (ibidem: 924) (...) No plano da distribuição, pois, estabelece-se uma exploração não localizável, sistêmica (...)” “(...) No plano da troca, Marx enfatiza a mediação do capital mercantil e usurário como bloqueadora do desenvolvimento técnico dos camponeses (...)” “[As dificuldades das unidades camponeses quanto ao investimento e, portanto, quanto à sua capacidade de permanência, estão relacionadas com o aumento ou diminuição da taxa de lucro do capital mercantil assim como com a maior ou menor deterioração das relações de troca, esta expressa pela relação entre o valor médio de mercado do produto camponês e uma ponderação dos valores médios dos produtos industriais consumidos pelos camponeses]4 .” “(...) A teoria de Marx, nesta matéria [problemas do campesinato no capitalismo], poderia ser resumida como segue: acossadas por suas contradições mediante o mercado (concorrência além do limite que permitiria a incorporação na unidade de produção camponesa do sobre-trabalho por ela gerado) e exauridas pelas formas ‘anti-diluvianas’ de capital as estruturas camponesas sucumbiriam inexoravelmente, uma vez que sua produtividade, pela ausência de formação de capital, tenderia a cair continuadamente, ou, na melhor das hipóteses, se estável, tenderia a se confrontar com uma produtividade média crescente para o conjunto da produção (derivada tão somente da cada vez mais presente produção capitalista) aumentando inexoravelmente ω (relação que mede a desproporção entre produtividade local e nacional) e a exploração α (taxa de exploração tendencial maior que zero para um produtor individual) das estruturas camponesas. Sob o capitalismo, a produção camponesa constituiria, destarte, um sistema sem sustentabilidade, economicamente inviável.” Essas interpretações de Marx sobre o campesinato no capitalismo apoiadas no O Capital (edição do vol. I em 1867) foram pontualmente repensadas pelo próprio Marx em relação à comuna russa em 1881. Em 1881, Marx, em carta a Vera Zasúlich, embatucou (na expressão de Ianni, 1985: 5) quando esta lhe indagou (Zasúlich, in Marx, 1980a) sobre as alternativas do destino da “comuna russa” na via socialista. A resposta de Marx foi: 4 Esse parágrafo entre colchetes é uma leitura em prosa, realizada por Horacio Martins de Carvalho, de uma dedução matemática sobre a matéria realizada por Costa (1994:10) 5
  • 6. “(...) Analisando a gênese da produção capitalista digo: No fundo do sistema capitalista está, pois, a separação radical entre produtor e meios de produção... a base de toda esta evolução é a expropriação dos camponeses5 . Todavia, não se realizou de uma maneira radical senão na Inglaterra...Mas, todos os demais países da Europa ocidental vão pelo mesmo caminho. (O Capital, edição francesa, p. 316 A ‘fatalidade histórica’ deste movimento está, pois, expressamente restrita aos países da Europa ocidental. O por quê desta restrição está indicado nesta passagem do capítulo xxxii: A propriedade privada, fundada no trabalho pessoal...vai ser suplantada pela propriedade privada capitalista, fundada na exploração do trabalho de outros, no sistema assalariado (op. cit., p. 340). Neste movimento ocidental se trata, pois, da transformação de uma forma de propriedade privada em outra forma de propriedade privada. Entre os camponeses russos, ao contrário, haveria que transformar sua propriedade comum em propriedade privada. A análise apresentada no O Capital não dá, pois, razões, nem em prol nem contra da vitalidade da comunidade rural, mas o estudo especial que fiz sobre ela, e cujos materiais fui buscar em fontes originais, me convenceram de que esta comunidade é o ponto de apoio da regeneração social na Rússia, mas para que possa funcionar como tal será preciso eliminar primeiramente as influências deletérias que a acossam por todas as partes e, em seguida, assegurar-lhe as condições normais para um desenvolvimento espontâneo.” Marx e Engels (1980: 60-61). Para Costa (1994: 6-7) “Uma das questões mais controversas no debate sobre o campesinato no capitalismo refere-se à sua capacidade de permanência. O debate, desde mais de um século, polariza-se nas posições que defendem, de um lado uma incapacidade estrutural das unidades camponesas de internalizarem sobre-trabalho (...) De outro lado vê- se na unidade de produção familiar uma microeconomia particular, responsável por uma propensão especialmente alta aos investimentos e, portanto, alta capacidade estrutural de internalização de inovações.” “A produção econômica de Marx é a matriz da primeira posição6 , enquanto as teorias do russo Chayanov encontram-se na base da segunda (...)” Costa (1994: 11-12) com relação a Chayanov (1923) comenta: “Ao contrário de Marx, cuja perspectiva parte do sistema econômico para a análise da relação campesinato/capitalismo, e dos que o sucedem insistindo na dominância das mesmas tendências, a teoria chayanoviana do campesinato parte de uma perspectiva microeconômica. Enquanto no primeiro caso se chegava à visualização de unidades produtivas cujo comportamento específico (quando comparado ao comportamento 5 As expressões assinaladas em itálico e as entre acentos constam do texto original. 6 Posição de Marx comentada sucintamente em parágrafos anteriores. 6
  • 7. capitalista) levaria a resultados homogêneos (a não internalização do sobre trabalho...), para a perspectiva chayanoviana o caráter específico da unidade camponesa leva a uma economia sem determinações derivadas das grandezas socialmente estabelecidas, seja do lucro seja da renda da terra, seja do salário. Partindo daí, Chayanov formula sua teoria do investimento camponês.” “Para Chayanov a família é o fundamento da empresa camponesa --- na sua condição de economia sem assalariamento, uma vez que é tanto o ponto de partida quanto o objetivo da sua atividade econômica. Como única fonte de força de trabalho a família é o suposto da produção, cujo objetivo nada mais é [que] o de garantir a própria existência. A unidade camponesa é, pois, a um só tempo unidade de produção e unidade de consumo e encerra, concomitantemente, as funções das esferas de produção e reprodução de tal modo que ‘(...) a família e as relações que dela resultam tem que ser o único elemento organizador da economia sem assalariados’ (Chayanov, 1923: 9) (...) Para a unidade camponesa, pois, não existe uma dimensão econômica que tenha que ser necessariamente atingida e que seja estabelecida por um rendimento socialmente determinado de cada unidade de trabalho aplicada --- como é o caso da empresa capitalista frente ao salário. Aí, a atividade econômica mínima terá que produzir valores pelo”. menos equivalentes ao conjunto dos salários pagos e cada trabalhador trabalhará necessariamente pelo menos até o ponto em que o rendimento das suas atividades cubra o preço de mercado da sua força de trabalho. Para a empresa camponesa, o que existe é um nível de atividade a ser necessariamente atingida que determina com que rendimento cada unidade de trabalho da família tem que contribuir. Em outras palavras: não pertence à realidade da produção camponesa um rendimento por unidade de trabalho que seja determinante, como o é, para a empresa capitalista, o rendimento correspondente ao salário enquanto grandeza socialmente determinada, mas, sim, um rendimento por unidade de trabalho determinado pelas necessidades anuais da família camponesa --- pelo caráter, pois, da empresa camponesa enquanto unidade de consumo.” É oportuno relembrar a observação de Archetti (1974) sobre a obra de Chayanov. “Esta escola discute, então, a necessidade de construir uma teoria que parta do suposto de que a economia camponesa não é tipicamente capitalista, portanto não se pode determinar objetivamente os custos de produção pela ausência da categoria ‘salários”. Desta maneira, o retorno que obtém o camponês após o final do ano econômico não pode ser conceituado como formando parte de algo que os empresários capitalistas chamam ‘lucro’. O camponês, ao utilizar a força de trabalho de sua família como a dele mesmo, percebe esse ‘excedente’ como uma retribuição ao seu próprio trabalho e não como um ‘lucro’. Esta retribuição aparece corporificada no consumo familiar de bens e serviços.” “O problema da modernização e tecnificação colocava, portanto, um conjunto de questões que deveriam ser resolvidas construindo uma teoria diferente da teoria da empresa capitalista. É a esta tarefa que Chayanov, a partir de 1911, vai dedicar toda sua obra.” (Archetti, op, cit.: 8) Wolf comentando o dilema camponês, à luz das idéias de Chayanov, ressalta que “o eterno problema da vida do camponês consiste, portanto, em contrabalançar as exigências do mundo exterior, em relação às necessidades que ele encontra no atendimento às 7
  • 8. necessidades de seus familiares. Ainda em relação a esse problema o camponês pode seguir duas estratégias diametralmente opostas. A primeira dela é incrementar a produção; a segunda, reduzir o consumo”. “Se o camponês escolhe a primeira estratégia, deverá elevar o rendimento do trabalho às suas próprias custas, tendo em vista levantar a produção e o aumento da produtividade, com que entrará no mercado (...) A estratégia que se apresenta como alternativa é a de solucionar o problema básico através da redução do consumo. O camponês pode reduzir seu consumo de calorias restringindo sua alimentação apenas aos alimentos básicos; pode limitar suas compras no mercado ao essencial e, em vez disso, pode confiar tanto quanto possível na capacidade de seu grupo doméstico de produzir tanto os alimentos como os objetos necessários, sem precisar sair dos limites da sua terra (...)”. “(...) Ao contrário do que dizem os clichês literários, os camponeses não se encontram estáticos, mas em permanente estado dinâmico, movendo-se continuadamente entre dois pólos em busca de uma solução para seu dilema fundamental.” “A existência de uma vida camponesa não envolve meramente relação entre camponeses e não-camponeses, mas um tipo de adaptação, uma combinação de atitudes e atividades destinadas a sustentar o cultivador em sua luta pela sobrevivência individual e de toda a sua espécie, dentro de uma ordem social que o ameaça de extinção (...)” (Wolf, (1976: 31ss) “Theodor Shanin (1982 e 1983) detectou nas análises sobre a dinâmica agrária russa pré-revolução, problemas que, segundo ele, são constatados nas análises das presenças camponesas nas sociedades capitalistas em geral. As abordagens inclinar-se-iam a produzir visões reduzidas em dinâmicas necessariamente polares, apresentando as sociedades camponesas ou em dissolução por diferenciações sociais e econômicas produzidas pela penetração capitalista, ou em oposição a tal penetração. A primeira posição seria o resultado de um determinismo econômico e, a segunda, de um determinismo biológico.” (citado por Costa, 2000:101). As posições teóricas que poderiam configurar um ‘determinismo econômico’ nas relações entre o campesinato e o capitalismo tem sido resultados das leituras particulares sobre o campesinato nas obras clássicas de Marx, Engels, Lenin e Kautsky por seus discípulos e intérpretes. “Além da redução economicista, Shanin alerta para o que chama de determinismo biológico. E, dado o problema empírico que aborda [dinâmica agrária russa pré-revolução], refere-se basicamente às abordagens lideradas por Chayanov para o caso russo. Contudo, há um outro approach clássico, não obstante mais recente, do poder de determinação da reprodução biológica da população na dinâmica agrária. Refiro-me a Esther Boserup e sua explanação sobre a relação entre intensidade do uso do solo e crescimento populacional.” “Para Baserup, existiria uma seqüência rígida, uma trajetória de mudanças técnicas difícil de transgredir na agricultura tradicional: ao cultivo de pousio longo, seguir-se-ia uma fase de cultivo com pousio arbustivo, sucedido por cultivo de pousio curto, cultivo anual e, 8
  • 9. finalmente, cultivos múltiplos (Boserup, 1987:13-28). Tal sucessão seria derivada da tensão gerada pela densidade populacional ---entendida como variável autônoma e incontornável. Tensão indispensável, dado que cada fase configuraria uma forma de uso do solo a exigir sempre mais esforço de cada trabalhador para o mesmo resultado em termos reais, embora apresentem pari passu produtividade por área decrescente.” “As proposições teóricas de Chayanov (1974; Costa 1989 e 1995) fornecem os fundamentos de uma tal generalização, partindo da família e seus fundamentos reprodutivos. A dinâmica demográfica é, aqui, endógena ao fundamento estrutural da realidade agrária baseada no campesinato, constituindo fundamento para ações e decisões, inclusive quanto à inovação. Chayanov, contudo, não propõe a generalização que faz Boserup. Em compensação, muitos dos argumentos desta última sustentam-se tão somente se as hipóteses chayanovianas funcionarem. O que fazem, os dois autores, sob muitos aspectos, complementares.” (Costa, 2000: 112-113) 1.2. Controvérsia no Brasil Aos fundamentos em debate nessa controvérsia geral sobre o campesinato e o capitalismo foram acrescidos, no Brasil, temas como o campesinato e os modos de produção, os resquícios do colonialismo e do escravagismo no campo, a expansão da fronteira agrícola, a reforma agrária e o papel do Estado na reprodução do campesinato. É diversa e abundante, para os padrões acadêmicos e culturais dominantes, a literatura que tratou dessas temáticas. Não é pertinente neste texto o resgate dessa literatura ou mesmo a indicação de algumas obras que abrangessem tal temática e as abordagens utilizadas para dar conta dessa complexa tarefa teórica e histórica. O que se deseja ressaltar, no entanto, é que as leituras históricas da natureza e caráter do campesinato no Brasil foram marcadas, em graus de intensidade distintos, pelo ‘determinismo econômico’, seja no âmbito da explicação teórica e da pesquisa acadêmica, seja no âmbito da ideologia dominante (concepção de mundo). A denominada vertente chayanoviana, ainda que presente em ‘locus’ particulares desses universos científico e ideológico, foi sendo gradativamente relegada a plano secundário pela pujança autoritária das idéias neoliberais, em especial desde meados da década de 80 do século XX. Ainda que defendendo de maneira relativa a reprodução e a inserção do campesinato na dinâmica da reprodução capitalista, as organizações e movimentos sociais e sindicais de mediação dos seus interesses, sejam localizados, sejam os universais (de classe e corporativos), não dedicaram parte de seus esforços institucionais para um aprofundamento dessa controvérsia sobre o campesinato no capitalismo. De maneira geral, e instigados pelas necessidades imediatas dos camponeses, canalizaram seus esforços para o âmbito da reivindicação e do protesto (Carvalho, 1992 e 2004) perante os governos. Mesmo os esforços políticos e ideológicos, assim como os empíricos, de luta pela terra pouco contribuíram para o aprofundamento dessa controvérsia geral aqui em apreço. 9
  • 10. As idéias dominantes que repousavam nas concepções da diferenciação do campesinato tornaram-se as idéias hegemônicas (envolvendo classes dominantes e dominadas). Essas idéias materializaram-se seja na concepção e prática das políticas públicas seja nas palavras de ordem por vezes reinantes nos movimentos e organizações sociais e sindicais do campesinato quando defendiam a “inserção competitiva da agricultura da familiar no mercado” (sic). As próprias dificuldades de enquadramento conceitual das dezenas de formas sociais de reprodução das unidades familiares produtoras e extrativistas autônomas no campo por parte tanto dos organismos governamentais como daqueles de mediação dos interesses dos camponeses são evidências de que novos esforços teóricos e empíricos necessitam ser realizados para se dar conta da atualidade e da diversidade camponesa no Brasil (ver cap. 2 e 3 adiantes). O referencial teórico hegemônico no Brasil sobre o campesinato tem como uma das origens conceituais (a outra poderá ser identificada como em Mendras, 1959 e 1976) na vertente expressa pelo determinismo econômico anteriormente comentado e que pode ser sintetizado na expressão de Ellis (1988: 234): “(...) camponeses são unidades familiares de produção agrícola caracterizadas pelo engajamento parcial em mercados incompletos...”, postura intelectual bastante distinta daquela assumida por Chayanov (1974), que tem como premissa a centralidade na reprodução da família camponesa. De acordo com (Costa, 2000: 116) “(...) Uma das justificativas do autor para o conceito e resultado que obtém de seu uso explicita o cerne das nossas divergências: ...[o caráter parcial da integração no mercado] serve para diferenciar os camponeses tanto das empresas capitalistas (baseadas no trabalho assalariado) como de pequenos produtores mercantis que operam em contexto de mercados de fatores e produtos plenamente formados ...(Ellis: 234) [e] ...no longo prazo, a dominância das relações capitalistas significa o desaparecimento dos camponeses, mas não, necessariamente, o fim das formas familiares de produção agrícola. (op. cit.: 238. Tradução de Costa)” Ainda conforme Costa (op.cit. :116) “Trata-se de uma diferenciação fraca demais quando se refere a formas capitalistas de produção e forte demais quando se refere a diferenças da própria produção familiar rural. Fraca demais no primeiro caso, porque não expõe a constituição essencial das diferenças a ressaltar; forte demais no segundo caso, porque atribui capacidade distintiva a um fenômeno cuja determinação é, a rigor, traço de igualdade das formas de produção familiar rural.” “Diferentemente desta, a nossa proposição de centralidade da reprodução na percepção da especificidade camponesa permite diferenciar de fora vigorosa a unidade camponesa de outras estruturas presentes no agrário nas sociedades capitalistas, em particular da empresa capitalista. Empresas capitalistas supõem a centralidade no lucro como fundamento da racionalidade de seus componentes...” 10
  • 11. Num outro sentido, a hipótese de que o processo de redução da distinção entre o rural e urbano conduziria a “...um continuum dominado pela cena urbana, como já foi formulado no tocante à realidade européia (Lefebvre, 1972; Duby, 1984; Mendras, 1959; entre outros) e para a realidade brasileira (Graziano da Silva, 1996; Ianni, 1996; entre outros” (conforme Carneiro, 1998: 53) não corresponde à dinâmica de mudanças que se verificam em todo o território brasileiro. “(...) Ainda que os efeitos da expansão da ‘racionalidade urbana’ sobre o campo, provocada pela generalização da lógica do processo de trabalho e da produção capitalista intensificado pelos mecanismos da globalização não possam, de forma alguma, ser tratados com negligência, é precipitado concluir que tal processo resultaria na dissolução do agrário, e na tendência à transformação unificadora das condições de vida no campo.” (idem, op. cit.:53) “(...) Em contraposição, tanto à visão dicotômica quanto à do continuum, alguns autores sustentam a necessidade de proceder análises mais específicas do rural, centradas nas relações sociais que se desenvolvem a partir de processos de integração das aldeias à economia global. Nesta visão, esse processo, ao invés de diluir as diferenças pode propiciar o reforço de identidades apoiadas no pertencimento a uma localidade. Essa âncora territorial seria a base sobre a qual a cultura realizaria a interação entre o rural e o urbano de um modo determinado, ou seja, mantendo uma lógica própria que lhe garantiria a manutenção de uma identidade (Chamborredon, 1980 e Rambaud, 1969 e 1981).” (Carneiro, op. cit. 57) Tanto a visão economicista do campesinato como aquela da inexorabilidade da homogeneização urbana do espaço rural conduzem política e ideologicamente a compreensões que reafirmam a absorção/exclusão social do campesinato pela expansão e consolidação da empresa capitalista no campo. As expressões agricultura familiar, pequeno produtor rural e pequenos agricultores adquiriram desde o início da década de 90 conotações ideológicas, não porque imprecisas ou insuficientes para dar conta da diversidade de formas sociais de reprodução das unidades de produção/extração centradas na reprodução da vida familiar presentes e em desenvolvimento no país, mas, sobretudo, porque foram disseminadas no interior de um discurso teórico e político que afirmava a diferenciação e fim do campesinato em duas categorias: aquela que seria transformada em empresas capitalistas pelo desenvolvimento das forças produtivas e aquelas que se proletarizariam ou permaneceriam dependentes de apoios sociais das políticas públicas. A revivificação dos conceitos de camponês e campesinato propõe resgatar e afirmar a perspectiva teórica da reprodução social do campesinato na sociedade capitalista a partir das teses da centralidade da reprodução da família camponesa e da sua especificidade no contexto da formação econômica e social capitalista. Objetiva, deveras, abranger nesses conceitos a totalidade das formas de reprodução das unidades de produção familiar no rural brasileira. 11
  • 12. 1.3. O fim do campesinato?7 Bernardo Mançano Fernandes (...) O processo de formação do campesinato remonta à gênese da história da humanidade. Essa leitura histórica é importante para a compreensão da lógica da persistência do campesinato nos diferentes tipos de sociedades. A existência do campesinato nas sociedades escravocratas, feudal, capitalista e socialista é um referencial para entendermos o sentido dessa perseverança. A coexistência e a participação do campesinato nesses diferentes tipos de sistemas sócio-políticos e econômicos e a sua constância quando do fim ou crise dessas sociedades demonstram que essa firmeza precisa ser considerada como uma qualidade intrínseca dessa forma de organização social. Por essa razão, desde o século XIX, surgiram diversas teorias a respeito da existência e das perspectivas do campesinato no capitalismo. O desenvolvimento dessas teorias por meio de pesquisas e debates políticos acirrados constituiu três distintos modelos de interpretação do campesinato ou paradigmas. De modo objetivo, discutimos esses paradigmas e os denominamos a partir de suas perspectivas para o campesinato. O paradigma do fim do campesinato compreende que este está em vias de extinção. O paradigma do fim do fim do campesinato entende a sua existência a partir de sua resistência. O paradigma da metamorfose do campesinato acredita na sua mudança em agricultor familiar. Ainda é muito forte o paradigma do fim do campesinato. Esse modelo de interpretação do campesinato tem duas leituras. Uma está baseada na diferenciação gerada pela renda capitalizada da terra que destrói o campesinato, transformando pequena parte em capitalista e grande parte em assalariado. A outra leitura do fim do campesinato acredita simplesmente na inviabilidade da agricultura camponesa perante a supremacia da agricultura capitalista. O paradigma do fim do fim do campesinato tem uma leitura mais ampla que o anterior. Entende que a destruição do campesinato pela sua diferenciação não determina o seu fim. É fato que o capital ao se apropriar da riqueza produzida pelo trabalho familiar camponês, por meio da renda capitalizada da terra, gera a diferenciação e a destruição do campesinato. Mas, igualmente, é fato que ao capital interessa a continuação desse processo para o seu próprio desenvolvimento. Em diferentes condições, a apropriação da renda capitalizada da terra é mais interessante ao capital do que o assalariamento. Por essa razão, os proprietários de terra e capitalistas oferecem suas terras em arrendamento aos camponeses ou oferecem condições para a produção nas propriedades camponesas. O arrendamento é uma possibilidade de recriação do campesinato, outra é pela compra da terra e outra é pela ocupação da terra. Essas são as três formas de recriação do 7 Esta seção está constituída por extratos do documento Delimitação Conceitual do Campesinato de Bernardo Mançano Fernandes (2004) 12
  • 13. campesinato. E assim se desenvolve num constante processo de territorialização de desterritorialização da agricultura camponesa, ou de destruição e recriação do campesinato. O que é compreendido como fim também tem o seu fim na poderosa vantagem que o capital tem sobre a renda capitalizada da terra, gerada pelo trabalho familiar. Ainda nesta compreensão, o campesinato é visto como uma importante forma de organização social para o desenvolvimento humano em diferentes escalas geográficas. A produção familiar provoca impactos sócioterritoriais contribuindo para o desenvolvimento regional e contribuindo com a melhoria a qualidade de vida. O paradigma do fim do fim do campesinato tem duas vertentes. Uma desenvolve ações para o crescimento do número de camponeses por meio de uma política de reforma agrária e pela territorialização da luta pela terra. Outra desenvolve ações para a manutenção do número de camponeses, acreditando que garantir a existência é suficiente. O paradigma da metamorfose do campesinato surgiu na última década do século XX e é uma espécie de “terceira via” à questão do campesinato. Acredita no fim do campesinato, mas não no fim do trabalho familiar na agricultura. Desse modo utiliza o conceito de agricultor familiar como eufemismo do conceito de camponês. A partir de uma lógica dualista de atrasado e moderno, classifica o camponês como atrasado e o agricultor familiar como moderno. Essa lógica dualista é processual, pois o camponês para ser moderno precisa se metamorfosear em agricultor familiar. Esse processo de transformação do sujeito camponês em sujeito agricultor familiar sugere também uma mudança ideológica. O camponês metamorfoseado em agricultor familiar perde a sua história de resistência, fruto da sua pertinácia, e se torna um sujeito conformado com o processo de diferenciação que passa a ser um processo natural do capitalismo. Os limites dos espaços políticos de ação do então moderno agricultor familiar fecham-se nas dimensões da diferenciação gerada na produção da renda capitalizada da terra. A sua existência, portanto, está condicionada dentro das condições geradas pelo capital. Logo as suas perspectivas estão limitadas às seguintes condições: agricultor familiar consolidado; agricultor familiar intermediário e agricultor familiar periférico. Da condição de periférico à condição de consolidado formam-se os espaços políticos de sua existência. Esse seria o seu universo possível. Nessa lógica não cabem os sem-terra, porque não se discute a exclusão. Discutem-se apenas os incluídos no espaço do processo de diferenciação. Nesse sentido, esse paradigma possui uma interface com a vertente do paradigma do fim do fim do campesinato que se preocupa apenas com a manutenção do campesinato. Essa leitura é marcada por uma importante diferença entre o paradigma da metamorfose do campesinato dos outros paradigmas. Os paradigmas do fim do campesinato e do fim do fim do campesinato têm como fundamento a questão agrária. O paradigma da metamorfose do campesinato tem como fundamento o capitalismo agrário. 13
  • 14. O debate a respeito da questão agrária tem se desenvolvido a partir do princípio da superação. Essa condição implica na luta contra o capital e na perspectiva de construção de experiências para a transformação da sociedade. O debate a respeito do capitalismo agrário tem se desenvolvido a partir do princípio da conservação das condições existentes da sociedade capitalista (...) (...) Afora o princípio conservador do paradigma da metamorfose do campesinato, destacam-se os limites de sua lógica dualista. Por não conseguir explicar a persistência do campesinato, a sua existência e atualidade e nem suas perspectivas, procura transformá-lo por meio do esvaziamento de sua história. O camponês fica com o passado e o agricultor familiar com o futuro (...) 2. ATUALIDADE DO CAMPESINATO NO BRASIL 2.1. Classificação por critérios de oportunidade8 As classificações vigentes e hegemônicas para identificar a “agricultura familiar” são imprecisas e insuficientes para darem conta da diversidade das formas encontradas pelas famílias que “tendo acesso à terra e aos recursos naturais que esta suporta, resolvem seus problemas reprodutivos a partir da produção rural --- extrativista, agrícola e não agrícola [e pesqueira e de parcela dos povos indígenas]9 --- desenvolvida de tal modo que não se diferencia o universo dos que decidem sobre a alocação do trabalho, dos que sobrevivem com o resultado dessa alocação” (Costa, 2000: 114), e que aqui são denominadas genericamente de camponesas. A essa delimitação conceitual do campesinato pode-se acrescentar outros matizes fundamentais. Hebette (2004: 2) afirma que “o modo de vida que, neste ensaio, será chamado camponês, e as populações que dele vivem, também chamadas camponesas, se oferecem ao nosso olhar mediante algumas características fundamentais. Os camponeses são produtores livres de dependência pessoal direta – são ‘autônomos’; sua sobrevivência de homens livres lhes impõe laços de solidariedade cuja quebra ou enfraquecimento ameaçam seu modo de vida; esses laços mais primários são os de parentesco e de vizinhança que os levam a procurar se agrupar em ‘comunidade’; a busca de sua permanência e reprodução numa mesma ‘terra’ (ou no mesmo ‘terroir’, como se diz em francês), traduzidos como apego à terra, é a marca do sucesso de seu modo de vida e a fonte de seu cuidado com seu ambiente: a migração para ele é uma fatalidade, a expulsão, uma degradação inaceitável.” [grifos no original] As delimitações conceituais e empíricas da “agricultura familiar”, no nível da formulação das políticas públicas dos organismos de governo, têm sido bastante influenciadas pelas concepções teóricas de caráter acentuadamente economicista. Essas opções, indiretamente, facilitam o exercício de práticas governamentais que aderem à 8 As informações constantes deste item são extraídas de Moreira (2003). 9 Complemento acrescentado por Horacio Martins de Carvalho à conceituação original de Costa. 14
  • 15. perspectiva de estímulo à diferenciação do campesinato e de ajuste funcional de se desenvolvimento á dinâmica do mercado. Constituiu-se, assim, um processo de delimitação empírica do campesinato onde algumas das classificações foram estabelecidas a partir de situações conjunturais. A esse processo denominou-se aqui de processo classificatório de oportunidade. Por exemplo, no Plano Safra 2003/2004 se calculou que 4,1 milhões de estabelecimentos seriam considerados como de “agricultura familiar”. Essa cifra acompanha de perto as cifras do Censo Agropecuário do IBGE 1995/96 que permitiu enquadrar 4,139 milhões de estabelecimentos como de “agricultura familiar” (Tab. 1, adiante), abrangendo 85,2% do total de estabelecimento do país. Deste total 49,7% (2,055 milhões de estabelecimentos familiares) encontra-se no Nordeste brasileiro. Tabela 1 Brasil. Agricultura familiar. Número de estabelecimentos e percentagem da área por região do país. Região/País n° estabel. Área % Nordeste 2.055.157 31,6% Centro-Oeste 162.062 12,7% Norte 380.895 20,3% Sudeste 633.620 17,4% Sul 907.635 18,0% Brasil 4.139.369 100,0% Fonte: Censo Agropecuário 1995/96 FAO/INCRA As classificações adotadas pela Secretaria de Agricultura Familiar – SAF do Ministério do Desenvolvimento Agrário – MDA são exemplos do processo classificatório de oportunidade no qual parcelas da população rural supostamente consideradas “agricultores familiares” são enquadradas sem que necessariamente se dê conta diversidade das formas sociais de reprodução dos camponeses do país. Conforme Moreira (2003: 13-17) “a produção teórica e conceitual do governo federal iniciou-se a partir de 1996 e sustentou a elaboração de um programa de âmbito nacional que é o PRONAF. Esta produção deveu-se a cooperações com organismos internacionais como a Food Agriculture Organization – FAO, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA10 . Segundo o Ministério do Desenvolvimento Agrário (2000:13), o 10 O Projeto BRA/98/012 “Agricultura Familiar no Contexto do Desenvolvimento Local Sustentável” constituiu-se em um destes projetos de cooperação do PRONAF, coordenado pela então Secretaria de Desenvolvimento Rural (SDR). O INCRA por sua vez estabeleceu convênio - Projetos de Cooperação Técnica – com a FAO entre 1996 e 1999. Esta cooperação FAO/INCRA realizou estudos baseados na metodologia de sistemas agrários desenvolvidos pela escola francesa de estudos agrários. Para o Convênio FAO/INCRA estes estudos “(...) vem permitindo uma melhor compreensão da lógica e dinâmica das unidades familiares e dos assentamentos, assim como dos sistemas de produção por eles adotados nas diversas regiões 15
  • 16. debate sobre os conceitos e a importância relativa da ‘agricultura familiar’ também é intenso, produzindo inúmeras concepções, interpretações e propostas, oriundas das diferentes entidades representativas dos ‘pequenos agricultores’, dos intelectuais que estudam a área rural e dos técnicos governamentais encarregados de elaborar as políticas para o setor rural brasileiro.” “Documento Referencial editado pelo PRONAF discorre sobre o dito ‘bi-modelism’ da agricultura brasileira, isto é, a existência de dois modelos gerais. Para o PRONAF ‘(...) pode-se intervir objetivamente na estrutura da agricultura brasileira considerando dois modelos gerais: o modelo da agricultura patronal e o modelo da agricultura familiar.’ (PRONAF, 1999: 4)” “Referindo-se às características da agricultura brasileira os documentos FAO/INCRA sugerem características diferenciadas para cada um dos modelos, como mostra o Quadro 1.” “Ao diferenciar os tipos ou ‘modalidades’ no interior dos dois modelos FAO/INCRA, identificaram-se seis modalidades, sendo três para a agricultura patronal: agribusiness, agricultura patronal de base empresarial e agricultura patronal de base fundiária, e três para a agricultura familiar: agricultura familiar consolidada, agricultura familiar de transição e agricultura familiar periférica, como pode ser observado no Quadro 2.” “Ao caracterizar as modalidades, FAO/INCRA utiliza indicadores11 tais como: parâmetros empresariais, gestão empresarial, padrão empresarial, capital, integração ao mercado, acessibilidade à tecnologia e às políticas públicas, viabilização econômica, integração produtiva à economia nacional.” “A SAF, para delimitar o ‘universo familiar’12 , usou informações disponíveis no Censo Agropecuário do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, propondo-se a definir um ‘novo retrato da agricultura familiar’. Segundo o Censo Agropecuário 1995/96 - IBGE, existiam no Brasil 4.859.864 estabelecimentos rurais ocupando uma área de 353,6 milhões de hectares, sendo que os estabelecimentos familiares ocupavam 30,2 % desta área, a despeito de representar 85,2% do total dos estabelecimentos rurais brasileiros (Tab. 2). De outro lado, a categoria agricultura patronal ocupava 67,9% da área total e representava apenas 11,4% dos estabelecimentos rurais. A quantidade de estabelecimentos na categoria familiar era 7,5 vezes maior que o número da categoria patronal. A quantidade do país.” (FAO/INCRA, 1999) 11 Por exemplo: agribusiness: sua gestão é conduzida em moldes empresariais; agricultura patronal de base fundiária: o capital principal é a terra, a gestão do empreendimento não atende parâmetros empresariais; agricultura familiar consolidada: integrada ao mercado, a maioria funciona em padrões empresariais. 12 Como a SAF caracterizou o “O universo familiar”? “... foi caracterizado pelos estabelecimentos que atendiam simultaneamente, às seguintes condições: a) a direção dos trabalhos do estabelecimento era exercida pelo produtor; b) o trabalho familiar era superior ao trabalho contratado”. Adicionalmente, foi elaborada uma área máxima regional como limite superior para a área total dos estabelecimentos familiares”. (MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO AGRÁRIO, 2000:18) 16
  • 17. de terras ocupadas pela categoria patronal era mais que o dobro (2,3 vezes) das ocupadas pela agricultura familiar.” Quadro 1. Características dos Modelos Patronal e Familiar Modelo Patronal Modelo Familiar completa separação entre gestão e trabalho trabalho e gestão intimamente relacionados organização centralizada direção do processo produtivo assegurada diretamente pelo agricultor e sua família ênfase na especialização ênfase na diversificação ênfase em práticas agrícolas padronizáveis ênfase na durabilidade dos recursos e na qualidade de vida trabalho assalariado predominante trabalho assalariado complementar tecnologias dirigidas à eliminação de decisões “de terreno” e “de momento” decisões imediatas, adequadas ao alto grau de imprevisibilidade no processo produtivo Fonte: PRONAF (1996) Tab. 2. Brasil – Estabelecimentos Totais e Área Total por Categorias Familiar e Patronal, 2000. Categorias Estabelecimentos Total % Estab. s/ total Área Total (mil ha) Área Total % Familiar 4.139.369 85,2 107.768 30,5 patronal 554.501 11,4 240.042 67,9 Outros ( *) 165.994 3,4 5.801 1,6 Total 4.859.864 100,0 353.611 100,0 Fonte: Censo Agropecuário 1995/1996 – IBGE. Adaptado de Novo Retrato da Agricultura Familiar – O Brasil Redescoberto / MDA/ SNAF.2000 (*) Instituições religiosas, entidades públicas e não identificados. Tab. 3 Agricultores familiares – Percentual dos estabelecimentos, segundo a condição do produtor. Região Proprietário Arrendatário Parceiro Ocupante Nordeste 65 6,9 8,4 19,3 Centro-Oeste 89,8 3,4 1,3 5,6 Norte 84,6 0,7 1,4 13,2 Sudeste 85,7 4,1 5,2 5,0 Sul 80,8 6,4 6,0 6,7 Brasil 74,6 5,7 6,4 13,3 Fonte dos dados: Censo Agropecuário 1995/96 – IBGE. Adaptado de Novo Retrato da Familiar no Brasil/ SNAF-MDA.2000. 17
  • 18. Quadro 2. Os dois modelos de agricultura no Brasil : suas modalidades e características Modelo Modalidades  Características Agricultura Patronal a) Agribusiness  Integração vertical das atividades no agro-industrial.  Agroindústria com gestão empresarial b) Agricultura patronal de base empresarial  Uso intensivo de tecnologias, alta produtividade, gestão empresarial. c) Agricultura patronal de base fundiária  Latifúndio, gestão não empresarial, agropecuária extensiva e nem sempre produtiva, tendo a terra como capital principal. Agricultura Familiar a) Agricultura familiar Consolidada  Integração ao mercado, acesso a inovações tecnológicas e políticas públicas, maioria funcionando em padrões empresariais. b) Agricultura familiar de Transição  Acesso parcial à tecnologia e ao mercado, sem acesso à maioria das políticas e programas governamentais, não consolidados como empresas.  Amplo potencial para a viabilização econômica c) Agricultura familiar Periférica  Inadequação em termos de infra- estrutura, dependente de programas de reforma agrária, crédito, pesquisa, assistência técnica e extensão rural e comercialização. Fonte: PRONAF (1996) “Do Censo Agropecuário 1995/96 podem-se extrair três informações (...) A primeira: a condição dos agricultores em relação ao uso da terra; a segunda: a estrutura fundiária; e a terceira: o pessoal ocupado. De acordo com a SNAF, ‘a situação dos agricultores familiares, segundo a condição de uso da terra demonstra que 74,6% são proprietários, 5,7% são arrendatários, 6,4% são parceiros e 13,3% são ocupantes’ (Tab. 3)”. “Para a SNAF, os dados do Censo Agropecuário 1995/1996 demonstram que não é apenas a propriedade da terra o único elemento a ser considerado para o que chama de ‘reestruturação fundiária no Brasil’ (BRASIL, 2000:26). Também deve ser verificado o tamanho das propriedades dos agricultores familiares. ‘(...) muitos possuem menos de 5 ha, o que, na maioria dos casos, inviabiliza sua sustentabilidade econômica (...)’. De fato, o 18
  • 19. Censo Agropecuário revelou que, no Brasil, 94,55% dos estabelecimentos no modelo de agricultura familiar têm menos de 100 ha de terra. 39,8% das propriedades dos agricultores familiares têm menos de 5 ha, como pode ser visto na Tabela 4. Este índice chega a 58,8% na região Nordeste.” Tab. 4 Agricultores Familiares – Percentagem de estabelecimentos segundo grupos de área total Região M5 a 20 ha 20 a 50 ha 50 a 100 ha 100a 150MR13 Nordeste 58,8 21,9 11,0 4,8 3,4 Centro-Oeste 8,7 20,5 27,3 18,8 24,6 Norte 21,3 20,8 22,5 17,9 17,4 Sudeste 25,5 35,6 22,7 9,9 6,3 Sul 20,0 47,9 23,2 5,9 2,9 Brasil 39,8 30,0 17,1 7,6 5,9 Fonte: Censo Agropecuário 1995/96 – IBGE. Adaptado de Novo Retrato da Agricultura Familiar no Brasil/ SNAF-MDA.2000. O critério tamanho do estabelecimento ou o de imóvel rural, a renda familiar e o estabelecimento segundo a condição do produtor, como exemplos, não são nem necessários nem suficientes para darem conta da diversidade de situações (formas sociais de reprodução da família) daquelas famílias que se enquadrariam sob o conceito de camponês. Por exemplo, as quebradeiras de coco babaçu que extraem o coco de babaçuais “livres”, mas que se encontram em terras privadas, ou os varzeiros (como exemplos aqueles das várzeas da bacia hidrográfica do rio Amazonas) que exercitam o extrativismo pesqueiro e florestal, a agricultura ocasional (nas vazantes dos rios) e produzem artesanatos, e não tem, um e outro (quebradeiras de coco e varzeiros), como referência nem a posse nem o domínio da terra e cujos rendimentos são de difícil identificação formal, são camponeses e não são contemplados pelas estatísticas oficiais. “De acordo com os dados do Censo Demográfico de 2000, cinco milhões de famílias rurais vivem com menos de dois salários mínimos mensais – cifra esta que, com pequenas variações, é encontrada em todas as regiões do país. (Tabela 5)” (Proposta de PNRA, 2003: 6). Apesar da informação estratificada (Tab. 5) seria difícil se afirmar que os camponeses seriam aquelas famílias residentes em domicílios permanentes na zona rural que se encontram nos estratos de até 5 salários de rendimento mensal nominal, considerando-se que há número relevante de camponeses com rendimento nominal mensal muito superior a 5 salários mínimos. 13 15MR: 15 vezes o Módulo Regional 19
  • 20. Tabela 5 – Brasil - Famílias residentes em domicílios permanentes na zona rural por classe de rendimento familiar, rendimento nominal médio mensal e valor nominal mediano mensal. Classe de rendimento nominal mensal em salários mínimos Nº de famílias % Participação acumulada Renda média Renda Mediana Total Rural 7.890.548 100,00 429,44 250,00 Até ½ 970.836 12,30 12,30 3,41 0,00 Mais de ¼ a ½ 331.535 4,20 16,50 55,28 50,00 Mais de ½ a 1 1.653.419 20,95 37,45 131,62 150,00 Mais de 1 a 2 2.021.284 25.61 63,06 248,22 250,00 Mais de 2 a 3 1.022.719 12,96 76,02 387,41 391,00 Mais de 3 a 5 976.858 12,38 88,40 585,05 581,00 Mais de 5 a 10 628.877 8,00 96,40 1.032,23 1.000,00 Mais de 10 a 15 135.709 1,70 98,10 1.849,32 1.831,00 Mais de 15 a 20 58.737 0,75 98,85 2.637,41 2.600,00 Mais de 10 a 30 43.341 0,55 99,40 3.672,97 3.600,00 Mais de 30 47.234 0,60 100,00 10.023,87 6.500,00 Fonte dos dados: Censo Demográfico 2000/IBGE. Fonte da tabela: Proposta de Plano Nacional de Reforma Agrária, Brasília, outubro de 2003. 2.2. Os dados básicos “(...) O Brasil dispõe de duas categorias para cadastramento e censo de terras, quais sejam: estabelecimento ou unidade de exploração, que é adotada pelos censos agropecuários do IBGE, e imóvel rural ou unidade de domínio, que é adotada pelo cadastro do INCRA, para fins tributários. Todas as estatísticas que configuram a estrutura agrária atém-se a estas e somente a estas categorias. As terras indígenas, em decorrência da figura da tutela, são registradas no Serviço do Patrimônio da União. As terras das comunidades remanescentes de quilombo, também recuperadas pela Constituição Federal de 1988, através do Art. 68 do ADCT, devem ser convertidas, pela titulação definitiva, em imóveis rurais. Claúsulas de inalienabilidade, domínio coletivo e costumes e uso comum dos recursos juntamente com fatores étnicos, tem levantado questões para uma visão tributarista que só vê a terra como mercadoria passível de taxação, menosprezando dimensões simbólicas. Em suma, uma nova concepção de” cadastramento se impõe, rompendo com a insuficiência das categorias censitárias instituídas e levando em consideração as realidades localizadas e a especificidade dos diferentes processos de territorialização. Sem haver ruptura explícita com tais categorias assiste-se a tentativas várias de cadastramento parcial como apregoa a Portaria n.06 de 1o . de março de 2004 da Fundação Cultural Palmares, que institui o Cadastro Geral de Remanescentes das Comunidades de Quilombo, nomeando-as sob as denominações seguintes: ‘terras de preto, mocambos, comunidades negras, quilombos’ dentre outras denominações (Almeida, 1989). 20
  • 21. Ora, a própria necessidade de um cadastro aparte releva uma insuficiência das duas categorias classificatórias, ao mesmo tempo em que confirma e chama a atenção para uma diversidade de categorias de uso na vida social que demandam reconhecimento formal. Aliás, desde 1985, há uma tensão dentro dos órgãos fundiários oficiais para o reconhecimento de situações de ocupação e uso comum da terra, ditadas por “tradição e costumes”, por práticas de autonomia produtiva - erigidas a partir da desagregação das plantations (algodoeira, açucareira, cafeeira) e das empresas mineradoras - e por mobilizações sociais para afirmação étnica e de direitos elementares. Um eufemismo criado no INCRA em 1985-86 dizia respeito a “ocupações especiais”, no Cadastro de Glebas, onde se incluíam nos documentos de justificativa, as chamadas terras de preto, terras de santo, terras de índio, os fundos de pasto e os faxinais dentre outros. O advento destas práticas e a pressão pelo seu reconhecimento têm aumentado desde 1988, sobretudo na região amazônica, com o surgimento de múltiplas formas associativas agrupadas por diferentes critérios tais como: raízes locais profundas, fatores político-organizativos, autodefinições coletivas, consciência ambiental e elementos de identidade. A estas formas associativas expressas pelos novos movimentos sociais, que objetivam os sujeitos em existência coletiva (Conselho Nacional dos Seringueiros, Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu, Coordenação Nacional de Articulação das comunidades negras rurais quilombolas, Movimento dos Fundos de Pasto...) correspondem territorialidades específicas onde realizam sua maneira de ser e sua reprodução física e social.” (Almeida, 2004: 2) O tamanho da área do imóvel é um critério impreciso e insuficiente, tendo em vista que parte substancial dos camponeses não possue o domínio do imóvel. Se definirmos, à guisa de hipótese, que são camponesas aquelas famílias que possuem o domínio e ou a posse de imóveis com área abaixo de 50 hectares, como se enquadrariam os agroextrativistas do látex da borracha que demandam como mínimo três “colocações” que abrangem área sempre muito superior a essa? E aqueles varzeiros de certas regiões do rio Amazonas que em função do regime de vazantes e cheias e do formato da calha do rio demandam até 200 hectares de terras para darem conta de exercerem uma das suas atividades que é plantar na vazante? Como exemplo pode-se citar a constatação de Hebette (op. cit.: 14) com relação ao Estado do Pará: “Quantos são, finalmente, embora aproximativamente, os estabelecimentos camponeses do Pará? Aceitando que, no caso do Pará, o critério de área inferior a 200ha seja válido para circunscrever o campesinato; o número de estabelecimentos seria de 193.453, ou seja 93,7% do total dos estabelecimentos paraenses, cobrindo 7.162.289 ha, ou seja 31,8% do total da área desses estabelecimentos.” A desigual distribuição do acesso à terra no país demonstrada pa estrutura fundiária, ainda que injusta, não informa se os proprietários de imóveis menores do que 50 hectares são camponeses ou não. Mesmo quando se constata, como a citação adiante, que a maior parte das famílias que habitam no campo e situam-se abaixo da linha da pobreza poderiam ser consideradas como camponesas, pois o fato de residirem no campo não as identifica como camponesas segundo a conceituação aqui empregada. Por exemplo, os assalariados 21
  • 22. permanentes e os temporários não são camponeses, a não ser que acumulem essas duas práticas sociais: camponês e ocasionalmente venda da força de trabalho. “A estrutura fundiária brasileira caracteriza-se pela elevada concentração da propriedade da terra. Esta característica dá origem a relações econômicas, sociais, políticas e culturais cristalizadas em uma estrutura agrária inibidora do desenvolvimento, entendido este como: crescimento econômico, justiça social e extensão da cidadania democrática à população do campo. (Tabela 6)” “Essa estrutura agrária, herança de 500 anos de história, gera pobreza, desigualdade e exclusão no meio rural. Não obstante a modernização da agricultura brasileira nestes últimos 30 anos e o bom desempenho desse setor, tanto na conformação do PIB brasileiro quanto na balança comercial, a maior parte das famílias que habitam no campo situa-se abaixo da linha de pobreza.” (Proposta de PNRA, 2003: 5). Tabela 6. – Estrutura Fundiária Brasileira - 2003 Estratos de área total imóveis % dos imóveis área total % de área área média Até 10 há 1.338.711 31,6 7.616.113 1,8 5,7 De 10 a 25 há 1.102.999 26,0 18.985.869 4,5 17,2 De 25 a 50 há 684.237 16,1 24.141.638 5,7 35,3 De 50 a 100 há 485.482 11,5 33.630.240 8,0 69,3 De 100 a 500 há 482.677 11,4 100.216.200 23,8 207,6 De 500 a 1000 há 75.158 1,8 52.191.003 12,4 694,4 De 1000 a 2000 ha 36.859 0,9 50.932.790 12,1 1.381,8 Mais de 2000 há 32.264 0,8 132.631.509 31,6 4.110,8 Total 4.238.421 100 420.345.382 100 99,2 Fonte dos dados: Cadastro do Incra – situação em agosto de 2003 Fonte da tabela: Proposta de Plano Nacional de Reforma Agrária, Brasília, outubro de 2003. Se utilizarmos a categoria imóvel para delimitarmos empiricamente os camponeses seria impossível utilizar o estrato menos de 200 has, conforme sugerida por Hebette. Se adotarmos como limite máximo o estrato menos de 100 has teríamos um total de 3,6 milhões de imóveis supostamente ce camponeses, ou seja, 85,2 % do total dos imóveis. Segundo o Censo Agropecuário de 95/96 seriam estabelecimentos familiares um total de 4,14 milhões de estabelecimentos ocupando uma de 85,2% da área total de estabelecimentos do país. O MDA/SAF para o Plano de Safra 2003/2004 considera 4,1 milhões de “agricultores familiares”. Há, portanto, insuficiência empírica na quantificação do que aqui se denomina de campesinato. 3. Diversidade do campesinato 3.1. Multiplicidade de situações Um total de 64,6% dos estabelecimentos considerados como “agricultura familiar” se localiza nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Nessas regiões, por diversos fatores 22
  • 23. históricos da sua formação, há uma grande diversidade de formas sociais de reprodução do campesinato. Referindo-se a essa diversidade no Pará, Hebette (2004: 12-13), arrola as seguintes denominações ou autodenominações regionais: lavradores, agricultores, camponeses, ribeirinhos, varzeiros, quilombolas, extratores, posseiros, colonos, assentados, atingidos por barragem, catadores de babaçu, castanheiros, seringueiros, pescadores, catadores de caranguejos e catadores de siris. Outra denominações ou auto-denominações poderiam ser arroladas como quilombolas, quebradeiras de coco babaçu, fundos de pastos... Com relação aos pescadores artesanais, Maneschy (2003: 1) ressalta: “Os pescadores, pescadores-lavradores, ribeirinhos, lavradores e extrativistas no Pará e, por extensão, na Amazônia, partilham uma origem histórica comum que remonta à colonização e ao processo de desestruturação das populações indígenas, sua conversão no “índio genérico”, destribalizado, formador das populações rurais amazônicas.” Almeida (2004: 3-4) ao analisar os novos padrões de relação política no campo e na cidade ressalta: “A nova estratégia do discurso dos movimentos sociais no campo, ao designar os sujeitos da ação, não aparece atrelada à conotação política que em décadas passadas estava associada principalmente ao termo camponês. Politiza-se aqueles termos e denominações de uso local. Seu uso cotidiano e difuso coaduna com a politização das realidades localizadas, isto é, os agentes sociais se erigem em sujeitos da ação ao adotarem como designação coletiva as denominações pelas quais se autodefinem e são representados na vida cotidiana (...) Tal multiplicidade de categorias cinde, portanto, com o monopólio político do significado dos termos camponês e trabalhador rural, que até então eram utilizados com prevalência por partidos políticos, pelo movimento sindical centralizado na CONTAG (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura) e pelas entidades confessionais (CPT, CIMI, ACR). Tal ruptura ocorre sem destituir o atributo político daquelas categorias de mobilização. As novas denominações que designam os movimentos e que espelham um conjunto de práticas organizativas, traduz transformações políticas mais profundas na capacidade de mobilização destes grupos face ao poder do Estado e em defesa de seus territórios (...)” (grifos no original) “Em virtude disto é que se pode dizer que mais que uma estratégia de discurso tem- se o advento de categorias que se afirmam através de uma existência coletiva, politizando não apenas as nomeações da vida cotidiana, mas também práticas rotineiras no uso da terra. A complexidade de elementos identitários, próprios de autodenominações afirmativas de culturas e símbolos, que fazem da etnia um tipo organizacional (BARTH: 1969), foi trazida para o campo das relações políticas, verificando-se uma ruptura profunda com a atitude colonialista homogeneizante, que historicamente apagou diferenças étnicas e a diversidade cultural, diluindo-as em classificações que enfatizavam a subordinação dos “nativos”, “selvagens” e ágrafos ao conhecimento erudito do colonizador.” “Não obstante diferentes planos de ação e de organização e de relações distintas com os aparelhos de poder, tais unidade de mobilização podem ser interpretadas como potencialmente tendendo a se constituir em forças sociais. Nesta ordem elas não representam apenas simples respostas a problemas localizados. Suas práticas alteram 23
  • 24. padrões tradicionais de relação política com os centros de poder e com as instâncias de legitimação, possibilitando a emergência de lideranças que prescindem dos que detém o poder local. Destaque-se, neste particular, que mesmo distantes da pretensão de serem movimentos para a tomada do poder político logram generalizar o localismo das reivindicações e mediante estas práticas de mobilização aumentam seu poder de barganha face ao governo e ao estado, deslocando os ‘mediadores tradicionais’ (grandes proprietários de terras, comerciantes de produtos extrativos-seringalistas, donos de castanhais e babaçuais). Deriva daí a ampliação das pautas reivindicatórias e a”. multiplicação das instâncias de interlocução dos movimentos sociais com os aparatos político- administrativos, sobretudo com os responsáveis pelas políticas agrárias e ambientais (já que não se pode dizer que exista uma política étnica bem delineada).” Tudo leva a crer que parte significativa dessas categorias sociais, sejam elas autodenominadas sejam denominadas pelo outro, esteja de certa maneira contempladas sob nas estatísticas que identificam os estabelecimentos rurais. Isso não significa que essa diversidade de categorias sociais passíveis de serem envoltas pela expressão camponês. Para evidenciar a complexidade dessa diversidade se apresenta a seguir alguns extratos de textos resultantes de estudos sobre o campesinato nas regiões Norte e Centro- Oeste do país. 3.2. O Campesinato Paraense14 Jean Hebette Observações metodológicas preliminares As reflexões sobre o campesinato constantes deste texto sofrem de evidentes limitações que requerem uma informação sobre as suas fontes e seus procedimentos analíticos. Estas reflexões são baseadas em duas fontes principais e desiguais: por um lado, as fontes oficiais, principalmente as mais acessíveis e mais extensivas ao universo geográfico abordado – o Pará - e, por outro lado, as que resultam de minhas observações pessoais de muitos anos no Pará e na Amazônia em geral, que se dividem entre trabalho de pesquisa (a maior parte publicada em livros e revistas) e observações ocasionais acumuladas sem o mesmo rigor instrumental. Estes conhecimentos têm graus diversificados de precisão, uma vez que trabalhei, sobretudo, no sudeste paraense e na Bragantina paraense. São conhecidas as limitações das informações, mesmo as das fontes mais úteis e de maior confiabilidade geral, como as do IBGE e, em certos casos, as do INCRA. Não precisa estender-se sobre estas limitações. Convém, entretanto, chamar a atenção sobre o uso feito das estatísticas do IBGE para falar do campesinato, uma categoria conceitual fundamental para este estudo, mas que é desconhecida do IBGE. 14 O texto desta seção é constituído pela Primeira Parte do documento O Campesinato Paraense do estudo Agriculturas Camponesas Paraenses, elaborado por Jean Hebette (2004). 24
  • 25. Em que nicho, ou em que gruta das tabelas, dos gráficos e dos mapas do IBGE se esconde o campesinato? Algumas tabelas do último Censo agropecuário – o de 1995-1996 – oferecem condições de cruzamento entre variáveis, como as categorias de condição do produtor, de grupo de atividade econômica e grupos de área total ou específica (colheita...), de tipo de produto, destino da produção. Um teste de cruzamento entre essas variáveis me levou a privilegiar, para circunscrever a categoria camponesa, a variável “área total do estabelecimento”, escolhendo como mais representativas do campesinato as áreas abaixo de 200 hectares. É para essas áreas que convergem, no caso do Pará, outras variáveis que conhecemos como mais típicas do campesinato paraense, tais como: importância das lavouras temporárias, uso limitado de insumos externos aos lotes, ausência de equipamentos agrícolas ou outros utilitários como veículos, nível baixo da comercialização dos produtos. Quem são os camponeses? O modo de vida que, neste ensaio, será chamado camponês, e as populações que dele vivem, também chamadas camponesas, se oferecem ao nosso olhar mediante algumas características fundamentais. Os camponeses são produtores livres de dependência pessoal direta – são “autônomos”; sua sobrevivência de homens livres lhes impõe laços de solidariedade cuja quebra ou enfraquecimento ameaçam seu modo de vida; esses laços mais primários são os de parentesco e de vizinhança que os levam a procurar se agrupar em “comunidade”; a busca de sua permanência e reprodução numa mesma “terra” (ou no mesmo “terroir”, como se diz em francês), traduzidas como apego à terra, é a marca do sucesso de seu modo de vida e a fonte de seu cuidado com seu ambiente: A migração para ele é uma fatalidade, a expulsão, uma degradação inaceitável. No Brasil, a palavra camponês desapareceu do léxico oficial; cheira o atraso do homem do campo. Desapareceu também do dicionário de muitos cientistas da agronomia e até das ciências sociais, pois o conhecimento do homem do campo postula do estudioso um trabalho persistente de campo. Lhe é preferida a expressão vaga e homogeneizadora de “agricultor familiar” cuja fácil identificação se reduz a algumas variáveis quantitativas de números de trabalhadores, familiares e exteriores à ela, e de quantidade de meses de trabalho externos ao grupo doméstico (ver a brilhante crítica de Delma Passanha). Esta opção metodológica adotada nas esferas oficiais facilita, evidentemente, a utilização da estatística graças a seu poder de homogeneização redutora de uma categoria social muito complexa e diversificada. A raiz desta diversidade tem suas explicações, que, obviamente, não se encontram apenas nas predisposições e nas práticas das famílias que vamos analisar. Elas exigem a recomposição da história, das políticas públicas e, acima de tudo, na Amazônia, dessa complexa teia de relações entre as diversas categorias de exploradores da terra, que está embutida na história e nas políticas públicas. Estes aspectos serão examinados brevemente numa primeira parte deste trabalho; a secunda parte será dedicada ao exame de três situações típicas do Estado do Pará: o Oeste, o Sudeste, a Bragantina. [A segunda parte do estudo de Hebette não está aqui incluída]. 25
  • 26. O contexto contraditório do nascimento do campesinato paraense: um pouco de história O campesinato sobrevive no Brasil em proporções e densidade muito diversificadas segundo as regiões e segundo suas modalidades. A referência ao campesinato sempre foi a referência à Europa continental Ocidental; é lá que os governos foram buscar os colonos quando findou o regime escravagista; estes se fixaram sobretudo no Sul e no Centro-Sul do país, regiões mais próximas da Europa em termos ambientais, onde deram origem a um campesinato original. Daqui em diante, o “tipo ideal brasileiro” do campesinato se tornou o campesinato do Sul e Centro-Sul. É esta referência que orientou todas as políticas públicas brasileiras para o campesinato --- quando houve!, inclusive as políticas recentes de colonização. O Norte ficou o refúgio dos camponeses atrasados, os “caboclos”. Na Amazônia, quando o Estado do Maranhão e Grão-Pará era ainda distinto do Estado do Brasil, o progressista Marquês de Pombal, tentou criar também um campesinato. Nos idos de 1750, tentou aculturar como agricultores livres no Amapá e no Nordeste paraense colonos expulsos da praça forte de Mazagão, no Marrocos. Não teve êxito. Na verdade o primeiro campesinato totalmente livre que surgiu e se manteve no Pará, foi formado pelos quilombolas que fugiram da escravidão, aos quais se juntaram, mais tarde, os rebeldes cabanos que escaparam do massacre pelas tropas legalistas do Império. Esperaram até o fim do século XX para ter algum reconhecimento público de sua identidade e de seu direito à terra duramente conquistada. Vieram em Santarém homens do campo derrotados no sul do Estados Unidos na Guerra de Secessão. Nas proximidades de Belém, em Benevides, vieram alguns migrantes franceses denominados canadinos. Não persistiram e não formaram campesinato. Foi uma grave seca que assolou todos os trópicos do mundo nos anos 1870, inclusive os sertões do Nordeste brasileiro, que arrancou de suas terras e do domínio de seus donos, levas de migrantes nordestinos que procuraram sua sobrevivência na Amazônia, região imune, por suas águas, ao flagelo. Muitos deles foram se escravizar no duro serviço dos seringais. Outros ficaram nas cercanias das cidades de Belém, penetrando para o leste do Pará, acompanhando uma ferrovia que progredia penosa e vagarosamente nas matas bragantinas. Estes foram os que criaram no Pará um primeiro campesinato denso, articulado, e de certa maneira próspero, considerando-se as outras categorias de trabalhadores. Um dado de importância fundamental para a constituição de um campesinato efetivamente autônomo na Bragantina, foi a alocação aos colonos de lotes de terra claramente delimitados pelo governo e de tamanho adequado a um tipo de exploração familiar (média de 30 ha). A falta de delimitação oficial das terras camponesas nas áreas ribeirinhas da rede fluvial Amazônica manteve, muitas vezes, na dependência social dos grandes proprietários, as famílias que, por tradição secular ou por presença mais recente, moravam nas regiões banhadas pelo rio Amazonas e seus afluentes. As famílias donas de grandes fazendas, residentes no seu domínio rural ou na cidade ou ainda alternativamente num e na outra, 26
  • 27. donas também, geralmente de cargos políticos, de cartório, ou de comércio e de transporte exerciam e continuam exercendo sobre essas famílias camponesas diversas formas de pressão, de obrigações e de dominação. As vias e as condições de transporte e de comunicação são de extrema importância para as populações rurais; geralmente, estas distâncias aumentam ou diminuem conforme a densidade da população. O fato de a colonização da Bragantina ter avançado ao ritmo da implantação de um ferrovia pública dos anos de 1880 a 1920, assim como o módulo de 30 ha para as terras das colônias, contribuiu bastante para a constituição de um campesinato relativamente denso, organizado em torno das estações do trem que se tornaram progressivamente centros de comércio e de serviços. A condição de serviço público da ferrovia, por outro lado, preservou as populações de uma dependência paternalista dos donos de empresas privadas. As populações ribeirinhas dos rios organizadas após a escravidão e reforçadas pela volta àquelas regiões dos seringueiros, não se beneficiaram das mesmas vantagens e permaneceram mais tempo na dependência dos grandes donos de terra. Mas diferente foi o impacto sobre o campo das vias de comunicação quando deixaram de ser locais, ou simplesmente regionais. Foi o que aconteceu a partir do momento em que a indústria brasileira, aproveitando o parêntese da Segunda Guerra mundial, penetrou no ramo da construção automobilística que se ampliou nos anos de 1970 e 1980. Este interesse pela construção e/ou montagem de caminhões, carros e ônibus acompanhou-se necessariamente do desenvolvimento da rede rodoviária de dimensões nacionais. O Pará foi inicialmente afetado pela nova política de transporte com a construção da rodovia conhecida como Belém-Brasília que, nos anos de 1950 e 1960, penetrando nas bandas nordestinas do Estado, passou a interligar as duas capitais com fluxos de veículos crescentes à medida que a rodovia estava completando a sua infra-estrutura física e de serviços. Ela foi acompanhada pela implantação de um novo latifúndio madeireiro e pecuário mais dinâmico, empresarial e impessoal, que contrastava com o latifúndio paternalista dos tempos passados. Enquanto este novo latifúndio estava irrigado de generosos incentivos fiscais, o campesinato recebia apenas uma minguada assistência técnica. Marcou o início do enfraquecimento da colonização bragantina. A implantação da rodovia Transamazônica no sentido leste-oeste nos anos 1970 teve, também, impacto profundo no Sudeste paraense, mas ela apresentava características diferentes. Primeiro, os objetivos básicos dessa implantação: tratava-se de povoar uma imensa parte do país de densidade populacional ínfima para despovoar outra parte – a do Nordeste – cujas densidades aumentavam o caráter potencialmente explosivo das contradições agrárias. Trazia no seu bojo o modelo rural supostamente integrador de atividades agropecuárias empresariais e camponesas, de desenvolvimento empresarial eficiente de latifúndios improdutivos concedidos pelo governo no Sul do Pará nos anos de 1950, e de um programa de colonização agrícola oficial. O governo não contava com o potencial organizativo dos pequenos produtores que, desprezando os planos governamentais de organização colonizadora, procuravam sua autonomia, fugindo do cativeiro da terra no Nordeste. O projeto de colonização ao longo da Transamazônica envolvia a transferência, do domínio estadual para a jurisdição federal, das terras cortadas pela rodovia, com a conseqüência da montagem de um novo organismo 27
  • 28. governamental representando a União nas terras de colonização: uma forma autoritária de intervenção federal que retirava do governo estadual a competência em termos de infra- estrutura, educação, saúde, assistência técnica, crédito nas áreas de colonização, criando uma superpotência prepotente, o INCRA. Este autoritarismo, casado com uma prepotência que excluía o diálogo, estimulou a formação de um tipo de organização sindical particularmente forte respondendo à imposição pela imposição até que se chegasse a um princípio de diálogo. Esta força sindicalista estava também estruturando-se no meio às populações tradicionais do Oeste Paraense, mais precisamente no raio de ação da cidade de Santarém, alastrando-se ao longo da Transamazônica e nos municípios do Baixo Amazonas. A influência do movimento sindical no Sudeste paraense foi determinante na construção de um “novo campesinato”. Entretanto, este campesinato regional em formação, desprovido de um apoio competente dos governos estaduais e federal, sofria uma tremenda pressão dos novos latifundiários, estes apoiados pelo grande e médio capital, ele mesmo apoiado pelo estado. Hoje, salta aos olhos a estratégia tenaz de ocupação da Amazônia tanto denunciada, sem sucesso, pelos estudiosos da Amazônia, pesquisadores e jornalistas, desde 1970. Ela pode ser esquematizada, no Pará da maneira seguinte: ⋅ ocupação militar graças aos programas de infra-estrutura e de ocupação camponesa; ⋅ ocupação empresarial de grande monta (mineração, indústria siderúrgica, hidrelétrica...); ⋅ penetração das matas pelos madeireiros e fazendeiros, na seguinte seqüência: ⋅ 1º: desmatamento e pecuária extensiva (aliança madeireiras/pecuaristas) ao longo das grandes rodovias (Belém-Brasília, Transamazônica, PA 70 e 150), inclusive graças à mão de obra rural vinda do Nordeste brasileiro; ⋅ 2º: desenvolvimento de uma pecuária moderna, principalmente no Sul e Sudeste paraenses; ⋅3º: introdução da soja, principalmente ao longo do traçado da rodovia Cuibá- Santarém (fase atual). Estas estratégias repousam numa visão de médio e longo prazo e têm uma grande coerência interna tipicamente capitalista. Ela se sintetizava no projeto do Grande Carajás, o Carajazão, de Delfim Netto, que, já em 1980, previa “800 mil hectares de soja plantados” e, isto, “apesar da inexistência de resultados definitivos que possam fundamentar a introdução da cultura” (boletim Relatório reservado, de novembro de 1980). A Embrapa encarregar-se-ia de adaptar a soja aos ecossistemas amazônicos ‘transgenicados’ e a miséria rural encarregar-se-ia de fornecer uma mão-de-obra semi-escrava para a realização dos planos ‘delfinicos’. Neste quadro megalomânico e desumano, conseguiu-se nascer e se organizar o que já chamei “um novo campesinato paraense” (Sudeste paraense e transamazônico de terra firme) e começar a se organizar um campesinato de tradição ribeirinho-varzeira de matiz 28
  • 29. ambiental (ao longo do rio Amazonas): dois tipos originais de campesinato brasileiro totalmente desconhecidos fora da região. O Pará camponês e seu entorno Segundo o Censo de 2000, o Estado do Pará mede 1.227.530 km2 ; a população, em 2000, se elevava a apenas 6.192.307 habitantes, representando uma densidade populacional muito abaixo da dos Estados mais ao sul (5 hab/km2 ) - número este geralmente interpretado como negativo e como sinal de subdesenvolvimento. A presença e o modo de vida das populações indígenas e do campesinato testemunham que não é bem assim. Esta população paraense está distribuída de uma maneira desigual: 33% dela reside na região metropolitana de Belém, área considerada pelo IBGE como quase totalmente “urbana”; além desta área metropolitana, somente três cidades têm mais de 100.000 habitantes (Santarém, Castanhal e Marabá). A população designada pelo IBGE como ”rural”, por sua vez, representa 33,5% do total paraense. Onde estão os outros 33%? No “campo” e em sedes de municípios indevidamente chamadas “urbanos”, mas que são na realidade pequenos centros rurais de serviços (de 20 a 50.000 habitantes, entre os quais muitos agricultores). A área dos estabelecimentos agropecuários calculada pelo Censo Agropecuário de 1995-96 era de 22.520.229 ha (18,35% do Estado), sendo que a área dos 193.453 estabelecimentos de menos de 200 ha somava 7.162.291 há (32% deste total), enquanto 158 estabelecimentos de mais de 10.000 ou mais ha cobriam, na época do censo, 5.369.196 ha, ou seja, 23,8% da área total dos estabelecimentos! E o resto do espaço estadual? Ele se dividia entre “reservas” de diferente natureza (mineração, remansos de barragens para hidrelétricas, áreas de titulação irregular etc,) num total de 40 milhões de hectares. Além destas áreas inacessíveis à população em geral, há áreas acessíveis para uma população reduzida devido às normas de conservação, notadamente as florestas nacionais, os parques nacionais, as reservas extrativas e as reservas biológicas que soma um total 46,53 milhões de hectares. As terras indígenas somam um total, no Estado do Pará, de 27, 67 milhões de hectares. Como terras de uso restrito (áreas da aeronáutica e outras) tem-se 31,4 milhões de hectares. O espaço camponês paraense O que representava, em 2000, o campesinato no conjunto desta população paraense? O Censo demográfico não nos informa a este respeito, e nem em relação às populações indígenas. Com certeza, ela população camponesa não se mede pela população rural, porque, primeiro, nem toda a população rural é camponesa, e, segundo, há muitos camponeses recenseados como “urbanos” nas cidades do interior. Deve-se, portanto, utilizar outras referências que o trabalho de campo permite identificar, cruzando diversas “variáveis”; entre elas, por exemplo, a dimensão da terra do estabelecimento, o tipo de produtos, as tecnologias usadas, os equipamentos disponíveis. Cada uma destas variáveis devendo ser considerada dentro do contexto sóciocultural e tecnológico da região e inter- relacionadas, nenhuma delas sendo significativa isoladamente. 29
  • 30. O teste pragmático de representatividade da identidade camponesa experimentado, no contexto paraense e com base em dados disponíveis, resultou na escolha da variável tamanho da terra como a mais satisfatória – não em si, mas dentro do contexto paraense e em confronto com a nossa experiência de campo. Esta informação, infelizmente, só é disponível no último Censo Agropecuário, defasado em quase 10 anos, o que é muito, considerando-se o dinamismo demográfico da região Norte, cuja população cresceu, de 1960 a 2000, a uma taxa anual de 2,86% (de longe a maior de todas as regiões do país), sendo a taxa de crescimento “urbano” de 4,82%, bem mais ainda do que a taxa das outras regiões, enquanto a população rural baixava de 0,62%, de longe, a menor de todas as regiões) (IBGE, 2000, p. 31). Além desta limitação, deve-se levar ainda em conta a imprecisão e a confiabilidade limitada de alguns dados dos censos, particularmente em contexto amazônico. Apesar destas restrições, são os dados daquele censo que nos foi possível utilizar. A grande tendência da evolução da agropecuária camponesa paraense O Censo Agropecuário dá uma idéia aproximativa da tendência de crescimento em termos de estabelecimentos e de pessoas na agropecuária do Estado. Para efeito de comparação foram adotados como início do período os anos de 1960 que caracterizam a abertura da fronteira amazônica, e como final do período o ano de 1995, ano do último Censo Agropecuário. Como dito acima, o Censo de 1995-96 registrou uma área de 22.520. 229 ha (18,35% do Estado) pertencentes a 206.404 estabelecimentos agropecuários, incluindo lavouras, pastagens, florestas, pesca e áreas não utilizadas. A Tabela 7 mostra a evolução do número de estabelecimentos daqui em diante considerados representativos do campesinato e a Tabela 8, a evolução das áreas daqueles estabelecimentos, com seus respectivos percentuais em relação ao total da agropecuária paraense. Essas tabelas mostram que, ao longo do período, o número relativo (%) de estabelecimentos aqui considerados camponeses se manteve no nível de 92-93% do total, e o volume da área em torno de 31-33%, confirmando a enorme concentração da terra. O número de estabelecimentos camponeses aumentou muito menos do que os das outras categorias, pelo menos se incluir na comparação um grande número de estabelecimentos sem declaração no Censo de 1960; pode-se, inclusive, conjeturar que estes estabelecimentos omitidos eram precisamente os maiores. 30
  • 31. Tabela 7 . Evolução do número de estabelecimentos agropecuários por grupos de área total dos estabelecimentos. Pará 1960-1996 Área (ha) 1 9 6 0 1 9 9 6 ∆% (b/a)Nº de estab. (a) % Nº de estab. (b) % < 10 10 a < 100 100 a < 200 Subtotal 200 a < 10.000 10.000 e mais Subtotal Sem declaração Total 34.770 39.040 3.054 76.864 3.306 33 3.339 2.977 83.180 41,80 46,93 3,67 92,41 3,98 0,03 4,01 3.58 100% 64.838 104.435 24.180 193.453 12.584 162 12.746 205 206.404 31.41 50.60 11.72 93,72 6,10 0,08 6.18 0,10 100% 86 167 692 152 280 391 282 -94 148% Fonte: IBGE. Censo Agropecuário 1995-1997. Pará. Tabela 1 Tabela 8. Evolução da Área dos Estabelecimentos Agropecuários por Grupos de área total dos estabelecimentos. Pará 1960-1996 Área (ha) 1 9 6 0 1 9 9 6 ∆% (b/a) Nº estab. (a) % Nº estab. (b) % <10 10 a < 100 100 a < 200 Subtotal 200 a < 10.000 10.000 e mais Subtotal Total 131.294 1.215.059 415.341 1,761.694 2.542.902 948.676 3.491.578 5.253.272 2,50 23,13 7,90 33,53 48,41 18,06 66,47 100% 210.417 4.117.745 2.834.129 7.162.291 9.988.743 5.369.196 15.357.939 22.520.230 0,93 18,28 12,58 31,78 44,36 23,84 68,20 100% 60 229 582 307 293 566 340 324 31
  • 32. No que se refere ao campesinato, aumentou muito o número de estabelecimentos na faixa entre 100 e menos na faixa de 200 hectares, o que se deve, pode-se acreditar, ao módulo de 100 hectares fixado inicialmente pelo INCRA na época da colonização oficial. Está faixa representa os 12% de camponeses, mas dotados de terra. Em sentido contrário, os minifúndios tenderam a declinar. O forte do campesinato e sua maior tendência ao crescimento estão, entretanto, na faixa intermediária de 10 a menos de 100 hectares. Quantos são, finalmente, embora aproximativamente, os estabelecimentos camponeses do Pará? Aceitando que, no caso do Pará, o critério de área inferior a 200 ha seja válido para circunscrever o campesinato; o número de estabelecimentos seria de 193.453, ou seja, 93,7% do total dos estabelecimentos paraenses, cobrindo 7.162.289 ha, ou seja 31,8% do total da área desses estabelecimentos. 3.3. Os pescadores de pequena escala no Pará15 Maria Cristina Maneschy “O Estado do Pará tem grande parcela de sua população vivendo no meio rural ou dele dependendo para obter seus meios de vida. Parte significativa dos que residem nas pequenas e médias cidades do Estado trabalha no campo, de maneira exclusiva ou parcial. Neste Estado, como aliás na região como um todo, as águas ocupam lugar de destaque e, nesse contexto, a pesca sobressai como atividade produtiva. Com seus dois segmentos - artesanal e industrial, conforme a terminologia oficial – o Pará é o maior produtor de pescado do país, tendo suplantado o Estado de Santa Catarina, tradicional pólo pesqueiro do Brasil. Os pescadores artesanais que, em sua maioria, são pescadores de pequena escala, podem ser considerados como parte do campesinato, por compartilharem um conjunto de características com os camponeses de base agrícola. Ademais, as categorias ‘pescadores’ e ‘agricultores’ não raramente se confundem, embora menos hoje do que em um passado não muito distante. Os mesmos produtores que exercem a pesca, podem exercer a agricultura ou, ainda, diversos tipos de extrativismo. Nesses casos, a identificação profissional com a pesca ou a agricultura - feita por exemplo para inscrição no sindicato e para requisitar direitos vinculados ao estatuto profissional – pode ocorrer por fatores diversos, como o tempo de dedicação a uma ou outra, ou o seu grau de contribuição para o orçamento doméstico. Há que se considerar, também, que por vezes a participação das famílias nas atividades em terra e nas águas obedecerá a um padrão de divisão do trabalho por sexo e por idade. Assim, conforme o lugar, podem-se encontrar famílias em que os homens pescam e as mulheres trabalham regularmente na roça, podendo praticar pesca de beira e 15 Esta seção é constituída por extratos do documento Diversidade camponesa: os pescadores de pequena escala no Estado do Pará, de Maria Cristina Maneschy (2003). 32
  • 33. realizar tarefas complementares à pesca dos parentes. Em outros casos, os homens podem pescar e trabalhar na terra e as mulheres na terra e no beneficiamento de mariscos. Há, portanto, muitas situações em que pescadores e agricultores se confundem. Mas há, também, uma grande proporção de pescadores, dedicando-se integralmente às lides pesqueiras, o que é comum nas cidades portuárias. De todo modo, a despeito da importância da pesca nesta região, importância econômica e social, vale ainda lembrar que não se trata de uma região de “grande tradição” pesqueira, como ocorre em certos países costeiros, capaz de conformar padrões culturais absolutamente distintos entre as comunidades de pesca, notadamente as marítimas, e as comunidades terrestres. Os pescadores, pescadores-lavradores, ribeirinhos, lavradores e extrativistas no Pará e, por extensão, na Amazônia, partilham uma origem histórica comum que remonta à colonização e ao processo de desestruturação das populações indígenas, sua conversão no “índio genérico”, destribalizado, formador das populações rurais amazônicas. Evidentemente, a partir de meados do século XX, com as políticas de crescimento econômico e de ‘integração’ regional por meio dos grandes eixos rodoviários, a ocupação das terras firmes distantes dos cursos dos grandes rios provocou mudanças no perfil demográfico e cultural. Assim como levas de migrantes assentados ao longo das rodovias especializaram-se nas atividades agrícolas, também levas de antigos pescadores-lavradores dirigiram-se para cidades e se especializaram na pesca. Os pescadores artesanais ou de pequena escala, exclusivos ou não, são aqui considerados como parte do campesinato, como já referido, pois partilham características - e, também, problemas para sua reprodução social – com os camponeses de base agrícola. Dentre essas características destaca-se a condição de produtores autônomos, a importância da família na produção, que pode se dar na composição das unidades de trabalho – tripulações – ou na realização de tarefas pré e pós-captura, quando as mulheres ou filhas de pescadores ocupam-se do conserto ou confecção de instrumentos de pesca (notadamente as redes) e beneficiam o produto trazido pelos parentes. A proximidade de interesses de ambas as categorias evidencia-se no fato de que participam de mobilizações em conjunto, como é o caso dos Gritos da Terra, quando pressionam por políticas de apoio, reconhecimento e direitos.” (Mareschy, 2003: 1-2) “(...) A despeito da importância indiscutível do setor pesqueiro na região, do ponto de vista econômico e social permanece a grande carência de estudos sistemáticos sobre suas características básicas, formas de organização e problemas vivenciados dia a dia pelos pescadores e pelas comunidades pesqueiras em geral. A falta de estatísticas sobre o contingente humano envolvido tem sido observada em vários estudos, não somente no Pará, como em outras regiões do país, como analisou Diegues (1995). A ausência de dados ou políticas setoriais consistentes são expressões do lugar secundário com que a atividade ainda é vista na região. Os pescadores exploram diversos ambientes. O Estado do Pará oferece possibilidades de pesca marítima, costeira (nas praias, nas águas ao largo, sobre bancos de areia, nas baías...), fluvial (ao longo dos rios, cabeceiras ou foz de rios e igarapés), pesca lacustre (com destaque para os lagos do Baixo Amazonas, da ilha de Marajó e o lago de 33
  • 34. Tucuruí) e, ainda, nos manguezais da costa. Os que executam pescarias móveis podem efetuar grandes deslocamentos, chegando mesmo aos estados vizinhos. Os deslocamentos podem estar se modificando tanto por fatores ambientais quanto pela escassez decorrente de acentuada pressão sobre os estoques e a ausência de medidas sistemáticas de manejo pesqueiro, obrigando os pescadores a procurar pesqueiros (locais de pesca) mais distantes. Há, portanto, modalidades bastante diferentes de pesca no Estado, que requerem disponibilidade de meios de trabalho, de tempo e de mão-de-obra, muito diferentes. No que diz respeito a medidas concretas de apoio à categoria, tais diferenças devem ser levadas em conta. De acordo com o dirigente de uma associação de pescadores no município de Porto de Moz, em entrevista no ano de 2000, as especificidades locais devem ser consideradas inclusive nas pesquisas aplicadas. “... Tocantins é diferente do Xingu, diferente do Tapajós, do Amazonas, do Salgado [zona costeira]; então, seria [preciso] insistir nessas pesquisas por região, certo, pra poder ter um crescimento de conhecimento, porque cada região tem o seu conhecimento, tem a sua cultura, tem o seu jeito de trabalhar. Então, aí vai ser difícil traçar uma política única, por exemplo, que é feita para o Salgado, que dá certo, mas no Baixo Amazonas não dá. Se foi um política lá no Tocantins, lá tem um sistema diferente do Xingu. Então é isso que eu falo da questão de uma política assim voltada (...) Com relação ao estudo eu me refiro que o governo tem os seus órgãos de pesquisa, então é necessário liberar mais recursos para os órgãos de pesquisas, pra poderem fazer essas pesquisas aqui na região”. 16 (Mareschy, op. cit.: 6-7) “(...) Uma categoria de pescadores numericamente importante no litoral é composta pelos “tiradores” de caranguejos, que atuam nos exuberantes manguezais da área.17 É uma categoria cuja formação é relativamente recente, pois decorreu do incentivo à comercialização trazido pelas estradas, a partir dos anos 1970. Há indícios de que ela vem crescendo numericamente. SILVA (2004) observou um acréscimo no número de pessoas nessa atividade nos últimos cinco anos, que teria ocorrido pela “falha” (diminuição) de peixes de maior valor comercial na região costeira. Os tiradores estão inseridos na categoria mais ampla de pescadores, mas apresentam particularidades. O grau em que dependem da “tiração” como fonte de renda varia conforme o local. Em pesquisa de campo em 1990 no município de São Caetano de Odivelas sobre os tiradores de caranguejos, MANESCHY (1993) verificou grande número deles atuando somente nessa atividade, sobretudo no caso dos residentes na cidade. Eles entremeavam a tiração eventualmente com a pesca em rios ou com serviços (por exemplo, 16 Sr. Pedro Maciel, então presidente da Associação de Pescadores Artesanais de Porto de Moz (ASPA). Entrevista concedida a Ana Laíde Barbosa, coordenadora regional do Conselho Pastoral de Pescadores. 17 Ainda que não se trate de determinismo ambiental, compreender a presença desses trabalhadores implica considerar a grande extensão dos manguezais ao longo da costa paraense e dos estados vizinhos: “A costa brasileira possui uma das maiores áreas contínuas de manguezal do mundo, em torno de 1,38 milhões de hectares, cuja vegetação apresenta sua maior exuberância nas latitudes próximas à linha do Equador, no litoral amazônico...”. Fonte: FERNANDES, M. E. B. (org.) Os manguezais da costa norte brasileira. Maranhão, Fundação Rio Bacanga, 2003. (Prefácio) No Pará, os manguezais ocupam 4.500 km2 (conforme PAIVA, 1981, apud SUDEPE, 1988), correspondendo a cerca de 1/5 dos manguezais do país. 34
  • 35. capinação de ruas). Já no caso de povoados, era mais comum encontrar tiradores que eram também agricultores.” (Maneschy, p. cit.: 16) 3.4. Territorialidades tradicionais e perspectivas de sustentabilidade nos cerrados18 Carlos Eduardo Mazzeto da Silva Introdução Os Cerrados se constituem no segundo maior bioma brasileiro após a Floresta Amazônica, ocupando praticamente um quarto do território brasileiro (Figura I) - equivalente, por exemplo, à área da Europa ocidental -, presente em 13 unidades federativas do Brasil19 , e abrigando um rico patrimônio de recursos naturais renováveis adaptados às duras condições climáticas, edáficas e hídricas que determinam sua própria existência. Mesmo se identificando na denominação internacional de savanas, os Cerrados são uma formação única no mundo, só presente em nosso território. A dimensão da biodiversidade dos Cerrados ainda não está completamente conhecida. Estimativas apontam para a existência de mais de 6.000 espécies só de árvores. Dias (1996) ressalta no universo vegetal dos Cerrados, 14 grupos de plantas úteis: forrageiras, madeireiras, alimentícias, condimentares, têxteis, corticeiras, taníferas, com exudatos no tronco, produtoras de óleo, medicinais, ornamentais, empregadas no artesanato, apícolas e aparentadas de cultivos comerciais. As estimativas sobre a diversidade de espécies animais se encontra no quadro 3. Quadro 3 – Estimativa de número de espécies de répteis, anfíbios, mamíferos e aves do Cerrado Tipo de animal Número de espécies Répteis (Cerrado) 180 Répteis (Pantanal) 113 Anfíbios (Cerrado) 113 Aves (Cerrado) 837 Mamíferos (Cerrado) 195 Mamíferos (Pantanal) 132 Fonte: WWF, 2000 a partir de dados de Marinho Filho, 1998 e Cardoso, 1998. 18 Esta seção é constituída pela Parte II – Territórios tradicionais e a perspectiva da sustentabilidade dos cerrados, do documento Conhecimento Local e Sustentabilidade: lugares e saberes das ruralidades não- modernas dos cerrados, de Carlos Eduardo Mazzeto da Silva (2002). 19 Bahia (oeste e Chapada Diamantina), Ceará (enclaves nas Chapadas Araripe e Ibiapaba), Distrito Federal, Goiás, Maranhão (sul e leste), Mato Grosso (sul), Mato Grosso do Sul, Minas Gerais (centro-oeste, noroeste, parte do norte e nordeste e Serra do Espinhaço), Pará (enclaves no sudeste), Piauí (sudoeste e norte), Rondônia (área centro-leste), São Paulo (enclaves no centro-leste) e Tocantins (exceto extremo norte). 35