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Alma Guerreira
A Warrior's Heart
Margaret Moore
Resumo:
Gales
1201
Roanna Westercott viu-se arrastada em louca disparada, afastando-se rapidamente das terras
onde deveria começar uma nova vida. O jovem guerreiro solitário, que a arrebatara da proteção do noivo
e da comitiva que os acompanhava, parecia possuído de força sobrenatural, da obstinação cega dos que
passam por intensa dor para se tornarem mais fortes.
Com medo e fascínio, observou o rosto de seu raptor. As marcas de guerra eram mais suaves que
as cicatrizes da alma ali espelhadas. Roanna não tinha ilusões. Ela seria usada como arma contra seu noivo
por algum motivo que desconhecia. E não ousava imaginar o final de uma luta entre dois homens de
orgulho feroz e vontade implacável!
Digitalizado e corrigido: Judith Lima
Copyright © 1992 by Margaret Wilkins
Publicado originalmente em 1992 pela Harlequin Books, Toronto, Canadá.
Todos os personagens desta obra, salvo os históricos,
são fictícios. Qualquer outra semelhança com pessoas
vivas ou mortas terá sido mera coincidência.
Copyright para a língua portuguesa: 1992
EDITORA NOVA CULTURAL LTDA.
CAPÍTULO I
Gales, 1201
— Não mudou muito, não?
O guerreiro alto, ajoelhado no alto do rochedo, voltou-se para o irmão
de criação, sem se importar com a chuva que ensopava a túnica de couro
comprida, sem mangas, e as calças de lã, nem com o vento frio nos braços
nus e na cabeça.
Lá embaixo um pequeno cortejo de cavaleiros molhados, duas velhas e
rangentes carroças, vários soldados a pé, avançava com lentidão pela
estrada enlameada.
Observando no cavaleiro à frente, o guerreiro mais alto emitiu um
som zombeteiro e comentou:
— Cynric ainda cavalga como se tivesse uma lança enfiada na...
— Emryss! — exclamou o mais baixo, abafando uma gargalhada.
— Pelos deuses, Gwil! Eu ia dizer armadura. Às vezes você parece uma
mulher velha! — Emryss apontou para a pequena figura que montava um
cavalo de dorso curvo. — Aquela deve ser a noiva. Cavalga como um saco de
batatas! Garanto que ele não vai se casar com ela pelo jeito que monta!
Ajustando o tapa-olho sobre a órbita direita, vazia, Emryss sorriu
para o irmão adotivo. Para qualquer outro guerreiro, o sorriso pareceria
absurdo. Mas Gwilym sabia que quando Emryss sorria a encrenca ia
começar.
— E não tem grande dote, também — comentou Gwilym, preocupado
com o que Emryss ia fazer, uma vez que sua prolongada ausência não
diminuíra o ódio que alimentava pelos DeLanyea de Beaufort. — A filha da
cunhada do ferreiro ouviu, no mercado de Beaufort, que o dote dela é de
dar pena.
— Então, ela é bonita?
—Dizem que não. E magra como um vara-pau e tem cara de doente.
Bem, você vai ver.
— Cynric não escolheria uma noiva assim... — disse Emryss, pensativo.
— O que mais dizem, Gwil?
Gwilym suspirou, sentando-se, enquanto a coluna, lá embaixo,
começava a entrar na floresta.
— O velho barão é que acertou o casamento. O tio da noiva, aquele ao
lado dela, que parece um urubu, pode introduzi-lo na corte e os DeLanyea
precisam de...
Emryss apontou para o guerreiro que estava do outro lado da noiva:
— E quem é aquele, de cabelos negros, com cara de que espera
confusão?
— Fitzroy. Cuidado com ele, Emryss, ele luta bem.
— De onde ele veio?
— Ninguém sabe — Gwilym deu de ombros. — Pelo que sei, guerreia
por dinheiro.
Emryss ergueu-se quando o último soldado desapareceu entre as
árvores.
— Não me surpreende Cynric ter que alugar guerreiros, sem dúvida
homens procurados por assassinato ou algo parecido. — Tirou o tapa-olho e
prendeu-o no cinto. — Bem Gwil, chegou a hora de mostrar a meu primo que
voltei.
— Está louco, Emryss! — Gwilym também se levantou, evitando olhar
para a cicatriz terrível que marcava a face direita de Emryss.
— Vai aparecer à frente dele e dar bom dia ? Ele odeia você, homem!
Vai matá-lo assim que o enxergar.
— Duvido, não vai querer chocar a noiva. E acho que vou dar bom dia
em gales. Acho que ele vai gostar...
Gwilym sacudiu a cabeça, enquanto Emryss montava devagar,
ajeitando a perna esquerda, com cuidado.
— Loucura. Vai deixá-lo ver o que aconteceu com você? Assim que
acabou de falar Gwilym teve vontade de morder a língua, ao ver o rosto de
Emryss endurecer.
— Meu rosto é a prova de que sarraceno nenhum vai me matar até que
acerte as contas com os Beaufort.
— Está bem, Emryss — assentiu Gwilym, montando. — Estou com você.
— Todos são uns bárbaros estúpidos — queixou-se Cynric DeLanyea,
a voz zumbindo como um inseto nos ouvidos de lorde Raynald Westercott.
— Não entendo por que o rei se importa com esta região selvagem. Só tem
atoleiros que engolem carneiros e até pastores!
Westercott apontou o nariz adunco para Cynric e deu um sorriso
forçado. Sentia-se cansado das lamentações do nobre, mas não queria criar
antagonismo antes que sua sobrinha estivesse casada e fora de sua vida.
— Bem, milorde, com certeza a floresta tem algum valor. Seu pai
nunca se lamentou pelo baronato que recebeu aqui.
— Ele tem certas... compensações! O sorriso de Cynric fez
Westercott sentir-se pouco à vontade.
Ouvira dizer que os DeLanyea gastavam fortunas para satisfazer a
luxúria e esmagavam seus rendeiros com impostos. Precisavam de apoio
para entrar na corte do novo rei, John, por isso o barão DeLanyea
resolvera casar o filho. As loucuras do barão serviam para que ele
resolvesse o problema da sobrinha. A moça vivia vagando pela propriedade
como uma alma penada, aparecendo diante dele quando menos a esperava.
Não via a hora de se livrar dela.
— Temo que a chuva aperte... Ainda estamos muito longe de
Beaufort? — indagou Westercott.
Seu estômago reclamava, avisando-o que passara muito tempo da
última refeição.
— Não. Chegaremos antes da noite cair.
Westercott assentiu, olhando de relance para os que vinham atrás.
Roanna parecia uma galinha molhada, pensou. Graças a Deus ia se casar...
— É uma pena não haver um convento na região do senhor —
comentou Cynric, que lhe seguira o olhar. — Sua sobrinha daria uma ótima
freira.
Voltando-se, Westercott viu o desgosto estampado no rosto do noivo.
Clareou a garganta antes de falar:
— Pensei nisso, mas custa caro pagar a ordenação de uma freira. Seu
pai me fez a proposta e achei bem melhor Roanna nos beneficiar a todos,
não, milorde?.
Antes que Cynric pudesse responder, um corvo saiu voando contra o
céu cinzento, crocitando roucamente.
Lady Roanna Westercott puxou as rédeas e ergueu os olhos. Os
soldados que estavam a pé pararam, nervosos, e observaram as árvores.
— Pelo amor de Deus, é apenas um pássaro! — gritou Cyrinc, voltando-
se sobre a sela e olhando a escolta com frieza.
Em seguida, seus olhos azuis estreitaram-se e os lábios se apertaram.
Roanna, escorrendo água, viu a repulsa pintar-se no rosto do noivo, quando
a fitou.
— Nem os covardes ladrões galeses seriam idiotas o bastante para
nos atacar, seus medrosos! — continuou ele.
Com prática de muitos anos, Roanna demonstrou-se calma. Ouvira
falar nos corajosos ataques dos galeses contra os normandos, que ainda
consideravam invasores, apesar de Guilherme, duque da Normandia, ter
invadido a Inglaterra há mais de duzentos anos. Calou-se, no entanto, pois
sabia que não devia contradizer o noivo e que precisava tomar muito
cuidado com ele.
Conhecia a barganha do tio: os DeLanyea tinham aceito um pobre dote
que era um insulto a ela. Sabia que o barão se tornara inimigo tanto dos
galeses quanto dos normandos e que em troca do casamento seu tio o faria
ser aceito na corte normanda; que os DeLanyea cometiam crimes hediondos
contra seus rendeiros; que Cyrinc DeLanyea era conhecido por seduzir
mulheres, tanto da nobreza quanto do povo, e que os soldados faziam
apostas que ele não consumaria o matrimônio a não ser que estivesse quase
desacordado de tanto beber. E sabia que nada poderia fazer para livrar-se
daquele casamento, por mais que quisesse. Seu tio fizera um acordo e era
obrigada a honrá-lo.
À chuva tornou-se pesada e os cascos dos cavalos chapinhavam mais
profundamente na lama.
De repente, um som meio abafado chamou-lhe a atenção e Roanna
olhou para trás. Uma enorme pedra havia caído na estrada, impedindo a
passagem da carroça que continha seu pobre dote e algumas roupas. Dois
musculosos carroceiros normandos, do baronato dos DeLanyea, saltaram da
carroça e forcejaram para deslocar a pedra, empurrando-a sobre o barro.
Num movimento súbito, Cynric fez seu cavalo recuar. Roanna viu
Fitzroy levar a mão ao punho da espada e seu tio puxar as rédeas da égua,
fazendo-a relinchar em protesto. Os soldados empunharam as espadas e
trataram de ficar mais perto um do outro.
Procurando dominar o medo que lhe apertava a garganta, Roanna
dirigiu sua montaria para junto de Fitzroy, que considerava o melhor
lutador presente. Então, viu porque haviam parado.
Um homem, montado em enorme cavalo negro, permanecia imóvel no
meio da estrada, indiferente à chuva que escorria do elmo para a longa
túnica de couro. O elmo cobria-lhe completamente a cabeça e tinha apenas
uma fenda estreita que permitia a visão. Era velho e bem polido,
provavelmente roubado. A água da chuva escorria pelos braços nus, pois ele
não usava camisa, nem túnica. As pernas musculosas estavam recobertas
por calças justas de lã e botas de couro. Tinha um dos tornozelos apoiado
sobre a outra perna, que balançava como se estivesse seguindo o ritmo de
uma canção.
Roanna quase perdeu a respiração: ele seria facilmente dominado
pelos soldados de Cynric. Só um maluco se atreveria assaltá-los sozinho.
Cynric empunhou a espada e no mesmo instante algo passou silvando
perto do rosto de Roanna, que estremeceu, enquanto uma flecha cravava-
se no tronco da árvore ao lado dela. Agarrando-se mais às rédeas, ela olhou
para as árvores: o homem não estava sozinho!
Ele riu, enquanto deixava-se escorregar da sela para o chão, a pesada
espada batendo-lhe na coxa.
— Dydd da ich! — cumprimentou ele em galês, em voz alta e clara,
como se dissesse algo divertido.
Roanna olhou para o noivo e para o homem. Aquele estranho devia ser
louco!
Ele se aproximou do cavalo de Cynric, parando a pouco mais de um
metro:
— Como é, Cynric ? — Havia riso contido na voz do homem. — Não
fala mais galês e perdeu a educação?
— O que você quer? — perguntou Cynric.
— Por favor, quanta grosseria! — continuou o estranho. — Eu acho que
você deveria ser um pouquinho gentil com um velho amigo.
Então, o homem recuou um pouco e tirou o elmo. Uma brutal cicatriz
ia da raiz dos cabelos, na testa, até a orelha, passando pela órbita vazia. O
lado esquerdo do rosto, o nariz reto, os maxilares fortes mostravam-se
perfeitos.
A boca de Cynric abriu-se e nenhum som saiu. Fez-se um pesado
silêncio ate que o estranho inclinou a cabeça para trás e riu.
Roanna ficou abismada. Que tipo de homem era capaz de sobreviver a
um ferimento como aquele e gostar do choque que as pessoas sentiam ao
ver seu rosto devastado? Enquanto ela o fitava, o riso transformou-se em
um sorriso, mas houve um reluzir de ódio no bonito olho castanho, intocado.
— Pensamos que você tivesse morrido — disse Cynric, por fim, com a
voz alterada.
— Bem, como vê, não morri. — A voz do estranho denotava desprezo.
— Mas não vim aqui para trocar gentilezas com você, menino. Deixe-me ver
sua noiva...
A garganta de Roanna apertou-se, enquanto o homem ria e apro-
ximava-se dela, passando por Cynric, que não fez um gesto para detê-lo. Ao
contrário, olhava a cena, encolhido como se tivesse medo.
Desamparada, ela olhou para o tio, por entre os cílios longos, das
pálpebras abaixadas: estava trêmulo, pálido, incapaz de defendê-la. Mesmo
Fitzroy afastou-se, à medida que o estranho avançou. Ela fixou os olhos nas
próprias mãos crispadas nas rédeas, sem saber o que fazer.
Viu os pés do homem pararem junto de sua montaria.
— Isto deve ser uma lady...
A voz profunda mostrava-se interessada e íntima. Respirando fundo,
ela reuniu toda a coragem, assumiu uma expressão indiferente e olhou-o
sem demonstrar medo.
Ele sorriu e o rosto moreno pelo sol pareceu iluminar-se. Mechas de
cabelos castanho-claros emolduravam-lhe as faces e pequeninas rugas
formaram-se ao redor do olho bom, que parecia enxergar-lhe até a alma.
Por longos momentos ela se concentrou no homem a seu lado. O que
viu foi alguém que conhecera intensa dor e profundo sofrimento, mas que
saíra deles mais forte.
Ele voltou-se para Cyrinc:
— Ela é boa demais para você, menino.
Roanna tentou abafar o orgulho que cresceu em seu peito ao ouvir
aquilo. Notando que Fitzroy e os soldados a fitavam, ergueu a gola da capa,
para ocultar o rubor que lhe subiu ao rosto.
O homem virou-lhe as costas e encaminhou-se para seu cavalo, as
pernas fortes e longas percorrendo a distância com rapidez, mo-
vimentando-se com a agilidade de guerreiro bem treinado. Montou,
pendurou o elmo na sela, fez o cavalo virar-se, então olhou para trás. Sem
pensar, Roanna o encarou. De repente, ele incitou o cavalo e foi em sua
direção. Antes que ela pudesse gritar e que os demais percebessem o que
acontecia, agarrou o cabresto do cavalo dela.
— Chegou a hora de aprender os costumes galeses, Cynric! — gritou
o homem.
Esporeou seu cavalo e disparou por entre as árvores, puxando a
montaria de Roanna. Assustada, ela agarrou-se às rédeas, inclinando o
corpo para evitar os galhos mais baixos, um grito preso na garganta. Seu
estômago revirava-se como a lama sob as patas dos cavalos, folhas
molhadas batiam-lhe no rosto, galhos prendiam-se em sua roupa,
desalinhando-a. Mal podia respirar.
O homem prosseguia a cavalgada louca, sem se importar com o barro,
a chuva, as árvores. Afinal, chegaram a uma clareira, mas ele não parou.
Entraram por uma trilha estreita, novamente entre as árvores, que os levou
a um prado, onde ele pôs os cavalos a galope. Roanna sentiu que
escorregava na sela e segurou-se com mais força às rédeas.
Não, pensou em seguida. Não se deixaria levar. Respirou fundo e
saltou da sela.
Caiu, batendo com tanta violência no chão que o ar escapou-lhe dos
pulmões. Tentou respirar, mas não conseguia. Tudo começou a girar e um
rumor surdo invadiu-lhe os ouvidos. Sentiu uma forte dor no peito, o ar
conseguiu entrar, e ela arrastou-se para uns arbustos. Teve que parar ao
ver as botas de couro diante do seu rosto. Imediatamente dois braços
musculosos, nus, a ergueram.
— Largue-me! — gritou ela, ofegando.
Ele obedeceu e ela caiu no chão como uma boneca de pano.
Depressa, Emryss a ergueu de novo. Não queria que a moça de olhos
maravilhosos se machucasse, já equilibrada, ela soltou-se, recuou e fitou-o:
— Não me toque! — sibilou, os olhos verdes brilhando como os de uma
gata.
Não fez um movimento sequer para escapar. Se não fosse pelo fogo
em seus olhos e o arfar do busto, dir-se-ia que era uma estátua.
— É só uma brincadeira — disse ele, esperando pelo costumeiro choro
de medo. — Não vou machucá-la.
— Prefiro morrer a ser desonrada — respondeu ela.
Emryss não se surpreendeu com as palavras, mas sim com a firmeza
que havia na voz. Aquela moça sabia o que dizia.
— Dou-lhe minha palavra que não vou forçá-la — prometeu ele., com
ênfase.
A desconfiança que havia nos olhos verdes diminuiu e ele sentiu-se
contente.
— Então, deixe-me ir embora — exigiu ela.
— A senhorita deveria ficar e me agradecer — retrucou ele, com
azedume. — Só uma idiota ficaria feliz em se casar com aquele grosseiro e
a senhorita não é idiota.
— O senhor não sabe quem eu sou, nem o que quero! — Ela deu um
passo e ele surpreendeu-se, como se visse pedra adquirir vida. — Leve-me
de volta.
— Por que levaria? Não daria nem um cão a Cynric DeLanyea! —
respondeu ele.
— Não sou um cão e o senhor não vai me dar a ele. — A voz dela subiu,
os olhos verdes incendiaram-se. — Se preza a minha honra, leve-me de
volta a meu noivo.
Uma veia começou a pulsar nas têmporas dele:
— Não recebo ordens, milady. Enfie isso nessa sua cabeça normanda.
Ela abaixo a os olhos e uniu as mãos:
— Por favor... — pediu.
Ele se aproximou, segurou-lhe o queixo e ergueu-lhe a cabeça,
abrigando-a olhá-lo:
— Não se faça de inocente comigo, milady. Não combina com a
senhorita.
Então, ela o fitou com intensidade e a raiva dele dissipou-se. Em seu
lugar ficou uma profunda tristeza, um desejo enorme de tê-la encontrado
de modo diferente, em outra ocasião.
— Poderá voltar para aquele imprestável amanhã. Por enquanto, vai
comigo. — Ela não se mexeu e ele continuou: — Não me importa se está
determinada a se casar com Cyrinc e não vou ficar discutindo na chuva.
Com incrível facilidade, ergueu-a e colocou-a sobre o cavalo negro.
Com pavor de cair do enorme animal, ela agarrou-se ao cabeçote da sela.
Ele montou atrás dela e seus braços a rodearam como cálidas tiras de
ferro.
Roanna tentou se manter ereta, enquanto o cavalo se movimentava,
devagar, por uma trilha que mal se esboçava entre as árvores.
— Não pule de novo — ordenou Emryss e ela não respondeu. — Podia
ter morrido. É melhor morrer do que se casar com Cyrinc, claro, mas há
outras maneiras de evitá-lo.
Roanna fez um trejeito de pouco caso.
— Bem, talvez eu esteja enganado. A senhorita quer se casar com
aquele amharchus ffieidd-dra? Pensei que fosse esperta demais para fazer
isso...
A voz profunda, suave, tão perto de seu ouvido a fez responder:
— Meu tio fez um contrato.
— Mas uma lady tem direito a recusar, se não quiser.
— Eu não tinha escolha.
— Concordou, então? Formalmente?
— O senhor não entende dessas coisas! — irritou-se ela. As mãos
dele, diante dela, apertaram mais as rédeas:
— Se acha que não...
— O senhor não pode entender as obrigações da nobreza — insistiu
Roanna.
— Não?
Ela achou que era melhor ficar em silêncio. Já falara demais com
aquele homem, no mínimo um ladrão, no máximo um rebelde. Deveria estar
horrorizada com o que ele poderia fazer-lhe, mas não estava. Por quê? O
que havia de errado com ela?
Emryss não falou mais. Apenas o som da chuva caindo nas árvores e o
rumor dos cascos do cavalo perturbavam a quietude da floresta que
atravessavam.
Depois de algum tempo chegaram a um rio. Salgueiros inclinavam seus
galhos sobre a água. A margem era um barranco pedregoso e as mãos de
Roanna apertaram mais o cabeçote da sela. Ele impeliu o cavalo à frente,
dizendo:
— É menos perigoso do que parece.
Atravessaram o rio devagar, o animal pisando com segurança. Era
evidente que conhecia o caminho. Do outro lado, havia uma trilha que ia
floresta a dentro. O cavalo seguiu por ela, passando por salgueiros,
aveleiras, carvalhos e pinheiros. Ela tentava memorizar tudo, para o caso
de conseguir escapar, mas a trilha era tão estreita e as árvores tão juntas
umas das outras que seria como procurar um caminho na água.
O odor de folhas molhadas e de agulhas de pinheiro era forte. Gotas
geladas pingavam das árvores sobre eles e ela precisava de muito esforço
para não se recostar no peito quente e firme atrás de si.
A trilha passou a subir e em cima o terreno estendia-se num platô.
Uma colina pedregosa erguia-se à distância e perto dela Roanna divisou
pequenas construções. Uma aldeia, pensou.
Quando chegaram mais perto, viu que não era uma aldeia: tratava-se
de quatro cabanas, com certeza usadas por pastores.
Um cachorro latiu e alguns homens, pobremente vestidos com lã e
couro, saíram das cabanas. Dois deles eram quase meninos e estavam
armados com arcos; outro era um velho alto, de costas retas e barba longa,
branca. Os outros, de mãos vazias, pareciam mais acostumados a tosquiar
lã do que a lutar. Todos gritaram, cumprimentando.
Um guerreiro ainda jovem, com densa cabeleira negra, aproximou-se e
pegou as rédeas, olhando para Roanna. Era Gwilym, que perguntou em galês:
— Deus! Brawdmaeth, por que a trouxe?
— Porque eu quis — respondeu seu irmão de criação, descendo do
cavalo. — Há fogo em algum lugar?
— Lá — Gwilym apontou para a cabana mais distante. Emryss ajudou
Roanna a desmontar, tentando ignorar a suave, deliciosa, curva da cintura
esguia.
— Venha — ordenou em francês normando, segurando-lhe uma das
mãos.
Sentia na sua a mão delicada e morna como um pássaro, enquanto a
levava. Cerrou os dentes e encaminhou-se para a cabana, quase arrastando
Roanna atrás de si.
Pelo sangue dos deuses!, pensou, o que estou fazendo aqui com está
mulhef que pertence ao homem que desprezo?
Não, corrigiu-se. O que estava fazendo a si mesmo? Ele a trouxera
por causa do modo como ela o olhara, mas na verdade poderia não significar
nada. Talvez ele tivesse imaginado o apelo que vira nos olhos verdes, no
momento em que ia embora.
Perdido nos pensamentos, não reparara que a moça tinha de correr
para acompanhar seus largos passos, a ampla saia molhada enroscando-se
em suas pernas diminuiu um pouco o passo.
Abriu a porta da pequena cabana e a fez entrar. A luminosidade da
fogueira que queimava em cova rasa, no chão de terra, ofuscou os olhos de
Roanna. Ela soltou-se da mão de Emryss e tropeçou num monte de palha.
Ele não se moveu para ampará-la e ficou à espera de que recuperasse o
equilíbrio. Então, cruzou os braços no peito musculoso e disse:
— Tire o vestido.
CAPÍTULO II
A velha e magra senhora voltou à estreita janela.
— Já escureceu e aqueles dois não voltaram, Bronwyn! — disse com
voz que parecia um mecanismo enferrujado precisando de graxa.
— Na certa vão passar a noite nas colinas, Mamaeth — respondeu a
sorridente jovem de cabelos castanhos.
— Ou lorde Emryss meteu-se numa briga! — resmungou Mamaeth,
apertando os olhos para ver através da chuva e do escuro.
— Gwilym não deixaria...
— E desde quando Gwil segura lorde Emryss? — indagou Mamaeth,
preocupada. —Ainda mais quando se trata desses normandos!
Bronwyn suspirou e ergueu os olhos da costura:
— Como lorde Emryss aprendeu com a senhora a odiar todos os
normandos, menos seu pai, não censure Gwilym. Ele faz o que pode, não tem
direito de dar ordens ao senhor das terras!
Mamaeth abriu a boca para praguejar, mas o temor à ira de Deus
segurou-lhe a língua. Aproximou-se do pequeno braseiro que dava um pouco
de luz e calor à grande sala das criadas, em Craig Fawr:
— Bem, pode ser... — disse, erguendo um canto do lençol de linho que
a jovem bordava. — Seria melhor ele parar de pensar em guerras e se
casar. Seus pontos estão muito grandes, menina.
Bronwyn viu que Mamaeth tinha razão e passou a desmanchar o ultimo
trecho do bordado.
— Vai ver que lorde Emryss ainda não encontrou a moça de seus
sonhos.
— Ele? — cacarejou Mamaeth. — Começou a caçar meninas desde que
largou os cueiros e apanhou mais que uma, garanto, sem ser apanhado por
qualquer uma delas. — Calou-se por um instante. — Bem, tenho que ir cuidar
do jantar...
Bronwyn também estava preocupada com os dois homens pois sabia
que tinham ido ao baronato de Beaufort. Mamaeth saiu da sala, com andar
rápido para sua idade. Cuidar da mãe de Emryss, quando ficara viúva, e dele
a tinha conservado ativa. Bronwyn olhou-a sair, depois voltou ao bordado.
Gwilym havia dito onde iriam não por que soubesse o que ela sentia
por ele, mas porque era muito chegada a Mamaeth. Ele não quisera deixar a
velha ama preocupada, mas alguém precisava saber onde se encontravam.
Talvez um dia ele percebesse o quanto o amava. Enquanto isso, ela daria
seus recados e serviria seu vinho, escondendo o amor dentro do coração.
— Idiota! Imbecil! Simplório!
A cada palavra o barão dava um soco no braço da poltrona de
carvalho, a grotesca cena repetindo-se, em sombra imensa, na tapeçaria
que cobria a parede. Cynric empurrou para trás o cabelo que lhe caía na
testa e abriu a boca para falar, mas o pai voltou a gritar:
— Como diabo você deixou aquele bastardo meio cego levá-la diante
de seu nariz?
Cynric olhou o punho fechado bater de novo na madeira e controlou o
impulso de berrar. Fitou o rosto vermelho do pai, as bochechas trêmulas.
Ele não parecia saudável e esses ataques de raiva não iam fazer-lhe bem.
— Deixou que ele o fizesse de bobo! Precisamos daquela moça ou está
querendo perder nossas terras?
Ao ouvir falar nas terras, Cyrinc tornou-se atento. Terra significava
poder e ele queria ser poderoso.
— O senhor não estava lá, milorde — disse, de mau humor. — Era
impossível dizer quantos homens ele tinha e...
— Você tinha obrigação de lutar e não podia ficar ali, olhando, como
se fosse uma mulher!
Cynric empurrou o cabelo molhado para trás, outra vez:
— Não havia motivo para arriscar a vida de meus homens — retrucou,
com voz tensa.
Notou que o peito do pai estremecia a cada respirada e pensou que
ele poderia morrer naquele momento.
— Não havia motivo? Ele só fez você de bobo!
— Por que eu iria me importar por ele tirar aquela bruxa magrela do
meu caminho? Prefiro casar com meu cavalo.
O barão levantou-se, furioso. Cynric sentiu medo, mas apenas por um
instante.
— Não me interessa se ela parece um cadáver! — berrou o pai. —
Você vai buscá-la e se casará com ela.
— Não, se Emryss a tiver possuído.
— Você sabe, tanto quanto eu, que ele jamais possui uma mulher
contra a vontade dela. — O barão atravessou a sala e parou diante do filho,
arregalando os olhos pela ira. — Idiota! E mesmo que ele a tenha desonrado
o que é que tem? O que será de você se o rei tirar minhas terras e as der a
outro?
A mão de Cynric fechou-se no punho da espada, mas seus lábios
sorriram:
— Tem razão, pai. O que é que tem? Como o senhor sempre diz, todas
as mulheres são iguais no escuro!
— Sim, isso mesmo — confirmou o barão, olhando-o com desconfiança.
Cynric disse, mais a si mesmo do que ao pai:
— Se eu me casar com ela, ninguém se atreverá a falar no rapto. O
pai assentiu. —Então, acho que vou ficar com ela. Que Emryss
se divirta um pouco... Ele não vai ter vontade de rir quando perceber
que me deu a desculpa perfeita para invadir suas terras.
— Creio que subestimei você, meu filho — retratou-se o barão,
olhando Cynric com renovado respeito.
Era tarde demais para o pai se retratar, pensou Cynric. Tomara-se
apenas um homem doente em seu caminho.
— Acha, mesmo? — indagou, cínico. — Vou começar a busca ao
amanhecer.
Ele não esperou para ouvir a resposta. Saiu da pequena câmara e foi
para o enorme hall. Subiu ao estrado e sentou-se no trono do pai. Pouco
depois sobressaltou-se ao ouvir passos pesados no piso de pedra. Ergueu-
se, rápido. Uma sombra enorme desenhou-se na parede. O homem que a
projetava se encontrava à porta da cozinha e era bem grande. Cyrinc
tornou a sentar-se no trono e indagou:
— Quem é você, em nome de Deus?
— Jacques de Ia Mere, o cozinheiro de lorde Westercott — res-
pondeu o homem. — Por favor, milorde, quando vai salvar lady Roanna?
— Ao amanhecer — respondeu Cynric.
— Posso ir com o senhor?
— Um cozinheiro? — O nobre riu, zombeteiro. — Vai bater com uma
concha neles até matá-los?
— Quero estrangular quem a ofendeu! — respondeu o cozinheiro,
erguendo as mãos enormes.
— Bem, creio que posso salvá-la sem ajuda — disse Cynric, erguendo
as finas sobrancelhas.
O jovem lorde ergueu-se, arregaçou a túnica e dirigiu-se à escada que
levava ao andar de cima, onde ficavam os quartos.
Jacques voltou para a cozinha. Chegara ao castelo certo de que
imediatamente reuniriam todos os homens para salvar lady Roanna. Em vez
disso, tinham-no mandado para a cozinha e dito que lorde Westercott
queria jantar. Ele obedecera e, depois de jantar, todos tinham se
recolhido.
Esse Cynric DeLanyea não se importava com lady Roanna, pensou
Jacques e seu coração doeu, no peito enorme. Ela já sofrerá tanto e agora
isso!
Uma criada lavava pratos em uma tina, num dos cantos da imensa
cozinha. O fogo no fogão havia sido abafado e restavam só algumas brasas.
Os demais criados já haviam ido dormir.
Jacques sentou-se no banco encostado a uma parede e apoiou a
cabeça nas mãos. O que ia acontecer com lady Roanna? Ele parecia ser o
único a temer por ela, nas mãos daquele herege.
A criada pigarreou e Jacques olhou-a. Ela endireitou o corpo,
ajeitando o amplo decote que mostrava um colo alvo e cheio.
— Não se preocupe — disse. — Ele não vai machucá-la. Lorde Emryss
DeLanyea jamais ofende uma mulher.
— Como sabe? — indagou Jacques. — Ele não é um fora-da-lei?
— Santo Deus, não! — riu ela. — Foi lorde Emryss DeLanyea que a
levou. Ele é sobrinho do barão.
— Mon Dieu, que sobrinho é esse? — gemeu Jacques.
— Ah, eles se odeiam, mas eu ouvi meus patríes dizendo que lorde
Emryss DeLanyea jamais toca numa mulher contra a vontade dela.— A moça
foi se acomodar no banco, ao lado dele. — Não precisa, porque todas o
querem. Disseram-me que ele era lindo, mas que agora está assustador. É
verdade?
— Ele tem uma cicatriz feia no rosto e perdeu um olho — assentiu
Jacques.
— Sinto por ela, então. Vai ter medo, pois não sabe que ele não
maltrata mulheres.
— A cara dele não vai assustar lady Roanna — garantiu o cozinheiro.
— Ela é muito corajosa!
— Melhor assim... Agora, com licença, tenho que trabalhar — a moça
levantou-se.
— Espere! — Jacques segurou-a por um braço. — Sente aqui...?
— Lynette.
— Lynette. E me fale sobre esta gente.
— Bem... — ela hesitou. — Não sei se devo. Preciso lavar os pratos e...
— Deixe os pratos!
Jacques levantou-se e foi até o armário. Pegou uma garrafa de vinho,
encheu dois copos, sentou-se no banco junto à mesa e fez sinal para
Lynette sentar-se a seu lado. Ela sorriu e sentou-se, tomando logo um gole
de vinho.
— Hum, está bom!
Jacques anuiu e esperou, enquanto ela voltava a beber, quase
esvaziando o copo.
— Bem — começou Lynette, vendo que ele não se mexia para tornar a
enchê-lo —, a mãe de lorde Emryss DeLanyea, Angharad, era uma princesa
galesa, lindíssima. Tinha cabelos escuros, olhos
castanhos, enormes, e muita coragem, dizem. O rei normando
apossou-se de todas as terras dos galeses, menos de um pedaço, que
ficou com Angharad e ela o deu ao marido, um normando. Contam que
ela não quis saber de homem algum até conhecer lorde Ralf DeLanyea, que
era lindo como lorde Emryss. Muito alto, com cabelos e olhos claros.
Casaram-se.
Ela calou-se e olhou para o copo. Jacques serviu mais vinho.
— Obrigada... Tudo estaria bem se lorde Ulfrid DeLanyea, o barão
naquela época, não quisesse Angharad para ele, com casamento ou não.
Claro, o rei era contra...
A criadinha baixou a voz até se tornar um murmúrio e chegou mais
perto de Jacques:
— ... mas isso não deteve o barão que tentou raptá-la, mesmo depois
de casada. Não deu certo. Ele era rancoroso. Um dia encontrou Angharad
com as damas de companhia na floresta e mandou as damas embora. Elas
buscaram socorro, que chegou depois que ele abusara de Angharad e a
espancara até ela desmaiar. Desde então, as duas famílias vivem brigando,
mesmo depois que lorde Ralf morreu...
Jacques ficou deprimido. Lady Roanna ia viver com aquela gente?
— Lorde Emryss foi lutar nas Cruzadas. Os outros voltaram e ele não.
Pensamos que tivesse morrido. O barão queria apoderar-se
das terras, mas Angharad era uma mulher determinada e agarrava-se
a sua propriedade como uma raposa no pescoço de uma galinha. Ela morreu
não faz muito tempo e deixou Mamaeth encarregada de tudo. É outra fera!
O barão foi uma vez falar com ela, dizendo que a terra deveria passar para
ele, já que seu sobrinho havia morrido e ela o pôs para fora correndo.
— Por que tem tanta certeza que esse lorde Emryss não vai machucar
lady Roanna? — perguntou Jacques. — Ele pôde ter mudado e usá-la para
se vingar.
— Eu não tinha pensado nisso...
Jacques sentiu um peso no peito: Cynric DeLanyea era um covarde
que fugia ao primeiro sinal de perigo, e seu primo, Emryss DeLanyea podia
ser pior.
Emryss atravessou a clareira, indo para outra cabana. Não sabia se
devia lamentar ou rir do impulso que o levara a apoderar-se da noiva de
Cynric. Não esperava que fosse a mulher orgulhosa e determinada que era.
Imaginara-a uma normanda bobinha e sem graça.
Com os negros cabelos longos e enormes olhos verdes, ela dava
impressão de uma criança indefesa, à primeira vista. No entanto, tinha um
coração de ferro, era valente como a mãe dele. Sustentara seu olhar
quando lhe dissera para tirar o vestido e não se movera, mesmo ele dizendo
que acabaria doente se ficasse com as roupas encharcadas. Mas, coisa que
sua mãe nunca faria, ela se deixara manejar por um parente...
Seqüestrar a noiva de Cynric iria causar-lhe problemas. Fora uma
loucura. Devolveria a moça no dia seguinte, sã e salva.
Uma enxurrada de pragas em galês recebeu-o quando ele abriu a
porta da outra cabana e entrou.
— Pelas chagas dos deuses, Emryss, estou gelado até os ossos!
— Ele fitou o irmão adotivo, agachado perto da pequena fogueira.
— Você a deixou sozinha?
— Onde estão os outros? — perguntou Emryss, tentando evitar a
conversa que viria.
Gwilym era mais novo e um bastardo, que não conhecera os pais, mas
queriam-se como irmãos e ele considerava sua obrigação lembrar a Emryss
que devia tomar cuidado com o barão e seu filho.
— Foram para suas casas.
— E Hu?
— Não entendo esse menino! Não quis ir embora sem você. Mandei-o
cuidar dos cavalos.
— Diga-lhe para vigiar a moça e levar-lhe pão e água. É inofensiva e
ele pode nos chamar, se ela der trabalho.
Gwilym deu-lhe um odre de vinho, dirigiu-se à porta, então parou e
voltou-se:
— Emryss — disse, com suavidade —, o que pretende, homem? O
plano era mostrar a eles que você está vivo, no fim roubou a mulher!
Emryss passou os dedos pela cicatriz no rosto:
— Anda esquecendo os costumes galeses, Gwil? Virou normando? , As
sobrancelhas de Gwilym ergueram-se e ele deu de ombros.
— Está bem, cyfathranchwr — suspirou Emryss. — Tive vontade de
roubá-la e não parei para pensar.
Gwilym saiu, deixando Emryss com os olhos fixos na fogueira
fumacenta. Ele tomou dois grandes goles de vinho. Aquela moça o intrigava.
Qualquer outra teria caído no choro, mas ela o enfrentara como... bem,
como um homem. Queria saber tudo que ela tivesse para contar.
Um golpe de vento indicou que a porta se abrira, mas Emryss, pendido
em pensamentos, não se voltou para ver quem entrara. Gwilym foi sentar-se
a seu lado e bebeu um pouco de vinho.
— Ele não vai perdoar o que você fez — disse, como se Emryss fosse
uma criança.
Emryss colocou mais lenha no fogo, bebeu vinho de novo e disse:
— Desde quando me importo se Cyrinc me perdoa ou não?
— É verdade... — concordou Gwilym. — A coitadinha está aterrorizada
— tomou outro gole de vinho.
— Ela é mais forte do que parece — respondeu Emryss, sacudindo a
cabeça. — Seus olhos podem matar um homem.
O irmão de criação riu e a tensão se dissipou:
— É o que queremos que aconteça com Cyrinc! Coitado... E ela não tem
carne cobrindo os ossos! Não entendo por que ele vai se casar com ela.
Devia ter visto a cara dele quando você pegou o cavalo dela!
Emryss soltou uma gargalhada ao lembrar da expressão apavorada do
primo quando ao vê-lo surgir na estrada.
— Agora ele aprendeu o costume galês de roubar noivas! — exclamou,
piscando maliciosamente para o irmão adotivo.
Ela sabe quem você é?
O riso desapareceu do rosto de Emryss.
— Não, mas vai ficar sabendo. Gwilym soltou uma risadinha e ergueu-
se, dizendo:
— Eu gostaria de estar perto para ver. Boa noite, milorde — disse,
brincando, pois jamais tratava o irmão adotivo por "senhor"..
— Boa noite, Gwil. Depois que Gwilym saiu, Emryss colocou mais uma
acha no fogo. Deitou-se de lado, sentindo um pouco de dor na perna
esquerda, que também fora ferida. Imaginou como ela estaria e desejou
que não sentisse frio demais. Teriam que cavalgar muito para chegar a
Craig Fawr, debaixo de chuva, por isso decidira parar ali. Esperava que ela
tivesse tirado as roupas molhadas. Sua respiração acelerou-se ao ter a
visão dos cabelos negros ao redor do rosto delicado, dos brilhantes olhos
verdes, do corpo esguio ao qual o vestido molhado se colava.
Gemeu baixinho. Por que o sarraceno não danificara sua imaginação,
como fizera com seu corpo?
Tocou a cicatriz, que ficara dolorida por causa da pressão do elmo.
Não sabia o nome dela... Talvez fosse melhor.
Roanna pôs mais lenha na fogueira que morria, ficava mais frio a cada
minuto. Seu corpo parecia estar rodeado de gelo.
Certamente Cyrinc viria buscá-la. Sentada, encolheu-se, colocando a
cabeça sobre os joelhos e obrigou-se a encarar os fatos. Não se importava
se nunca mais visse Cyrinc DeLanyea, se não mais ouvisse sua voz
arrogante, mas o que lhe aconteceria se ele não viesse? Será que aquele
ladrão, aquele criminoso que dizia estar apenas seguindo um costume galês,
iria cumprir a palavra e devolvê-la?
Quando ela se recusara a tirar o vestido, ele sorrira e dissera:
— Eu só não queria que a senhorita apanhasse frio e morresse. E se
retirara, calçando a porta da cabana, por fora, com uma pedra. Seu tio
exigiria que a procurassem. Mas, e se ele ficasse contente por se ver livre
dela sem ter que pagar o dote?
Jacques devia estar aflito. Ele era apenas um cozinheiro, mas era
também seu único amigo. A amizade começara quando Jacques a
encontrara, chorando, diante de um monte de farinha de trigo e a ensinara
a fazer pão. Ele assustava muita gente com seu gênio violento e o vozeirão,
mas ela sabia que era bom.
Pulou em pé, de repente. Havia alguém abrindo a porta da cabana.
Recuou, até sentir a parede nas costas e esperou.
Um menino, que devia ter no máximo oito anos, abriu a porta o mínimo
para esgueirar-se para dentro. Trazia uma caneca de barro e um pedaço de
pão. Colocou-os perto da fogueira e fitou-a com os enormes olhos negros.
Roanna percebeu que ele estava tão assustado quanto ela.
— Obrigada — murmurou.
Os olhos do menino abriram-se mais, seu rostinho lindo lembrava o de
um querubim.
— Emryss... disse... você comer — murmurou, numa voz que combinava
com o rosto angelical.
Ela percebeu que ele dizia as palavras sem entendê-las, como uma
mensagem decorada. Assentiu, aproximou-se, pegou o pão e partiu-o em
dois pedaços, oferecendo um a ele.
O menino recuou, como se ela o tivesse ameaçado. Em seu olhar
misturaram-se ódio e medo, então ele virou-se e saiu. Roanna gostaria
muito de dizer-lhe que não devia sentir-se assim em sua presença.
Notou, então, algo que fez seu coração disparar: o menino não
recolocara o bloco de pedra que segurava a porta.
CAPÍTULO III
Roanna comeu o pão com avidez e tomou um gole de água fresca,
prestando atenção para ver se alguém vinha corrigir o erro do menino.
Ninguém se manifestou, nada rompeu o silêncio da noite, a não ser
rumor da chuva, um ou outro relincho dos cavalos e o canto ocasional de
algum pássaro noturno.
A cautela aconselhava a esperar mais, porém ela caminhou
silenciosamente até a porta, empurrou-a com suavidade e viu que se movia.
Então ouviu um som que a encheu de desespero: passos que se dirigiam para
a cabana.
Recuou, rápida, enrodilhou-se sobre o monte de palha e fechou os
olhos Talvez viessem ver, apenas, se ela estava ali. A porta abriu-se e
tornou a se fechar. Ela entreabriu os olhos, cautelosa.
O homem da cicatriz sentara-se junto ao fogo, as longas pernas
esticadas, os ombros largos encostados na parede. Tinha uma adaga no
cinto e a espada estava ao lado dele. Um tapa-olho de couro negro cobria a
órbita vazia e o olho bom estava fechado. Seu peito erguia-se e abaixava,
ao ritmo da respiração leve.
Ela ficou imóvel, observando-o, enquanto ele descansava como se
estivesse numa cama confortável. Aquele homem seria galês ou normando?
Nobre ou plebeu? Falava como um galês, mas seu normando era perfeito e
fluente. Bem, devia ser normando, pois era muito mais alto do que todos os
galeses que vira. Mas vestia-se tão pobremente e era tão familiar com os
galeses que devia ser um deles, então por que não temia o mais poderoso
normando da região? Ao contrário: Cynric DeLanyea é que demonstrara ter
medo dele. Sabia que havia bandidos galeses que atacavam viajantes
normandos, mas aquele homem não parecia ser um deles.
O que ele parecia? Um bravo guerreiro, bem treinado, confiante e
aquela cicatriz só podia pertencer a um homem com força de vontade
férrea, já que não sucumbira a um ferimento tão terrível. Passeou o olhar
pelo corpo forte, pelo rosto de traços marcados, porém atraente, pelos
ombros largos, depois desceu-o ao peito musculoso, em seguida aos braços
poderosos que a tinham erguido como se fosse uma boneca e, afinal, para
as pernas longas firmes e robustas.
Um suave calor foi se estendendo pelo seu corpo, avançando
mansamente, como ondas num lago tranqüilo. Ela movimentou as pernas,
consciente de um estranho calor entre elas e do pulsar mais forte e rápido
do sangue nas veias. Virou-se e o vestido roçou em seus seios, fazendo-os
se arrepiarem. Tornou a olhá-lo. O cheiro dele, uma mistura de cavalo,
couro e cabelos molhados, invadiu-lhe as delicadas narinas como fumaça de
um incêndio distante.
Precisava fugir. Seu corpo traidor avisava-a do perigo de permanecer
ali. Aquele homem a tentava, como se ela fosse Eva e ele a serpente
oferecendo a maçã. Tinha que sair, pegar um cavalo e ir embora.
Levantou-se, devagar, fazendo o menos ruído possível. Ele continuava
dormindo. Pegou a capa e envolveu-se nela, cobrindo o vestido ainda úmido.
Deu um passo e ele não se mexeu. Deu outro passo cuidadoso, mais outro,
sempre com os olhos fixos no homem. Quando chegou perto dele, hesitou.
Teria que passar por cima das pernas dele. Respirou fundo e ergueu um
pé...
— Levantando-se, tão cedo?
Ela quase caiu, enquanto ele se erguia, rápido. Roanna recuou, fitando-
o desafiadoramente.
— Tenho um olho só, mas ele é muito bom — disse ele. — E devo
confessar que gosto do que vejo.
O sorriso dele era atrevido, íntimo, como ela imaginava que seria o
sorriso de um amante depois de fazer amor. Recuou. Procurou regularizar a
respiração agitada, lutando contra as sensações que a dominavam. Ele se
aproximou.
— O senhor deu sua palavra — disse ela, dando um passo atrás. Ele
cruzou os braços sobre o peito musculoso.
— Dei. — O sorriso morreu-lhe nos lábios e suas feições tornaram-se
duras. — Não julgue o carneiro pela lã. Não sou um demônio sob forma
humana, só porque pareço uma figura saída de um pesadelo.
Ela abaixou a cabeça, para esconder o rubor que lhe cobriu o rosto.
Se ele soubesse o que pensara alguns momentos atrás...
— Não queira me enganar! — exclamou ele, seco. — Tarde demais
para se fazer de virgenzinha tímida. Passou mais coisas por essa cabecinha
do que quer admitir.
Emryss fitava a moça de pé diante dele, de olhos baixos e mãos
entrelaçadas. Talvez se tivesse enganado a respeito dela, vai ver que era
uma nobre convencida como todas as outras, disposta a fazer um
casamento conveniente e agora estava aflita por seu plano ter falhado.
Queria fazê-la olhar para ele, mesmo que seu rosto marcado lhe
causasse repugnância.
— Diga, milady, costuma bancar sempre a inocente? Ou só quando Ihe
convém?
Imediatamente a cabeça dela ergueu-se e os olhos flamejaram:
— Os homens julgam todas as mulheres tolas. Quem sou eu para
contrariá-los?
Os olhos verdes despendiam chamas apaixonadas e o queixo delicado
estava erguido, oferecendo a boca macia que parecia pedir beijos.
- Desculpe-me, milady — ironizou ele, com uma reverência, sem
desfitar o rosto indignado. — Mais do que nunca, agora tenho certeza de
que Cyrinc não é o homem para a senhorita.
E que espécie de homem era ele?, pensou Roanna. A raiva crescia
quanto mais fitava o rosto sarcástico. Suas mãos começaram a tremer, mas
manteve a voz firme:
— Quem é o senhor para dizer com quem devo me casar? O que sabe
da minha vida?
Ele se aproximou e tocou-lhe o rosto de leve, surpreendendo-a com a
suavidade do gesto.
— Sei que Cyrinc tornaria sua vida miserável.
Lagrimas subiram aos olhos dela, mas Roanna as impediu de rolar.
— O que eu poderia fazer? Há um acordo.
— Foi a senhorita quem o fez? — a voz dele era calma, suave.
— A honra pede que eu cumpra a promessa de meu tio.
— Mas é o que quer?
Ele se aproximou mais, tão perto que ela ouvia sua respiração. Roanna
sabia que deveria recuar, mas não pôde.
— Eu...eu... — balbuciou, nervosa.
Antes que ela pudesse se mover ele a tomou nos braços. Seus lábios
tocaram os dela, acariciando-os de leve, como a brisa acaricia as flores.
Apertou-a contra si. Estranhas sensações se apoderaram do corpo de
Roanna, as batidas de seu coração acelerando-se enquanto correspondia ao
beijo que se tornara mais insistente. A urgência de tocá-lo levou as mãos
dela ao peito forte. Consciente da rigidez dos músculos sob o couro,
sentindo o palpitar do coração dele, deliciou-se com a pressão dos lábios
exigentes contra os seus. Nunca imaginara que aquele prazer existia. Não
para ela.
O beijo aprofundou-se e ele abraçou-a com mais força. Seus dedos
acariciaram a pele nua do pescoço e ela sentiu que desamarrava os cordões,
nas costas do vestido. A sensação das mãos masculinas em
sua pele a fez gemer, enquanto ela se apoiava nele, as pernas fracas e
trêmulas. Tinha noção apenas dos lábios, das mãos dele e do crescente
desejo que se apoderava dela.
A língua dele entreabriu-lhe os lábios, com gentileza, percorrendo o
interior quente de sua boca. O choque a tornou consciente do que fazia e
com quem. Ela o empurrou, implorando:
— Por favor, pare!
— Se assim quer... — sorriu ele, sedutor.
O rosto dela ardia de humilhação. Agira como uma prostituta com
aquele estranho. Ela, lady Roanna Westercott, tão orgulhosa de sua honra!
Voltou-lhe as costas, com vergonha de encará-lo, mas ele disse, com
suavidade:
— Foi um beijo, apenas. Não chore por isso.
— Eu nunca choro — disse com firmeza. Voltou-se: — O senhor, não
pode entender... — a voz tornou-se um sussurro — minha honra é tudo que
tenho.
Nesse momento a porta abriu-se e o menino surgiu. O homem foi até
ele e falou-lhe com meiguice, acariciando-lhe os cabelos cacheados.
Qualquer um poderia perceber que a criança venerava o imenso guerreiro.
Sorriu-lhe com adoração e foi embora.
— É seu filho? — perguntou Roanna, sem pensar. Uma expressão
estranha passou pelo rosto dele:
— Não. Eu não tenho filhos.
Algo no tom daquela voz atingiu o coração dela, fazendo-o
confranger-se. Depressa, disse a si mesma que a vida dele não era de sua
conta. Ele a fitava, os lábios apertados numa linha fina.
— Não preciso da piedade de ninguém — disse, com dificuldade, O
silêncio cresceu, enchendo a cabana, até que ele o rompeu:
— Não tenho filhos porque não tenho esposa. Com pouco dinheiro,
poucas terras e esta cara, quem iria me querer?
— Nem todas as mulheres querem dinheiro e rostos lindos! —
exclamou Roanna, sem pensar no que dizia.
Quando os lábios dele se curvaram num sorriso é que ela percebeu o
que dissera. Levou as mãos aos lábios e enrubesceu. Ele se aproximou e ela
recuou, tentando passar pelos ilhoses superiores os cordões do vestido que
ele desatara.
— Eis um problema: nenhuma mulher aqui para ajudar... — Ela
percebeu o riso na voz dele e sentiu-se ainda mais humilhada. — Vire-se.
Ela obedeceu, percebendo impaciência na ordem. Surpresa com a
habilidade das mãos enormes, viu que ele enfiava os cordões facilmente.
Estremeceu e apelou para o restinho de dignidade para não pensar que
aquelas mãos tinham tocado seu pescoço, a pele nua das suas costas.
— Pronto — disse ele, ao amarrar os cordões. — Há muito tempo que
eu não fazia isto...
Roanna voltou-se e encarou-o, fazendo-o sentir-se atrapalhado como
um rapazinho diante de seu primeiro amor. Pelos deuses, pensou, era
melhor sair dali. Se ela continuasse a olhá-lo daquela maneira, não se
conteria. Não pretendia beijá-la, mas aqueles olhos...
— Quero ir para Beaufort — disse Roanna, procurando parecer firme.
Ela ainda quer casar-se com Cyrinc, conclui, com amargura. Devia ter
deixado que seguisse seu caminho, fora um louco em trazê-la para ali.
— Está bem — respondeu, decepcionado. — Irá, agora mesmo.
E saiu, batendo a porta com tanta força que a cabana estremeceu.
— Pelo amor de Deus, montem e vamos logo ou mando chicoteá-los até
a morte!
Cyrinc olhou para o céu. Pelo menos uma vez o tempo miserável
daquela região maldita parecia querer melhorar. Como odiava aquela terra,
pensou pela milésima vez. Desprezava cada árvore, cada pedra, cada rio e
todos os ignorantes galeses.
Dirigiu o cavalo para junto dos degraus que levavam à porta principal
de Beaufort, onde seu pai e o tio da moça esperavam.
— Não se atreva a voltar sem ela— rosnou o barão. Lorde Westercott
olhou nervosamente para lorde DeLanyea, depois voltou-se para Cyrinc,
com um sorriso conciliador:
— Tenho certeza, milorde, que a encontrará, se for possível. Claro,
Compreendo que vai haver... complicações no casamento, mas chegaremos a
um entendimento.
O jovem lorde sorriu de leve. Talvez pudesse fazer o velho urubu
aumentar o dote, principalmente se a noiva hão fosse mais virgem.
— Não tema, lorde Westercott — afirmou ele —, eu a encontrarei.
Fez o cavalo girar e foi colocar-se à frente da coluna de guerreiros
mal- encarados. Tinha vontade de rir. O próprio, bravo e inteligente
Emryss havia lhe dado a desculpa perfeita para invadir suas terras. Depois
que o derrotasse, talvez devesse agradecer-lhe.
A coluna deslocou-se rapidamente até o rio, seguiu ao longo da
margem e Cyrinc notou os profundos sulcos deixados pelas rodas das
carroças que traziam o cozinheiro e seus utensílios e o dote e a bagagem
de sua noiva, que havia chegado depois deles, na noite interior;
Puxava as rédeas com força, tentando desviar o cavalo das poças de
lama. Maldito lugar e maldito seu pai por obrigá-lo a ficar lá! Jamais
estivera em Londres, na corte, e quando dissera que queria ir combater nas
Cruzadas, o pai ficara fora de si:
— O quê?! — berrara o barão. — Gastar meu dinheiro e perder
soldados em um deserto do diabo? O que ganharíamos com isso, menino?
Ele não tinha a menor preocupação pela vida do filho, só pensava em
dinheiro. Então, tivera de ouvir todo mundo gabar os valentes guerreiros
que tinham ido salvar na Terra Santa que estava em poder dos malditos
infiéis.
Agora Emryss voltara, mutilado mas vivo, para atormentá-lo de novo.
Chegaram a uma encruzilhada, uma estrada levando para o sul, onde
ficava a aldeia, a outra para a propriedade de Emryss. Ele estendeu o
braço, indicando a estrada para o norte.
Pouco tempo depois três pessoas iam pela estrada que levava a
Beaufort. Gwilym, cavalgando em silêncio e bem atrás da moça, via Emryss
olhá-la de vez em quando. Pelas chagas dos deuses o que seu irmão de
criação fizera? Será que ele pensava que o barão iria ignorar aquela
afronta?
Como explicar a Emryss o que o barão conseguira fazer durante sua
ausência? Passara a usar dinheiro para influenciar o rei e a corte, ao passo
que seu irmão jamais se importara com riqueza, dando valor apenas à
coragem e à honra. Tentara explicar-lhe as mudanças havidas no país nos
últimos anos, mas ele não quisera ouvir. A única vez em que Gwilym
mencionara Ricardo I, Coração de Leão, Emryss praguejara e lhe dissera
para não falar de reis em sua presença, muito menos naquele.
Talvez, no fundo, ele queria que tudo houvesse permanecido como
eram quando fora embora. Talvez, pensava Gwilym enquanto Emryss olhava
para a moça de novo, ele queria acreditar que também não mudara.
Gwilym lembrava-se bem do modo que seguia Emryss como um
carneirinho, quando seu irmão adotivo desfilava pela aldeia, alto, forte,
confiante, com um sorriso que aquecia até mesmo o coração das damas mais
velhas, que se dedicavam a fiar em suas rocas. Muitas vezes Emryss lhe
dissera que tinha um "negócio" a tratar e o mandara embora. Mas, uma
noite, ele o seguira, escondido nas sombras, e o vira entrar em uma cabana.
Espiando por uma fresta na parede de madeira, ele vira uma moça com
Emryss, Ela estava praticamente arrancando as roupas dele e os dois riam.
Depois, o riso parará, sendo substituído por suspiros e, em seguida, por
gemidos. Espiando pela fresta, Gwilym ficara sabendo o que acontecia
entre homens e mulheres, à noite.
Será que Emryss pretendia reviver aquele tempo?, pensou, olhando as
costas largas e fortes do irmão de criação. Precisava descobrir. Pretendia,
sim, se quisesse aquela moça. Procurou chamar a atenção dele com sinais.
Não conseguiu e perdeu a paciência:
— Delff! — gritou, achando mesmo que Emryss estava sendo um
estúpido.
Ao ouvir o insulto, Emryss voltou-se, a sobrancelha sobre o olho bom
erguida, enquanto Gwilym se adiantava, passando pela dama que causava
toda aquela complicação. Falou em voz baixa, sem tirar os olhos da estrada
atrás de Emryss.
— Não vai levá-la a Beaufort, vai, irmão?
— Por que não?
— Deus, homem! Perdeu o juízo? Sua vida não valerá um pence se
chegar lá perto.
— Eles não vão me matar — declarou Emryss, tranqüilo.
— Se Tosse você, eu não teria tanta certeza... — Viu que o irmão
olhava para a moça. —Duw Lwyd, não pode tirar os olhos dela e me ouvir?
— Você quer dizer tirar "o olho" dela... — riu Emryss.
— Não importa! — Gwilym mostrava-se impaciente. — Já lhe disse que
as coisas hoje são diferentes. O barão é como uma aranha que teceu uma
teia de ferro enquanto você esteve fora. Não pode levar a moça para lá.
Emryss desviou o olhar, ergueu o queixo, naquele gesto teimoso
Gwilym conhecia muito bem, e disse:
— Até o barão conhece o antigo costume de raptar a noiva.
— Sim, se quiser lembrar-se disso. E pare de olhar para ela, homem!
Hu disse que ela o enfeitiçou e começo a achar que ele tem razão.
— Bobagem, Gwil — Emryss riu mansamente. — Que Hu pense que ela
é uma feiticeira, apesar de saber que estamos longe do dia das bruxas, eu
entendo. Mas você...
— Pelo amor de Deus, fale sério! Devemos deixá-la ir sozinha, é só
seguir a estrada...
— Não vou deixar uma mulher abandonada na floresta, mesmo ela
sendo de Cyrinc. Você mesmo disse que está infestada de ladrões. Pouco
atrás deles, Roanna mantinha a cabeça baixa, para evitar o penetrante
olhar do homem com tapa-olho. Toda vez que a olhava, ela se agitava. Claro
que não ia tentar fugir, pois não sabia onde estava. Procurava prestar
atenção na discussão deles, para fugir da sensação que aquele olhar lhe
causava.
Era evidente que o rapaz moreno, mais baixo, estava aborrecido com
o homem alto. Pelo tom repreensivo dele seria difícil acreditar que era um
soldado falando com seu líder, mas ela sabia que assim era.
Naquele momento recomeçou a chover, então o homem alto virou seu
cavalo e aproximou-o do dela, enquanto o homem moreno permanecia à
frente. As mãos dela apertaram o cabeçote da sela.
— Precisa de ajuda, milady? — perguntou, pegando seu manto e
colocando-a sobre ela.
O joelho dele esbarrou numa das pernas dela. Carada, Roanna aceitou
a atenção dele, não querendo ficar ensopada de novo e não sabendo como
recusá-la. Depois que ajeitou o manto sobre os ombros dela, ele fez seu
cavalo recuar um pouco, enquanto Roanna se agarrava com mais força ao
cabeçote da sela, dizendo a si mesma que era o medo de cair na lama que
fazia seu coração bater descompassado.
O homem de tapa-olho pôs seu cavalo para andar, mas dessa vez
manteve-se ao lado dela. Com a garoa forte, um cheiro acre de folhas e
terra molhada espalhou-se no ar.
— Não gosta de chuva? — indagou ele, depois de observá-la por
alguns minutos.
— O senhor gosta de ficar molhado? — perguntou ela, por sua vez,
rezando para ele deixar de olhá-la.
— Depois que se conhece o deserto aprende-se a amar a chuva...
— comentou ele, baixinho.
O deserta a que se referia só poderia ser a Terra Santa.
— Esteve nas Cruzadas? — perguntou Roanna, então.
— Sim.
— Talvez tenha conhecido meu pai, Edmund de Westercott? —
perguntou, ansiosa.
Ele a fitou, a chuva molhando o tapa-olho de couro negro.
— Sim, conheci. Diziam que era um homem honrado.
— Sim, sim... ele era!
As lembranças desfilaram diante dos olhos rasos d'água de Roanna.
Os momentos felizes com seus pais, antes de lorde Westercott ir às
Cruzadas, para nunca mais voltar. A febre que atacara sua mãe, depois a
morte dela, deixando-a só no mundo, a não ser por um tio que ela jamais
vira, até então.
— Ele morreu e foi uma pena... — disse Emryss, compungido.
— Perdemos muitos homens de honra naquele inferno.
Ela o fitou e viu que ele estava muito sério.
— Com certeza todos os cruzados são homens de honra — comentou.
— Lutam a serviço de Cristo...
0 queixo dele endureceu e uma pequena veia começou a pulsar nas
suas têmporas.
— Então, honra inclui roubo, estupro, assassinato, sodomia...
Roanna soltou uma exclamação horrorizada e ele calou-se.
— O senhor deve estar enganado! — disse, revoltada. — Como podem
aqueles homens...
— Milady, eu estava lá — interrompeu-a ele, calmo.
Ela não teve o que dizer. Com certeza ele estava enganado, os
cruzados não podiam fazer tais coisas. Se não, devia estar mentindo. E se
mentia, não era um homem de honra. E se não era um homem de honra, ela
não devia ter aqueles sentimentos por ele. Mas, que Deus a ajudasse, ela os
tinha.
— Perdoe-me, milady, se a decepcionei. Pensei que quisesse saber
verdade — disse Emryss.
— Eu o conheço tão pouco quanto o senhor me conhece — concluiu ela.
— Talvez esteja querendo desacreditar os normandos.
Ele riu. Um riso amargo que chamou a atenção de Gwilym.
— Eles não precisam que eu fale: desacreditam-se a si mesmo, todos
os dias.
— Parece que conhece poucos normandos, provavelmente por não ser
um deles! — rebateu ela, indignada.
O sorriso dele tornou-se zombeteiro:
— Sabe tão pouco sobre mim quanto eu sobre a senhorita. Pensei em
remediar isso, mas vejo que é tão cega quanto seus conterrâneos.
— Enxergo mais claramente do que o senhor pensa.
— É, mesmo? Então, por que vai se casar com Cyrinc?
Ele sempre voltava a esse assunto. Por quê? Será que não entendia
que ela precisava honrar o compromisso, apesar das palavras dele, apesar
do de seu beijo? Ele disse que a seqüestrara por brincadeira:
Pelo jeito, era tempo da brincadeira terminar e ela ser devolvida.
A não ser que ele estivesse brincando com seus sentimentos. E como
se demonstrava sensível à sedução que emanava dele, sentiu-se humilhada.
Que triunfo seria para aquele homem fazer a noiva de Cyrinc romper o
compromisso tão facilmente, apenas por um beijo!
Cerrou os dentes, enquanto uma onda de calor subia-lhe ao rosto.
Ergueu o queixo. Ouviu que o homem alto falava algo em galês e o outro
passou à frente deles, adiantando-se pela estrada.
— Milady — ele disse então, com suavidade —, tem certeza que quer
se casar com ele?
Ela respondeu com ar desafiante, as palavras saindo num impulso:
— Já lhe disse: foi feito um acordo e tenho que cumpri-lo.
— A senhorita não fez o acordo.
— Se eu não me casar, como meu tio quer, serei menos do que um
mendigo ao portão dele. Não terei lar, não terei qualquer chance de ser
feliz.
— É preciso que a senhorita concorde para o acordo ser legal, milady
— explicou ele, olhando-a com atenção.
— O que o senhor conhece da lei? — perguntou ela, ignorando o
acelerar das batidas de seu coração e a esperança que começara a
florescer em seu peito. — Tenho que cumprir o acordo que meu tio fez,
como manda a honra.
Ele assentiu, mas ela não sabia se por concordar com suas palavras ou
por concluir que não adiantava insistir.
De súbito, ouviu um grito e viu o homem moreno fazer o cavalo virar e
voltar a galope. Imediatamente os três ocultaram-se na floresta e viram
uma coluna de homens armados se aproximando.
— Cynric — disse o homem mais baixo.
— Sim — concordou o homem da cicatriz. Então, voltou-se para ela: —
Cynric DeLanyea aqui está, à frente de seus homens. Sem dúvida, procura
pela senhorita. O que diz, milady?
Ela fitou o homem que a seqüestrara. A chuva escorria por seu rosto
másculo. Podia ver a feia cicatriz nos locais que o tapa-olho não alcançava.
Os cabelos molhados emolduravam-lhe o rosto. Seu olhar demonstrava todo
respeito que ela almejava e algo mais, uma profunda emoção que tornava a
decisão dela muito dolorosa e lhe dizia que nunca iria esquecê-lo.
No entanto, Roanna deslizou da sela e caminhou para a estrada, na
direção do vale de onde vinham os cavaleiros.
Era a única coisa honrada a fazer.
CAPITULO IV
— Ele a violentou?
O olhar de Roanna fixou-se no barão, que esperava pela resposta,
depois passou para o tio, que a olhava como se tudo tivesse sido culpa dela,
em seguida deteve-se em Cyrinc sentado displicentemente em uma cadeira,
num dos extremos da mesa enorme. A sala estava fria, mas não foi por isso
que ela estremeceu.
Num canto da sala achava-se um padre com uma pena na mão e um
tinteiro sobre a pequena mesa diante dele, que continha também uma folha
de pergaminho desenrolada. O contrato de casamento, com certeza,
pensou.
Olhou de novo para o tio, sentado ao lado do barão, com os cotovelos
sobre a mesa e as mãos erguidas, unidas pelas pontas dos dedos. Muitas
vezes o vira nessa posição, o rosto impassível, quando julgava seus
rendeiros. Ela devia ter imaginado que não devia esperar apoio dele.
— Responda! — trovejou o barão, com impaciência.
Ela olhava diretamente para seu interrogador, pela primeira vez
desde que fora levada para aquela sala, sem que lhe permitissem sequer ir
tirar as roupas molhadas. Os olhinhos dele, mergulhados na gordura da
cara pálida, fitavam-na com malícia.
— Então? — insistiu ele.
— Não, milorde, ele não me violentou — respondeu ela, num fio de
voz, ansiando para que a deixassem sair dali. Ouviu as vozes dos soldados
conversando, do outro lado da porta, mas forçou-se a concentrar-se nos
homens à sua frente.
0 barão grunhiu e olhou para o filho. Roanna também voltou-se para
ele. Tão diferente do homem da cicatriz, no entanto, enquanto Cyrinc
permanecia sentado, à vontade, havia algo vagamente similar nas longas e
fortes pernas, na impressão de força inerente ao corpo esguio, mas
robusto.
Lorde Westercott separou os dedos e disse:
— É evidente, barão DeLanyea, que nada reprovável aconteceu. Creio
que o casamento pode se realizar.
O barão encarou o filho, que falou depois de alguns segundos:
— Muito bem. Assim seja, se o senhor quer. Caso-me com ela.
Roanna baixou os olhos. Então, nada mudara. Quando se encontrara
com Cyrinc, no vale, ele não falara com ela. Seus lábios tinham permanecido
com esboço de algo entre um franzir e um sorriso. Não dissera uma palavra
durante todo o caminho até Beaufort.
— Suponho que Emryss vai ficar sossegado depois desse insulto! —
explodiu Cyrinc, beligerante.
Emryss. O nome dele era Emryss. Parecia uma carícia ou a água do rio
murmurando junto da margem.
— Supõe certo — respondeu o barão, depois empurrou a cadeira para
trás e levantou-se para sair.
Roanna uniu as mãos, respirou profundamente e perguntou:
— Por que não me perguntaram se consinto neste casamento?
Suas palavras pareceram ficar flutuando no ar, por alguns momentos.
O tio encarou-a, não acreditando em tanto atrevimento. O barão fitou-a,
estatelado. Cynric olhou-a como se ela tivesse anunciado que ia matar
alguém.
Por fim o tio sacudiu os ombros e seus olhos cravaram-se nela,
incisivos, enquanto dizia:
— Não era preciso.
Sem ninguém esperar, o padre adiantou-se. Enquanto apertava mais o
nó do cordão que ajustava a batina à cintura, pigarreou e disse:
— Perdoem-me, milordes, mas a lady tem razão. Ela precisa dar seu
consentimento para a união se realizar.
O barão voltou-se para ele e o padre correu de volta a seu canto,
como um coelho assustado.
— Os senhores mentiram para mim — Roanna falava com voz firme e
determinação. — Os senhores são homens sem honra, são menos do que as
pedras que meus pés pisam. Não quero ter nada a ver com os senhores.
O queixo de Westercott endureceu. Ele reconhecia aquela voz, o tom,
as palavras. Era como se o seu irmão mais novo estivesse vivo e lhe falasse.
Pela primeira vez em muitos anos ele sentiu vergonha. Mas quando
Cynric empurrou a cadeira para trás, arrastando-a no chão, lembrou-se de
que se não houvesse casamento não haveria dinheiro. Apressou-se a dizer:
— Não se apresse, milorde — seu tom era de comando e pedido ao
mesmo tempo. — Dê-me tempo para fazer a lady mudar de idéia... e eu
garanto que vou conseguir.
Roanna encarava o tio, sem esconder o desprezo que sentia por ele.
— Creio que o melhor lugar para o senhor conversar com ela é “sala"
da torre norte — disse o barão, com frieza.
Lorde Westercott anuiu, o rosto contraído. Pegou a sobrinha por um
braço e dirigiu-se com ela para uma estreita escada de pedra no extremo
da sala. Sentia a bile amargando-lhe a garganta e praguejava contra Roanna
enquanto subiam. Não fora até ali para ver a barganha desfeita por aquela
menina tola. Como se o consentimento de uma mulher importasse! E para o
inferno esses padrecos que falavam nos momentos mais inoportunos!
Estava quase conseguindo tirar algum proveito e ela ameaçava estragar
tudo.
Entraram numa saleta no alto da escada, que mais era uma cela.
Curioso, Westercott exclamou:
— Menina louca, você vai se casar com Cyrinc DeLanyea! Ficará aqui
pensando nas vantagens desse casamento até resolver aceitá-lo. Saiu e
bateu a porta.
Roanna olhou ao redor. Nada mais havia na cela além de um monte de
palha e um balde. Uma janela pequenina deixava entrar pouca luz. Ouviu a
chave girar na fechadura e, depois, os passos do tio afastando-se escada
abaixo.
O céu escurecera e os sons que vinham lá de baixo aquietaram.
O jantar devia estar pronto, pensou Roanna, cansada, sentada na
palha, com a cabeça encostada nos joelhos. Não lhe haviam levado
comida e nem ela esperara que o tio pensasse em alimentá-la. Estava
claro que o plano era dobrá-la pela fome.
Ergueu-se de um salto ao ouvir passos se aproximando e tratou de
preparar-se para enfrentar o tio pela segunda vez.
Mas foi Cyrinc quem abriu a porta e entrou.
— Ah, milady, tão só? — disse ele, com um sorriso desagradável.
Roanna nada disse quando ele se aproximou. Com esforço, manteve a
expressão serena, apesar de sentir-se como um animal em uma armadilha.
Ele deu uma volta lenta ao seu redor, parou diante dela, pegou a adaga e
passou a limpar as unhas com a ponta aguda. Ela aguardava que ele falasse,
os punhos cerrados com força, sentindo-se cada vez mais tensa. Cyrinc
queria alguma coisa, talvez apenas brincar com ela, e sua indiferença era
estudada.
— Então, ele não a tocou... — disse, afinal.
Baixando os olhos, ela lembrou-se do beijo. Como os lábios dele eram
suaves, gentis.
— Ele não me desonrou — respondeu, forçando-se a manter a calma.
— Isso é o que diz. — Cyrinc aproximou-se mais dela. — A senhorita
não é uma beleza, mas é difícil acreditar que Emryss não tenha tirado
prazer de seu corpo. Ele ficou muito tempo entre os pagãos e talvez tenha
esquecido como são os homens honrados.
Ela manteve os olhos fixos em uma pedra no chão, enquanto dizia, com
firmeza:
— Não, ele não esqueceu.
Cyrinc foi para trás dela, seu corpo desagradavelmente próximo, a
respiração pesada em seu ouvido.
— De fato? — Passou uma das mãos devagar por um braço de Roanna,
que se contraiu ao indesejável toque. — Então, fale-me sobre meu
honorável primo.
— O quê? — surpreendeu-se ela, encarando-o. Ele sorriu, de maneira
repulsiva:
— Ah, isso a espanta? Ele não lhe contou que é o Lorde Emryss
DeLanyea, primo de seu noivo?
— Não... — Ela ficou confusa. — Ele não disse nada.
— Bem, minha querida, aquele bárbaro de um olho só, de cara
marcada, é o descendente de meu falecido tio. Claro que a senhorita não
poderia imaginar isso, pelas roupas dele, pelo seu modo de falar. Emryss é a
desgraça dos DeLanyea, sempre foi.
Mediu-a de alto a baixo, depois continuou:
— Ele a seqüestrou para nos aborrecer. É um simplório grotesco. Não
a violentou porque tinha certeza de que isso não iria me importar... —
Aproximou-se mais dela. — Sabe que a surpresa lhe fica bem, minha
querida? Torna-a viva, deixa de ser como uma estátua de mármore.
Os lábios dele apoderaram-se dos dela, brutais e exigentes. Roanna
se debateu, procurando livrar-se daquele beijo repulsivo. Não conseguia
respirar, nem pensar. Quando ele a soltou, ela recuou e limpou a boca com
as costas da mão.
— Nunca mais faça isso! — disse, arquejante.
Viu a raiva brilhar nos olhos azuis, gelados, e se afastou mais ainda.
Ele sacudiu os ombros. Havia tanto de Emryss naquele gesto que lhe
pareceu um cruel arremedo do outro homem e do outro beijo.
— Não, por enquanto, se a senhorita assim quer. Posso esperar até o
casamento.
Ele voltou-lhe as costas e dirigiu-se para a porta. De repente parou e
virou-se. Havia um brilho feroz nos olhos frios, quando disse:
— E não se preocupe se na noite de núpcias eu descobrir que mentiu...
— Passou a língua pelos lábios finos, fazendo o estômago de Roanna se
revolver. — Prefiro mulheres experientes.
— Acha que menti? — gritou ela, a raiva irrompendo como fogo em
palha seca.
— Sim, acho. Mas não importa — disse Cyrinc, em tom de mofa. —
Que Emryss fique com sua virgindade! Eu ficarei com o dote, por pequeno
que seja, e com a influência de seu tio.
— Não — agora a voz dela soava fria, controlada. — Não vai ter nada
disso, porque não me casarei com o senhor. Nunca!
Num movimento rápido, ele chegou junto dela, agarrou-a pelos braços
e puxou-a, seus rostos ficando a poucos centímetros um do outro.
— Pensa que eu quero me casar com você, seu feixe de ossos? Posso
Ter centenas de mulheres, muito mais atraentes e com dotes mas ricos do
que o seu. Mas meu pai quer o casamento e como lucro estas terras depois
que ele morrer, tenho que me casar com você! E vamos para a cama juntos,
quer você queira ou não. — Ele , apertou-lhe mais os braços e aproximou os
lábios dos dela. — Se me odeia, até que vai ser divertido possuí-la!
Roanna desvencilhou-se das mãos dele, enquanto murmurava, entre os
dentes:
— Prefiro morrer. Eu não suportaria ser maculada por uma pessoa
como o senhor! —As pequenas mãos encontravam-se cerradas com força,
pela raiva impotente.
Os lábios dele entreabriram-se num sorriso aterrador:
— Só por guerreiros aleijados, como Emryss?
— Pelo menos ele tem honra, o que falta ao senhor!
— E a senhorita — ele voltou a tratá-la com falso respeito, a voz
controlada — não tem beleza. Mas passarei por cima disso.
Agarrou-a de novo, num forte abraço. Passou os lábios úmidos pela
face de Roanna, que se debateu por alguns momentos, depois aquietou-se,
transformando-se num pedaço de granito, ao perceber que ele se divertia,
se excitava com a repulsa e o medo dela. Se não reagisse, talvez ele
mudasse de idéia.
— Ah, Roanna, desiste tão facilmente? Ou será que começa a ver que
está errada?
Beijou-a com brutalidade, depois largou-a. Sua risada cruel,
zombeteira, encheu a pequena cela.
— Creio que vou convidar meu primo para a festa do nosso casamento
— disse, virou as costas e saiu.
No dia seguinte, Emryss encontrava-se na velha estrebaria de pedra
de Craig Fawr, a fortaleza onde morava. Devagar, passava a escova no pêlo
lustroso de seu cavalo, enquanto ouvia, distraído, as vozes de seus
empregados que estavam no pátio. A noite se aproximava e logo estaria
escuro demais para trabalhar. Todos se reuniriam no enorme salão, que
haviam terminado de reconstruir, para a última refeição do dia.
Sorriu, contente, porque o trabalho começado por seu pai iria
terminar logo. Faltavam apenas dois trechos da muralha para serem
refeitos. Com sorte, tudo estaria pronto antes do inverno chegar.
Graças a Deus sua mãe conseguira anular as tentativas do avarento
barão de se apoderar de sua propriedade, antes de ele voltar.
Seus pensamentos se tornaram sombrios. Só a incrível força de
vontade da mãe conseguira mantê-la viva para realizar o sonho de seu pai:
reconstruir o castelo que fora construído há séculos. Nem mesmo os
romanos tinham conseguido invadi-lo. Apenas os rudes normandos,
determinados a conquistar a terra a qualquer preço, haviam terminado por
derrotar os guerreiros galeses. Tinham derrubado a velha muralha e
durante todos aqueles anos as pedras caídas não haviam sido tocadas. Os
galeses nem sequer tinham pensado em usá-las, pois pertenciam a Great
Rock.
Com o tempo, o respeito e paciência dos galeses haviam recebido a
recompensa. O pai de Emryss, se bem que fosse um cavaleiro normando,
amara Angharad, a princesa galesa, reconhecera o valor daquela
propriedade, da lealdade galesa e em compensação recebera a admiração e
amor dos galeses.
A morte prematura dele significaria o fim de seu sonho, pois o filho
mais velho morrera anteriormente. Apenas a esposa, com sua vontade de
ferro, mantivera o sonho e o passara para o filho mais novo. Mesmo quando
todos achavam que Emryss estava morto, ela não permitira que o trabalho
de reconstrução da muralha parasse. Muita gente lhe dissera que ela
trabalhava para o barão, que ele se apoderaria de Craig Fawr quando tudo
estivesse pronto, mas Angharad mantivera a esperança, certa de que seu
filho voltaria.
Dois meses antes que ele chegasse, ela falecera.
Logo, pensava ele, enquanto escovava o cavalo, com fúria, logo estaria
pronto para fazer o barão pagar o sofrimento que causara. O lindo
garanhão negro relinchou, protestando, e ele passou a escová-lo com
delicadeza.
— Não, estou com raiva de você, Wolf... — murmurou-lhe ao ouvido. —
É melhor pensar em coisas agradáveis, antes que me dê um coice.
Coisas agradáveis. A moça. Ele a observara durante longos minutos,
enquanto ela estivera adormecida na cabana, sentindo vontade de afastar
os cabelos negros que cobriam parte do rosto suave, de acaricia-los. Os
longos cílios escuros punham uma sombra suave na pele branca e macia das
faces. No entanto, gostara mais de olhá-la quando ela estava acordada.
Aqueles olhos maravilhosos, tão verdes e cheios de fogo! Vira mulheres
lindas, em muitas terras, mas nenhuma o fascinara como essa moça.
— Está pensando no deserto dos infiéis, menino? — a voz de sua
velha ama, Mamaeth, trouxe-o de volta à realidade.
Como gostava de ouvi-la, pensou ele, voltando-se com um sorriso. Ela
fitou-o, os olhos negros cheios de ternura e apreensão, como se ele ainda
fosse um menino.
— No verão, está bem assim — continuou ela —, mas agora,
principalmente à noite, não deve ficar com os braços nus.
— Ah, Mamaeth, tem razão, como sempre! — riu ele. Largando a
escova sobre uma mureta, ergueu a velha ama no colo e plantou-lhe um
beijo na face ressequida.
— Ei, menino! Ponha-me já no chão e não faça mais isso! — gritou ela,
fazendo-se de zangada, mas não conseguindo ocultar o prazer na voz.
— Não fazer mais o quê? — Ele colocou-a no chão e deu um
passo para trás, fingindo surpresa. — Quem vivia me pedindo beijos,
quando eu era pequeno? — Seus lábios bem feitos tremiam no esforço
de manter-se sério.
— Não se pode com você! — A velha ama bateu-lhe carinhosamente
num braço. — Alguma coisa errada eu fiz quando o criei. Não respeita os
mais velhos, menino, e não os escuta. Está frio demais para andar por aí
quase nu.
Emryss não pôde mais segurar o riso:
— Mamaeth — disse, por fim —, como eu consegui sobreviver sem
você?
Os olhos da velha se apagaram e ele arrependeu-se por lembrá-la do
tempo em que não sabiam se ele estava vivo ou morto em um distante
campo de batalha.
— Eu acho — disse, aparentando alegria —, que como seu senhor devo
escolher-lhe um marido, para que você tenha com quem implicar.
— O quê? — Imediatamente os olhos negros faiscaram, vivos.
— Para que quero um marido? Já tenho muito que fazer olhando
por você! Aha! Um marido? Seria como ter um filho e já estou
velha demais para isso. — Mamaeth fitou-o com astúcia. — Você
é que precisa se casar.
Dessa vez Emryss teve que fazer força para manter a aparência
despreocupada:
— Qualquer dia vou pensar no assunto.
Mamaeth sacudiu os magros ombros:
— Uma moça que não se impressione com você, com seu título, é o que
você precisa. E que lhe dê filhos... — ela riu e tratou de voltar para a
cozinha.
Emryss ficou olhando a velha ama afastar-se, depois tornou a pegar a
escova. Suspirou profundamente. Gwilym ou os filhos dele seriam seus
herdeiros. Não contara a ninguém a extensão de seus ferimentos. Como
dizer-lhes que o golpe que lhe rasgara a coxa esquerda atingira também um
dos testículos, que infeccionara e se tornara inútil? Abram, que o salvara
dos homens de Saladino e tratara de suas feridas, dissera que com um
testículo apenas ele ainda podia ser pai. Mas, na viagem de volta, fora com
uma mulher para a cama, em uma estalagem, e a tentativa de fazer amor
terminara em humilhante fracasso. Não queria se arriscar a fracassar de
novo.
— Que animação para escovar o cavalo! — comentou Gwilym, rindo.
Ele expulsou os pensamentos angustiantes e voltou-se para o irmão de
criação, sorrindo:
— Mamaeth diz que eu não respeito os mais velhos, mas parece que
isso é um mal comum em Craig Fawr. Meus homens não respeitam seu
senhor...
Gwilym sentou-se num banco.
— E por que respeitaríamos? Só porque você é um normando?
— Pelas chagas dos deuses! — Emryss ergueu a escova como se fosse
jogá-la no amigo, pela audácia, mas continha a risada a custo. — Agora, está
me insultando! Têm de me respeitar porque minha mãe era uma princesa
galesa e porque eu sou o senhor de Craig Fawr!
Gwilym pulou de pé e fez uma reverência caricata:
— Mil perdões, honorável lorde! Perdoai vosso humilde servo, eu vos
rogo!
Emryss tocou a cabeça de cabelos negros com uma das extremidades
da escova, dizendo, solene:
— Eu te perdôo!
— Claro que perdoa! — caçoou Gwilym e saltou de lado, para evitar a
pancada da escova atirada nele. — Afinal, sou seu melhor guerreiro. —riu,
atrevido, depois tornou-se muito sério.— Emryss, atacaram viajantes de
novo, perto do rio. . ;
— Alguém foi morto?
— Não, mas roubaram-lhes tudo, até mesmo a roupa do corpo.
— Os ladrões eram galeses, saxões ou normandos?
— Não sei.
— E as vítimas?
— Eram normandos, porém muito pobres.
Emryss colocou uma manta sobre Wolf, determinando:
— É melhor fazermos uma patrulha amanhã. Levaremos vinte homens.
Gwilym assentiu, depois disse, hesitante:
— Não espera qualquer encrenca com Beaufort, então?
— Não — respondeu Emryss, dirigindo-se para o castelo.
— Acha, mesmo, que eles vão deixar passar? — Gwilyn corria para
acompanhar o irmão adotivo.
— Acho que sim. Ela não foi tocada. Mas o insulto...
— Eles são covardes.
Gwilym pôs uma das mãos sobre um braço de Emryss, fazendo-o parar
no centro do enorme pátio cheio de blocos de granito, madeiras, andaimes
e ferramentas.
— Emryss, não subestime o barão, nem Cynric. O lorde colocou a mão
sobre a do amigo.
— Eu sei, Gwil. O mundo inteiro pode ver que uma vez subestimei meu
inimigo. Pode ter certeza, não vou cometer o mesmo erro.
Roanna saltou de pé, fixando os olhos brilhantes num buraco na
argamassa da parede. Com repugnância, afastou-se, sentindo as pernas
tremulas e fracas.
Durante toda a noite anterior permanecera acordada, com medo dos
ratos e que Cynric voltasse. Depois viera a luz do dia e as horas se haviam
arrastado, lentas. Ergueu os olhos para a pequena janela. Era noite outra
vez e os ratos começavam a aparecer.
Se tivesse pelo menos uma vela, talvez eles não chegassem perto. De
súbito a porta se abriu. Seu tio, com o rosto muito vermelho, entrou na
cela. Ela podia sentir o cheio de vinho em sua respiração, apesar de ele
estar do outro lado.
— Então, sobrinha, recon... recon... pensou melhor? — perguntou ele,
as palavras engroladas, amparando-se na porta.
Roanna fitou-o receosa, mas falou com determinação:
— Nunca me casarei com Cynric DeLanyea.
— Ficou louca? — Westercott andou até o meio da cela. — Moça
estúpida! Se não se casar com ele vou mandá-la para algum convento gelado
do norte, juro! Nenhum outro homem irá querer casar-se com você.
Ela continuou fitando o tio, imóvel, calada. Ele avançou e agarrou-a
pelos braços. Roanna empurrou-o para trás e ele cambaleou, indo bater
contra a porta aberta.
— Por Deus, vou surrá-la até que seus olhos saltem das órbitas! —
berrou ele, investindo de novo.
Roanna saiu de lado e Westercott foi bater a cabeça na parede de
pedra. Tonto pela pancada, caiu sentado.
— Vai fazer o que eu mandar! — resmungou, esfregando a cabeça
dolorida. — Malditas mulheres! Por que seus pais a largaram nas minhas
costas? — Fitou-a com os olhos raiados de vermelho. — Não
providenciaram nada para você, deixaram só complicação para mim. E eu lhe
arranjei casamento. Um bom casamento. E que agradecimento recebo,
hein?
Continuou a resmungar, segurando a cabeça.
— Por Jesus e José, vou surrá-la, deixar seu rosto marcado... Tentou
levantar-se, cambaleante, e ela aproximou-se da porta.
Ele voltou a falar, com ressentimento:
— Roanna, minha querida, não acha que deve casar-se para ser grata
ao homem que a amparou, que pagou suas roupas e sua comida todos estes
anos?
Ela parou à porta e retrucou, altiva:
— O senhor quer dizer que devo me prostituir?
Ele se levantara e, mais vermelho ainda, saltou sobre ela, atirando-a
ao chão.
— Ah, não, minha querida — disse, triunfante, seu hálito nojento
fazendo-a se contrair. — Vai ficar aqui até concordar.
Colocou-a de pé e empurrou-a para dentro da cela, antes de fechar a
porta. Soltou uma gargalhada, enquanto girava a chave na fechadura.
— Pensou que ia me enganar e fugir, menina? Vamos ver quem ganha
esta batalha!
Os passos dele, sobre o chão de pedra, foram se afastando até
sumirem.
Roanna colocou às mãos sobre um quadril, que machucara ao cair,
lutando contra a dor e o desespero. Jamais concordaria em se casar com
Cynric. Jamais. O tio podia matá-la de fome.
Arrastou-se até o monte de palha e sentou-se, molhando os lábios
ressequidos com a língua, que estava quase seca e pouco adiantou. Como
gostaria de ter um dos macios pãezinhos de Jacques e um copo de água
cristalina!
Deitou-se. Jacques já devia estar sabendo de tudo, pensou. Os
criados sempre sabiam o que se passava num castelo e falavam entre si. Ele
devia estar preocupado, ela podia até ouvi-lo chamando-a... Ergueu-se de
um salto e correu para a grossa porta. Era Jacques, chamando por ela, do
outro lado.
— Estou aqui, Jacques — disse baixinho, com medo que a ouvissem.
— Está machucada, senhorita? — perguntou ele, aflito.
— Não.
— Ótimo. Eu lhe trouxe pão...
Havia pouco espaço entre a porta e o chão, mas o cozinheiro
conseguiu empurrar por ele um pano, que tinha uma fatia de pão em cima, e
ela puxou-o do outro lado. Roanna comeu, sôfrega, olhando agradecida para
a porta que a separava do amigo. Seus olhos voltaram-se para as
dobradiças de couro.
— Jacques — indagou, esperançosa —, tem uma faca aí com você?
— A senhorita não pretende lutar com eles para fugir, não é?
— O couro das dobradiças da porta está velho e gasto. Com uma faca
eu poderia...
— A porta pode cair e esmagar a senhorita! Mesmo que consiga
segurar esta pesada porta, como pensa sair do castelo? Ele é muito vigiado.
E mesmo que consiga sair, não tem dinheiro...
Roanna compreendeu que seu amigo tinha razão e sentiu-se der-
rotada.
— A não ser que eu possa ajudá-la... — sussurrou ele.
— Como? — Roanna prendeu a respiração para não perder uma só
palavra.
— Estou cansado de cozinhar para um homem que não me deixa usar
pimenta. Acho que está na hora de deixá-lo.
— Para onde pretende ir, Jacques?
— Para onde a senhorita quiser. Um bom cozinheiro como eu pode
arranjar um patrão melhor!
A esperança começou a renascer no coração dela, mas o risco seria
grande.
— Jacques — começou, incerta —, não posso permitir que se arrisque
por mim.
— É por mim, também — respondeu ele, com voz tão indignada que ela
sorriu. — Eles pensam que estou dormindo e ninguém irá me procurar, até
amanhã cedo, quando já estaremos longe.
— Vai ser perigoso nós dois andarmos sozinhos pelas estradas.
— E pretendia ir sozinha? Está insultando minha coragem! —
O vozeirão do homem suavizou-se, como sempre que falava com ela.
— Deixe-me ajudá-la, senhorita...
Ouviu os passos de Jacques se distanciando e olhou de novo as
dobradiças, depois começou a andar, ansiosa, de um lado para outro da
cela, imaginando se ele demoraria muito fazendo os preparativos. Empurrou
os cabelos para trás e passou os dedos pelos lábios gretados de tão secos.
Tremendo de repulsa, lembrou-se claramente do brilho de luxúria nos olhos
de Cynric. Santo Deus, o que ele faria com ela se viessem a casar-se? E se
ele resolvesse não esperar, se voltasse e...
Sua respiração parou ao ouvir passos por trás da porta.
— Jacques? — chamou, angustiada.
CAPITULO V
— Jacques! — chamou Roanna de novo, com angústia na voz, sentindo
o medo crescer a cada respiração.
— Sim, sou eu — respondeu ele.
Ela suspirou, descontraindo-se, enquanto ele empurrava uma estreita
faca sob a porta.
— Vou terminar de preparar tudo e voltarei já. Não se desespere! —
sussurrou ele.
Roanna ouviu seus passos se afastando. O remanescente do medo lhe
deu uma sensação de urgência. Cynric não viera... ainda. Rápida, pegou a
faca e começou a cortar a velha dobradiça de couro. Pareceu levar horas
para fazer um pequeno corte, mas assim que a faca atingiu o outro lado do
couro, o trabalho foi rápido. Absorta no que fazia, ela não percebeu a volta
de Jacques, até que ele a chamou.
— Acho que está quase pronto, Jacques — sussurrou ela, voltando a
lidar com a afiada faca na segunda dobradiça. — Mais um minuto e estará
cortada.
Quando terminou, afastou-se da pesada porta:
— Pronto, Jacques — disse, ofegante. — Empurre a porta, agora. O
homenzarrão meteu um ombro na porta e forçou. A fechadura
rangeu, resistiu, mas acabou cedendo e a porta caiu, fazendo um
barulho que pareceu-lhes retumbante.
Jacques apareceu do outro lado, o rosto grande iluminado por um
sorriso. Mas logo ficou sério:
— Venha, senhorita, depressa!
Roanna não precisava de incentivo. Passou por cima da porta caída,
reunindo-se a ele, e os dois correram escada abaixo.
— Tenho uma carreta à espera — sussurrou o cozinheiro, enquanto a
levava pelo longo corredor.
Entraram na enorme cozinha, onde ela nunca havia estado. O fogo que
crepitava no grande fogão fazia as sombras deles, imensas, desfilarem pela
parede, enquanto percorriam o aposento deserto.
Um burro atrelado a uma carreta, daquelas usadas pelos fazendeiros
para ir ao mercado, esperava no pátio, Jacques ajudou Roanna a acomodar-
se no fundo e cobriu-a com um cobertor. Ela sentiu o
rústico veículo balançar quando o corpulento cozinheiro subiu à boléia.
Com uma praga abafada do homenzarrão, começaram a movimentar-se.
Depois de alguns momentos ela sentiu um sobressalto, quando pararam e
uma voz desconhecida perguntou:
— Quem é você?
— Sou Jacques de la Mere, o cozinheiro de lorde Westercott, e se
você quer comer amanhã, abra o portão.
— O que quer dizer? — voltou a voz, irritada.
— A farinha de trigo está mofada e se quiserem ter pão amanhã,
precisa me deixar sair. Eu mesmo quero escolher a farinha, no moinho. Não
me atrase, pois devo estar de volta antes do amanhecer, se não milorde
ficará muito zangado. E vou dizer a ele que o sentinela não me deixou
passar!
Roanna sentia-se sufocar sob o cobertor, porém ficou melhor ao ouvir
o portão ranger. A carreta balançou, movimentando-se de novo, e em
seguida o portão fechou-se. Precisando de um pouco de ar puro, ela ergueu
o cobertor um pouquinho e espiou para fora, enquanto atravessavam o
espaço entre o castelo e a muralha. Tudo lhe pareceu deserto, até que
olhou para o alto muro de pedra. Vários homens achavam-se sentados no
chão, encostados nele, com as espadas rebrilhando ao suave luar.
Chegaram ao outro portão e Jacques repetiu sua história. De novo
convenceu o sentinela a deixá-los passar. Quando se distanciaram um
pouco, ela sentou-se, ainda meio escondida pelo cobertor escuro, e Jacques
lhe disse que uma linda criadinha lhe contara que Roanna fora levada ao
alto de uma das torres do castelo e que não havia nada lá, a não ser a
pequena cela. Por isso fora fácil encontrá-la.
Não foram perturbados, a não ser por latidos de cães, enquanto
atravessavam a aldeia que ficava perto da fortaleza do barão DeLanyea.
Pouco depois percorriam a estrada.
— Iremos para o norte, senhorita — explicou Jacques. — É para esse
lado que fica o moinho e se alguém estiver observando verá que me dirijo
para lá. A criadinha disse que na encruzilhada devemos rumar para o sul,
onde se encontram lugares mais civilizados.
Roanna afastou o cobertor da cabeça e admirou o céu noturno. As
estrelas brilhavam, tranqüilizadoras. A lua, em quarto crescente,
derramava sua luminosidade diáfana sobre o rio, à beira da estrada.
Passaram pelo moinho e Jacques deu-lhe uma bolsa, depois começou a
cantar em voz baixa. Dentro havia alguns de seus deliciosos pãezinhos e ela
os devorou, enquanto a carreta avançava.
Ele precisava encontrar comida. No calor inclemente, multiplicado
pela armadura, arrastava-se pelo campo de batalha. Moscas esvoaçavam,
zumbindo, sobre cadáveres de homens e de cavalos. Um abutre bicava um
cavalo caído, ensangüentado, tirando grandes nacos de carne. Tentou
umedecer os lábios rachados, com a língua seca. Comida. Precisava
encontrar comida. Os tambores recomeçaram a soar, seu barulho
tornando-se mais e mais pesado, enquanto ele se arrastava, a dor na coxa
tornando-se cruciante.
Morreria de fome se não encontrasse algo para comer. O insistente
bater de tambores o atordoavam. Pôs-se de pé, tentando enxergar algo.
Então, ouviu o alto sibilar de uma espada, voltou-se e, antes que a espada
atingisse seu elmo, ouviu o soldado muçulmano gritar:
— Allah ackbar!
Emryss sentou-se na cama com um grito estrangulado na garganta, o
corpo empapado de suor. Esfregou o rosto com as duas mãos, depois
deixou-se cair sobre os travesseiros. Um sonho. Outro sonho. As batidas
alucinadas do coração foram se acalmando, enquanto ele respirava fundo.
Outro pesadelo sobre a Terra Santa. Santo Deus, pensara estar livre
deles, quando chegara em casa.
Os primeiros albores da madrugada entravam pela estreita janela de
seu quarto. Saltou da cama, enrolando um lençol no corpo nu. Pela janela,
pôde ver o horizonte colorido de rosa, que se tornava mais e mais claro à
medida que o sol subia. Os campos de trigo faziam lembrar a areia dourada
do deserto. Suspirou, reparando nos ocasionais brilhos da água do rio que
atravessava o vale rochoso. Divisou manchas brancas na colina distante:
ovelhas que já estavam pastando.
Voltou-se e foi até a cômoda. Derramou água do jarro na bacia e lavou
o rosto, estremecendo quando a friagem fez a cicatriz ainda nova reagir.
Dirigiu-se à arca ao lado da cama e pegou as roupas que deixara sobre ela.
Começou a vestir-se, parando para examinar o corpo, onde fora ferido, em
busca de algum sinal de infecção.
A porta abriu-se.
— Maldição! — exclamou Emryss, subindo a calça depressa.
— Aprendeu a blasfemar nas Cruzadas? — perguntou Mamaeth,
inclinando a cabeça para um lado.
Ela trazia roupas de cama limpas.
— Desculpe... — disse ele, pegando uma camisa. — Era só você ter
batido.
Mamaeth colocou os lençóis sobre a larga cama e colocou as mãos na
cintura, indagando:
— Para quê?
— Não sou mais criança, Mamaeth, e gostaria que você batesse antes
de entrar — respondeu ele, sentando-se na beira da cama e procurando as
botas.
O rosto escuro e magro de Mamaeth demonstrou consternação,
depois um sorriso o iluminou:
— Trouxe alguma mulher para cá? — perguntou, maliciosa. Emryss
calçava as botas e sua voz saiu meio abafada:
— Não, não trouxe.
— Por quê? — Ele ergueu a cabeça, encarou-a e ela apressou-se a
acrescentar:
— Perguntei só por perguntar...
Emryss ergueu-se, pegou a túnica de couro e Mamaeth pôs-se a
arrumar a cama, com os lençóis limpos.
— Tomara que você faça algo de bom — resmungou a velha ama.
Ele jogou a túnica no chão, zangado:
— O que você disse?
Mamaeth endireitou o corpo e encarou-o:
— Eu disse: tomara que você faça algo de bom.
— Não! — retrucou ele, brusco.
Pegou o cinturão com a espada e atrapalhou-se com a fivela, ao
coloca-lo. Pelo sangue de Deus, pensou, quando aprenderia a conter sua
língua e o gênio? Afinal, conseguiu afivelar o cinturão.
— Gwilym já comeu? — perguntou, esperando que Mamaeth
esquecesse sua resposta e seu gesto agressivos.
— Comeu por dez, pelo menos. Que apetite! Acho que está na
estrebaria, agora, preparando-se para sair. — A velha ama pegou um
travesseiro e socou-o, antes de colocá-lo na fronha. — Você também vai
sair?
— Vou. O último assalto foi muito perto daqui.
— Como eu queria pôr as mãos nesses assaltantes! — exclamou
Mamaeth, socando o outro travesseiro.
Emryss achou que os ladrões a achariam pior do que um homem, se
dessem com ela pela frente.
— Então, deseje-me boa sorte — pediu ele, vestindo a túnica e saindo
do quarto.
— Boa sorte, mas fique longe das terras de Beaufort... e das
mulheres de Beaufort.
Ele afastou-se sem responder. Provavelmente todos em Craig Fawr já
estavam sabendo de sua façanha. Iriam encará-la como parte da velha
inimizade e a esqueceriam logo, se não houvesse conseqüências.
Quando chegou ao salão, cumprimentou os homens que comiam a
primeira refeição do dia e pegou um pedaço de pão. Deu uma mordida,
mastigou e engoliu, com um grande gole de cerveja. Continuou a comer e
beber, enquanto se dirigia à porta e atravessava o pátio.
Vários pedreiros já se encontravam sobre os andaimes, trabalhando
no reerguimento da muralha. Verificou a pilha de pedras. Teria que
arranjar dinheiro para tornar a fortificação de Craig Fawr mais segura.
Seus pais haviam gasto muito para mandá-lo combater pelas Cruzadas,
inutilmente. Como havia sido impetuoso e louco, cheio de jovem ardor para
libertar Jerusalém das mãos dos infiéis!
Encontrou Gwilym e Wolf, selado, à espera na entrada da estrebaria.
Os demais homens destacados para a patrulha já se encontravam
montados. Gwilym deu-lhe bom dia, com um amplo sorriso, e saltou sobre a
sela de seu garanhão. Emryss terminou o pão, a cerveja, colocou o caneco
sobre uma mureta e montou, devagar.
— Você não dormiu bem, não é? — indagou o irmão de criação,
preocupado.
— Já dormi melhor outras vezes... — respondeu Emryss, seco. — Vai
ver que estou estranhando a cama macia.
Gwilym riu:
— Está é precisando de uma mulher em sua cama. A imagem de um
rosto pálido emoldurado por cabelos negros, surgiu na mente de Emryss,
porém ele a expulsou.
— Por que todo mundo acha que a batalha com uma mulher, numa
cama, vai resolver tudo para mim? — desabafou, irritado. — Daqui a pouco
vocês vão dizer que minhas cicatrizes desaparecerão se eu fizer amor. —
Fez Wolf virar-se para o portão. — Chega de conversa. Onde, exatamente,
os ladrões atacaram?
— Poucas milhas abaixo, na estrada, junto ao rio, onde a floresta é
mais densa, milorde — respondeu Gwilym com ar ofendido.
— Perto do vau?
— Sim, milorde.
— Onde estão os demais homens?
— Esperando, do outro lado do portão, milorde.
— Bom, então, vamos.
— Sim, milorde.
Emryss suspirou e fitou longamente o irmão, que se mantinha ereto, a
cabeça erguida.
— Gwil... — começou, tentado a explicar por que o assunto mulheres o
perturbava tanto.
Mas conteve-se, esporeou o cavalo, e dirigiu-se para o portão.
O ranger da carreta soava alto no silêncio da estrada. O sol brilhava
no céu, fazendo vapor subir da terra ainda molhada pela chuva. Roanna
olhou os salgueiros-chorões que se inclinavam para o rio, como mulheres
mirando-se no espelho da água, e sorriu quando dois esquilos gritaram,
perseguindo-se na copa de um velho carvalho. Alguns pássaros cantavam,
mas a maioria permanecia nos ninhos, em silêncio, à espera de que o sol
expulsasse toda a umidade para saírem voando.
A distância, uma parede de altas colinas rochosas erguia-se como se
quisessem atingir as fofas e alvas nuvens que flutuavam contra o azul do
céu.
Roanna deliciava-se com tanta suavidade e beleza, inesperadas em um
lugar onde só havia encontrado, até então, dias cinzentos, frio e chuva.
Emryss DeLanyea era como sua terra, pensou, e como ele a terra
mostrava-se mais atraente do que ela supusera.
Obrigou-se a encarar a verdade: não queria ir embora.
Claro, tivera que deixar Beaufort depois de romper o compromisso.
Ficar seria intolerável, além de perigoso. Mas não queria ir embora do lugar
onde encontrara, por fim, um homem que a fascinara.
Pensou no rosto marcado de Emryss. Na certa fora um ferimento
limpo, com arma muito afiada, se não ele teria morrido pela infecção.
Lembrava-se de seu pai dizer que os soldados mais difíceis contra os quais
lutar eram os que tinham cicatrizes, pois tratava-se de homens
determinados a viver. E com certeza Emryss era um homem determinado a
viver ou jamais teria regressado da Terra Santa.
O que pensaria quando soubesse que ela fugira? iria se preocupar ou
apenas ficaria satisfeito por ver que os planos de Cynric haviam falhado?
— Não se preocupe, senhorita... Seu tio não sairá do quarto até a
hora do almoço, tenho certeza — disse Jacques, a voz cheia de desprezo,
interpretando o silencio dela como aflição. — Ele ficou até tarde bebendo o
vinho do barão.
Roanna sorriu para o amigo:
— Eu gostaria de saber o que farão quando descobrirem...
— Nós os enganamos direitinho, não? — O cozinheiro riu com gosto. —
Vão sair atrás de nós, claro. — A expressão dele tornou-se astuta. — Vão
pensar que fomos para o sul.
— Tem certeza que a moça não vai dizer nada? — perguntou Roanna,
querendo sentir-se tão confiante quanto Jacques.
Ele sacudiu os enormes ombros:
— Vão precisar de tempo para preparar a "caçada". Temos algumas
horas de vantagem e acho que... — calou-se, muito vermelho.
— Acha que meu prometido não vai se afligir por eu ter fugido —
concluiu ela.
— Bem, ele é um fanfarrão arrogante e a senhorita deve estar feliz
por se ver longe daquele homem. De qualquer modo, acho melhor não
pararmos.
Roanna concordou e quando voltou-se para pegar uma garrafa de água,
Jacques gritou e o burro parou. Quando se voltou viu, horrorizada, uma
flecha cravada no ombro do cozinheiro. A camisa já começara a se manchar
de sangue.
— Jacques! — gritou, tentando ajudá-lo.
Ele olhou para a flecha e empalideceu. Deu as rédeas para Roanna,
dizendo:
— Toque o burro, não pare! — Respirava com dificuldade. —
Precisamos continuar, se não...
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[Margaret moore] alma guerreira

  • 1. Alma Guerreira A Warrior's Heart Margaret Moore Resumo: Gales 1201 Roanna Westercott viu-se arrastada em louca disparada, afastando-se rapidamente das terras onde deveria começar uma nova vida. O jovem guerreiro solitário, que a arrebatara da proteção do noivo e da comitiva que os acompanhava, parecia possuído de força sobrenatural, da obstinação cega dos que passam por intensa dor para se tornarem mais fortes. Com medo e fascínio, observou o rosto de seu raptor. As marcas de guerra eram mais suaves que as cicatrizes da alma ali espelhadas. Roanna não tinha ilusões. Ela seria usada como arma contra seu noivo por algum motivo que desconhecia. E não ousava imaginar o final de uma luta entre dois homens de orgulho feroz e vontade implacável! Digitalizado e corrigido: Judith Lima Copyright © 1992 by Margaret Wilkins Publicado originalmente em 1992 pela Harlequin Books, Toronto, Canadá. Todos os personagens desta obra, salvo os históricos, são fictícios. Qualquer outra semelhança com pessoas vivas ou mortas terá sido mera coincidência. Copyright para a língua portuguesa: 1992 EDITORA NOVA CULTURAL LTDA.
  • 2. CAPÍTULO I Gales, 1201 — Não mudou muito, não? O guerreiro alto, ajoelhado no alto do rochedo, voltou-se para o irmão de criação, sem se importar com a chuva que ensopava a túnica de couro comprida, sem mangas, e as calças de lã, nem com o vento frio nos braços nus e na cabeça. Lá embaixo um pequeno cortejo de cavaleiros molhados, duas velhas e rangentes carroças, vários soldados a pé, avançava com lentidão pela estrada enlameada. Observando no cavaleiro à frente, o guerreiro mais alto emitiu um som zombeteiro e comentou: — Cynric ainda cavalga como se tivesse uma lança enfiada na... — Emryss! — exclamou o mais baixo, abafando uma gargalhada. — Pelos deuses, Gwil! Eu ia dizer armadura. Às vezes você parece uma mulher velha! — Emryss apontou para a pequena figura que montava um cavalo de dorso curvo. — Aquela deve ser a noiva. Cavalga como um saco de batatas! Garanto que ele não vai se casar com ela pelo jeito que monta! Ajustando o tapa-olho sobre a órbita direita, vazia, Emryss sorriu para o irmão adotivo. Para qualquer outro guerreiro, o sorriso pareceria absurdo. Mas Gwilym sabia que quando Emryss sorria a encrenca ia começar. — E não tem grande dote, também — comentou Gwilym, preocupado com o que Emryss ia fazer, uma vez que sua prolongada ausência não diminuíra o ódio que alimentava pelos DeLanyea de Beaufort. — A filha da cunhada do ferreiro ouviu, no mercado de Beaufort, que o dote dela é de dar pena. — Então, ela é bonita? —Dizem que não. E magra como um vara-pau e tem cara de doente. Bem, você vai ver. — Cynric não escolheria uma noiva assim... — disse Emryss, pensativo.
  • 3. — O que mais dizem, Gwil? Gwilym suspirou, sentando-se, enquanto a coluna, lá embaixo, começava a entrar na floresta. — O velho barão é que acertou o casamento. O tio da noiva, aquele ao lado dela, que parece um urubu, pode introduzi-lo na corte e os DeLanyea precisam de... Emryss apontou para o guerreiro que estava do outro lado da noiva: — E quem é aquele, de cabelos negros, com cara de que espera confusão? — Fitzroy. Cuidado com ele, Emryss, ele luta bem. — De onde ele veio? — Ninguém sabe — Gwilym deu de ombros. — Pelo que sei, guerreia por dinheiro. Emryss ergueu-se quando o último soldado desapareceu entre as árvores. — Não me surpreende Cynric ter que alugar guerreiros, sem dúvida homens procurados por assassinato ou algo parecido. — Tirou o tapa-olho e prendeu-o no cinto. — Bem Gwil, chegou a hora de mostrar a meu primo que voltei. — Está louco, Emryss! — Gwilym também se levantou, evitando olhar para a cicatriz terrível que marcava a face direita de Emryss. — Vai aparecer à frente dele e dar bom dia ? Ele odeia você, homem! Vai matá-lo assim que o enxergar. — Duvido, não vai querer chocar a noiva. E acho que vou dar bom dia em gales. Acho que ele vai gostar... Gwilym sacudiu a cabeça, enquanto Emryss montava devagar, ajeitando a perna esquerda, com cuidado. — Loucura. Vai deixá-lo ver o que aconteceu com você? Assim que acabou de falar Gwilym teve vontade de morder a língua, ao ver o rosto de Emryss endurecer. — Meu rosto é a prova de que sarraceno nenhum vai me matar até que acerte as contas com os Beaufort. — Está bem, Emryss — assentiu Gwilym, montando. — Estou com você. — Todos são uns bárbaros estúpidos — queixou-se Cynric DeLanyea, a voz zumbindo como um inseto nos ouvidos de lorde Raynald Westercott.
  • 4. — Não entendo por que o rei se importa com esta região selvagem. Só tem atoleiros que engolem carneiros e até pastores! Westercott apontou o nariz adunco para Cynric e deu um sorriso forçado. Sentia-se cansado das lamentações do nobre, mas não queria criar antagonismo antes que sua sobrinha estivesse casada e fora de sua vida. — Bem, milorde, com certeza a floresta tem algum valor. Seu pai nunca se lamentou pelo baronato que recebeu aqui. — Ele tem certas... compensações! O sorriso de Cynric fez Westercott sentir-se pouco à vontade. Ouvira dizer que os DeLanyea gastavam fortunas para satisfazer a luxúria e esmagavam seus rendeiros com impostos. Precisavam de apoio para entrar na corte do novo rei, John, por isso o barão DeLanyea resolvera casar o filho. As loucuras do barão serviam para que ele resolvesse o problema da sobrinha. A moça vivia vagando pela propriedade como uma alma penada, aparecendo diante dele quando menos a esperava. Não via a hora de se livrar dela. — Temo que a chuva aperte... Ainda estamos muito longe de Beaufort? — indagou Westercott. Seu estômago reclamava, avisando-o que passara muito tempo da última refeição. — Não. Chegaremos antes da noite cair. Westercott assentiu, olhando de relance para os que vinham atrás. Roanna parecia uma galinha molhada, pensou. Graças a Deus ia se casar... — É uma pena não haver um convento na região do senhor — comentou Cynric, que lhe seguira o olhar. — Sua sobrinha daria uma ótima freira. Voltando-se, Westercott viu o desgosto estampado no rosto do noivo. Clareou a garganta antes de falar: — Pensei nisso, mas custa caro pagar a ordenação de uma freira. Seu pai me fez a proposta e achei bem melhor Roanna nos beneficiar a todos, não, milorde?. Antes que Cynric pudesse responder, um corvo saiu voando contra o céu cinzento, crocitando roucamente. Lady Roanna Westercott puxou as rédeas e ergueu os olhos. Os soldados que estavam a pé pararam, nervosos, e observaram as árvores.
  • 5. — Pelo amor de Deus, é apenas um pássaro! — gritou Cyrinc, voltando- se sobre a sela e olhando a escolta com frieza. Em seguida, seus olhos azuis estreitaram-se e os lábios se apertaram. Roanna, escorrendo água, viu a repulsa pintar-se no rosto do noivo, quando a fitou. — Nem os covardes ladrões galeses seriam idiotas o bastante para nos atacar, seus medrosos! — continuou ele. Com prática de muitos anos, Roanna demonstrou-se calma. Ouvira falar nos corajosos ataques dos galeses contra os normandos, que ainda consideravam invasores, apesar de Guilherme, duque da Normandia, ter invadido a Inglaterra há mais de duzentos anos. Calou-se, no entanto, pois sabia que não devia contradizer o noivo e que precisava tomar muito cuidado com ele. Conhecia a barganha do tio: os DeLanyea tinham aceito um pobre dote que era um insulto a ela. Sabia que o barão se tornara inimigo tanto dos galeses quanto dos normandos e que em troca do casamento seu tio o faria ser aceito na corte normanda; que os DeLanyea cometiam crimes hediondos contra seus rendeiros; que Cyrinc DeLanyea era conhecido por seduzir mulheres, tanto da nobreza quanto do povo, e que os soldados faziam apostas que ele não consumaria o matrimônio a não ser que estivesse quase desacordado de tanto beber. E sabia que nada poderia fazer para livrar-se daquele casamento, por mais que quisesse. Seu tio fizera um acordo e era obrigada a honrá-lo. À chuva tornou-se pesada e os cascos dos cavalos chapinhavam mais profundamente na lama. De repente, um som meio abafado chamou-lhe a atenção e Roanna olhou para trás. Uma enorme pedra havia caído na estrada, impedindo a passagem da carroça que continha seu pobre dote e algumas roupas. Dois musculosos carroceiros normandos, do baronato dos DeLanyea, saltaram da carroça e forcejaram para deslocar a pedra, empurrando-a sobre o barro. Num movimento súbito, Cynric fez seu cavalo recuar. Roanna viu Fitzroy levar a mão ao punho da espada e seu tio puxar as rédeas da égua, fazendo-a relinchar em protesto. Os soldados empunharam as espadas e trataram de ficar mais perto um do outro. Procurando dominar o medo que lhe apertava a garganta, Roanna
  • 6. dirigiu sua montaria para junto de Fitzroy, que considerava o melhor lutador presente. Então, viu porque haviam parado. Um homem, montado em enorme cavalo negro, permanecia imóvel no meio da estrada, indiferente à chuva que escorria do elmo para a longa túnica de couro. O elmo cobria-lhe completamente a cabeça e tinha apenas uma fenda estreita que permitia a visão. Era velho e bem polido, provavelmente roubado. A água da chuva escorria pelos braços nus, pois ele não usava camisa, nem túnica. As pernas musculosas estavam recobertas por calças justas de lã e botas de couro. Tinha um dos tornozelos apoiado sobre a outra perna, que balançava como se estivesse seguindo o ritmo de uma canção. Roanna quase perdeu a respiração: ele seria facilmente dominado pelos soldados de Cynric. Só um maluco se atreveria assaltá-los sozinho. Cynric empunhou a espada e no mesmo instante algo passou silvando perto do rosto de Roanna, que estremeceu, enquanto uma flecha cravava- se no tronco da árvore ao lado dela. Agarrando-se mais às rédeas, ela olhou para as árvores: o homem não estava sozinho! Ele riu, enquanto deixava-se escorregar da sela para o chão, a pesada espada batendo-lhe na coxa. — Dydd da ich! — cumprimentou ele em galês, em voz alta e clara, como se dissesse algo divertido. Roanna olhou para o noivo e para o homem. Aquele estranho devia ser louco! Ele se aproximou do cavalo de Cynric, parando a pouco mais de um metro: — Como é, Cynric ? — Havia riso contido na voz do homem. — Não fala mais galês e perdeu a educação? — O que você quer? — perguntou Cynric. — Por favor, quanta grosseria! — continuou o estranho. — Eu acho que você deveria ser um pouquinho gentil com um velho amigo. Então, o homem recuou um pouco e tirou o elmo. Uma brutal cicatriz ia da raiz dos cabelos, na testa, até a orelha, passando pela órbita vazia. O lado esquerdo do rosto, o nariz reto, os maxilares fortes mostravam-se perfeitos. A boca de Cynric abriu-se e nenhum som saiu. Fez-se um pesado
  • 7. silêncio ate que o estranho inclinou a cabeça para trás e riu. Roanna ficou abismada. Que tipo de homem era capaz de sobreviver a um ferimento como aquele e gostar do choque que as pessoas sentiam ao ver seu rosto devastado? Enquanto ela o fitava, o riso transformou-se em um sorriso, mas houve um reluzir de ódio no bonito olho castanho, intocado. — Pensamos que você tivesse morrido — disse Cynric, por fim, com a voz alterada. — Bem, como vê, não morri. — A voz do estranho denotava desprezo. — Mas não vim aqui para trocar gentilezas com você, menino. Deixe-me ver sua noiva... A garganta de Roanna apertou-se, enquanto o homem ria e apro- ximava-se dela, passando por Cynric, que não fez um gesto para detê-lo. Ao contrário, olhava a cena, encolhido como se tivesse medo. Desamparada, ela olhou para o tio, por entre os cílios longos, das pálpebras abaixadas: estava trêmulo, pálido, incapaz de defendê-la. Mesmo Fitzroy afastou-se, à medida que o estranho avançou. Ela fixou os olhos nas próprias mãos crispadas nas rédeas, sem saber o que fazer. Viu os pés do homem pararem junto de sua montaria. — Isto deve ser uma lady... A voz profunda mostrava-se interessada e íntima. Respirando fundo, ela reuniu toda a coragem, assumiu uma expressão indiferente e olhou-o sem demonstrar medo. Ele sorriu e o rosto moreno pelo sol pareceu iluminar-se. Mechas de cabelos castanho-claros emolduravam-lhe as faces e pequeninas rugas formaram-se ao redor do olho bom, que parecia enxergar-lhe até a alma. Por longos momentos ela se concentrou no homem a seu lado. O que viu foi alguém que conhecera intensa dor e profundo sofrimento, mas que saíra deles mais forte. Ele voltou-se para Cyrinc: — Ela é boa demais para você, menino. Roanna tentou abafar o orgulho que cresceu em seu peito ao ouvir aquilo. Notando que Fitzroy e os soldados a fitavam, ergueu a gola da capa, para ocultar o rubor que lhe subiu ao rosto. O homem virou-lhe as costas e encaminhou-se para seu cavalo, as pernas fortes e longas percorrendo a distância com rapidez, mo-
  • 8. vimentando-se com a agilidade de guerreiro bem treinado. Montou, pendurou o elmo na sela, fez o cavalo virar-se, então olhou para trás. Sem pensar, Roanna o encarou. De repente, ele incitou o cavalo e foi em sua direção. Antes que ela pudesse gritar e que os demais percebessem o que acontecia, agarrou o cabresto do cavalo dela. — Chegou a hora de aprender os costumes galeses, Cynric! — gritou o homem. Esporeou seu cavalo e disparou por entre as árvores, puxando a montaria de Roanna. Assustada, ela agarrou-se às rédeas, inclinando o corpo para evitar os galhos mais baixos, um grito preso na garganta. Seu estômago revirava-se como a lama sob as patas dos cavalos, folhas molhadas batiam-lhe no rosto, galhos prendiam-se em sua roupa, desalinhando-a. Mal podia respirar. O homem prosseguia a cavalgada louca, sem se importar com o barro, a chuva, as árvores. Afinal, chegaram a uma clareira, mas ele não parou. Entraram por uma trilha estreita, novamente entre as árvores, que os levou a um prado, onde ele pôs os cavalos a galope. Roanna sentiu que escorregava na sela e segurou-se com mais força às rédeas. Não, pensou em seguida. Não se deixaria levar. Respirou fundo e saltou da sela. Caiu, batendo com tanta violência no chão que o ar escapou-lhe dos pulmões. Tentou respirar, mas não conseguia. Tudo começou a girar e um rumor surdo invadiu-lhe os ouvidos. Sentiu uma forte dor no peito, o ar conseguiu entrar, e ela arrastou-se para uns arbustos. Teve que parar ao ver as botas de couro diante do seu rosto. Imediatamente dois braços musculosos, nus, a ergueram. — Largue-me! — gritou ela, ofegando. Ele obedeceu e ela caiu no chão como uma boneca de pano. Depressa, Emryss a ergueu de novo. Não queria que a moça de olhos maravilhosos se machucasse, já equilibrada, ela soltou-se, recuou e fitou-o: — Não me toque! — sibilou, os olhos verdes brilhando como os de uma gata. Não fez um movimento sequer para escapar. Se não fosse pelo fogo em seus olhos e o arfar do busto, dir-se-ia que era uma estátua. — É só uma brincadeira — disse ele, esperando pelo costumeiro choro
  • 9. de medo. — Não vou machucá-la. — Prefiro morrer a ser desonrada — respondeu ela. Emryss não se surpreendeu com as palavras, mas sim com a firmeza que havia na voz. Aquela moça sabia o que dizia. — Dou-lhe minha palavra que não vou forçá-la — prometeu ele., com ênfase. A desconfiança que havia nos olhos verdes diminuiu e ele sentiu-se contente. — Então, deixe-me ir embora — exigiu ela. — A senhorita deveria ficar e me agradecer — retrucou ele, com azedume. — Só uma idiota ficaria feliz em se casar com aquele grosseiro e a senhorita não é idiota. — O senhor não sabe quem eu sou, nem o que quero! — Ela deu um passo e ele surpreendeu-se, como se visse pedra adquirir vida. — Leve-me de volta. — Por que levaria? Não daria nem um cão a Cynric DeLanyea! — respondeu ele. — Não sou um cão e o senhor não vai me dar a ele. — A voz dela subiu, os olhos verdes incendiaram-se. — Se preza a minha honra, leve-me de volta a meu noivo. Uma veia começou a pulsar nas têmporas dele: — Não recebo ordens, milady. Enfie isso nessa sua cabeça normanda. Ela abaixo a os olhos e uniu as mãos: — Por favor... — pediu. Ele se aproximou, segurou-lhe o queixo e ergueu-lhe a cabeça, abrigando-a olhá-lo: — Não se faça de inocente comigo, milady. Não combina com a senhorita. Então, ela o fitou com intensidade e a raiva dele dissipou-se. Em seu lugar ficou uma profunda tristeza, um desejo enorme de tê-la encontrado de modo diferente, em outra ocasião. — Poderá voltar para aquele imprestável amanhã. Por enquanto, vai comigo. — Ela não se mexeu e ele continuou: — Não me importa se está determinada a se casar com Cyrinc e não vou ficar discutindo na chuva. Com incrível facilidade, ergueu-a e colocou-a sobre o cavalo negro.
  • 10. Com pavor de cair do enorme animal, ela agarrou-se ao cabeçote da sela. Ele montou atrás dela e seus braços a rodearam como cálidas tiras de ferro. Roanna tentou se manter ereta, enquanto o cavalo se movimentava, devagar, por uma trilha que mal se esboçava entre as árvores. — Não pule de novo — ordenou Emryss e ela não respondeu. — Podia ter morrido. É melhor morrer do que se casar com Cyrinc, claro, mas há outras maneiras de evitá-lo. Roanna fez um trejeito de pouco caso. — Bem, talvez eu esteja enganado. A senhorita quer se casar com aquele amharchus ffieidd-dra? Pensei que fosse esperta demais para fazer isso... A voz profunda, suave, tão perto de seu ouvido a fez responder: — Meu tio fez um contrato. — Mas uma lady tem direito a recusar, se não quiser. — Eu não tinha escolha. — Concordou, então? Formalmente? — O senhor não entende dessas coisas! — irritou-se ela. As mãos dele, diante dela, apertaram mais as rédeas: — Se acha que não... — O senhor não pode entender as obrigações da nobreza — insistiu Roanna. — Não? Ela achou que era melhor ficar em silêncio. Já falara demais com aquele homem, no mínimo um ladrão, no máximo um rebelde. Deveria estar horrorizada com o que ele poderia fazer-lhe, mas não estava. Por quê? O que havia de errado com ela? Emryss não falou mais. Apenas o som da chuva caindo nas árvores e o rumor dos cascos do cavalo perturbavam a quietude da floresta que atravessavam. Depois de algum tempo chegaram a um rio. Salgueiros inclinavam seus galhos sobre a água. A margem era um barranco pedregoso e as mãos de Roanna apertaram mais o cabeçote da sela. Ele impeliu o cavalo à frente, dizendo: — É menos perigoso do que parece.
  • 11. Atravessaram o rio devagar, o animal pisando com segurança. Era evidente que conhecia o caminho. Do outro lado, havia uma trilha que ia floresta a dentro. O cavalo seguiu por ela, passando por salgueiros, aveleiras, carvalhos e pinheiros. Ela tentava memorizar tudo, para o caso de conseguir escapar, mas a trilha era tão estreita e as árvores tão juntas umas das outras que seria como procurar um caminho na água. O odor de folhas molhadas e de agulhas de pinheiro era forte. Gotas geladas pingavam das árvores sobre eles e ela precisava de muito esforço para não se recostar no peito quente e firme atrás de si. A trilha passou a subir e em cima o terreno estendia-se num platô. Uma colina pedregosa erguia-se à distância e perto dela Roanna divisou pequenas construções. Uma aldeia, pensou. Quando chegaram mais perto, viu que não era uma aldeia: tratava-se de quatro cabanas, com certeza usadas por pastores. Um cachorro latiu e alguns homens, pobremente vestidos com lã e couro, saíram das cabanas. Dois deles eram quase meninos e estavam armados com arcos; outro era um velho alto, de costas retas e barba longa, branca. Os outros, de mãos vazias, pareciam mais acostumados a tosquiar lã do que a lutar. Todos gritaram, cumprimentando. Um guerreiro ainda jovem, com densa cabeleira negra, aproximou-se e pegou as rédeas, olhando para Roanna. Era Gwilym, que perguntou em galês: — Deus! Brawdmaeth, por que a trouxe? — Porque eu quis — respondeu seu irmão de criação, descendo do cavalo. — Há fogo em algum lugar? — Lá — Gwilym apontou para a cabana mais distante. Emryss ajudou Roanna a desmontar, tentando ignorar a suave, deliciosa, curva da cintura esguia. — Venha — ordenou em francês normando, segurando-lhe uma das mãos. Sentia na sua a mão delicada e morna como um pássaro, enquanto a levava. Cerrou os dentes e encaminhou-se para a cabana, quase arrastando Roanna atrás de si. Pelo sangue dos deuses!, pensou, o que estou fazendo aqui com está mulhef que pertence ao homem que desprezo? Não, corrigiu-se. O que estava fazendo a si mesmo? Ele a trouxera
  • 12. por causa do modo como ela o olhara, mas na verdade poderia não significar nada. Talvez ele tivesse imaginado o apelo que vira nos olhos verdes, no momento em que ia embora. Perdido nos pensamentos, não reparara que a moça tinha de correr para acompanhar seus largos passos, a ampla saia molhada enroscando-se em suas pernas diminuiu um pouco o passo. Abriu a porta da pequena cabana e a fez entrar. A luminosidade da fogueira que queimava em cova rasa, no chão de terra, ofuscou os olhos de Roanna. Ela soltou-se da mão de Emryss e tropeçou num monte de palha. Ele não se moveu para ampará-la e ficou à espera de que recuperasse o equilíbrio. Então, cruzou os braços no peito musculoso e disse: — Tire o vestido. CAPÍTULO II A velha e magra senhora voltou à estreita janela. — Já escureceu e aqueles dois não voltaram, Bronwyn! — disse com voz que parecia um mecanismo enferrujado precisando de graxa. — Na certa vão passar a noite nas colinas, Mamaeth — respondeu a sorridente jovem de cabelos castanhos. — Ou lorde Emryss meteu-se numa briga! — resmungou Mamaeth, apertando os olhos para ver através da chuva e do escuro. — Gwilym não deixaria... — E desde quando Gwil segura lorde Emryss? — indagou Mamaeth, preocupada. —Ainda mais quando se trata desses normandos! Bronwyn suspirou e ergueu os olhos da costura: — Como lorde Emryss aprendeu com a senhora a odiar todos os normandos, menos seu pai, não censure Gwilym. Ele faz o que pode, não tem direito de dar ordens ao senhor das terras! Mamaeth abriu a boca para praguejar, mas o temor à ira de Deus segurou-lhe a língua. Aproximou-se do pequeno braseiro que dava um pouco de luz e calor à grande sala das criadas, em Craig Fawr: — Bem, pode ser... — disse, erguendo um canto do lençol de linho que
  • 13. a jovem bordava. — Seria melhor ele parar de pensar em guerras e se casar. Seus pontos estão muito grandes, menina. Bronwyn viu que Mamaeth tinha razão e passou a desmanchar o ultimo trecho do bordado. — Vai ver que lorde Emryss ainda não encontrou a moça de seus sonhos. — Ele? — cacarejou Mamaeth. — Começou a caçar meninas desde que largou os cueiros e apanhou mais que uma, garanto, sem ser apanhado por qualquer uma delas. — Calou-se por um instante. — Bem, tenho que ir cuidar do jantar... Bronwyn também estava preocupada com os dois homens pois sabia que tinham ido ao baronato de Beaufort. Mamaeth saiu da sala, com andar rápido para sua idade. Cuidar da mãe de Emryss, quando ficara viúva, e dele a tinha conservado ativa. Bronwyn olhou-a sair, depois voltou ao bordado. Gwilym havia dito onde iriam não por que soubesse o que ela sentia por ele, mas porque era muito chegada a Mamaeth. Ele não quisera deixar a velha ama preocupada, mas alguém precisava saber onde se encontravam. Talvez um dia ele percebesse o quanto o amava. Enquanto isso, ela daria seus recados e serviria seu vinho, escondendo o amor dentro do coração. — Idiota! Imbecil! Simplório! A cada palavra o barão dava um soco no braço da poltrona de carvalho, a grotesca cena repetindo-se, em sombra imensa, na tapeçaria que cobria a parede. Cynric empurrou para trás o cabelo que lhe caía na testa e abriu a boca para falar, mas o pai voltou a gritar: — Como diabo você deixou aquele bastardo meio cego levá-la diante de seu nariz? Cynric olhou o punho fechado bater de novo na madeira e controlou o impulso de berrar. Fitou o rosto vermelho do pai, as bochechas trêmulas. Ele não parecia saudável e esses ataques de raiva não iam fazer-lhe bem. — Deixou que ele o fizesse de bobo! Precisamos daquela moça ou está querendo perder nossas terras? Ao ouvir falar nas terras, Cyrinc tornou-se atento. Terra significava poder e ele queria ser poderoso. — O senhor não estava lá, milorde — disse, de mau humor. — Era impossível dizer quantos homens ele tinha e...
  • 14. — Você tinha obrigação de lutar e não podia ficar ali, olhando, como se fosse uma mulher! Cynric empurrou o cabelo molhado para trás, outra vez: — Não havia motivo para arriscar a vida de meus homens — retrucou, com voz tensa. Notou que o peito do pai estremecia a cada respirada e pensou que ele poderia morrer naquele momento. — Não havia motivo? Ele só fez você de bobo! — Por que eu iria me importar por ele tirar aquela bruxa magrela do meu caminho? Prefiro casar com meu cavalo. O barão levantou-se, furioso. Cynric sentiu medo, mas apenas por um instante. — Não me interessa se ela parece um cadáver! — berrou o pai. — Você vai buscá-la e se casará com ela. — Não, se Emryss a tiver possuído. — Você sabe, tanto quanto eu, que ele jamais possui uma mulher contra a vontade dela. — O barão atravessou a sala e parou diante do filho, arregalando os olhos pela ira. — Idiota! E mesmo que ele a tenha desonrado o que é que tem? O que será de você se o rei tirar minhas terras e as der a outro? A mão de Cynric fechou-se no punho da espada, mas seus lábios sorriram: — Tem razão, pai. O que é que tem? Como o senhor sempre diz, todas as mulheres são iguais no escuro! — Sim, isso mesmo — confirmou o barão, olhando-o com desconfiança. Cynric disse, mais a si mesmo do que ao pai: — Se eu me casar com ela, ninguém se atreverá a falar no rapto. O pai assentiu. —Então, acho que vou ficar com ela. Que Emryss se divirta um pouco... Ele não vai ter vontade de rir quando perceber que me deu a desculpa perfeita para invadir suas terras. — Creio que subestimei você, meu filho — retratou-se o barão, olhando Cynric com renovado respeito. Era tarde demais para o pai se retratar, pensou Cynric. Tomara-se apenas um homem doente em seu caminho. — Acha, mesmo? — indagou, cínico. — Vou começar a busca ao
  • 15. amanhecer. Ele não esperou para ouvir a resposta. Saiu da pequena câmara e foi para o enorme hall. Subiu ao estrado e sentou-se no trono do pai. Pouco depois sobressaltou-se ao ouvir passos pesados no piso de pedra. Ergueu- se, rápido. Uma sombra enorme desenhou-se na parede. O homem que a projetava se encontrava à porta da cozinha e era bem grande. Cyrinc tornou a sentar-se no trono e indagou: — Quem é você, em nome de Deus? — Jacques de Ia Mere, o cozinheiro de lorde Westercott — res- pondeu o homem. — Por favor, milorde, quando vai salvar lady Roanna? — Ao amanhecer — respondeu Cynric. — Posso ir com o senhor? — Um cozinheiro? — O nobre riu, zombeteiro. — Vai bater com uma concha neles até matá-los? — Quero estrangular quem a ofendeu! — respondeu o cozinheiro, erguendo as mãos enormes. — Bem, creio que posso salvá-la sem ajuda — disse Cynric, erguendo as finas sobrancelhas. O jovem lorde ergueu-se, arregaçou a túnica e dirigiu-se à escada que levava ao andar de cima, onde ficavam os quartos. Jacques voltou para a cozinha. Chegara ao castelo certo de que imediatamente reuniriam todos os homens para salvar lady Roanna. Em vez disso, tinham-no mandado para a cozinha e dito que lorde Westercott queria jantar. Ele obedecera e, depois de jantar, todos tinham se recolhido. Esse Cynric DeLanyea não se importava com lady Roanna, pensou Jacques e seu coração doeu, no peito enorme. Ela já sofrerá tanto e agora isso! Uma criada lavava pratos em uma tina, num dos cantos da imensa cozinha. O fogo no fogão havia sido abafado e restavam só algumas brasas. Os demais criados já haviam ido dormir. Jacques sentou-se no banco encostado a uma parede e apoiou a cabeça nas mãos. O que ia acontecer com lady Roanna? Ele parecia ser o único a temer por ela, nas mãos daquele herege. A criada pigarreou e Jacques olhou-a. Ela endireitou o corpo,
  • 16. ajeitando o amplo decote que mostrava um colo alvo e cheio. — Não se preocupe — disse. — Ele não vai machucá-la. Lorde Emryss DeLanyea jamais ofende uma mulher. — Como sabe? — indagou Jacques. — Ele não é um fora-da-lei? — Santo Deus, não! — riu ela. — Foi lorde Emryss DeLanyea que a levou. Ele é sobrinho do barão. — Mon Dieu, que sobrinho é esse? — gemeu Jacques. — Ah, eles se odeiam, mas eu ouvi meus patríes dizendo que lorde Emryss DeLanyea jamais toca numa mulher contra a vontade dela.— A moça foi se acomodar no banco, ao lado dele. — Não precisa, porque todas o querem. Disseram-me que ele era lindo, mas que agora está assustador. É verdade? — Ele tem uma cicatriz feia no rosto e perdeu um olho — assentiu Jacques. — Sinto por ela, então. Vai ter medo, pois não sabe que ele não maltrata mulheres. — A cara dele não vai assustar lady Roanna — garantiu o cozinheiro. — Ela é muito corajosa! — Melhor assim... Agora, com licença, tenho que trabalhar — a moça levantou-se. — Espere! — Jacques segurou-a por um braço. — Sente aqui...? — Lynette. — Lynette. E me fale sobre esta gente. — Bem... — ela hesitou. — Não sei se devo. Preciso lavar os pratos e... — Deixe os pratos! Jacques levantou-se e foi até o armário. Pegou uma garrafa de vinho, encheu dois copos, sentou-se no banco junto à mesa e fez sinal para Lynette sentar-se a seu lado. Ela sorriu e sentou-se, tomando logo um gole de vinho. — Hum, está bom! Jacques anuiu e esperou, enquanto ela voltava a beber, quase esvaziando o copo. — Bem — começou Lynette, vendo que ele não se mexia para tornar a enchê-lo —, a mãe de lorde Emryss DeLanyea, Angharad, era uma princesa galesa, lindíssima. Tinha cabelos escuros, olhos
  • 17. castanhos, enormes, e muita coragem, dizem. O rei normando apossou-se de todas as terras dos galeses, menos de um pedaço, que ficou com Angharad e ela o deu ao marido, um normando. Contam que ela não quis saber de homem algum até conhecer lorde Ralf DeLanyea, que era lindo como lorde Emryss. Muito alto, com cabelos e olhos claros. Casaram-se. Ela calou-se e olhou para o copo. Jacques serviu mais vinho. — Obrigada... Tudo estaria bem se lorde Ulfrid DeLanyea, o barão naquela época, não quisesse Angharad para ele, com casamento ou não. Claro, o rei era contra... A criadinha baixou a voz até se tornar um murmúrio e chegou mais perto de Jacques: — ... mas isso não deteve o barão que tentou raptá-la, mesmo depois de casada. Não deu certo. Ele era rancoroso. Um dia encontrou Angharad com as damas de companhia na floresta e mandou as damas embora. Elas buscaram socorro, que chegou depois que ele abusara de Angharad e a espancara até ela desmaiar. Desde então, as duas famílias vivem brigando, mesmo depois que lorde Ralf morreu... Jacques ficou deprimido. Lady Roanna ia viver com aquela gente? — Lorde Emryss foi lutar nas Cruzadas. Os outros voltaram e ele não. Pensamos que tivesse morrido. O barão queria apoderar-se das terras, mas Angharad era uma mulher determinada e agarrava-se a sua propriedade como uma raposa no pescoço de uma galinha. Ela morreu não faz muito tempo e deixou Mamaeth encarregada de tudo. É outra fera! O barão foi uma vez falar com ela, dizendo que a terra deveria passar para ele, já que seu sobrinho havia morrido e ela o pôs para fora correndo. — Por que tem tanta certeza que esse lorde Emryss não vai machucar lady Roanna? — perguntou Jacques. — Ele pôde ter mudado e usá-la para se vingar. — Eu não tinha pensado nisso... Jacques sentiu um peso no peito: Cynric DeLanyea era um covarde que fugia ao primeiro sinal de perigo, e seu primo, Emryss DeLanyea podia ser pior. Emryss atravessou a clareira, indo para outra cabana. Não sabia se devia lamentar ou rir do impulso que o levara a apoderar-se da noiva de
  • 18. Cynric. Não esperava que fosse a mulher orgulhosa e determinada que era. Imaginara-a uma normanda bobinha e sem graça. Com os negros cabelos longos e enormes olhos verdes, ela dava impressão de uma criança indefesa, à primeira vista. No entanto, tinha um coração de ferro, era valente como a mãe dele. Sustentara seu olhar quando lhe dissera para tirar o vestido e não se movera, mesmo ele dizendo que acabaria doente se ficasse com as roupas encharcadas. Mas, coisa que sua mãe nunca faria, ela se deixara manejar por um parente... Seqüestrar a noiva de Cynric iria causar-lhe problemas. Fora uma loucura. Devolveria a moça no dia seguinte, sã e salva. Uma enxurrada de pragas em galês recebeu-o quando ele abriu a porta da outra cabana e entrou. — Pelas chagas dos deuses, Emryss, estou gelado até os ossos! — Ele fitou o irmão adotivo, agachado perto da pequena fogueira. — Você a deixou sozinha? — Onde estão os outros? — perguntou Emryss, tentando evitar a conversa que viria. Gwilym era mais novo e um bastardo, que não conhecera os pais, mas queriam-se como irmãos e ele considerava sua obrigação lembrar a Emryss que devia tomar cuidado com o barão e seu filho. — Foram para suas casas. — E Hu? — Não entendo esse menino! Não quis ir embora sem você. Mandei-o cuidar dos cavalos. — Diga-lhe para vigiar a moça e levar-lhe pão e água. É inofensiva e ele pode nos chamar, se ela der trabalho. Gwilym deu-lhe um odre de vinho, dirigiu-se à porta, então parou e voltou-se: — Emryss — disse, com suavidade —, o que pretende, homem? O plano era mostrar a eles que você está vivo, no fim roubou a mulher! Emryss passou os dedos pela cicatriz no rosto: — Anda esquecendo os costumes galeses, Gwil? Virou normando? , As sobrancelhas de Gwilym ergueram-se e ele deu de ombros. — Está bem, cyfathranchwr — suspirou Emryss. — Tive vontade de roubá-la e não parei para pensar.
  • 19. Gwilym saiu, deixando Emryss com os olhos fixos na fogueira fumacenta. Ele tomou dois grandes goles de vinho. Aquela moça o intrigava. Qualquer outra teria caído no choro, mas ela o enfrentara como... bem, como um homem. Queria saber tudo que ela tivesse para contar. Um golpe de vento indicou que a porta se abrira, mas Emryss, pendido em pensamentos, não se voltou para ver quem entrara. Gwilym foi sentar-se a seu lado e bebeu um pouco de vinho. — Ele não vai perdoar o que você fez — disse, como se Emryss fosse uma criança. Emryss colocou mais lenha no fogo, bebeu vinho de novo e disse: — Desde quando me importo se Cyrinc me perdoa ou não? — É verdade... — concordou Gwilym. — A coitadinha está aterrorizada — tomou outro gole de vinho. — Ela é mais forte do que parece — respondeu Emryss, sacudindo a cabeça. — Seus olhos podem matar um homem. O irmão de criação riu e a tensão se dissipou: — É o que queremos que aconteça com Cyrinc! Coitado... E ela não tem carne cobrindo os ossos! Não entendo por que ele vai se casar com ela. Devia ter visto a cara dele quando você pegou o cavalo dela! Emryss soltou uma gargalhada ao lembrar da expressão apavorada do primo quando ao vê-lo surgir na estrada. — Agora ele aprendeu o costume galês de roubar noivas! — exclamou, piscando maliciosamente para o irmão adotivo. Ela sabe quem você é? O riso desapareceu do rosto de Emryss. — Não, mas vai ficar sabendo. Gwilym soltou uma risadinha e ergueu- se, dizendo: — Eu gostaria de estar perto para ver. Boa noite, milorde — disse, brincando, pois jamais tratava o irmão adotivo por "senhor".. — Boa noite, Gwil. Depois que Gwilym saiu, Emryss colocou mais uma acha no fogo. Deitou-se de lado, sentindo um pouco de dor na perna esquerda, que também fora ferida. Imaginou como ela estaria e desejou que não sentisse frio demais. Teriam que cavalgar muito para chegar a Craig Fawr, debaixo de chuva, por isso decidira parar ali. Esperava que ela tivesse tirado as roupas molhadas. Sua respiração acelerou-se ao ter a
  • 20. visão dos cabelos negros ao redor do rosto delicado, dos brilhantes olhos verdes, do corpo esguio ao qual o vestido molhado se colava. Gemeu baixinho. Por que o sarraceno não danificara sua imaginação, como fizera com seu corpo? Tocou a cicatriz, que ficara dolorida por causa da pressão do elmo. Não sabia o nome dela... Talvez fosse melhor. Roanna pôs mais lenha na fogueira que morria, ficava mais frio a cada minuto. Seu corpo parecia estar rodeado de gelo. Certamente Cyrinc viria buscá-la. Sentada, encolheu-se, colocando a cabeça sobre os joelhos e obrigou-se a encarar os fatos. Não se importava se nunca mais visse Cyrinc DeLanyea, se não mais ouvisse sua voz arrogante, mas o que lhe aconteceria se ele não viesse? Será que aquele ladrão, aquele criminoso que dizia estar apenas seguindo um costume galês, iria cumprir a palavra e devolvê-la? Quando ela se recusara a tirar o vestido, ele sorrira e dissera: — Eu só não queria que a senhorita apanhasse frio e morresse. E se retirara, calçando a porta da cabana, por fora, com uma pedra. Seu tio exigiria que a procurassem. Mas, e se ele ficasse contente por se ver livre dela sem ter que pagar o dote? Jacques devia estar aflito. Ele era apenas um cozinheiro, mas era também seu único amigo. A amizade começara quando Jacques a encontrara, chorando, diante de um monte de farinha de trigo e a ensinara a fazer pão. Ele assustava muita gente com seu gênio violento e o vozeirão, mas ela sabia que era bom. Pulou em pé, de repente. Havia alguém abrindo a porta da cabana. Recuou, até sentir a parede nas costas e esperou. Um menino, que devia ter no máximo oito anos, abriu a porta o mínimo para esgueirar-se para dentro. Trazia uma caneca de barro e um pedaço de pão. Colocou-os perto da fogueira e fitou-a com os enormes olhos negros. Roanna percebeu que ele estava tão assustado quanto ela. — Obrigada — murmurou. Os olhos do menino abriram-se mais, seu rostinho lindo lembrava o de um querubim. — Emryss... disse... você comer — murmurou, numa voz que combinava com o rosto angelical.
  • 21. Ela percebeu que ele dizia as palavras sem entendê-las, como uma mensagem decorada. Assentiu, aproximou-se, pegou o pão e partiu-o em dois pedaços, oferecendo um a ele. O menino recuou, como se ela o tivesse ameaçado. Em seu olhar misturaram-se ódio e medo, então ele virou-se e saiu. Roanna gostaria muito de dizer-lhe que não devia sentir-se assim em sua presença. Notou, então, algo que fez seu coração disparar: o menino não recolocara o bloco de pedra que segurava a porta. CAPÍTULO III Roanna comeu o pão com avidez e tomou um gole de água fresca, prestando atenção para ver se alguém vinha corrigir o erro do menino. Ninguém se manifestou, nada rompeu o silêncio da noite, a não ser rumor da chuva, um ou outro relincho dos cavalos e o canto ocasional de algum pássaro noturno. A cautela aconselhava a esperar mais, porém ela caminhou silenciosamente até a porta, empurrou-a com suavidade e viu que se movia. Então ouviu um som que a encheu de desespero: passos que se dirigiam para a cabana. Recuou, rápida, enrodilhou-se sobre o monte de palha e fechou os olhos Talvez viessem ver, apenas, se ela estava ali. A porta abriu-se e tornou a se fechar. Ela entreabriu os olhos, cautelosa. O homem da cicatriz sentara-se junto ao fogo, as longas pernas esticadas, os ombros largos encostados na parede. Tinha uma adaga no cinto e a espada estava ao lado dele. Um tapa-olho de couro negro cobria a órbita vazia e o olho bom estava fechado. Seu peito erguia-se e abaixava, ao ritmo da respiração leve. Ela ficou imóvel, observando-o, enquanto ele descansava como se estivesse numa cama confortável. Aquele homem seria galês ou normando? Nobre ou plebeu? Falava como um galês, mas seu normando era perfeito e fluente. Bem, devia ser normando, pois era muito mais alto do que todos os galeses que vira. Mas vestia-se tão pobremente e era tão familiar com os
  • 22. galeses que devia ser um deles, então por que não temia o mais poderoso normando da região? Ao contrário: Cynric DeLanyea é que demonstrara ter medo dele. Sabia que havia bandidos galeses que atacavam viajantes normandos, mas aquele homem não parecia ser um deles. O que ele parecia? Um bravo guerreiro, bem treinado, confiante e aquela cicatriz só podia pertencer a um homem com força de vontade férrea, já que não sucumbira a um ferimento tão terrível. Passeou o olhar pelo corpo forte, pelo rosto de traços marcados, porém atraente, pelos ombros largos, depois desceu-o ao peito musculoso, em seguida aos braços poderosos que a tinham erguido como se fosse uma boneca e, afinal, para as pernas longas firmes e robustas. Um suave calor foi se estendendo pelo seu corpo, avançando mansamente, como ondas num lago tranqüilo. Ela movimentou as pernas, consciente de um estranho calor entre elas e do pulsar mais forte e rápido do sangue nas veias. Virou-se e o vestido roçou em seus seios, fazendo-os se arrepiarem. Tornou a olhá-lo. O cheiro dele, uma mistura de cavalo, couro e cabelos molhados, invadiu-lhe as delicadas narinas como fumaça de um incêndio distante. Precisava fugir. Seu corpo traidor avisava-a do perigo de permanecer ali. Aquele homem a tentava, como se ela fosse Eva e ele a serpente oferecendo a maçã. Tinha que sair, pegar um cavalo e ir embora. Levantou-se, devagar, fazendo o menos ruído possível. Ele continuava dormindo. Pegou a capa e envolveu-se nela, cobrindo o vestido ainda úmido. Deu um passo e ele não se mexeu. Deu outro passo cuidadoso, mais outro, sempre com os olhos fixos no homem. Quando chegou perto dele, hesitou. Teria que passar por cima das pernas dele. Respirou fundo e ergueu um pé... — Levantando-se, tão cedo? Ela quase caiu, enquanto ele se erguia, rápido. Roanna recuou, fitando- o desafiadoramente. — Tenho um olho só, mas ele é muito bom — disse ele. — E devo confessar que gosto do que vejo. O sorriso dele era atrevido, íntimo, como ela imaginava que seria o sorriso de um amante depois de fazer amor. Recuou. Procurou regularizar a respiração agitada, lutando contra as sensações que a dominavam. Ele se
  • 23. aproximou. — O senhor deu sua palavra — disse ela, dando um passo atrás. Ele cruzou os braços sobre o peito musculoso. — Dei. — O sorriso morreu-lhe nos lábios e suas feições tornaram-se duras. — Não julgue o carneiro pela lã. Não sou um demônio sob forma humana, só porque pareço uma figura saída de um pesadelo. Ela abaixou a cabeça, para esconder o rubor que lhe cobriu o rosto. Se ele soubesse o que pensara alguns momentos atrás... — Não queira me enganar! — exclamou ele, seco. — Tarde demais para se fazer de virgenzinha tímida. Passou mais coisas por essa cabecinha do que quer admitir. Emryss fitava a moça de pé diante dele, de olhos baixos e mãos entrelaçadas. Talvez se tivesse enganado a respeito dela, vai ver que era uma nobre convencida como todas as outras, disposta a fazer um casamento conveniente e agora estava aflita por seu plano ter falhado. Queria fazê-la olhar para ele, mesmo que seu rosto marcado lhe causasse repugnância. — Diga, milady, costuma bancar sempre a inocente? Ou só quando Ihe convém? Imediatamente a cabeça dela ergueu-se e os olhos flamejaram: — Os homens julgam todas as mulheres tolas. Quem sou eu para contrariá-los? Os olhos verdes despendiam chamas apaixonadas e o queixo delicado estava erguido, oferecendo a boca macia que parecia pedir beijos. - Desculpe-me, milady — ironizou ele, com uma reverência, sem desfitar o rosto indignado. — Mais do que nunca, agora tenho certeza de que Cyrinc não é o homem para a senhorita. E que espécie de homem era ele?, pensou Roanna. A raiva crescia quanto mais fitava o rosto sarcástico. Suas mãos começaram a tremer, mas manteve a voz firme: — Quem é o senhor para dizer com quem devo me casar? O que sabe da minha vida? Ele se aproximou e tocou-lhe o rosto de leve, surpreendendo-a com a suavidade do gesto. — Sei que Cyrinc tornaria sua vida miserável.
  • 24. Lagrimas subiram aos olhos dela, mas Roanna as impediu de rolar. — O que eu poderia fazer? Há um acordo. — Foi a senhorita quem o fez? — a voz dele era calma, suave. — A honra pede que eu cumpra a promessa de meu tio. — Mas é o que quer? Ele se aproximou mais, tão perto que ela ouvia sua respiração. Roanna sabia que deveria recuar, mas não pôde. — Eu...eu... — balbuciou, nervosa. Antes que ela pudesse se mover ele a tomou nos braços. Seus lábios tocaram os dela, acariciando-os de leve, como a brisa acaricia as flores. Apertou-a contra si. Estranhas sensações se apoderaram do corpo de Roanna, as batidas de seu coração acelerando-se enquanto correspondia ao beijo que se tornara mais insistente. A urgência de tocá-lo levou as mãos dela ao peito forte. Consciente da rigidez dos músculos sob o couro, sentindo o palpitar do coração dele, deliciou-se com a pressão dos lábios exigentes contra os seus. Nunca imaginara que aquele prazer existia. Não para ela. O beijo aprofundou-se e ele abraçou-a com mais força. Seus dedos acariciaram a pele nua do pescoço e ela sentiu que desamarrava os cordões, nas costas do vestido. A sensação das mãos masculinas em sua pele a fez gemer, enquanto ela se apoiava nele, as pernas fracas e trêmulas. Tinha noção apenas dos lábios, das mãos dele e do crescente desejo que se apoderava dela. A língua dele entreabriu-lhe os lábios, com gentileza, percorrendo o interior quente de sua boca. O choque a tornou consciente do que fazia e com quem. Ela o empurrou, implorando: — Por favor, pare! — Se assim quer... — sorriu ele, sedutor. O rosto dela ardia de humilhação. Agira como uma prostituta com aquele estranho. Ela, lady Roanna Westercott, tão orgulhosa de sua honra! Voltou-lhe as costas, com vergonha de encará-lo, mas ele disse, com suavidade: — Foi um beijo, apenas. Não chore por isso. — Eu nunca choro — disse com firmeza. Voltou-se: — O senhor, não pode entender... — a voz tornou-se um sussurro — minha honra é tudo que
  • 25. tenho. Nesse momento a porta abriu-se e o menino surgiu. O homem foi até ele e falou-lhe com meiguice, acariciando-lhe os cabelos cacheados. Qualquer um poderia perceber que a criança venerava o imenso guerreiro. Sorriu-lhe com adoração e foi embora. — É seu filho? — perguntou Roanna, sem pensar. Uma expressão estranha passou pelo rosto dele: — Não. Eu não tenho filhos. Algo no tom daquela voz atingiu o coração dela, fazendo-o confranger-se. Depressa, disse a si mesma que a vida dele não era de sua conta. Ele a fitava, os lábios apertados numa linha fina. — Não preciso da piedade de ninguém — disse, com dificuldade, O silêncio cresceu, enchendo a cabana, até que ele o rompeu: — Não tenho filhos porque não tenho esposa. Com pouco dinheiro, poucas terras e esta cara, quem iria me querer? — Nem todas as mulheres querem dinheiro e rostos lindos! — exclamou Roanna, sem pensar no que dizia. Quando os lábios dele se curvaram num sorriso é que ela percebeu o que dissera. Levou as mãos aos lábios e enrubesceu. Ele se aproximou e ela recuou, tentando passar pelos ilhoses superiores os cordões do vestido que ele desatara. — Eis um problema: nenhuma mulher aqui para ajudar... — Ela percebeu o riso na voz dele e sentiu-se ainda mais humilhada. — Vire-se. Ela obedeceu, percebendo impaciência na ordem. Surpresa com a habilidade das mãos enormes, viu que ele enfiava os cordões facilmente. Estremeceu e apelou para o restinho de dignidade para não pensar que aquelas mãos tinham tocado seu pescoço, a pele nua das suas costas. — Pronto — disse ele, ao amarrar os cordões. — Há muito tempo que eu não fazia isto... Roanna voltou-se e encarou-o, fazendo-o sentir-se atrapalhado como um rapazinho diante de seu primeiro amor. Pelos deuses, pensou, era melhor sair dali. Se ela continuasse a olhá-lo daquela maneira, não se conteria. Não pretendia beijá-la, mas aqueles olhos... — Quero ir para Beaufort — disse Roanna, procurando parecer firme. Ela ainda quer casar-se com Cyrinc, conclui, com amargura. Devia ter
  • 26. deixado que seguisse seu caminho, fora um louco em trazê-la para ali. — Está bem — respondeu, decepcionado. — Irá, agora mesmo. E saiu, batendo a porta com tanta força que a cabana estremeceu. — Pelo amor de Deus, montem e vamos logo ou mando chicoteá-los até a morte! Cyrinc olhou para o céu. Pelo menos uma vez o tempo miserável daquela região maldita parecia querer melhorar. Como odiava aquela terra, pensou pela milésima vez. Desprezava cada árvore, cada pedra, cada rio e todos os ignorantes galeses. Dirigiu o cavalo para junto dos degraus que levavam à porta principal de Beaufort, onde seu pai e o tio da moça esperavam. — Não se atreva a voltar sem ela— rosnou o barão. Lorde Westercott olhou nervosamente para lorde DeLanyea, depois voltou-se para Cyrinc, com um sorriso conciliador: — Tenho certeza, milorde, que a encontrará, se for possível. Claro, Compreendo que vai haver... complicações no casamento, mas chegaremos a um entendimento. O jovem lorde sorriu de leve. Talvez pudesse fazer o velho urubu aumentar o dote, principalmente se a noiva hão fosse mais virgem. — Não tema, lorde Westercott — afirmou ele —, eu a encontrarei. Fez o cavalo girar e foi colocar-se à frente da coluna de guerreiros mal- encarados. Tinha vontade de rir. O próprio, bravo e inteligente Emryss havia lhe dado a desculpa perfeita para invadir suas terras. Depois que o derrotasse, talvez devesse agradecer-lhe. A coluna deslocou-se rapidamente até o rio, seguiu ao longo da margem e Cyrinc notou os profundos sulcos deixados pelas rodas das carroças que traziam o cozinheiro e seus utensílios e o dote e a bagagem de sua noiva, que havia chegado depois deles, na noite interior; Puxava as rédeas com força, tentando desviar o cavalo das poças de lama. Maldito lugar e maldito seu pai por obrigá-lo a ficar lá! Jamais estivera em Londres, na corte, e quando dissera que queria ir combater nas Cruzadas, o pai ficara fora de si: — O quê?! — berrara o barão. — Gastar meu dinheiro e perder soldados em um deserto do diabo? O que ganharíamos com isso, menino? Ele não tinha a menor preocupação pela vida do filho, só pensava em
  • 27. dinheiro. Então, tivera de ouvir todo mundo gabar os valentes guerreiros que tinham ido salvar na Terra Santa que estava em poder dos malditos infiéis. Agora Emryss voltara, mutilado mas vivo, para atormentá-lo de novo. Chegaram a uma encruzilhada, uma estrada levando para o sul, onde ficava a aldeia, a outra para a propriedade de Emryss. Ele estendeu o braço, indicando a estrada para o norte. Pouco tempo depois três pessoas iam pela estrada que levava a Beaufort. Gwilym, cavalgando em silêncio e bem atrás da moça, via Emryss olhá-la de vez em quando. Pelas chagas dos deuses o que seu irmão de criação fizera? Será que ele pensava que o barão iria ignorar aquela afronta? Como explicar a Emryss o que o barão conseguira fazer durante sua ausência? Passara a usar dinheiro para influenciar o rei e a corte, ao passo que seu irmão jamais se importara com riqueza, dando valor apenas à coragem e à honra. Tentara explicar-lhe as mudanças havidas no país nos últimos anos, mas ele não quisera ouvir. A única vez em que Gwilym mencionara Ricardo I, Coração de Leão, Emryss praguejara e lhe dissera para não falar de reis em sua presença, muito menos naquele. Talvez, no fundo, ele queria que tudo houvesse permanecido como eram quando fora embora. Talvez, pensava Gwilym enquanto Emryss olhava para a moça de novo, ele queria acreditar que também não mudara. Gwilym lembrava-se bem do modo que seguia Emryss como um carneirinho, quando seu irmão adotivo desfilava pela aldeia, alto, forte, confiante, com um sorriso que aquecia até mesmo o coração das damas mais velhas, que se dedicavam a fiar em suas rocas. Muitas vezes Emryss lhe dissera que tinha um "negócio" a tratar e o mandara embora. Mas, uma noite, ele o seguira, escondido nas sombras, e o vira entrar em uma cabana. Espiando por uma fresta na parede de madeira, ele vira uma moça com Emryss, Ela estava praticamente arrancando as roupas dele e os dois riam. Depois, o riso parará, sendo substituído por suspiros e, em seguida, por gemidos. Espiando pela fresta, Gwilym ficara sabendo o que acontecia entre homens e mulheres, à noite. Será que Emryss pretendia reviver aquele tempo?, pensou, olhando as costas largas e fortes do irmão de criação. Precisava descobrir. Pretendia,
  • 28. sim, se quisesse aquela moça. Procurou chamar a atenção dele com sinais. Não conseguiu e perdeu a paciência: — Delff! — gritou, achando mesmo que Emryss estava sendo um estúpido. Ao ouvir o insulto, Emryss voltou-se, a sobrancelha sobre o olho bom erguida, enquanto Gwilym se adiantava, passando pela dama que causava toda aquela complicação. Falou em voz baixa, sem tirar os olhos da estrada atrás de Emryss. — Não vai levá-la a Beaufort, vai, irmão? — Por que não? — Deus, homem! Perdeu o juízo? Sua vida não valerá um pence se chegar lá perto. — Eles não vão me matar — declarou Emryss, tranqüilo. — Se Tosse você, eu não teria tanta certeza... — Viu que o irmão olhava para a moça. —Duw Lwyd, não pode tirar os olhos dela e me ouvir? — Você quer dizer tirar "o olho" dela... — riu Emryss. — Não importa! — Gwilym mostrava-se impaciente. — Já lhe disse que as coisas hoje são diferentes. O barão é como uma aranha que teceu uma teia de ferro enquanto você esteve fora. Não pode levar a moça para lá. Emryss desviou o olhar, ergueu o queixo, naquele gesto teimoso Gwilym conhecia muito bem, e disse: — Até o barão conhece o antigo costume de raptar a noiva. — Sim, se quiser lembrar-se disso. E pare de olhar para ela, homem! Hu disse que ela o enfeitiçou e começo a achar que ele tem razão. — Bobagem, Gwil — Emryss riu mansamente. — Que Hu pense que ela é uma feiticeira, apesar de saber que estamos longe do dia das bruxas, eu entendo. Mas você... — Pelo amor de Deus, fale sério! Devemos deixá-la ir sozinha, é só seguir a estrada... — Não vou deixar uma mulher abandonada na floresta, mesmo ela sendo de Cyrinc. Você mesmo disse que está infestada de ladrões. Pouco atrás deles, Roanna mantinha a cabeça baixa, para evitar o penetrante olhar do homem com tapa-olho. Toda vez que a olhava, ela se agitava. Claro que não ia tentar fugir, pois não sabia onde estava. Procurava prestar atenção na discussão deles, para fugir da sensação que aquele olhar lhe
  • 29. causava. Era evidente que o rapaz moreno, mais baixo, estava aborrecido com o homem alto. Pelo tom repreensivo dele seria difícil acreditar que era um soldado falando com seu líder, mas ela sabia que assim era. Naquele momento recomeçou a chover, então o homem alto virou seu cavalo e aproximou-o do dela, enquanto o homem moreno permanecia à frente. As mãos dela apertaram o cabeçote da sela. — Precisa de ajuda, milady? — perguntou, pegando seu manto e colocando-a sobre ela. O joelho dele esbarrou numa das pernas dela. Carada, Roanna aceitou a atenção dele, não querendo ficar ensopada de novo e não sabendo como recusá-la. Depois que ajeitou o manto sobre os ombros dela, ele fez seu cavalo recuar um pouco, enquanto Roanna se agarrava com mais força ao cabeçote da sela, dizendo a si mesma que era o medo de cair na lama que fazia seu coração bater descompassado. O homem de tapa-olho pôs seu cavalo para andar, mas dessa vez manteve-se ao lado dela. Com a garoa forte, um cheiro acre de folhas e terra molhada espalhou-se no ar. — Não gosta de chuva? — indagou ele, depois de observá-la por alguns minutos. — O senhor gosta de ficar molhado? — perguntou ela, por sua vez, rezando para ele deixar de olhá-la. — Depois que se conhece o deserto aprende-se a amar a chuva... — comentou ele, baixinho. O deserta a que se referia só poderia ser a Terra Santa. — Esteve nas Cruzadas? — perguntou Roanna, então. — Sim. — Talvez tenha conhecido meu pai, Edmund de Westercott? — perguntou, ansiosa. Ele a fitou, a chuva molhando o tapa-olho de couro negro. — Sim, conheci. Diziam que era um homem honrado. — Sim, sim... ele era! As lembranças desfilaram diante dos olhos rasos d'água de Roanna. Os momentos felizes com seus pais, antes de lorde Westercott ir às Cruzadas, para nunca mais voltar. A febre que atacara sua mãe, depois a
  • 30. morte dela, deixando-a só no mundo, a não ser por um tio que ela jamais vira, até então. — Ele morreu e foi uma pena... — disse Emryss, compungido. — Perdemos muitos homens de honra naquele inferno. Ela o fitou e viu que ele estava muito sério. — Com certeza todos os cruzados são homens de honra — comentou. — Lutam a serviço de Cristo... 0 queixo dele endureceu e uma pequena veia começou a pulsar nas suas têmporas. — Então, honra inclui roubo, estupro, assassinato, sodomia... Roanna soltou uma exclamação horrorizada e ele calou-se. — O senhor deve estar enganado! — disse, revoltada. — Como podem aqueles homens... — Milady, eu estava lá — interrompeu-a ele, calmo. Ela não teve o que dizer. Com certeza ele estava enganado, os cruzados não podiam fazer tais coisas. Se não, devia estar mentindo. E se mentia, não era um homem de honra. E se não era um homem de honra, ela não devia ter aqueles sentimentos por ele. Mas, que Deus a ajudasse, ela os tinha. — Perdoe-me, milady, se a decepcionei. Pensei que quisesse saber verdade — disse Emryss. — Eu o conheço tão pouco quanto o senhor me conhece — concluiu ela. — Talvez esteja querendo desacreditar os normandos. Ele riu. Um riso amargo que chamou a atenção de Gwilym. — Eles não precisam que eu fale: desacreditam-se a si mesmo, todos os dias. — Parece que conhece poucos normandos, provavelmente por não ser um deles! — rebateu ela, indignada. O sorriso dele tornou-se zombeteiro: — Sabe tão pouco sobre mim quanto eu sobre a senhorita. Pensei em remediar isso, mas vejo que é tão cega quanto seus conterrâneos. — Enxergo mais claramente do que o senhor pensa. — É, mesmo? Então, por que vai se casar com Cyrinc? Ele sempre voltava a esse assunto. Por quê? Será que não entendia que ela precisava honrar o compromisso, apesar das palavras dele, apesar
  • 31. do de seu beijo? Ele disse que a seqüestrara por brincadeira: Pelo jeito, era tempo da brincadeira terminar e ela ser devolvida. A não ser que ele estivesse brincando com seus sentimentos. E como se demonstrava sensível à sedução que emanava dele, sentiu-se humilhada. Que triunfo seria para aquele homem fazer a noiva de Cyrinc romper o compromisso tão facilmente, apenas por um beijo! Cerrou os dentes, enquanto uma onda de calor subia-lhe ao rosto. Ergueu o queixo. Ouviu que o homem alto falava algo em galês e o outro passou à frente deles, adiantando-se pela estrada. — Milady — ele disse então, com suavidade —, tem certeza que quer se casar com ele? Ela respondeu com ar desafiante, as palavras saindo num impulso: — Já lhe disse: foi feito um acordo e tenho que cumpri-lo. — A senhorita não fez o acordo. — Se eu não me casar, como meu tio quer, serei menos do que um mendigo ao portão dele. Não terei lar, não terei qualquer chance de ser feliz. — É preciso que a senhorita concorde para o acordo ser legal, milady — explicou ele, olhando-a com atenção. — O que o senhor conhece da lei? — perguntou ela, ignorando o acelerar das batidas de seu coração e a esperança que começara a florescer em seu peito. — Tenho que cumprir o acordo que meu tio fez, como manda a honra. Ele assentiu, mas ela não sabia se por concordar com suas palavras ou por concluir que não adiantava insistir. De súbito, ouviu um grito e viu o homem moreno fazer o cavalo virar e voltar a galope. Imediatamente os três ocultaram-se na floresta e viram uma coluna de homens armados se aproximando. — Cynric — disse o homem mais baixo. — Sim — concordou o homem da cicatriz. Então, voltou-se para ela: — Cynric DeLanyea aqui está, à frente de seus homens. Sem dúvida, procura pela senhorita. O que diz, milady? Ela fitou o homem que a seqüestrara. A chuva escorria por seu rosto másculo. Podia ver a feia cicatriz nos locais que o tapa-olho não alcançava. Os cabelos molhados emolduravam-lhe o rosto. Seu olhar demonstrava todo
  • 32. respeito que ela almejava e algo mais, uma profunda emoção que tornava a decisão dela muito dolorosa e lhe dizia que nunca iria esquecê-lo. No entanto, Roanna deslizou da sela e caminhou para a estrada, na direção do vale de onde vinham os cavaleiros. Era a única coisa honrada a fazer. CAPITULO IV — Ele a violentou? O olhar de Roanna fixou-se no barão, que esperava pela resposta, depois passou para o tio, que a olhava como se tudo tivesse sido culpa dela, em seguida deteve-se em Cyrinc sentado displicentemente em uma cadeira, num dos extremos da mesa enorme. A sala estava fria, mas não foi por isso que ela estremeceu. Num canto da sala achava-se um padre com uma pena na mão e um tinteiro sobre a pequena mesa diante dele, que continha também uma folha de pergaminho desenrolada. O contrato de casamento, com certeza, pensou. Olhou de novo para o tio, sentado ao lado do barão, com os cotovelos sobre a mesa e as mãos erguidas, unidas pelas pontas dos dedos. Muitas vezes o vira nessa posição, o rosto impassível, quando julgava seus rendeiros. Ela devia ter imaginado que não devia esperar apoio dele. — Responda! — trovejou o barão, com impaciência. Ela olhava diretamente para seu interrogador, pela primeira vez desde que fora levada para aquela sala, sem que lhe permitissem sequer ir tirar as roupas molhadas. Os olhinhos dele, mergulhados na gordura da cara pálida, fitavam-na com malícia. — Então? — insistiu ele. — Não, milorde, ele não me violentou — respondeu ela, num fio de voz, ansiando para que a deixassem sair dali. Ouviu as vozes dos soldados conversando, do outro lado da porta, mas forçou-se a concentrar-se nos homens à sua frente. 0 barão grunhiu e olhou para o filho. Roanna também voltou-se para
  • 33. ele. Tão diferente do homem da cicatriz, no entanto, enquanto Cyrinc permanecia sentado, à vontade, havia algo vagamente similar nas longas e fortes pernas, na impressão de força inerente ao corpo esguio, mas robusto. Lorde Westercott separou os dedos e disse: — É evidente, barão DeLanyea, que nada reprovável aconteceu. Creio que o casamento pode se realizar. O barão encarou o filho, que falou depois de alguns segundos: — Muito bem. Assim seja, se o senhor quer. Caso-me com ela. Roanna baixou os olhos. Então, nada mudara. Quando se encontrara com Cyrinc, no vale, ele não falara com ela. Seus lábios tinham permanecido com esboço de algo entre um franzir e um sorriso. Não dissera uma palavra durante todo o caminho até Beaufort. — Suponho que Emryss vai ficar sossegado depois desse insulto! — explodiu Cyrinc, beligerante. Emryss. O nome dele era Emryss. Parecia uma carícia ou a água do rio murmurando junto da margem. — Supõe certo — respondeu o barão, depois empurrou a cadeira para trás e levantou-se para sair. Roanna uniu as mãos, respirou profundamente e perguntou: — Por que não me perguntaram se consinto neste casamento? Suas palavras pareceram ficar flutuando no ar, por alguns momentos. O tio encarou-a, não acreditando em tanto atrevimento. O barão fitou-a, estatelado. Cynric olhou-a como se ela tivesse anunciado que ia matar alguém. Por fim o tio sacudiu os ombros e seus olhos cravaram-se nela, incisivos, enquanto dizia: — Não era preciso. Sem ninguém esperar, o padre adiantou-se. Enquanto apertava mais o nó do cordão que ajustava a batina à cintura, pigarreou e disse: — Perdoem-me, milordes, mas a lady tem razão. Ela precisa dar seu consentimento para a união se realizar. O barão voltou-se para ele e o padre correu de volta a seu canto, como um coelho assustado. — Os senhores mentiram para mim — Roanna falava com voz firme e
  • 34. determinação. — Os senhores são homens sem honra, são menos do que as pedras que meus pés pisam. Não quero ter nada a ver com os senhores. O queixo de Westercott endureceu. Ele reconhecia aquela voz, o tom, as palavras. Era como se o seu irmão mais novo estivesse vivo e lhe falasse. Pela primeira vez em muitos anos ele sentiu vergonha. Mas quando Cynric empurrou a cadeira para trás, arrastando-a no chão, lembrou-se de que se não houvesse casamento não haveria dinheiro. Apressou-se a dizer: — Não se apresse, milorde — seu tom era de comando e pedido ao mesmo tempo. — Dê-me tempo para fazer a lady mudar de idéia... e eu garanto que vou conseguir. Roanna encarava o tio, sem esconder o desprezo que sentia por ele. — Creio que o melhor lugar para o senhor conversar com ela é “sala" da torre norte — disse o barão, com frieza. Lorde Westercott anuiu, o rosto contraído. Pegou a sobrinha por um braço e dirigiu-se com ela para uma estreita escada de pedra no extremo da sala. Sentia a bile amargando-lhe a garganta e praguejava contra Roanna enquanto subiam. Não fora até ali para ver a barganha desfeita por aquela menina tola. Como se o consentimento de uma mulher importasse! E para o inferno esses padrecos que falavam nos momentos mais inoportunos! Estava quase conseguindo tirar algum proveito e ela ameaçava estragar tudo. Entraram numa saleta no alto da escada, que mais era uma cela. Curioso, Westercott exclamou: — Menina louca, você vai se casar com Cyrinc DeLanyea! Ficará aqui pensando nas vantagens desse casamento até resolver aceitá-lo. Saiu e bateu a porta. Roanna olhou ao redor. Nada mais havia na cela além de um monte de palha e um balde. Uma janela pequenina deixava entrar pouca luz. Ouviu a chave girar na fechadura e, depois, os passos do tio afastando-se escada abaixo. O céu escurecera e os sons que vinham lá de baixo aquietaram. O jantar devia estar pronto, pensou Roanna, cansada, sentada na palha, com a cabeça encostada nos joelhos. Não lhe haviam levado comida e nem ela esperara que o tio pensasse em alimentá-la. Estava claro que o plano era dobrá-la pela fome.
  • 35. Ergueu-se de um salto ao ouvir passos se aproximando e tratou de preparar-se para enfrentar o tio pela segunda vez. Mas foi Cyrinc quem abriu a porta e entrou. — Ah, milady, tão só? — disse ele, com um sorriso desagradável. Roanna nada disse quando ele se aproximou. Com esforço, manteve a expressão serena, apesar de sentir-se como um animal em uma armadilha. Ele deu uma volta lenta ao seu redor, parou diante dela, pegou a adaga e passou a limpar as unhas com a ponta aguda. Ela aguardava que ele falasse, os punhos cerrados com força, sentindo-se cada vez mais tensa. Cyrinc queria alguma coisa, talvez apenas brincar com ela, e sua indiferença era estudada. — Então, ele não a tocou... — disse, afinal. Baixando os olhos, ela lembrou-se do beijo. Como os lábios dele eram suaves, gentis. — Ele não me desonrou — respondeu, forçando-se a manter a calma. — Isso é o que diz. — Cyrinc aproximou-se mais dela. — A senhorita não é uma beleza, mas é difícil acreditar que Emryss não tenha tirado prazer de seu corpo. Ele ficou muito tempo entre os pagãos e talvez tenha esquecido como são os homens honrados. Ela manteve os olhos fixos em uma pedra no chão, enquanto dizia, com firmeza: — Não, ele não esqueceu. Cyrinc foi para trás dela, seu corpo desagradavelmente próximo, a respiração pesada em seu ouvido. — De fato? — Passou uma das mãos devagar por um braço de Roanna, que se contraiu ao indesejável toque. — Então, fale-me sobre meu honorável primo. — O quê? — surpreendeu-se ela, encarando-o. Ele sorriu, de maneira repulsiva: — Ah, isso a espanta? Ele não lhe contou que é o Lorde Emryss DeLanyea, primo de seu noivo? — Não... — Ela ficou confusa. — Ele não disse nada. — Bem, minha querida, aquele bárbaro de um olho só, de cara marcada, é o descendente de meu falecido tio. Claro que a senhorita não poderia imaginar isso, pelas roupas dele, pelo seu modo de falar. Emryss é a
  • 36. desgraça dos DeLanyea, sempre foi. Mediu-a de alto a baixo, depois continuou: — Ele a seqüestrou para nos aborrecer. É um simplório grotesco. Não a violentou porque tinha certeza de que isso não iria me importar... — Aproximou-se mais dela. — Sabe que a surpresa lhe fica bem, minha querida? Torna-a viva, deixa de ser como uma estátua de mármore. Os lábios dele apoderaram-se dos dela, brutais e exigentes. Roanna se debateu, procurando livrar-se daquele beijo repulsivo. Não conseguia respirar, nem pensar. Quando ele a soltou, ela recuou e limpou a boca com as costas da mão. — Nunca mais faça isso! — disse, arquejante. Viu a raiva brilhar nos olhos azuis, gelados, e se afastou mais ainda. Ele sacudiu os ombros. Havia tanto de Emryss naquele gesto que lhe pareceu um cruel arremedo do outro homem e do outro beijo. — Não, por enquanto, se a senhorita assim quer. Posso esperar até o casamento. Ele voltou-lhe as costas e dirigiu-se para a porta. De repente parou e virou-se. Havia um brilho feroz nos olhos frios, quando disse: — E não se preocupe se na noite de núpcias eu descobrir que mentiu... — Passou a língua pelos lábios finos, fazendo o estômago de Roanna se revolver. — Prefiro mulheres experientes. — Acha que menti? — gritou ela, a raiva irrompendo como fogo em palha seca. — Sim, acho. Mas não importa — disse Cyrinc, em tom de mofa. — Que Emryss fique com sua virgindade! Eu ficarei com o dote, por pequeno que seja, e com a influência de seu tio. — Não — agora a voz dela soava fria, controlada. — Não vai ter nada disso, porque não me casarei com o senhor. Nunca! Num movimento rápido, ele chegou junto dela, agarrou-a pelos braços e puxou-a, seus rostos ficando a poucos centímetros um do outro. — Pensa que eu quero me casar com você, seu feixe de ossos? Posso Ter centenas de mulheres, muito mais atraentes e com dotes mas ricos do que o seu. Mas meu pai quer o casamento e como lucro estas terras depois que ele morrer, tenho que me casar com você! E vamos para a cama juntos, quer você queira ou não. — Ele , apertou-lhe mais os braços e aproximou os
  • 37. lábios dos dela. — Se me odeia, até que vai ser divertido possuí-la! Roanna desvencilhou-se das mãos dele, enquanto murmurava, entre os dentes: — Prefiro morrer. Eu não suportaria ser maculada por uma pessoa como o senhor! —As pequenas mãos encontravam-se cerradas com força, pela raiva impotente. Os lábios dele entreabriram-se num sorriso aterrador: — Só por guerreiros aleijados, como Emryss? — Pelo menos ele tem honra, o que falta ao senhor! — E a senhorita — ele voltou a tratá-la com falso respeito, a voz controlada — não tem beleza. Mas passarei por cima disso. Agarrou-a de novo, num forte abraço. Passou os lábios úmidos pela face de Roanna, que se debateu por alguns momentos, depois aquietou-se, transformando-se num pedaço de granito, ao perceber que ele se divertia, se excitava com a repulsa e o medo dela. Se não reagisse, talvez ele mudasse de idéia. — Ah, Roanna, desiste tão facilmente? Ou será que começa a ver que está errada? Beijou-a com brutalidade, depois largou-a. Sua risada cruel, zombeteira, encheu a pequena cela. — Creio que vou convidar meu primo para a festa do nosso casamento — disse, virou as costas e saiu. No dia seguinte, Emryss encontrava-se na velha estrebaria de pedra de Craig Fawr, a fortaleza onde morava. Devagar, passava a escova no pêlo lustroso de seu cavalo, enquanto ouvia, distraído, as vozes de seus empregados que estavam no pátio. A noite se aproximava e logo estaria escuro demais para trabalhar. Todos se reuniriam no enorme salão, que haviam terminado de reconstruir, para a última refeição do dia. Sorriu, contente, porque o trabalho começado por seu pai iria terminar logo. Faltavam apenas dois trechos da muralha para serem refeitos. Com sorte, tudo estaria pronto antes do inverno chegar. Graças a Deus sua mãe conseguira anular as tentativas do avarento barão de se apoderar de sua propriedade, antes de ele voltar. Seus pensamentos se tornaram sombrios. Só a incrível força de vontade da mãe conseguira mantê-la viva para realizar o sonho de seu pai:
  • 38. reconstruir o castelo que fora construído há séculos. Nem mesmo os romanos tinham conseguido invadi-lo. Apenas os rudes normandos, determinados a conquistar a terra a qualquer preço, haviam terminado por derrotar os guerreiros galeses. Tinham derrubado a velha muralha e durante todos aqueles anos as pedras caídas não haviam sido tocadas. Os galeses nem sequer tinham pensado em usá-las, pois pertenciam a Great Rock. Com o tempo, o respeito e paciência dos galeses haviam recebido a recompensa. O pai de Emryss, se bem que fosse um cavaleiro normando, amara Angharad, a princesa galesa, reconhecera o valor daquela propriedade, da lealdade galesa e em compensação recebera a admiração e amor dos galeses. A morte prematura dele significaria o fim de seu sonho, pois o filho mais velho morrera anteriormente. Apenas a esposa, com sua vontade de ferro, mantivera o sonho e o passara para o filho mais novo. Mesmo quando todos achavam que Emryss estava morto, ela não permitira que o trabalho de reconstrução da muralha parasse. Muita gente lhe dissera que ela trabalhava para o barão, que ele se apoderaria de Craig Fawr quando tudo estivesse pronto, mas Angharad mantivera a esperança, certa de que seu filho voltaria. Dois meses antes que ele chegasse, ela falecera. Logo, pensava ele, enquanto escovava o cavalo, com fúria, logo estaria pronto para fazer o barão pagar o sofrimento que causara. O lindo garanhão negro relinchou, protestando, e ele passou a escová-lo com delicadeza. — Não, estou com raiva de você, Wolf... — murmurou-lhe ao ouvido. — É melhor pensar em coisas agradáveis, antes que me dê um coice. Coisas agradáveis. A moça. Ele a observara durante longos minutos, enquanto ela estivera adormecida na cabana, sentindo vontade de afastar os cabelos negros que cobriam parte do rosto suave, de acaricia-los. Os longos cílios escuros punham uma sombra suave na pele branca e macia das faces. No entanto, gostara mais de olhá-la quando ela estava acordada. Aqueles olhos maravilhosos, tão verdes e cheios de fogo! Vira mulheres lindas, em muitas terras, mas nenhuma o fascinara como essa moça. — Está pensando no deserto dos infiéis, menino? — a voz de sua
  • 39. velha ama, Mamaeth, trouxe-o de volta à realidade. Como gostava de ouvi-la, pensou ele, voltando-se com um sorriso. Ela fitou-o, os olhos negros cheios de ternura e apreensão, como se ele ainda fosse um menino. — No verão, está bem assim — continuou ela —, mas agora, principalmente à noite, não deve ficar com os braços nus. — Ah, Mamaeth, tem razão, como sempre! — riu ele. Largando a escova sobre uma mureta, ergueu a velha ama no colo e plantou-lhe um beijo na face ressequida. — Ei, menino! Ponha-me já no chão e não faça mais isso! — gritou ela, fazendo-se de zangada, mas não conseguindo ocultar o prazer na voz. — Não fazer mais o quê? — Ele colocou-a no chão e deu um passo para trás, fingindo surpresa. — Quem vivia me pedindo beijos, quando eu era pequeno? — Seus lábios bem feitos tremiam no esforço de manter-se sério. — Não se pode com você! — A velha ama bateu-lhe carinhosamente num braço. — Alguma coisa errada eu fiz quando o criei. Não respeita os mais velhos, menino, e não os escuta. Está frio demais para andar por aí quase nu. Emryss não pôde mais segurar o riso: — Mamaeth — disse, por fim —, como eu consegui sobreviver sem você? Os olhos da velha se apagaram e ele arrependeu-se por lembrá-la do tempo em que não sabiam se ele estava vivo ou morto em um distante campo de batalha. — Eu acho — disse, aparentando alegria —, que como seu senhor devo escolher-lhe um marido, para que você tenha com quem implicar. — O quê? — Imediatamente os olhos negros faiscaram, vivos. — Para que quero um marido? Já tenho muito que fazer olhando por você! Aha! Um marido? Seria como ter um filho e já estou velha demais para isso. — Mamaeth fitou-o com astúcia. — Você é que precisa se casar. Dessa vez Emryss teve que fazer força para manter a aparência despreocupada: — Qualquer dia vou pensar no assunto.
  • 40. Mamaeth sacudiu os magros ombros: — Uma moça que não se impressione com você, com seu título, é o que você precisa. E que lhe dê filhos... — ela riu e tratou de voltar para a cozinha. Emryss ficou olhando a velha ama afastar-se, depois tornou a pegar a escova. Suspirou profundamente. Gwilym ou os filhos dele seriam seus herdeiros. Não contara a ninguém a extensão de seus ferimentos. Como dizer-lhes que o golpe que lhe rasgara a coxa esquerda atingira também um dos testículos, que infeccionara e se tornara inútil? Abram, que o salvara dos homens de Saladino e tratara de suas feridas, dissera que com um testículo apenas ele ainda podia ser pai. Mas, na viagem de volta, fora com uma mulher para a cama, em uma estalagem, e a tentativa de fazer amor terminara em humilhante fracasso. Não queria se arriscar a fracassar de novo. — Que animação para escovar o cavalo! — comentou Gwilym, rindo. Ele expulsou os pensamentos angustiantes e voltou-se para o irmão de criação, sorrindo: — Mamaeth diz que eu não respeito os mais velhos, mas parece que isso é um mal comum em Craig Fawr. Meus homens não respeitam seu senhor... Gwilym sentou-se num banco. — E por que respeitaríamos? Só porque você é um normando? — Pelas chagas dos deuses! — Emryss ergueu a escova como se fosse jogá-la no amigo, pela audácia, mas continha a risada a custo. — Agora, está me insultando! Têm de me respeitar porque minha mãe era uma princesa galesa e porque eu sou o senhor de Craig Fawr! Gwilym pulou de pé e fez uma reverência caricata: — Mil perdões, honorável lorde! Perdoai vosso humilde servo, eu vos rogo! Emryss tocou a cabeça de cabelos negros com uma das extremidades da escova, dizendo, solene: — Eu te perdôo! — Claro que perdoa! — caçoou Gwilym e saltou de lado, para evitar a pancada da escova atirada nele. — Afinal, sou seu melhor guerreiro. —riu, atrevido, depois tornou-se muito sério.— Emryss, atacaram viajantes de
  • 41. novo, perto do rio. . ; — Alguém foi morto? — Não, mas roubaram-lhes tudo, até mesmo a roupa do corpo. — Os ladrões eram galeses, saxões ou normandos? — Não sei. — E as vítimas? — Eram normandos, porém muito pobres. Emryss colocou uma manta sobre Wolf, determinando: — É melhor fazermos uma patrulha amanhã. Levaremos vinte homens. Gwilym assentiu, depois disse, hesitante: — Não espera qualquer encrenca com Beaufort, então? — Não — respondeu Emryss, dirigindo-se para o castelo. — Acha, mesmo, que eles vão deixar passar? — Gwilyn corria para acompanhar o irmão adotivo. — Acho que sim. Ela não foi tocada. Mas o insulto... — Eles são covardes. Gwilym pôs uma das mãos sobre um braço de Emryss, fazendo-o parar no centro do enorme pátio cheio de blocos de granito, madeiras, andaimes e ferramentas. — Emryss, não subestime o barão, nem Cynric. O lorde colocou a mão sobre a do amigo. — Eu sei, Gwil. O mundo inteiro pode ver que uma vez subestimei meu inimigo. Pode ter certeza, não vou cometer o mesmo erro. Roanna saltou de pé, fixando os olhos brilhantes num buraco na argamassa da parede. Com repugnância, afastou-se, sentindo as pernas tremulas e fracas. Durante toda a noite anterior permanecera acordada, com medo dos ratos e que Cynric voltasse. Depois viera a luz do dia e as horas se haviam arrastado, lentas. Ergueu os olhos para a pequena janela. Era noite outra vez e os ratos começavam a aparecer. Se tivesse pelo menos uma vela, talvez eles não chegassem perto. De súbito a porta se abriu. Seu tio, com o rosto muito vermelho, entrou na cela. Ela podia sentir o cheio de vinho em sua respiração, apesar de ele estar do outro lado. — Então, sobrinha, recon... recon... pensou melhor? — perguntou ele,
  • 42. as palavras engroladas, amparando-se na porta. Roanna fitou-o receosa, mas falou com determinação: — Nunca me casarei com Cynric DeLanyea. — Ficou louca? — Westercott andou até o meio da cela. — Moça estúpida! Se não se casar com ele vou mandá-la para algum convento gelado do norte, juro! Nenhum outro homem irá querer casar-se com você. Ela continuou fitando o tio, imóvel, calada. Ele avançou e agarrou-a pelos braços. Roanna empurrou-o para trás e ele cambaleou, indo bater contra a porta aberta. — Por Deus, vou surrá-la até que seus olhos saltem das órbitas! — berrou ele, investindo de novo. Roanna saiu de lado e Westercott foi bater a cabeça na parede de pedra. Tonto pela pancada, caiu sentado. — Vai fazer o que eu mandar! — resmungou, esfregando a cabeça dolorida. — Malditas mulheres! Por que seus pais a largaram nas minhas costas? — Fitou-a com os olhos raiados de vermelho. — Não providenciaram nada para você, deixaram só complicação para mim. E eu lhe arranjei casamento. Um bom casamento. E que agradecimento recebo, hein? Continuou a resmungar, segurando a cabeça. — Por Jesus e José, vou surrá-la, deixar seu rosto marcado... Tentou levantar-se, cambaleante, e ela aproximou-se da porta. Ele voltou a falar, com ressentimento: — Roanna, minha querida, não acha que deve casar-se para ser grata ao homem que a amparou, que pagou suas roupas e sua comida todos estes anos? Ela parou à porta e retrucou, altiva: — O senhor quer dizer que devo me prostituir? Ele se levantara e, mais vermelho ainda, saltou sobre ela, atirando-a ao chão. — Ah, não, minha querida — disse, triunfante, seu hálito nojento fazendo-a se contrair. — Vai ficar aqui até concordar. Colocou-a de pé e empurrou-a para dentro da cela, antes de fechar a porta. Soltou uma gargalhada, enquanto girava a chave na fechadura. — Pensou que ia me enganar e fugir, menina? Vamos ver quem ganha
  • 43. esta batalha! Os passos dele, sobre o chão de pedra, foram se afastando até sumirem. Roanna colocou às mãos sobre um quadril, que machucara ao cair, lutando contra a dor e o desespero. Jamais concordaria em se casar com Cynric. Jamais. O tio podia matá-la de fome. Arrastou-se até o monte de palha e sentou-se, molhando os lábios ressequidos com a língua, que estava quase seca e pouco adiantou. Como gostaria de ter um dos macios pãezinhos de Jacques e um copo de água cristalina! Deitou-se. Jacques já devia estar sabendo de tudo, pensou. Os criados sempre sabiam o que se passava num castelo e falavam entre si. Ele devia estar preocupado, ela podia até ouvi-lo chamando-a... Ergueu-se de um salto e correu para a grossa porta. Era Jacques, chamando por ela, do outro lado. — Estou aqui, Jacques — disse baixinho, com medo que a ouvissem. — Está machucada, senhorita? — perguntou ele, aflito. — Não. — Ótimo. Eu lhe trouxe pão... Havia pouco espaço entre a porta e o chão, mas o cozinheiro conseguiu empurrar por ele um pano, que tinha uma fatia de pão em cima, e ela puxou-o do outro lado. Roanna comeu, sôfrega, olhando agradecida para a porta que a separava do amigo. Seus olhos voltaram-se para as dobradiças de couro. — Jacques — indagou, esperançosa —, tem uma faca aí com você? — A senhorita não pretende lutar com eles para fugir, não é? — O couro das dobradiças da porta está velho e gasto. Com uma faca eu poderia... — A porta pode cair e esmagar a senhorita! Mesmo que consiga segurar esta pesada porta, como pensa sair do castelo? Ele é muito vigiado. E mesmo que consiga sair, não tem dinheiro... Roanna compreendeu que seu amigo tinha razão e sentiu-se der- rotada. — A não ser que eu possa ajudá-la... — sussurrou ele. — Como? — Roanna prendeu a respiração para não perder uma só
  • 44. palavra. — Estou cansado de cozinhar para um homem que não me deixa usar pimenta. Acho que está na hora de deixá-lo. — Para onde pretende ir, Jacques? — Para onde a senhorita quiser. Um bom cozinheiro como eu pode arranjar um patrão melhor! A esperança começou a renascer no coração dela, mas o risco seria grande. — Jacques — começou, incerta —, não posso permitir que se arrisque por mim. — É por mim, também — respondeu ele, com voz tão indignada que ela sorriu. — Eles pensam que estou dormindo e ninguém irá me procurar, até amanhã cedo, quando já estaremos longe. — Vai ser perigoso nós dois andarmos sozinhos pelas estradas. — E pretendia ir sozinha? Está insultando minha coragem! — O vozeirão do homem suavizou-se, como sempre que falava com ela. — Deixe-me ajudá-la, senhorita... Ouviu os passos de Jacques se distanciando e olhou de novo as dobradiças, depois começou a andar, ansiosa, de um lado para outro da cela, imaginando se ele demoraria muito fazendo os preparativos. Empurrou os cabelos para trás e passou os dedos pelos lábios gretados de tão secos. Tremendo de repulsa, lembrou-se claramente do brilho de luxúria nos olhos de Cynric. Santo Deus, o que ele faria com ela se viessem a casar-se? E se ele resolvesse não esperar, se voltasse e... Sua respiração parou ao ouvir passos por trás da porta. — Jacques? — chamou, angustiada. CAPITULO V — Jacques! — chamou Roanna de novo, com angústia na voz, sentindo o medo crescer a cada respiração. — Sim, sou eu — respondeu ele. Ela suspirou, descontraindo-se, enquanto ele empurrava uma estreita
  • 45. faca sob a porta. — Vou terminar de preparar tudo e voltarei já. Não se desespere! — sussurrou ele. Roanna ouviu seus passos se afastando. O remanescente do medo lhe deu uma sensação de urgência. Cynric não viera... ainda. Rápida, pegou a faca e começou a cortar a velha dobradiça de couro. Pareceu levar horas para fazer um pequeno corte, mas assim que a faca atingiu o outro lado do couro, o trabalho foi rápido. Absorta no que fazia, ela não percebeu a volta de Jacques, até que ele a chamou. — Acho que está quase pronto, Jacques — sussurrou ela, voltando a lidar com a afiada faca na segunda dobradiça. — Mais um minuto e estará cortada. Quando terminou, afastou-se da pesada porta: — Pronto, Jacques — disse, ofegante. — Empurre a porta, agora. O homenzarrão meteu um ombro na porta e forçou. A fechadura rangeu, resistiu, mas acabou cedendo e a porta caiu, fazendo um barulho que pareceu-lhes retumbante. Jacques apareceu do outro lado, o rosto grande iluminado por um sorriso. Mas logo ficou sério: — Venha, senhorita, depressa! Roanna não precisava de incentivo. Passou por cima da porta caída, reunindo-se a ele, e os dois correram escada abaixo. — Tenho uma carreta à espera — sussurrou o cozinheiro, enquanto a levava pelo longo corredor. Entraram na enorme cozinha, onde ela nunca havia estado. O fogo que crepitava no grande fogão fazia as sombras deles, imensas, desfilarem pela parede, enquanto percorriam o aposento deserto. Um burro atrelado a uma carreta, daquelas usadas pelos fazendeiros para ir ao mercado, esperava no pátio, Jacques ajudou Roanna a acomodar- se no fundo e cobriu-a com um cobertor. Ela sentiu o rústico veículo balançar quando o corpulento cozinheiro subiu à boléia. Com uma praga abafada do homenzarrão, começaram a movimentar-se. Depois de alguns momentos ela sentiu um sobressalto, quando pararam e uma voz desconhecida perguntou: — Quem é você?
  • 46. — Sou Jacques de la Mere, o cozinheiro de lorde Westercott, e se você quer comer amanhã, abra o portão. — O que quer dizer? — voltou a voz, irritada. — A farinha de trigo está mofada e se quiserem ter pão amanhã, precisa me deixar sair. Eu mesmo quero escolher a farinha, no moinho. Não me atrase, pois devo estar de volta antes do amanhecer, se não milorde ficará muito zangado. E vou dizer a ele que o sentinela não me deixou passar! Roanna sentia-se sufocar sob o cobertor, porém ficou melhor ao ouvir o portão ranger. A carreta balançou, movimentando-se de novo, e em seguida o portão fechou-se. Precisando de um pouco de ar puro, ela ergueu o cobertor um pouquinho e espiou para fora, enquanto atravessavam o espaço entre o castelo e a muralha. Tudo lhe pareceu deserto, até que olhou para o alto muro de pedra. Vários homens achavam-se sentados no chão, encostados nele, com as espadas rebrilhando ao suave luar. Chegaram ao outro portão e Jacques repetiu sua história. De novo convenceu o sentinela a deixá-los passar. Quando se distanciaram um pouco, ela sentou-se, ainda meio escondida pelo cobertor escuro, e Jacques lhe disse que uma linda criadinha lhe contara que Roanna fora levada ao alto de uma das torres do castelo e que não havia nada lá, a não ser a pequena cela. Por isso fora fácil encontrá-la. Não foram perturbados, a não ser por latidos de cães, enquanto atravessavam a aldeia que ficava perto da fortaleza do barão DeLanyea. Pouco depois percorriam a estrada. — Iremos para o norte, senhorita — explicou Jacques. — É para esse lado que fica o moinho e se alguém estiver observando verá que me dirijo para lá. A criadinha disse que na encruzilhada devemos rumar para o sul, onde se encontram lugares mais civilizados. Roanna afastou o cobertor da cabeça e admirou o céu noturno. As estrelas brilhavam, tranqüilizadoras. A lua, em quarto crescente, derramava sua luminosidade diáfana sobre o rio, à beira da estrada. Passaram pelo moinho e Jacques deu-lhe uma bolsa, depois começou a cantar em voz baixa. Dentro havia alguns de seus deliciosos pãezinhos e ela os devorou, enquanto a carreta avançava. Ele precisava encontrar comida. No calor inclemente, multiplicado
  • 47. pela armadura, arrastava-se pelo campo de batalha. Moscas esvoaçavam, zumbindo, sobre cadáveres de homens e de cavalos. Um abutre bicava um cavalo caído, ensangüentado, tirando grandes nacos de carne. Tentou umedecer os lábios rachados, com a língua seca. Comida. Precisava encontrar comida. Os tambores recomeçaram a soar, seu barulho tornando-se mais e mais pesado, enquanto ele se arrastava, a dor na coxa tornando-se cruciante. Morreria de fome se não encontrasse algo para comer. O insistente bater de tambores o atordoavam. Pôs-se de pé, tentando enxergar algo. Então, ouviu o alto sibilar de uma espada, voltou-se e, antes que a espada atingisse seu elmo, ouviu o soldado muçulmano gritar: — Allah ackbar! Emryss sentou-se na cama com um grito estrangulado na garganta, o corpo empapado de suor. Esfregou o rosto com as duas mãos, depois deixou-se cair sobre os travesseiros. Um sonho. Outro sonho. As batidas alucinadas do coração foram se acalmando, enquanto ele respirava fundo. Outro pesadelo sobre a Terra Santa. Santo Deus, pensara estar livre deles, quando chegara em casa. Os primeiros albores da madrugada entravam pela estreita janela de seu quarto. Saltou da cama, enrolando um lençol no corpo nu. Pela janela, pôde ver o horizonte colorido de rosa, que se tornava mais e mais claro à medida que o sol subia. Os campos de trigo faziam lembrar a areia dourada do deserto. Suspirou, reparando nos ocasionais brilhos da água do rio que atravessava o vale rochoso. Divisou manchas brancas na colina distante: ovelhas que já estavam pastando. Voltou-se e foi até a cômoda. Derramou água do jarro na bacia e lavou o rosto, estremecendo quando a friagem fez a cicatriz ainda nova reagir. Dirigiu-se à arca ao lado da cama e pegou as roupas que deixara sobre ela. Começou a vestir-se, parando para examinar o corpo, onde fora ferido, em busca de algum sinal de infecção. A porta abriu-se. — Maldição! — exclamou Emryss, subindo a calça depressa. — Aprendeu a blasfemar nas Cruzadas? — perguntou Mamaeth, inclinando a cabeça para um lado. Ela trazia roupas de cama limpas.
  • 48. — Desculpe... — disse ele, pegando uma camisa. — Era só você ter batido. Mamaeth colocou os lençóis sobre a larga cama e colocou as mãos na cintura, indagando: — Para quê? — Não sou mais criança, Mamaeth, e gostaria que você batesse antes de entrar — respondeu ele, sentando-se na beira da cama e procurando as botas. O rosto escuro e magro de Mamaeth demonstrou consternação, depois um sorriso o iluminou: — Trouxe alguma mulher para cá? — perguntou, maliciosa. Emryss calçava as botas e sua voz saiu meio abafada: — Não, não trouxe. — Por quê? — Ele ergueu a cabeça, encarou-a e ela apressou-se a acrescentar: — Perguntei só por perguntar... Emryss ergueu-se, pegou a túnica de couro e Mamaeth pôs-se a arrumar a cama, com os lençóis limpos. — Tomara que você faça algo de bom — resmungou a velha ama. Ele jogou a túnica no chão, zangado: — O que você disse? Mamaeth endireitou o corpo e encarou-o: — Eu disse: tomara que você faça algo de bom. — Não! — retrucou ele, brusco. Pegou o cinturão com a espada e atrapalhou-se com a fivela, ao coloca-lo. Pelo sangue de Deus, pensou, quando aprenderia a conter sua língua e o gênio? Afinal, conseguiu afivelar o cinturão. — Gwilym já comeu? — perguntou, esperando que Mamaeth esquecesse sua resposta e seu gesto agressivos. — Comeu por dez, pelo menos. Que apetite! Acho que está na estrebaria, agora, preparando-se para sair. — A velha ama pegou um travesseiro e socou-o, antes de colocá-lo na fronha. — Você também vai sair? — Vou. O último assalto foi muito perto daqui. — Como eu queria pôr as mãos nesses assaltantes! — exclamou
  • 49. Mamaeth, socando o outro travesseiro. Emryss achou que os ladrões a achariam pior do que um homem, se dessem com ela pela frente. — Então, deseje-me boa sorte — pediu ele, vestindo a túnica e saindo do quarto. — Boa sorte, mas fique longe das terras de Beaufort... e das mulheres de Beaufort. Ele afastou-se sem responder. Provavelmente todos em Craig Fawr já estavam sabendo de sua façanha. Iriam encará-la como parte da velha inimizade e a esqueceriam logo, se não houvesse conseqüências. Quando chegou ao salão, cumprimentou os homens que comiam a primeira refeição do dia e pegou um pedaço de pão. Deu uma mordida, mastigou e engoliu, com um grande gole de cerveja. Continuou a comer e beber, enquanto se dirigia à porta e atravessava o pátio. Vários pedreiros já se encontravam sobre os andaimes, trabalhando no reerguimento da muralha. Verificou a pilha de pedras. Teria que arranjar dinheiro para tornar a fortificação de Craig Fawr mais segura. Seus pais haviam gasto muito para mandá-lo combater pelas Cruzadas, inutilmente. Como havia sido impetuoso e louco, cheio de jovem ardor para libertar Jerusalém das mãos dos infiéis! Encontrou Gwilym e Wolf, selado, à espera na entrada da estrebaria. Os demais homens destacados para a patrulha já se encontravam montados. Gwilym deu-lhe bom dia, com um amplo sorriso, e saltou sobre a sela de seu garanhão. Emryss terminou o pão, a cerveja, colocou o caneco sobre uma mureta e montou, devagar. — Você não dormiu bem, não é? — indagou o irmão de criação, preocupado. — Já dormi melhor outras vezes... — respondeu Emryss, seco. — Vai ver que estou estranhando a cama macia. Gwilym riu: — Está é precisando de uma mulher em sua cama. A imagem de um rosto pálido emoldurado por cabelos negros, surgiu na mente de Emryss, porém ele a expulsou. — Por que todo mundo acha que a batalha com uma mulher, numa cama, vai resolver tudo para mim? — desabafou, irritado. — Daqui a pouco
  • 50. vocês vão dizer que minhas cicatrizes desaparecerão se eu fizer amor. — Fez Wolf virar-se para o portão. — Chega de conversa. Onde, exatamente, os ladrões atacaram? — Poucas milhas abaixo, na estrada, junto ao rio, onde a floresta é mais densa, milorde — respondeu Gwilym com ar ofendido. — Perto do vau? — Sim, milorde. — Onde estão os demais homens? — Esperando, do outro lado do portão, milorde. — Bom, então, vamos. — Sim, milorde. Emryss suspirou e fitou longamente o irmão, que se mantinha ereto, a cabeça erguida. — Gwil... — começou, tentado a explicar por que o assunto mulheres o perturbava tanto. Mas conteve-se, esporeou o cavalo, e dirigiu-se para o portão. O ranger da carreta soava alto no silêncio da estrada. O sol brilhava no céu, fazendo vapor subir da terra ainda molhada pela chuva. Roanna olhou os salgueiros-chorões que se inclinavam para o rio, como mulheres mirando-se no espelho da água, e sorriu quando dois esquilos gritaram, perseguindo-se na copa de um velho carvalho. Alguns pássaros cantavam, mas a maioria permanecia nos ninhos, em silêncio, à espera de que o sol expulsasse toda a umidade para saírem voando. A distância, uma parede de altas colinas rochosas erguia-se como se quisessem atingir as fofas e alvas nuvens que flutuavam contra o azul do céu. Roanna deliciava-se com tanta suavidade e beleza, inesperadas em um lugar onde só havia encontrado, até então, dias cinzentos, frio e chuva. Emryss DeLanyea era como sua terra, pensou, e como ele a terra mostrava-se mais atraente do que ela supusera. Obrigou-se a encarar a verdade: não queria ir embora. Claro, tivera que deixar Beaufort depois de romper o compromisso. Ficar seria intolerável, além de perigoso. Mas não queria ir embora do lugar onde encontrara, por fim, um homem que a fascinara. Pensou no rosto marcado de Emryss. Na certa fora um ferimento
  • 51. limpo, com arma muito afiada, se não ele teria morrido pela infecção. Lembrava-se de seu pai dizer que os soldados mais difíceis contra os quais lutar eram os que tinham cicatrizes, pois tratava-se de homens determinados a viver. E com certeza Emryss era um homem determinado a viver ou jamais teria regressado da Terra Santa. O que pensaria quando soubesse que ela fugira? iria se preocupar ou apenas ficaria satisfeito por ver que os planos de Cynric haviam falhado? — Não se preocupe, senhorita... Seu tio não sairá do quarto até a hora do almoço, tenho certeza — disse Jacques, a voz cheia de desprezo, interpretando o silencio dela como aflição. — Ele ficou até tarde bebendo o vinho do barão. Roanna sorriu para o amigo: — Eu gostaria de saber o que farão quando descobrirem... — Nós os enganamos direitinho, não? — O cozinheiro riu com gosto. — Vão sair atrás de nós, claro. — A expressão dele tornou-se astuta. — Vão pensar que fomos para o sul. — Tem certeza que a moça não vai dizer nada? — perguntou Roanna, querendo sentir-se tão confiante quanto Jacques. Ele sacudiu os enormes ombros: — Vão precisar de tempo para preparar a "caçada". Temos algumas horas de vantagem e acho que... — calou-se, muito vermelho. — Acha que meu prometido não vai se afligir por eu ter fugido — concluiu ela. — Bem, ele é um fanfarrão arrogante e a senhorita deve estar feliz por se ver longe daquele homem. De qualquer modo, acho melhor não pararmos. Roanna concordou e quando voltou-se para pegar uma garrafa de água, Jacques gritou e o burro parou. Quando se voltou viu, horrorizada, uma flecha cravada no ombro do cozinheiro. A camisa já começara a se manchar de sangue. — Jacques! — gritou, tentando ajudá-lo. Ele olhou para a flecha e empalideceu. Deu as rédeas para Roanna, dizendo: — Toque o burro, não pare! — Respirava com dificuldade. — Precisamos continuar, se não...