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Edição do Autor
para Felipe e Pedro
e quem deseje
Copyright © 2012
Luiz Fernando Sarmento
Ilustração Capa
Luiz Fernando Sarmento
Diagramação e Capa
Pedro Sarmento
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
S255v
Sarmento, Luiz Fernando
Uma vida em comum como qualquer um / Luiz Fernando Sarmento. - 1.ed. -
Rio de Janeiro : L. F. Sarmento, 2012.
264p. : 15 cm
Índice
ISBN 978-85-913883
1. Psicologia. I. Título.
12-4516. CDD: 150
CDU: 159.9
29.06.12 04.07.12
036637
uma vida incomum
como qualquer um
Luiz Fernando Sarmento
1. Fora de Ordem 10
2. Mamãe 25
3. Um quase nada de quase tudo 29
4. Redes 34
5. Agências de inFormações 52
6. Vários eu 58
7. Lembranças 65
8. Psi 82
9. Rotina 87
10. Incertas 93
11. Reflexos 98
12. Balanços 113
13. Programas de TV 121
14. Piripaco 127
15. Talvez 131
16. Outro dia, um como outro 134
17. Pausa 143
18. Juntomisturado 145
19. Manual de manutenção 158
20. Hoje, já passado 161
21. Insights? 165
22. Ficção, desarrumações 167
23. Sensação de juventude 169
24. Anotações 172
índice
Aqui os tempos se misturam
tanto quanto os assuntos.
Fim e meio não sabem onde começam.
Sorte de quem escolhe o que lê.
E salta o que não lhe importa.
10 11
1
fora de ordem
Tudo um tanto confuso,
não sei direito quem sou, que faço. Só sinto, só
penso. A novidade é que aqui e agora estou estru-
turado, como desejei e produzi. Filhos cuidados,
casa com cada coisa em seu lugar, despesas bási-
cas de todo dia supridas – comida, condomínio,
telefone, gás, luz, net-internet. Posso acordar e,
em cada momento, escolher o que fazer da vida.
Os desejos vão, vêm, se transformam.As variáveis
que interferem nos meus desejos são inúmeras,
inesperadas, fora do meu controle. O que é agora
pode ser diferente depois.
Quase como rotina, cuido de mim; alongo ao
acordar, cozinho, lavo, mantenho o básico. Cada
dia tem sido outro. De duas em duas semanas
um casal arruma o apartamento. Outros amigos
e colegas copiam vídeos que realizei só ou em par-
cerias, incluem na internet, compõem programas
alternativos de TV. Participo de encontros de in-
teresse comum, ajo reativo ao processo de cada
parceiro, despreocupado de tempos. Em relação
ao bem-estar meu e do mundo, procuro distin-
guir o que está ao meu alcance. Dentro de mim,
cada vez mais tranquilo.Isto ontem,hoje de outro
jeito, amanhã não sei.
Quero agora escrever, fora de ordem. Princípio,
meio, fim se misturam. E, dependentes de minha
memória, se perdem ou nem se completam. Ima-
gino – e proponho agora – cada leitor, se houver,
cuide editar o que leia. Escolho o mais próximo
do que sinto síntese. Vez ou outra me repito,
como pra recordar. Detalhes, aprofundamentos,
talvez mais adiante.
Compartilho
o que, inda que verde, me faz bem e imagino pos-
sa fazer a outro.
Se edito a prosa, encontro o verso. Se edito o ver-
so, o hai-kai? Se edito o hai-kai, o silêncio. Nem
tudo se resume a isto. Confesso, não sei direito o
que é hai-kai.
12 13
Em pleno vôo, a aeromoça orienta. Quando as
máscaras caírem, primeiro cuide de você, depois
dos outros, mesmo crianças. Analogia imediata,
cuidarei melhor do outro, se antes cuido de mim.
Como você pode cuidar de mim, se não cuida de
você? A pergunta que fiz a um amigo, tenho feito
ao espelho: como posso cuidar do outro, se não
cuido de mim?
Tento inventar, descobrir, construir jeitos de rela-
cionar-me que me supram.Aprendo que não pos-
so dizer sim a algo que não está em mim.
Facilita minha vida quando separo a loucura do
outro da minha loucura. Se a mim não me permi-
to, a outros inibo. E vice versa. Quando não beijo,
por exemplo, muitas vezes não suporto outros se
beijarem. Muitos“não!” que me chegam, são“lou-
curas” de outros.
Como Cacilda Becker, não tenho tido tempo pra
lutar contra, só a favor. Como, talvez,Tom Jobim,
aprendo que democracia é muito bom, inda mais
se a pratico aqui com meus colegas de trabalho,
lá em casa, com quem está ao meu alcance. Des-
cubro que meus pensamentos são escolhas mi-
nhas. Que gentilezas têm me gerado gentilezas. E
quanto mais me conheço, melhor vivo.
Na tentativa de tornar mais simples minha vida,
aprendo que quanto menos tenho, mais leve me
sinto. Um par de sapatos é suficiente, três me dão
mais trabalho que um. Os objetos é que me têm,
não eu que tenho os objetos. Carros dão traba-
lhão. E plantas, animais: é o cachorro que me le-
varia a passear, não eu a ele. Não posso deixar a
casa sozinha se há plantas pra cuidar. Qualquer
coisa que tenho, me dá trabalho. Um bibelô? Te-
nho que espanar. Se tenho em excesso, trabalho
em excesso. Sou assim quase escravo do que te-
nho. Os objetivos também: pautam minha vida.
Mas meus filhos não são meus, quase sempre eu
me guio pelos meus filhos. Sinto bem. Os saldos
positivos da minha vida estão relacionados aos
afetos.Aprendo que um meu capital básico são as
relações que cultivo, os afetos que me envolvem.
Que sonhar me faz bem: me orienta o que faça. E
que há vazios em mim que só eu posso aprender
a preencher.
14 15
Alguma compaixão me nasce em relação a quem
dedica a vida a acumular coisas e sentimentos, em
tentativas de preencher vazios que em si mesmo
desconhece.Aprendo que melhor aprendo,fazen-
do. E que melhor ensino, sendo. E eu, que não
consigo resolver esta pretensão de que sei um tan-
to sobre quase tudo?
Como eu,
imagino que uma mãe, um pai, professor, patrão,
governante, sacerdote... desejam que um outro
seja o que não é. Eventualmente inconscientes,
projetam no outro seus próprios desejos. Nuns e
noutro, quando cai a ficha – se cai – a consciência
se dá,a compreensão se instala,o comportamento
tende a mudar. Quando a ficha não cai, permane-
cem – eternas? – incompreensões.
Livre associo,
misturo de um tudo.Nas ruas,louras,louras,lou-
ras. Chego mais perto, são negras as raízes dos ca-
belos. As louras, na verdade, são morenas. Barbie,
modelo de beleza, american way of life, é referên-
cia. Nas falsas-louras nativas, talvez angústia por
não serem semelhantes aos ídolos adotados.
Comunicação é meio,
mesmo o meio sendo em si mensagem. O pri-
meiro desafio que vivo é perceber o que meu
próprio inconsciente tenta me comunicar.
Apesar dos impedimentos por parte de ou-
tras partes de mim. Fico atento aos sinais que
me dão meus atos falhos. Ato falho não falha!
Conteúdos que me tocam me emocionam. Mi-
nha memória afetiva, sinto, permanece. Minha
memória racional me escapa. De que mesmo eu
estava falando?
Quero aprender, como diz Simone de Beauvoir, a
“viver sem tempos mortos”.
Concordo com Sérgio Mello: os planos funcionam,
difícil é o cronograma.
Também com alguém, não me lembro quem: seja
o que deseja ser.
De vez em quando me pego muito eficiente, no
caminho errado. Perdi minha vida por educação.
Foi Verlaine quem disse?
16 17
Esta aprendi com Adalberto de Paula Barreto – a
pergunta que antes, submisso, fazia a outros, ago-
ra tenho perguntado ao espelho: que você quer que
eu queira, pr’eu querer?
Aprendi e me tem feito bem: meu humor como
indicador. Se estou de bom humor, estou bem. Se
de mau humor, estou mal. Identifico-me com o
que entendi do FIB, Felicidade Interna Bruta.
Meus filhos,meus amigos aprendem comigo mais
pelo que sou do que pelo que falo. Vice versa, eu
também.
Meus desejos me mobilizam. Eu me movimento
a partir dos meus desejos. Desejos são básicos aos
meus movimentos. Procuro descobrir quais meus
desejos.
Tento construir, pelas ações, pontes entre desejos
e práticas. Pra facilitar, só quando preciso, numa
coluna listo as tarefas que julgo necessárias para a
realização do desejo. Ao lado de cada tarefa, em
outras 4 colunas, prevejo datas, custos, responsá-
veis e anoto outras observações. Dentro de mim,
o conflito entre prever-planejar e não ter agenda,
não limitar o futuro. Talvez eu possa planejar e
adaptar à realidade o que antes previ.
Se não gozo quando transo,permaneço com uma vi-
vacidadejuvenil,oprazerpermanece.Ogozojánãoé
meta.Ameta,seexiste,éoprazeremcadamomento.
Onde vai meu pensamento, vai minha energia.
Aprendo escolher pensamentos.
De Freud entendi que muitos dos conteúdos dos
sonhos estão relacionados a acontecimentos do
dia anterior. Quando suporto alegria, antes de
dormir, leio o que me faz sentir bem. Quando
acordado, evito situações que me gerem senti-
mentos desagradáveis.
Outros em outras épocas já descobriram um tan-
to disto tudo. Esta memória coletiva onde está?
Sei que quando relaxo, capto.
Volta e meia me pego,
inconsciente, estragando prazeres: ao brigar com
a namorada quando estava gostoso, ao chutar pe-
18 19
dra quando a caminhada tava boa, ao detonar um
trabalho que me trazia enlevo... Muitas vezes senti
como insuportável a alegria.A minha,as de outros.
Percebi o mesmo em outros. Permaneço descon-
fiado que isto se relaciona com minha cultura
cristã, que proíbe emoções, prazeres – vide os 10
mandamentos e os 7 pecados capitais. Serei casti-
gado – agora ou depois da morte – se transgrido
alguma regra. Perdi minha inocência quando fui
catequizado. Antes, em mim só existia um senso
ético. Não existiam pecados mortais, veniais, in-
fernos. A moral veio como doutrina.
Internalizei as regras e as consequências de
transgressões: dentro de mim associo o prazer ao
castigo. Logo que percebo prazer, lembro castigo.
Evito castigos eliminando prazeres. Os prazeres
se tornam então insuportáveis.
Agora, consciente, aprendo ser mais responsável
por mim mesmo, minhas ações, minha vida. Sei
que já não devo reclamar da pedra ao tropeçar
nela. Eu é que não prestei atenção. Reclamo antes
ao espelho.
Algumas vezes minha vida ficou sem sentido.
Tanto fazia viver, morrer. Não cheguei a procurar
a morte. Mas a vida tava sem gosto. A lembran-
ça dos filhos me animava. Eu era resiliente e não
sabia: vim do quase fundo do poço ao equilíbrio
dinâmico de agora.
Antes dos 8 anos já sabia da proibição dos praze-
res. Vivi prazer e medo em secretas descobertas
infantis. E punhetas silenciosas das 2 da tarde au-
mentavam culpas, pavores e rezas noturnas. Aos
14, no beco dos meninos, tive a sorte do acolhi-
mento tranquilo naquele corpo diferente do meu.
Aprendi a gostar de mulher.
Mas perdi mesmo a grande inocência quando so-
fri o catecismo. Não sabia de pecados – mortais,
veniais – e castigos. Ficou um medo enorme do
inferno eterno, chamas que nunca acabam. Foi
como um insight ao contrário, um indark.
Wilhelm Reich foi um choque bom. Perdi outra
inocência, ganhei consciência: sou responsável
por mim. Hoje leio sem ter que fazer provas. Só
em boa companhia, adoro orelhas de livros, vejo
20 21
trechos de Freud, Jung, Nise, Bubber, Moreno,
Lobsang, Rajneesh, Lacan, Platão,Voltaire, Saint-
-Exupéry, Szasz, Chang, Capra, Moody, Rogers,
Beauvoir, Lobato, Quino, Monroe, Veríssimo,
Barreto, Cançado, Ferenczi,Angeli, Brunton, Eco,
Laing, Freire, Ziraldo, Ludemir, Nietzsche, Feito-
sa, Pessoa, Moraes, Pontes, Chacal, Robin... e por
aí vou. Se entendo, ai, que bom. Se não, vou em
frente, volto, folheio. Antes de dormir, então, lei-
turas facilitam o sono, os sonhos. É uma forma de
oração, cuidar do que me vai dentro.
As sínteses de Pontes, o Roberto: todo mundo é,
todo mundo pode ser. E: o saber em todo ser. Mais
ainda: amor e medo, emoções básicas.
Lembro a Chiquita Bacana de João de Barro:
existencialista, com toda razão, só faz o que manda
o seu coração. E talvez Sartre: não importa o que
fizeram com minha vida. Importa o que vou fazer
com o que fizeram da minha vida. E o título do livro
póstumo de Winnicott: Tudo Começa em Casa.
Atos fractais,
um pedaço representa o todo? Pequenos atos
têm me dado informações sobre quem os pratica.
Quem joga na rua o lixo que tem na mão me infor-
ma que não cuida dos outros. E talvez não cuide
dos outros porque não aprendeu cuidar de si.Ima-
gino: se não cuida de si, como cuidará de outros?
Mas, como diz Barreto, o Adalberto de Paula, só
reconheço no outro o que conheço – tenho? – em
mim. Pelo que percebo, outros pequenos atos me
denunciam. Se jogo lixo no chão, se falo grosso, se
furo fila, se bato em criança, se desperdiço água,
se critico alegria,se rio das pegadinhas,da desgra-
ça do outro...
Parece óbvio,
mas só há pouco tempo constatei que meu humor
tem sido meu melhor indicador: se estou de bom
humor, estou bem.
Agora sei que só consigo comunicar-me com quem
me escuta.E vice versa.Acomunicação se dá quan-
do entendo o que me foi dito. E sou entendido.
Eu me sinto bem com cada ato que realizo para
difundir o que sinto me faz bem.
22 23
Ouvi e concordo: minha saúde é coisa muito séria
para ficar nas mãos de outros. Se não cuido de
mim, quem cuidará?
 
A autonomia que me permito, desejo a cada um
que a deseje.
O sítio de mamãe chamava sossego. Era seu de-
sejo. Sem saber disso, meu terapeuta Romel sin-
tetizava em cumprimento: saúde, sucesso, sossego.
 
Há espectadores que acreditam mais na TV que
na realidade?
Em mim, é lento o processo de absorção de uma
nova ideia, de mudança de comportamento. Há
7 anos desejo um sofá. Há 35 quero escrever um
livro. Há 50 sonho ser dono do meu próprio na-
riz. O que é novo me incomoda, me ameaça. Já
desenhei o sofá, tento pela enésima vez escrever
um livro, mas inda confundo meu nariz com o
de outros.
Com defesas ativas como as minhas – que atra-
palham a realização dos meus desejos originais –
imagino quantas inovações,descobertas filosóficas,
tecnológicas, insights, invenções, criações... estão
disponíveis para a humanidade e não nos chegam
ao conhecimento.
Percebo
que boa parte dos custos de empresas e empre-
endimentos é gerada pelos controles. Controlar
dá trabalho, dá despesas. Por outro lado, a neces-
sidade de controles diminui quando confianças
mútuas estão presentes. Nas relações pessoais,
familiares isto é nítido.
Tenho certo que necessidades de controle di-
minuem, se cultivadas relações de confiança. O
medo gera controles. O amor gera confiança.
Percebo em minha prática individual que quando
remunero satisfeito – financeira e emocionalmen-
te – serviços que me são prestados, recebo de vol-
ta empenho espontâneo, com envolvimento e boa
vontade. Quando cuido do outro, o outro cuida
de mim, naturalmente.
Admiro a inteligência dos empresários que repar-
24 25
tem lucros com quem com eles trabalha. É na-
tural que cada trabalhador reconhecido se sinta
reconhecido. E, tanto como se fosse seu, passa a
melhor cuidar de tudo ligado ao trabalho: seja de
equipamentos e insumos, seja de relações huma-
nas com o público, colegas, demais stakeholders.
Administrador, gerente que cuida de quem tra-
balha próximo dorme tranquilo, vive melhor, tem
assunto com os filhos. Não precisa esconder dos
filhos malfeitos para os quais co-labore. Feitores
– antigamente? – tinham esta função: obrigar ao
outro fazer o que não quer. Administrador que
age amorosamente tem retorno amoroso. Pare-
ce complicado, mas é simples. É o tal do amor.
O tao do amor?
2
mamãe
Após a morte de mamãe, minhas irmãs sugeri-
ram que eu escrevesse um necrológio. 1919. Nas-
ce Heloisa. Vem para os Anjos, família grande
numa Montes Claros criança. Amizades profun-
das com primas vizinhas de quintais. Tudo tran-
quilo neste porto protegido. 1928? Bum! Morre
o pai, ficam sua mãe Antônia e 8 filhos. O avô pa-
terno, Antônio, orienta, distribui. Cada filho um
tio, um parente. 1934, de novo, seu mundo treme.
Com a irmã Wanda,sós,vai pro lugar que não co-
nhece, Salinas. Imagino inseguranças, saudades,
solidões. Vive compaixões, compartilhamentos,
cria vínculos. Aprende na vida, ensina no Grupo
Escolar. Enamora Rodrigo.
1938, casa.Vêm quatro filhos. Cai a ficha, acredi-
ta em si, toma as rédeas.
1948. Salinas fica pequena. Agora vejo, a história
como se repete – pra abrir caminhos de liberda-
de, distribui por um tempo os filhos: Lina fica
26 27
com Wanda, Stella com tia Odília, Luiz com d.
Rosinha. Rodrigo, o marido, cuida de si. Mamãe
dá o salto. João vai junto. Belorizonte, Instituto
de Educação, mergulha. Volta, respira, arruma as
malas, barriguda de Heloisa Helena: volta às ori-
gens,Montes Claros,1951.O marido,é o possível,
vai à luta em São João do Paraíso. Contribui de
lá. Só com os filhos, a mãe, como defesa, controla.
Tudo ou quase. Articula. Rodrigo regressa, a fa-
mília recompleta. Sempre, dá aulas, educa. Nos
intervalos, costura, remenda, orienta, organiza.
1954. Nasce o D. João Antônio Pimenta, Heloisa
diretora, funda um Grupo Escolar. À noite dá aulas
no Sesi. Por um tempo, acumula o Colégio Dioce-
sano. Conhece, reconhece gente, constrói amizades.
Cuida da família, corresponde aos que solicitam, dá
as mãos, ensina, ensina, educa, educa, trabalha, tra-
balha. Agora cuida também das normalistas: ensina
a ensinar. Planta plantas, rega como planta e cultiva
ideias, conhecimentos, relações. Solidária em mo-
mentos necessários, fortalece o bem. Guarda confi-
dências. Reflete, aconselha. Direto e reto. Não deixa
para amanhã o que é de hoje. É consigo o que é com
outros.Ama os próximos quase como aos filhos.
Delegada de ensino. Gosta. Conversas e conver-
sas e decisões. Interage. Norte de Minas e capital.
42 municípios sob sua tutela. Viaja, vai, vem, vai,
vem. Modera, modela, representa. Articula para
tornar viável, realiza junto. Integra órgãos estadu-
ais e cidades.Com a equipe,consensua.Assim,50
anos de trabalho efetivo. E mais 18, aposentada,
sutil nos afetos, atenta, pronta para escutar, pen-
sar, falar, agir.
Em toda a vida, emociona-se com serenatas e
boas conversas ao anoitecer. Tem mão boa para
plantar. Cava, semeia, rega. Adora uma arruma-
ção. Quem estiver perto entra na roda. Nos mo-
mentos mais diversos, exercita a solidariedade,
constrói vínculos, valoriza amizades.
2002.Gasto,o corpo cansa.Rápida como sempre,
prevê, organiza, distribui o que suou. E vai. Mi-
nha mãe permanece em mim, em nós.
Passado um tempo,
quanto mais vivo, cultivo minha mãe boa. Caem
em névoa os beliscões, os olhares determinantes,
as limitações. Sinto que me compreendo quando
28 29
compreendo mamãe. E olha que, raivoso, briguei
com ela um mês antes de sua morte. Mamãe esta-
va com câncer brabo, ali em órgãos que filtram, se
espalhando. Num momento, ela, aos meus olhos,
maltratou uma moça que dela cuidava. Eu – que
nunca lhe havia falado grosso – fui duro, impulsi-
vo, gritei com mamãe. Ela ali, me olhando estupe-
fata, de baixo pra cima, da sua provisória cadeira
de rodas. Nos dias seguintes, emudeceu comigo,
não respondia a meus “benção, mamãe?”. Diante
de minha insistência, foi clara: “Perdoar, perdôo.
Mas esquecer, não esqueço.”.
Em relação a mamãe, não sei explicar direito, sei
que meu coração está cada vez mais tranquilo.
Desconfio que é porque fui sincero comigo mes-
mo, com ela. Como fui pró-ativo em muitos mo-
mentos que tomei a iniciativa do abraço, do beijo,
da palavra doce. Parece que, como mamãe, sou
assim, variado também em doce e amargo.
3
um quase nada
de quase tudo
Então ficamos assim:
falo bem de você, você fala bem de mim.
Uma dificuldade enorme, aqui, de aceitar elogios
e agradecimentos. Vou aprendendo, mesmo sa-
bendo que muito do que me move é minha pró-
pria satisfação. E identificação. Relembro Marx,
o Groucho: clube que me aceita como sócio eu não
entro. Não deve prestar.
Sinal de saúde,
me orgulho: não sei onde fica meu fígado.
Sujismundo era um personagem sempre rodeado
de moscas, sujo, sujador. A campanha na TV foi
eficaz: quem jogava papel na rua, se olhado como
Sujismundo, se envergonhava, recolhia o papel,
se recolhia. A atitude sujismundo gerava culpa e
vergonha. A cidade do Rio ficou mais limpa por
30 31
um tempo. Tive notícia também – salvo engano,
ali pela Escandinávia – de anúncio audiovisual
em que um carro passava excessivamente veloz e,
plano seguinte, uma moça fazia um sinal para ou-
tra moça – dedo indicador se aproxima de dedo
polegar – sugerindo a pequenez talvez do pau do
motorista.Anúncios que geram culpa e vergonha.
Imagino agora campanhas publicitárias positivas
gerando satisfação e prazer, valorizando a afetu-
osidade de quem contribui pruma vida coletiva
melhor. É que, passado um tempo, meus convi-
vas contemporâneos acreditam mais no que sou,
no que faço, do que no que falo e não faço e não
sou. Alegria gera alegria, gentileza gera gentileza.
Exemplo de campanha assim, pra cima, relembro
os conceitos de Pontes para divulgação de colônia
de férias pra crianças numa favela: todo mundo é,
todo mundo pode ser. O outro, este voltado para a
universidade popular: o saber em todo o ser.
Agora eu sei.Cada ato talvez tenha um significado.
Quando fumo, agrido meu próprio corpo. Se ajo
assim comigo, com o outro mais ainda. Sou então
coerente quando jogo cigarro no chão, invado um
sinal vermelho, dou um tapa, um tiro, solto uma
palavra indelicada. Mas já sei que outros equilí-
brios são possíveis,quando transcendo minha cul-
tura masoque, cuido de outros ao cuidar de mim.
Se não cuido de mim, como cuidarei de outros?
Tenho lembranças do século XIX,
são reais. Na década de 40 do século XX, Salinas
estava longe dos grandes centros. As modas che-
gavam tempos depois.Sem rádio,televisão,jornal.
As notícias corriam, lentas, de boca em boca. Os
causos contados na porta de casa eram de mula
sem cabeça, almas penadas. Os costumes eram
antigos.No porão da sua casa,tia Odília guardava
os ossos de seu pai, meu bisavô. Pra se pentear, ela
subia num banquinho e só então soltava os cabe-
los que chegavam ao chão. Fazia linguiça. Enfiava
ingredientes na tripa de porco. Para socar, usava
uma chave grande, antiga. E quando curioso eu
perguntei: que é isto, tia?, ela – chouriço, menino.
Carrego dentro de mim o que então vivi. Carrego
tudo, mesmo agora, cidadão do mundo, o hori-
zonte mais próximo, tudo tão mutante.
32 33
Repito e tento: separar o que é meu, o que do ou-
tro, especialmente os sentimentos. E quanto aos
objetos e moedas, mais do que possuo as coisas,
são as coisas que me têm.
Wilhelm Reich me ensinou, na teoria e na práti-
ca: meu corpo traz minha história.
Quando faço o que gosto, sem perceber trabalho
o tempo todo.
Quando cai minha ficha, vejo o mundo diferente.
Tento crescer, mas inda é difícil suportar alegrias.
Tristeza é fácil, matava no peito todo dia.
Posso me comunicar com o mundo. Quando
compartilho, me acalmo, melhoro.
Se não me permito, a outros inibo.
Dou o livro que gosto, nem sei o que o presentea-
do deseja. Só dou o que tenho.
Meu corpo hoje me fala, volta e meia me relem-
bra: se quero dormir bem, 5 horas antes já não
como. Se como, regurgito, durmo sentado.
Nos sonhos realizo meus desejos?
Parece que quando vivencio situações sou quem
melhor poderia conhecer estas situações que vi-
vencio. Assim, talvez, potencialmente, seja eu
quem melhor saiba das soluções das questões que
vivencio. A consciência desta sabedoria talvez de-
termine a possibilidade de ação transformadora
em mim. Há expressões de outros – falas, atos,
artes, escritos... – que me despertam consciências.
34 35
ção de relações, vínculos, confianças, descobertas
de interesse comuns – temáticos, territoriais... E
trocas, construções de parcerias, realizações de
objetivos comuns. Assim se formam capitais so-
ciais.Trabalhos sociais e comunitários dependem
diretamente da participação coletiva, de cada um.
Redes espontâneas: uma criança nasce, a tia te-
lefona pra prima, que telefona pra avó, que fala
pros netos, que espalham pros amigos... A rede
nasce, cumpre sua função, desaparece. E reapare-
ce quando necessária. Muitos agora sabem que a
criança nasceu.
São inúmeros os tipos de redes: presenciais,
virtuais, fomentadas, redes de redes. Redes são
diferentes de cadeias. Redes pressupõem espon-
taneidade, ausência de hierarquia. Cadeias não:
têm gente que manda em gente. Redes quando se
somam, se multiplicam. Multiplicam de tamanho
quando se articulam com outras redes. Por exem-
plo,quando se comunicam entre si – movidos por
interesse comuns – setores públicos, setores pri-
vados, movimentos populares.
4
redes
Fecho os olhos
e respondo a mim mesmo: o que aqui procuro?
O que aqui ofereço? Imagino agora que posso ex-
pressar para todos: o que procuro e o que ofereço.
Se este canal de comunicação se estabelece entre
eu e outros, tendo cada um de nós esta liberdade
de comunicação, estaremos em rede.
Sei, imagino que todos sabemos, que conheci-
mento é poder. E compartilhar conhecimento é
compartilhar poder.
Cássio Martinho me ensinou: rede é um esforço
individual e coletivo de comunicação, um com-
partilhamento de informações. Na rede, ausência
de hierarquia, presença de iniciativa espontânea
de quem participa. Eu praticava redes e não sabia.
Redes fazem parte de um processo que pode
chegar a transformações individuais e coletivas.
Comunicações entre pessoas possibilitam cria-
36 37
Facilita a formação de redes presenciais a ausên-
cia de discriminação de raça, crença, facção, parti-
do político, ideologia, gênero, sexo...Também um
espaço neutro, onde cada participante se sinta à
vontade, seja evangélico, espírita, católico, budis-
ta, maometano, taoista, ateu, agnóstico, duvido-
so... Ou negro, branco, mulato, amarelo, albino,
pobre, rico, remediado, democrata, liberal, socia-
lista, anarquista, hétero, homo, bi, pan...
Expansões da rede são estimuladas quando dis-
ponibilizadas informações básicas – lista de pre-
senças, com telefones, e-mails... – tanto durante
os encontros quanto logo depois virtualmente
pela internet. Mais ainda se também distribuídos,
para cada um e para todos,os classificados sociais,
que são descrições das ofertas e procuras que
aconteceram durante os encontros. Os Classifi-
cados Sociais e as Listas de Participantes servem
para facilitar contatos e intercomunicações. Ten-
do estas informações em mãos, depende de cada
um a iniciativa de contatar e articular parcerias.
E, naturalmente – base para relações humanas
saudáveis – vínculos afetivos fortalecem redes.
Linha do tempo
Desde cedo trabalho. Hoje vejo o que plantei –
onde investi minha vida, meus tempos e energias
– e, acredito, compreendo um tanto porque me
sinto bem à medida que amadureço.
Em casa engraxava sapatos aos sábados, ajudava
a passar a cera no assoalho, colaborava um pouco
nos serviços domésticos. Aos 12, informalmente,
vendi cestas de natal Titanus. Aos 16, dei aulas
particulares de matemática. Aos 17 ou 18, pri-
meira carteira assinada, auxiliar administrativo
de uma distribuidora de bebidas. Em seguida, ou
paralelo,não lembro,repórter policial do Jornal de
Montes Claros. E fundei e publiquei, com amigos,
o Setentrião, jornal distribuído gratuitamente.
Já na Universidade de Brasília, fui monitor de
estatística. Nas férias estagiei em escritório de
planejamento e elaboração de projetos. Dei au-
las pela Fundação Educacional do Distrito Fe-
deral, trabalhei no Ministério da Agricultura, no
Fundo Federal Agropecuário, um pouco para o
Ministério da Educação. Com parceiros, monta-
mos uma pequena tecelagem de camisas de ma-
38 39
lha. No Rio, agora no INCRA, participei de um
grupo de trabalho que preparava uma reforma
agrária: cuidei da seleção e treinamento de cap-
tadores de dados relativos a parceiros, arrenda-
tários, proprietários rurais...
Em Amsterdam, quase como umas férias, des-
cobertas pra vida inteira, ampliação de visão de
mundo. Em Londres fui modelo para desenhis-
tas, operário de obra, porteiro e vendedor de sor-
vetes num teatro, voluntário na feitura de pães
integrais. De volta ao Rio, funções variadas em
um punhado de longas-metragens. Assessorei
a direção da Embrafilme e, ainda lá, cuidei por
seis meses do programa Coisas Nossas, veiculado
pela TV Educativa. Na Globo Vídeo fui gerente
de marketing sem saber direito o que era. Pulei
para novos negócios. Na Fundação Roberto Ma-
rinho dei continuidade ao Vídeo Escola, projeto
que escrevi – a pedido da instituição anterior –
e gerenciei a implantação.
Nocorrerdavidarealizeiregistrosemvídeo,espe-
cialmente na área psi, que sempre me atraiu. Com
Ralph Viana,Valéria Pereira e muitos voluntários
e parceiros ativos realizamos, no Parque Lage, o
simpósio Alternativas no Espaço Psi – Psicologia,
Psiquiatria e Psicanálise. Antes, durante anos, co-
laborei com a Rádice, revista de psicologia. Um
pouco com o Luta & Prazer, jornal libertário de
espírito juvenil. Fui sócio de uma livraria, a Espa-
ço Psi. Estive em Moçambique, como cooperante
junto ao Instituto Nacional de Cinema.
Realizei e produzi, só ou com parceiros, algu-
mas dezenas de vídeo-registros e documentários.
Na maioria, singelos, focados mais nos conteú-
dos que nas formas. Candomblé, Ilha Grande,
Energia da Vida, Auto-hemoterapia, Aparelhos
Orgônicos, Aids – Boas Notícias, uma série: Psi-
coterapias Corporais. E Quilombo, Folhas Sa-
gradas, Terapia Comunitária, outra série – Rio,
Estado de Alegria. Também Artistas de Rua,
Una Madre de Plaza de Mayo, Práticas Chinesas
de Auto Cura...
Na década de 80, criei e experimentei um método,
Videomobilização: os limites dos conteúdos eram
nossos limites, a propriedade da imagem e do som
era da pessoa objeto de gravação. Sugeríamos que,
40 41
quando assistisse o que foi gravado – só ou em
companhia do seu terapeuta – desse mais aten-
ção aos sentimentos provocados pela sua própria
imagem e sons. Compreensões mais profundas
corresponderiam a insights tão desejados. Muitos
dos clientes eram terapeutas.
O Sesc Rio
Mergulhei no Sesc em 2.000. Éramos poucos
mais de 400 para 3 vagas. 7 meses, o processo de
seleção. Fui contratado como coordenador técni-
co e locado no Sesc Ramos, ao lado do Complexo
do Alemão. Minha função era cuidar da progra-
mação, facilitar o trabalho de colegas que produ-
ziam eventos, atividades sócio-culturais, esporti-
vas, de lazer e promoção da saúde.
Quando cheguei, uma média de 150 pessoas fre-
quentavam diariamente os espaços da unidade
operacional. Quando sai dali pra trabalhar na
sede, 1200 a 1500 pessoas diárias. Tudo mui-
to em colaboração com os colegas da época que
apoiaram transformações. Logo no início, com a
intenção de desburocratizar, estudei os caminhos
dos papéis. Na verdade, os caminhos desde a
ideia à avaliação, passando pelo consenso na pro-
gramação, alocamento de recursos, preparação,
contratações, realização, pagamentos... Criamos e
implantamos ali uma metodologia que chamei de
Sistema Sesc de Produção.
Processos e procedimentos se simplificaram e,
com o tempo, natural e espontaneamente outras
unidades operacionais do Sesc Rio adotaram a
metodologia. Nela, o IBAS – Informações BÁ-
Sicas – que nomeei em homenagem a Betinho,
do IBASE, continha respostas às 7 perguntas
básicas necessárias para a realização de eventos
e atividades: o que, quando, porque, como, onde,
quem, quanto. Criamos e distribuímos muitos e
muitas folhetos e filipetas para os moradores da
área, convites para frequentar o espaço. Experi-
mentamos, junto a funcionários, um outro mé-
todo que chamei de Rodízio Criativo. E criamos
e implantamos as Redes Comunitárias, adotada
posteriormente pela instituição como um todo.
Ampliamos a atuação para fora do espaço físico
do Sesc Ramos. Fomos até onde nosso público
estava. Era o Sesc fora do Sesc.Tudo isto estimu-
lado pela missão original do Sesc:
42 43
“O bem-estar social dos comerciários e seus
dependentes, através de serviços de caráter
sócio-educativo nas áreas da Saúde, Cultura,
Educação, Lazer e Esporte, com qualidade e
efetividade. Bem-estar social é aqui entendi-
do como o resultado de ações de uma estrutu-
ra de atividades e serviços de cunho educativo
que contribuem para a informação, capacita-
ção e desenvolvimento de valores.
Os comerciários e seus dependentes repre-
sentam o público prioritário do SESC-RJ na
prestação de seus serviços, os quais são tam-
bém extensivos à sociedade.”
Lembro que o Sesc faz parte do Sistema S – Sesi,
Senac, Senai, Sebrae, Sest, Senat, Senar... Do
que entendi, o Sistema S trabalha com dinheiro
público e tem missões originais voltadas para o
público, especialmente trabalhadores e seus de-
pendentes. Em relação ao Sesc, especificamente,
comerciários e seus dependentes podem frequen-
tar gratuitamente suas dependências e usufruir
dos serviços que as unidades operacionais do
Sesc oferecem: eventos e atividades nas áreas de
esporte, lazer, sócio-educativa, turismo e saúde,
como, por exemplo, assistência odontológica de
boa qualidade.
Sou profundamente agradecido à instituição
pela oportunidade de ali realizar trabalhos com o
senso ético que carrego em mim. Porém, não me
identifico com a orientação definida pela direção
do Sesc Rio nos últimos tempos em que lá traba-
lhei, em 2011.
Vídeos
Já na sede,no Flamengo,na Assessoria de Projetos
Comunitários supervisionada por Gilberto Fugi-
moto, planejamos e realizamos diversas ações co-
munitárias, enormes e pequenas. Para difundir a
metodologia encomendamos e orientamos a reali-
zação do vídeo institucional Redes Comunitárias.
Um tanto pela importância daquilo que fazíamos,
eu me propus realizar registros em vídeo, espe-
cialmente de encontros de redes comunitárias.
Comprei, com meus recursos, equipamentos – 2
conjuntos: câmeras, tripés, microfones direcio-
nais, extensões... – e gravei. Gravei muito. Já no
44 45
momento das edições, solicitei e recebi o apoio do
Sesc, que pagou o trabalho de edição. Em contra-
partida inclui nos créditos agradecimentos e auto-
rizei copiagens para distribuição junto a pessoas e
instituições interessadas na metodologia. A par-
tir do movimento de cada um que se identificou
– vivenciou e tomou conhecimento do novo jeito
de se encontrar e objetivar conversas – as redes se
ampliaram e se ampliam.
No Sesc criamos outros encontros. O METS –
Movimentos Emocional e Transformações So-
ciais, com Michel Robin, nos espaços do Centro
de Movimento Deborah Colker – encontro-pes-
quisa em busca de informações sobre mudanças
individuais e coletivas. O LPS – Livre Pensar So-
cial, com Gilberto Fugimoto – roda de conversa
entre instituições interessantes e interessadas no
bem estar social. O CCI – Comunicação Comu-
nitária Interativa – roda de conversa entre pesso-
as atuantes em comunicações comunitárias, com
a participação de George de Araújo.
Os vídeos que realizei com o apoio do Sesc Rio
estão disponíveis para que a instituição utilize em
benefício do público. Estão acessíveis no www.
luizsarmento.blogspot.com e no www.videolog.
tv/luizfernandosarmento. Disponibilizamos tam-
bém pouco mais de 500 classificados sociais, um
a um,no http://www.youtube.com/redescomuni-
tarias.Tudo um tanto singelo.
Relações humanas
incluem relações emocionais. O que me leva ou o
que me impede relacionar com outro? Os METS
foram encontros periódicos, às vezes esporádicos,
que procuravam congregar quem considera
desenvolvimento emocional como base para
desenvolvimento humano e social. Demos um
tempo nos METS quando conhecemos as TCs
– Terapias Comunitárias, criadas por Adalberto
de Paula Barreto. Nas TCs, teoria, metodologia
e prática somam conhecimentos acadêmicos e
populares.A TC é política pública no Brasil, hoje.
Saiba + no www.abratecom.org.br, no www.
luizsarmento.blogspot.com ou no www.videolog.
tv/luizfernandosarmento
Os LPS – Livre Pensar Social – eram encontros
voltados para reflexões e fomento de políticas pú-
46 47
blicas.Articuladores,apoiadores e realizadores de
projetos comunitários – sem compromisso con-
clusivo ou deliberativo – compartilham ideias, in-
formações e reflexões focadas em desenvolvimen-
to humano, social, integral.
Antes, apoiado nas práticas por Lídia Nobre, a
assistente social, criamos as Redes Comunitárias,
onde cada participante tem espaço para falar do
que oferece e do que procura em relação ao lugar
que vive ou ao tema que lhe interessa.
Pra mim, redes comunitárias cuidam do objetivo.
E terapia comunitária do subjetivo. Como tudo,
ou quase, na vida, varia.
A ideia das Agências de inFormação deu motivo
para que George de Araújo e eu, com apoio de
Carolina Pelegrino e Andrea Medrado, reali-
zássemos os CCI – Comunicação Comunitária
Interativa, encontros de pessoas e instituições
ativas e interessadas em levar e trazer informa-
ções para quem não é escutado e para quem não
é representado por mídias formais. É gente que
trabalha com jornais, rádios, TVs comunitários,
folhetos, alto-falantes, comunicação popular.
Gente que leva e traz informações e notícias,inte-
rage com seu público. E que, nos encontros, refle-
te sobre o que faz e comunica, conteúdo e forma.
Estes encontros muitas vezes foram sementes que
geraram vínculos, parcerias e movimentos. Tudo
em ondas, frutos de contribuições de cada um, de
acordo com suas possibilidades e desejos.
Gravei em vídeo, com apoio de muitos, muitos
destes encontros. Cada editor – criação e muito
suor – deu personalidade a cada vídeo. Em sua
maioria, os vídeos estão na internet.
Os ouvintes querem falar:
todos sabemos que há gente procurando e ofe-
recendo de um tudo. Quando se encontram e se
entendem, se suprem. Quando não sabem um do
outro, oportunidades desaparecem.
Início do milênio, Sesc Ramos, ao lado do
Complexo do Alemão, Rio de Janeiro. Fórum
Transformações Sociais – O que Pode dar
Certo. Palestrantes experientes numa mesa,
48 49
trezentas pessoas na platéia. Nem mesmo falas
interessantes interessaram aos presentes. Em
menos de uma hora, evasão. Das trezentas,
somente umas cinquenta, sessenta ficaram.
Levamos o microfone ao público. Agarram, bo-
tam pra fora:“o governo não presta...“. Muita gente
na fila, todos querem falar. Eu, inseguro: “Peraí!
Seja objetivo por favor: o que você veio procurar
aqui? O que você veio oferecer? Dois minutos para
cada um.”.
Pronto, surgiu o jeito, a metodologia. Convida-
mos quem se interessasse para uma primeira con-
versa, juntos. Em roda, os tratos iniciais - aqui,
neste momento, somos iguais em direitos e de-
veres. Encontro sem palestra nem eventos, só as
falas individuais...
Cada um sintetiza quem-é-o-que-faz, se-repre-
senta-uma-instituição, o que procura, o que ofe-
rece. Tempo limitado, um-dois-cinco minutos,
dependendo de quantos estão presentes e do
tempo total que pretendemos estar juntos naque-
le encontro.
É um desafio sintetizar, falar pouco e
objetivamente. Aprendemos juntos. Para facilitar
o controle dos tempos individuais, há encontros
em que utilizamos uma ampulheta, outros em
que batemos palmas no limite ou simplesmente
avisamos, cordiais: tempo esgotado. Depois que
todos falam, os interessados se deslocam para o
café. E, ao redor da mesa, cada um aprofunda a
conversa com aqueles por cuja oferta-procura se
interessou.Trocam informações, ideias, se conhe-
cem. Constroem parcerias.
Base das redes comunitárias, os encontros são
voltados para a construção de realizações, para
a prática de parcerias, através de pessoas repre-
sentativas – interessantes e interessadas – de co-
munidades e instituições privadas, públicas e do
terceiro setor. De modo simples e objetivo, cada
representante se apresenta e fala o que veio procu-
rar e o que veio oferecer.Todos têm oportunidade
de falar e ouvir. E, quando cada um sabe quem é
quem,o espaço se abre para o aprofundamento de
relações e formação de parcerias. Normalmente
os encontros acontecem periodicamente – men-
salmente, por exemplo – no mesmo local ou em
50 51
espaços alternados. A metodologia naturalmente
é adaptável a cada realidade. O importante é que
gere os frutos desejados e possíveis.
Permanecem como memória os classificados so-
ciais e a lista de participantes. Nos classificados,
cada um descreve sinteticamente o que oferece, o
que procura e dá seu nome, telefone, email. Estes
dados são posteriormente digitados e disponibili-
zados diretamente para cada um – via email – e
quando possível para o público em geral, também
virtualmente através da internet. Cópias xeroca-
das podem ser distribuídas para os participantes
de encontros posteriores. Estes classificados são
cumulativos: a cada encontro,novas ofertas e pro-
curas, relativas a novos e antigos interessados.
Rodízio criativo:
imagine uma instituição de porte médio: empre-
sa, serviço público, ong... Em consenso interno,
trabalhadores de um setor liberam um ou mais
do grupo, por um ou mais dias, para visitarem-
-estagiarem em outros setores. Os que permane-
cem no setor original cuidam do cumprimento
do conjunto das suas obrigações normais. Esta a
ideia básica.
 
Parece ser bom para a instituição – e para o traba-
lhador e seu grupo – que cada um tenha o olhar
do todo,além de capacitação aliada ao seu próprio
desejo. E parece ser bom para cada trabalhador
ter acesso a oportunidades que facilitem acrésci-
mos a seus conhecimentos pessoais e profissio-
nais. A prática tem ensinado o melhor caminho.
52 53
5
agências de
inFormações
Consciência 
É mais fácil eu compreender meus processos de
transformações, quando reconheço e considero o
que vai pelo meu inconsciente. Meus atos falhos
me dão sinais. E o que eu compreendo em mim,
talvez melhor compreenda no outro, nos outros.
Reich, Freud, Jung me ensinam que eu, no correr
da vida, adquiro e internalizo defesas. Elas têm
a função de impedir incômodos, especialmente
sentimentos.
Por outro lado, a construção de relações de con-
fiança facilita comunicações mais profundas. As-
sim, antes de entrar propriamente nos conteúdos,
é necessário cuidar de mim,estabelecer aproxima-
ções comigo mesmo.E depois com o outro.Como
no namoro: há o olhar, a empatia, a delicadeza na
aproximação, as identificações comuns, os sinais,
o pegar na mão, a construção da relação.
As inFormações profundas somente chegam ao
seu destino quando o destinatário está receptivo.
Comunicar é uma arte.
Agências de inFormações
Retrato rápido: jornais pendurados nas bancas
exibem quase sempre as mesmas notícias, escritas
de forma um pouco diferentes.As fontes de infor-
mações, parece, são as mesmas. No Brasil, umas
poucas agências de notícias. Agências O Globo,
Folha de São Paulo...?
Uma jovem conhecida,na primeira década do sécu-
lo XXI,registrou que manchetes de grandes jornais
de 27 cidades européias exibiam,no mesmo dia,fo-
tos semelhantes sobre a mesmo assunto. Também
lá poucas agências como fontes de informações.
Reuters, UPI, France Presse, China Press...
Bom problema: como podemos contribuir para
chegar a nós, à população, informações diversifi-
cadas e com qualidade de conteúdo?
					
É possível a realização de uma ou mais agências
de inFormações independentes. Porém, estas
54 55
novas fontes só fazem sentido se os conteúdos
das inFormações a serem oferecidos contribuí-
rem para o bem-estar – individual e coletivo – de
quem as produza e de quem as receba.
De outro lado, observa-se,
tudo potencialmente conspira a favor: conteú-
dos, público, veículos, financiadores, apoiadores.
Há conteúdos de qualidade ainda invisíveis para
a maioria da população. Há veículos potencial-
mente interessados em difundir estas inForma-
ções. Há públicos potencialmente interessados
nestes conteúdos. Há instituições potencial-
mente apoiadoras e/ou financiadoras de agên-
cias de inFormações voltadas para o bem-estar
coletivo. Há pessoas e instituições animadas, in-
teressadas em fazer circular estas inFormações.
Como integrar estes conteúdos, veículos, públi-
cos, apoiadores-financiadores, pessoas-institui-
ções animadas?
A ideia é simples
Uma agência, inicialmente com inFormações
atemporais. Uma pessoa, um espaço, que pode
ser residencial ou institucional. Um computador,
telefone, scanner, fax, internet, softwares que fa-
cilitem acessos a veículos de comunicação.
Havia no mercado – há ainda? – empresas espe-
cializadas que oferecem softwares e dados atuali-
zados sobre veículos de comunicação de todo o
Brasil – rádios, jornais, TV, revistas... Informam
seus endereços físicos e virtuais, telefones, emails,
nome de editores de áreas específicas e mais.
Assessorias de Imprensa utilizam estes serviços,
talvez saibam melhor de quem fornece dados e
softwares. Como exemplos, a confirmar, o Comu-
nique-se www.comunique-se.com.br, o Meio &
Mensagem www.meioemensagem.com.br
Esta pessoa que se propõe ser um agente de in-
Formações: contata e articula produtores de in-
Formações atemporais, constrói um baú virtual
de textos disponibilizáveis, contata e articula edi-
tores e colunistas de veículos de comunicação em
todo o país, oferece os textos do baú. Assim, trata
e se relaciona com um conjunto de veículos que
disponibilizam para seus leitores as informações
originais que esta pessoa cuidou de produzir.
56 57
Se há interação com os leitores, novas inForma-
ções chegam às agências, realimentando o proces-
so, dinâmico. Vão e vêm inFormações.
	
Esta pessoa: ao aprender-fazendo, testa e recria-
-adapta à sua realidade uma metodologia singela
que poderá ser compartilhada com instituições e
pessoas ativas, interessadas em montar suas pró-
prias agências para fomentar a difusão – através
de veículos de comunicação já existentes – de in-
Formações específicas atemporais. Na prática, o
que agências de inFormações poderão oferecer:
no mínimo, artigos e contribuições para pautas
de veículos de comunicação já ativos.
Imagine agências independentes de inFormações
focadas em conhecimentos de interesse público.Inu-
meráveis. Só de pensar o que me interessa – e, acre-
dito, também a muitos – sonho de estalo agências
voltadas para educação, saúde, agronomia, alimenta-
ção...Ouespecíficasparapais,paracrianças,escolas...
E para psicologia-psiquiatria-psicanálise, para oferta
e procura de trabalhos,esportes,teatro,brincadeiras,
voluntariado, solidariedade... Podem ser inForma-
ções específicas.Ou gerais...
Imagino um mundo com inFormações variadas,
de fontes diversas... que eu tenha prazer em saber
e compartilhar com meus filhos,vizinhos,amigos,
com o mundo ao meu alcance.
Vejo os jornais
e me angustio com a constante escolha do Esta-
do-polícia pela atuação mortal ao invés de utilizar
inteligência e afeto. E me pergunto: que atuações
benéficas estão ao meu alcance?
Ao meu alcance está cuidar de mim e das minhas
relações com quem convivo: filhos, amigos, vizi-
nhos, colegas de trabalho. Escutar um e outro que
procuram por escuta, me colocar no lugar do ou-
tro, seja próximo ou passante.
Cuidar de mim significa também mudar para o
melhor programa, fugir da fofoca, escolher meus
pensamentos. Lembro Wittgenstein, de quem
penso que sei só isto: o pensamento é a linguagem.
58 59
6
vários eu
Sinto um pedaço do mundo
Outra noite encontrei uma moça a chorar de dor.
Está com medo de caminhar sozinha. Relata que
alguém tapou sua boca, tentou estuprá-la. Ao re-
agir, levou um paralelepípedo na cabeça, dói e dói.
Quer ir ao pronto-socorro, quer fazer queixa à
polícia. Não sabe escrever nem ler. Caminhamos
de quase Parque Guinle até o Largo do Macha-
do. Só consegui escutar e oferecer o da condução.
Inda nervosa, inda com medo, toma o ônibus pro
hospital. Um tanto de sua tristeza e impotência
ficam comigo. Negra, pobre, gorda, catarro e tos-
se, lágrimas, tristeza, raiva e rua como residência.
Relembro pra não me esquecer
Aquela de Adalberto de Paula Barreto: que você
quer que eu queira preu querer? Toda vez que me
lembro dela, lembro de meus momentos de sub-
missão. Hoje sei que é uma pergunta que só devo
fazer ao espelho.
Do que entendi de Freud, sonho com o desejo re-
alizado. Em Interpretação dos Sonhos, ele fala de
que, quando à noite come azeitonas ou algo sal-
gado, vem sede durante o sono e tende a sonhar
tomando algo que supra a sede que de fato sente.
Quando acorda, acorda com sede. Mas sonha su-
prindo a sede, realizando o desejo.
A comunicação se dá quando o outro entende o
que falo. Alguém já disse algo como a comunica-
ção se dá quando o outro entende.
As coisas me têm, mesmo que eu tenha as coisas.
Se tenho um carro, um trabalho para mantê-lo.
Se dois, mais trabalho. Se tenho um computa-
dor, devo limpá-lo, espaná-lo. Ou trabalho eu ou
quem eu trate para trabalhar por mim.
Ah, se eliminássemos os controles do mundo,
quanto trabalho a menos, quantos recursos libe-
rados. Talvez, lá no fundo, os medos sejam as ori-
gens dos controles.
Aqui escolhas constantes
entre prazer e dor.Treino esboço de sorriso,arris-
co o palco que desejo. Tropeço, volto pro espelho,
60 61
reclamo de mim mesmo. Como num bolero, dois
pra frente, um pra trás.
Não me lembro quem me lembra: seja o mundo
que você quer.
Outros eus
No viver minha vida construo minha visão de
mundo, que se transforma de acordo com o que
vivencio.
Tem gente que sente que o mundo lhe deve. Acu-
mula. Tem gente que sente que deve ao mundo.
Se sacrifica. Tem gente que o mundo e o eu são
um só. Compartilha com o outro que é eu. Ora é
um,ora é outro.Como eu,ora sou um,ora outros.
Outra noite – que outro dia foi ontem – ainda
incomodado com um documentário sobre a re-
pressão de 40 anos de ditadura na Albânia, olhei
no espelho. Eu tinha 18 anos quando militares
tomaram o poder em 64. E 39 quando houve no-
vamente eleições,mesmo que indiretas.Nestes 21
anos de minha juventude aprendi o medo de me
expressar livremente. A quase paranóia, descubro
chateado, volta à tona volta e meia. Tanta coisa
pra desaprender...
Olhopratrás,praantesdemime,umtantoinseguro,
confirmo que o homem que domina outro homem
está presente no decorrer dos tempos. Dominador e
dominado se complementam,talvez co-responsáveis
pela situação. Um age como se o mundo lhe devesse
umtanto...etomadooutrocomosefosseseu.Outro
se submete,como sem saber do que é capaz.
Natentativadeolharcomoolhardooutro–daque-
le para quem o outro não tem valor – a associação
que faço,imediata,é de que algo lhe foi tirado.Se na
infância ele viveu em si, incompreendida, uma falta,
ele quer agora isto e aquilo e mais. Aquela falta ge-
rou uma necessidade constante de ser tapada, como
se fosse um buraco“agora dentro de mim”.Sem cons-
ciência da falta original, consome a vida em busca
de poder, objetos e afins.Arrisco: se desmamado de
repente,fica um vazio incompreendido?
A mesma falta afetou os afetos.Agora, uma busca
constante de afetos perdidos, de reconhecimento.
Não só isto, mas um tanto.
62 63
Já o oprimido aprendeu desde cedo que não tem
valor. Relembro Groucho Marx – clube que me
aceita como sócio, não entro. Quem o aceita, não
serve. Tão desvalorizado diante de si mesmo,
como respeitar a quem o valoriza?
Ao contrário, parece que o complexo de inferiori-
dade esconde o de superioridade. Ah, você pensa
que sou fraquinho? Você não sabe como sou forte.
Você vai ver! Me engano que gosto.
Reconheço este homem – um e outro – a partir
do que me conheço. Antes desvalorizado ante
mim mesmo, descubro pouco a pouco meus va-
lores. Tanta vida aprendendo o que agora procu-
ro desaprender. Tantas faltas sem sentido ago-
ra se esclarecem, mesmo difusas. A alegria fica
mais próxima, o poder menos necessário, obje-
tos também. E estes menos dão menos trabalho,
libertam-me.
Mas dói quando vejo recursos empregados pra
suprir reconhecimentos e faltas, pra mostrar po-
deres que nem são.
Pedaço de conversa
de rua, duas mulheres que passam:“...não viveu a
vida, morreu cedo. Todo mundo se ajeitou.”
Civilização? Quanto tempo os vikings demora-
ram pra se transformar em suecos?
Mudanças de comportamento, do que tenho
aprendido, mais se dão com o passar de anos. Às
vezes na mesma geração, às vezes não.
Ferenczi pra Freud. Freud pra Ferenczi, corres-
pondências. Papo reto, direto. Atos falhos expos-
tos.Tudo com delicadeza.A dureza do dito agora
espanta, em seguida aproxima. Auto-análises, ex-
posições do confuso, da dúvida.
Ferenczi ama a mulher mais velha. Comparti-
lham interesses intelectuais. Ela é quase comple-
ta, só lhe falta juventude. Ferenczi analisa a filha
da mulher que ama, contra-transfere, se apaixo-
na. Pede ajuda, Freud analisa a moça. Os 4 sabem
do triângulo familiar. Ferenczi dá razão à razão,
transpõe a emoção. Amizades se constroem. A
psicanálise se refina.
64 65
Fofoca
Esta ouvi do Dr. Fritz, em transe: João falou pro
Pedro: quero lhe contar o que aconteceu com Joa-
quim. Pedro perguntou: o que você vai me contar,
é bom pro Joaquim? E João: não. Pedro continua: e
pra você? João: não. Pedro, de novo: e pra mim? João:
não, não é bom pra você também. Pedro arremata:
então não me conte não.
De Agnès Jaoui, que exerce múltiplas funções, em
matéria d’O Globo: Ser atriz e cantora é como ser
criança, a gente brinca. Escrever é como ser adulto.
E dirigir é como ser um pai ou uma mãe, você tem
que prestar atenção a todo mundo. São profissões di-
ferentes, por isso amo todas.
7
lembranças
Escrevo para lembrar:
olha eu aqui, existo. Também para me entender, a
mim, a outros, ao mundo. Quero ser reconhecido,
amado. Tenho medo do que não compreendo. O
que não compreendo, no início, é difuso, confu-
so. Não enxergo um palmo diante do nariz. Sin-
to que viver é perigoso, mas não viver parece ser
mais. Quando apalpo, ando, chego mais perto, a
vista se acostuma à névoa, o mistério vai clarean-
do, a compreensão substitui o medo, alguma or-
dem se segue ao caos.
O tempo passa, a memória me trai, multiplicam-
-se os mistérios. Sessenta e um anos e permane-
cem marcas infantis, desejos juvenis, dúvidas an-
teriores a mim. Tem coisas que sinto que sei. Um
tanto aprendi do que vivi.Outros tantos do que li,
ouvi, encostei, cheirei, provei.
Agora a memória mais remota é porta de rua,
gente grande conversando, eu com dois, três anos.
66 67
Ficaram histórias de almas de outro mundo, mu-
las sem cabeça, uma foto de uma morta num cai-
xão. No berço, sombras. Os olhos fechados pra
fugir dos medos. Tão apertados que distorceram
– na segunda infância, sem enxergar direito, fui
Luiz Ceguim.
Eu era pobre e não sabia. Não havia o que compa-
rar, felicidade e infelicidade eram desconhecidas.
Não havia rádio, telefone, televisão, internet, luz
elétrica. Calorão tropical. Farinha na cuia pros
que pediam esmola à porta. Água do pote pra be-
ber. Chão de espécie de tijolo. Arroz, feijão, fari-
nha, rapadura, carne seca. Gamela, pilão. Banana,
melancia, manga. Café torrado, fogão a lenha. Ba-
nho frio na bacia, toalha de saco. Roupa lavada no
rio. Praça com cruzeiro, esquina de rua que leva
ao cemitério, mortos que passam carregados em
seus caixões.O vizinho que estudou muito e ficou
doido.A tia mocetona, presa no quarto, canta ser-
taneja se eu pudesse, se papai do céu me desse duas
asas pra voar...
Hoje sinto que era rico e não sabia. Não sabia se
eu era pobre ou era rico. Nem sabia o que era ser
rico ou ser pobre. Daquele tempo ficou em mim,
forte, a memória afetiva. Já os fatos, como névoas.
Mamãe chegou a Salinas pra dar aulas,
aos quinze anos. Papai já estava lá, amado e mi-
mado pelo pai adotivo. Cheguei quando meu ir-
mão e duas irmãs já tinham nascido. Mamãe aos
vinte e sete, quando se percebeu grávida de mim,
imagino o sentimento imediato: ah, não! Talvez
só minha imaginação, não ter sido desejado no
primeiro momento.
Soube por mamãe que, aos 29, cuidou cuidar da
própria vida. Um filho em cada casa de amigo, o
mais velho com ela, foi se capacitar em Belorizon-
te. Isso facilitou a nossa mudança, dois anos de-
pois, para Montes Claros, onde mamãe estava em
casa, próxima a muitos dos seus catorze irmãos,
parentes e amigos de infância.
De Salinas minha memória traz os cheiros, os
sons, o sol, uns medos, uns deslumbramentos.
Imagens das pernas de presos pra fora das janelas
da cela, um clima de festa na feira dos sábados –
bruacas, animais, sacos de grãos e farinhas, gente,
68 69
muita gente. Eu num vai e vem, movimento no
movimento. Panelas, boizinhos e cavalinhos de
barro, colheres de pau, biscoito, requeijão, pão de
queijo, tacho de cobre. Um bocado de mistérios.
Já em Montes Claros, medo mesmo tive no cate-
cismo. Aquele inferno que nunca acaba, chamas
eternas, pavores. E as dúvidas do que era pecado
mortal, venial. Quaresma, panos roxos cobrem os
santos, carne nenhuma à mesa. Os olhares tris-
tes das imagens, os ferimentos de cristo. Os dez
mandamentos, os sete pecados capitais. A proibi-
ção do ócio, do sexo, da raiva, da alegria, das ex-
pressões de emoções. Eu era pecador e não sabia.
Antes eventualmente sofria, agora o sofrimento
estava dentro de mim, constante.
À crueldade dos adultos se somou a das crianças.
Mamãe definiu: brigou na rua, apanha em casa.
Inseguro, provocado, tirava os óculos, fechava os
olhos, dobrava o corpo e dava murros às cegas.
Apanhava na rua, apanhava em casa.Até hoje não
sei brigar.
Mas brincava de roda, pegador, seu rei mandou
dizer. Ouvia serenatas, me lambuzava de manga,
pipoca era uma festa. O cheiro que a chuva pro-
voca na terra, finca, bilboquê, luta de espadas, pa-
pagaio na linha, pé no chão. Latim, matemática,
desenho, trabalhos manuais, português, geografia,
religião, história. Um pouco de francês, inglês, co-
ral. Recreio, trabalho na cantina. Férias. São João,
passeios no mato,banho de rio.Tarzan,Mandrake,
Fantasma, Cavaleiro Negro, Zorro. Matinê, seria-
do, Rock Lane, Roy Rogers, Kung Fu. A boiada
passando na porta de casa. Os compromissos es-
colares,as obrigações caseiras – comprar o pão,en-
graxar sapatos, passar cera no assoalho, arrumar a
cama,levar e trazer o que for preciso,eventualmen-
te buscar marmita. E olhares afetuosos de quem
gostava de si. E de mim.
Permaneço criança,
fantasiado de adulto. Sinto hoje minha criança
presente em tudo o que sou e faço.Amadurecendo,
aprendo agora gostar de mim. Reconheço – recor-
do que fiz o melhor que soube,que pude em quase,
se não todos, momentos da minha vida.
70 71
Depois, horas dançantes, desejos fortes. Os apertos
de mãos,o bate-coxas,os rostos colados,os beijos de
língua, as mãos nos peitos. A iniciação no bequinho
dosmeninos,orisco,ofrisson,ogozorápido.Sempre
presente,proibido – um tanto fora,um tanto dentro
de mim – o sexo.
Aosdoze,paraganharumpouco,vendicestasdena-
tal.Que alegria um dinheirinho fruto do meu traba-
lho.Depois,lápeloscatorze,aulasdematemáticapro
filho do representante da Brahma na região, que me
contratou depois como auxiliar administrativo.Fiz o
segundo científico em Belorizonte, o primeiro e ter-
ceiro em Montes Claros.Vestibular – não passei em
BH– escolhi,mesmosemsaberoqueera,economia
eláfuieupraBrasília.Deiaulasdematemáticaànoi-
te no Gama,fui monitor de estatística na UnB,esta-
giário no Ministério daAgricultura,Socorrofoimeu
amor e com razão me deixou. Sai de dois serviços
públicos, errei como pequeno industrial de malhas.
Arrisquei o Rio.
Início dos anos setenta
Conjugado dividido em Copa, um karman-ghia,
paquera aleatória diária, sexo como objetivo. Cul-
pas misturadas com prazeres. Trabalho no Insti-
tuto de Colonização e Reforma Agrária, o Incra,
aqui responsável pela coordenação do treinamen-
to e seleção de quem cuidaria de fazer os levanta-
mentos de dados em campo.
O combinado era uma passiva reforma agrária,
através da taxação progressiva tanto das pro-
priedades menores, os minifúndios, quanto das
propriedades maiores, os latifúndios. Maiores ou
menores em relação à área definida em cada mi-
crorregião como a suficiente para a sobrevivência
e desenvolvimento econômico de uma família tra-
balhadora. Levantamento feito, memória difusa,
quem detinha o poder de assinar, decidir optou
pela proteção aos latifúndios.
Larguei mais este serviço público, vendi o carro
– já um fusca – e, com Ana, pegamos o navio em
direção incerta, hippies sem saber que éramos.
Uma semana em Barcelona, dez dias em An-
dorra acolhidos por um índio peruano, um frio
danado, atravessamos a Europa batendo a mão,
carona pura até Amsterdam. Lá, centro da cidade,
na redlight, mulheres na vitrine, encontramos um
72 73
quarto bom,ambiente aquecido,chuveiro externo
quentão,baratinho.Ana foi posar na escola de de-
senho e pintura, eu aprender a bater perna.
O Kosmos, um choque. Centro cultural para jo-
vens holandeses, financiado pelo governo, duas
moedas pra entrar, de cara um salão grande, algu-
ma fumaça com cheiro bom como os dos bolos e
tortas, música suave, pessoas calmas espalhadas.
Outra porta, um forno elétrico, barro à vontade
para quem quisesse esculpir e levar. Depois um
salão, cubos grandes em muitos níveis, espaço
para apresentações de artistas passantes, asiáti-
cos, europeus, africanos, latinos, americanos, de
outros mundos. Desço escada, uma cozinha com
aquelas comidas estranhas, cheirosas, leves, casei-
ras, que depois descobri macrobióticas e naturais.
Sauna grandona, homens e mulheres conversam
e agem como se não estivessem nus. Tudo muito
paraíso. Noutro lugar, à noite, o Paradiso. Coca
e maconha oferecidos na calçada, música a mais
moderna adentro. Corri da coca, medroso de me
apaixonar. Aos meus olhos tudo muito leve, tudo
muito puro. Alegria quase insuportável. Assim as
portas se me abriram para outras janelas.
Antes, em Brasília,
vislumbre de nova vida. 1965, dezoito anos, meus
tempos e afazeres por minha conta. Duzentos e
trinta professores demitidos, greve boa parte do
ano na universidade. Estudos intercalados com
aventuras. A população masculina predomina-
va. Zona boêmia, rendez-vous só fora do distrito
federal. Pegava carona, lá ia eu mendigar por
amor, carinho, consideração. Bati errante, errado
em portas erradas. Madrugadas frias, solidão.
Também por carência - necessidade de estar pró-
ximo a colegas, de ser aceito - perdi no baralho
muito de minhas mesadas.Já no segundo ano,mo-
nitor de estatística na universidade, estagiário de
economia no Ministério da Agricultura, professor
de matemática para o ginasial de escola da Fun-
dação Educacional do Distrito Federal. Em 66
já tinha um fusquinha. Em 67 completei rapidi-
nho todas as matérias do currículo de Economia,
fiz outras de Administração Pública enquanto
esperava o tempo mínimo para me diplomar.
Muito jovem aprendi a ser bonzinho.Pra não apa-
nhar, literal e simbolicamente. Como uma defesa
74 75
diante do mundo. Meu humor era leve, brincava
fácil. Cedo percebi que podia escolher meus ru-
mos. Era só me responsabilizar pelos resultados
do que fazia.
Atenção redobrada ao que acontecia fora e dentro
de mim, ao que era real e ao imaginado. Medos
antecedendo às decisões.Culpas depois das ações.
A cada fugida da regra, da normalidade, medos e
culpas e reflexões.
Erro e acerto, tateando atento, emimesmado. A
regra de ouro presente: não fazer a outro o que
não desejo pra mim. Como auto-referência, meu
humor. Se bem-humorado, vale, valeu. Se mal, o
que está ao meu alcance?
Adulto jovem
descobri que quando alguém me diz não! devo
rapidim verificar se este não é de quem diz ou é
meu.Volta e meia querem cortar meu cabelo,mu-
dar meu jeito, trocar minha camisa, que eu cons-
trua uma pirâmide. Normalmente é problema de
quem tem problema com seu próprio cabelo, seu
jeito, camisa. E de quem complica sua vida cons-
truindo as pirâmides que inventa.
Agora mesmo agradeço oportunidade de me
candidatar a recursos para realizar documen-
tário que quero. O assunto, terapia comunitá-
ria, me interessa profundamente. Mas me an-
gustiam prazos, prestações formais de contas,
limitações externas de conteúdos. Acordei já
com o estômago contraído. Decido pelo que
desejo e está ao meu próprio alcance, com
meus recursos e tempos. Imediatamente meu
corpo relaxa, meus pensamentos se aquietam,
me acalmo.
Nada a ver, tudo a ver, uma quase dúvida: juven-
tude é estado de espírito? E velhice?
Amsterdam se foi inesperadamente
A morte da mãe de Ana nos trouxe de volta. Fo-
mos até Cádiz, atravessamos o estreito de Gi-
braltar, Marrocos. Meu rabo de cavalo agora em
coque, receio não ser aceito cabeludo em cultura
estranha. Tetuan, o ônibus tosco pega e deixa
pelo caminho gente, carga e animais. Punhais
76 77
saem de djelabs para descascar frutas, cortar
nacos de carne. Camelos passam ao largo. Aos
trancos, Marrakesh.
No Zoco, mercado central, montes de castanhas,
aquela música serpenteante vinte e quatro horas
por dia. Gente que conversa pegando na gente.
Um que passa com duas luvas de boxe à procu-
ra de contendores que apostem no seu próprio
taco. Às tardinhas, o mesmo personagem – aga-
chado como seus espectadores – conta histórias
como novelas.
Um menino me puxa e oferece atento a tudo –
kif, kif, cinq dirrans! Compro aquela mão cheia de
maconha - haxixe? - vou esgueirando pra pensão,
aperto um baseado com alguns desconhecidos
aventureiros espanhóis, fica tudo escuro de re-
pente, perco a visão por catorze horas. Badtrip.
Talvez decorrência daquele ácido potente que to-
mei inocente no banheiro em Amsterdam, alguns
dias atrás – fiquei então seis horas em orgasmo
contínuo, e outras tantas em puro terror, a zanzar
pelas ruas e canais da cidade estranha.
Na África a visão voltou, meus medos me fizeram
limitar-me ao botequim frequentado por euro-
peus errantes como eu. Enquanto Ana, como se
estivesse em casa, já com vestimenta local, andava
pelos becos a descobrir de um tudo da cidade e
sua gente. Só Jung pra explicar esta memória an-
cestral de Ana, nascida Aben-Athar.
Pegamos o destino errado, na volta
Só homens no vagão, o chefe de trem sacou o pe-
rigo e nos acomodou numa cabine isolada. Passa-
da a noite em nebulosa direção, retomamos não
sei como o caminho para Casablanca. Dali, Espa-
nha, Portugal ainda salazariano, avião pro Brasil
de Médici. Ou Geisel.
No Rio, busca de uma nova rotina, burocracias.
Nos meses que antecederam a ida pra Europa
morávamos sete numa casa, comunidade urba-
na criada por nós – Ana, Paulo Cangussú e eu.
Inicialmente três, colocamos anúncio em jornal,
talvez Pasquim ou JB, e acolhemos quatro desco-
nhecidos. Era tanto movimento que volta e meia
dormíamos fora, em busca de sossego.
78 79
Uma vez,em Ipanema,na praia,quando acordamos,
Paulo, primo amigo comunitário original, deu por
faltadosóculos.Procuradaliedaqui,rastrosderatos
nos levaram aos seus buracos. As lentes continham
celulose,apetitosaprosroedores.Foram-seosóculos.
Outra vez abri a parte de cima do armário do meu
quartoe,lá,numasacoladasCasasdaBanha,daque-
la de papel, maconha até o tampo. Surpresa que ex-
plicou tamanho entra e sai de gente estranha.Talvez
ali a gota d’água pra dissolver a casa e a comunidade.
1973
Alugamos com Roberto Amaral um sala e quarto
na Barra. Prédio com cento e quarenta e quatro
pequenos apartamentos, só nós morando duran-
te a semana. Água potável trazíamos de fora. Em
busca de glória, dinheiro e de não sei mais de que,
catálogo telefônico nas mãos, ofereci de porta em
porta meu trabalho gratuito a produtoras de cine-
ma. Memória insegura.
Um concunhado que era filho de uma prima de
Lucy, mulher de Luiz Carlos Barreto, entrea-
briu uma fresta. Barreto me acolheu, me deixou
à vontade. Durante três meses cheguei cedinho,
sai noitinha, mexendo, escutando, atento. Espe-
cialmente a partir de informações de Lucy, escre-
vi um manual de produção de cinema, com tudo
quanto é tarefa e controle. Frilança, fiz uma se-
cretaria de produção d’A Estrela Sobe, de Bruno.
Nelson Pereira dos Santos, talvez não se lembre,
sem me conhecer, me marcou pela atenção com
afeto.A produtora era um centro cultural, vaivém
de gente diferente.
Dali fui segundo assistente de montagem de Es-
corel e Amaury no Guerra Conjugal, de Joaquim
Pedro. Na Mapa de Zelito, na Urca, rolava no fi-
nal das tardes uma comida caseira deliciosa e à
mesa sentavam os chamados senadores do cine-
ma novo – Cacá, Leon, Jabor, além de Joaquim,
Nelson, Zelito, e, olha a memória curta, talvez
Glauber. Ali, acredito, o berço da Embrafilme.
No Largo do Machado encontrei Carlos Alberto
Prates Correia. Carlos Alberto, minha referência
amiga mais forte no cinema, me ensinou ser dire-
tor de produção de seu filme Perdida, que arreba-
nhou em Gramado a maioria dos kikitos daquele
80 81
ano. E, na história da Embrafilme, único filme a
devolver dinheiro não gasto do financiamento.
1976
De novo, navio mais barato que avião, doze dias
no mar, Europa. Londres, rapidinho encontra-
mos o porão certo da casa condenada. North Go-
wer Street, pertinho da Union London University,
a ULU, onde – para nosso fraco inglês não nos
denunciar intrusos – calados entrávamos, calados
almoçávamos e tomávamos banho.
Na casa comunitária da esquina da nossa rua aju-
dávamos fazer pães integrais. Ana trazia doces
indianos deliciosos do restaurante onde trabalha-
va na cozinha. Eu, não sei como – imagino fazia
mímicas – arrumava trabalho por telefone. Pulei
de operário ajudante de obra para modelo de es-
cola de desenho. Depois lanterninha e vendedor
de sorvete no teatro da ULU. Lia as poesias de
Mao em português, comia kebab, batia perna pelo
centro da cidade.
Desconfiei serem agentes do DOPS os fotógrafos
que clicavam em passeata de protesto contra Gei-
sel, em visita oficial a Londres. Medroso de não
poder voltar ao Brasil, arrumamos rapidinho as
malas e, seis meses após nossa chegada, voltamos
de avião para casa.
Não sei agora a ordem das coisas. Na fronteira de
Santa Tereza com o Silvestre, a Equitativa tinha
um quê de paraíso – a floresta da Tijuca à jane-
la, gente em busca alternativa como nós, aluguel
barato de um apartamento velho por restaurar,
uma pracinha com vista de cartão postal da baia
da Guanabara.
82 83
8
psi
Wilhelm Reich foi um choque
Almir, jornalista agitado, apresentou o Combate
Sexual da Juventude, escrito na década de trin-
ta para jovens alemães. Pela primeira vez, uma
orientação sexual não moralista. Eu trazia em
mim as culpas do catecismo,reforçadas pela leitu-
ra do limitado Vida Sexual de Solteiros e Casados,
de João Mohana, padre e médico. Que experiên-
cias teriam homens com voto de castidade para
dar orientações sexuais a inocentes crédulos?
Mergulhei, fui fundo em Reich, li A Função do
Orgasmo, Revolução Sexual, Psicologia de Massas
do Fascismo, Irrupção da Moral Sexual Repressiva,
Escuta Zé Ninguém, Casamento Indissolúvel ou Re-
lação Sexual Duradoura, Análise do Caráter. Para
sentir, só me restava viver. O pecado seria não ex-
perimentar.A regra de ouro permanecia: não faço
a outros o que não desejo que façam a mim.
Romel Alves Costa, psiquiatra, também tinha
sido tocado por Reich. Experimentou técnicas te-
rapêuticas com um colega, deixou o emprego no
INSS, abriu espaço e colocou anúncio-tijolinho
no Jornal do Brasil.
Lá fui eu, por cinco anos, muitas vezes por sema-
na, hora marcada, nu de corpo e alma, me emo-
cionar,tentar me sentir e me entender.Respiração
e movimentos, atento. Volta e meia formigamen-
tos. Se os suportava, vinham reflexos. Com os
reflexos afloravam sensações, sentimentos, pen-
samentos. A memória fazia presente o passado.
Fichas caiam, compreendia dentro de mim, insi-
ghts bem vindos. Movimentos de braços, pernas,
pélvis, olhos... Em meu corpo, minha memória,
minha história.
Na penumbra,
seguia com os olhos a luzinha manuseada pelo tera-
peuta.Derepente,tantasvezes,lapsos.Quandodava
pormim,estavaemposiçãofetal,comlembrançasre-
motas de infância. Eu no berço, antes dos dois anos,
os olhos muito apertados, um jeito de fugir daquele
medoqueassombrasmetraziam.Medodealmasde
outro mundo,mulas sem cabeça,defuntos.
84 85
Descobri ali no consultório de Romel a origem
de minha visão distorcida. De tanto apertar os
olhos, acredito ter forçado a musculatura local a
ponto de perder a elasticidade. Com os exercícios,
pouco a pouco recuperei esta mobilidade muscu-
lar. A lente direita de meus óculos diminuiu de
quatro graus e meio para zero vírgula setenta e
cinco. Depois de usar óculos por vinte e sete anos,
passei três anos de cara limpa, enxergando tudo,
suficientemente bem. Ao mesmo tempo, medos
presentes, antigos e novos.
Passado um tempo, não suportei nem os medos
nem as alegrias. Voltei a usar óculos, mas perdi
outra inocência: sou responsável por mim mes-
mo. Reclamo primeiro ao espelho.
Na Equitativa conheci Ralph Viana
A Rádice já estava no sexto ou sétimo número.
Era uma revista de psicologia com visão ampla.
Trazia da Inglaterra a antipsiquiatria de Laing,
da Itália o movimento antimanicomial de Basa-
glia, apresentava Nise da Silveira e seu Museu
de Imagens do Inconsciente, abria espaço para
os argentinos, para a latinoamérica, pro universo
psi mundial. Além de Freud, Jung, Reich, Lowen,
Alex Polari, outros visionários chegavam a quem
abrisse suas páginas.
Meu coração se juntou às ondas. Me ajudei, aju-
dando. Resumos de livros, administração, dis-
tribuição, divulgação, próximo de quase tudo.
Imagino: mesmo quem não foi saberá como eram
maravilhosas as festas de Ralph quando se re-
cordar das suas próprias melhores lembranças.
Guerrilha cultural, jornais e revistas nasciam,
cumpriam sua missão, eram colecionadas lá den-
tro de quem lia.A Teoria Crítica mergulhava mais
fundo. O Luta & Prazer era leve. O Espaço Psi,
o Nexos, o Estar Bem, o Bem-estar..., como todos
jornais, eram distribuídos gratuitamente.
E os simpósios? O Alternativas no Espaço Psi –
Psicologia, Psiquiatria e Psicanálise, cento e doze
eventos em três ou quatro dias intensos. Em
vários espaços, ao mesmo tempo, palestras, de-
bates, vivências, intercalado com festas, recreios,
namoros. Clima fraterno, solidário. Com zero ou
quase de dinheiro, uma multiplicação de ajun-
tamentos do que cada um co-laborava. Valéria
86 87
Pereira, Ralph, eu – e muita gente, Sérgio, Dau
Bastos, Viola, quem mais? – interagíamos com
os voluntários.
Mas não éramos sós. Tarefas relacionadas, um a
um definia o que se propunha realizar e em que
prazo. Exercício de autonomia integrada. Rede
sem sabermos que era rede. Parque Laje, eventos
diferentes a cada duas horas em cada um dos oito
espaços. Quem entrava se dirigia para o que esco-
lhia. Foram, na verdade, mil e cem simpósios, um
para cada uma das mil e cem pessoas presentes.
Os conteúdos, os jeitos de fazer se espalharam
pelos brasis, adaptados às realidades locais. Hoje
teses acadêmicas recuperam memórias, sopram
novos movimentos libertários.
9
rotina
Escrevo para me confortar,
gostar de mim, alegrar com o que vivo e com o
que vivi.
2011, até abril. Outro dia, quase rotina. O pri-
meiro toque do celular-despertador tem sido às
seis. Depois, seis e meia, seis e quarenta e cinco.
Meia hora pra espreguiçar, obnubilado nesta né-
voa da volta ao dia.Novo toque,se já não comecei,
levanto as pernas pra cima, permaneço um pouco
em cada posição, me dobro até os pés encontra-
rem o espaço atrás de minha cabeça.
Ao mesmo tempo, entreabertos olhos, circulo o
olhar exercitando a musculatura. Pernas pra cima
de novo, depois, um pouco, me aperto em posição
fetal, equilibro um tantinho as pernas no ar e me
curvo pra frente, sentado, as mãos segurando os
pés. Sento de novo, torço meu tórax prum lado,
pro outro. Repito tudo.
88 89
Levanto e faço a saudação ao sol, que Regina me
ensinou. Duas vezes, intercalada com balançares
de braços como li em Castañeda e como aprendi
com Juracy Cançado. Rodo a cabeça, pra esquer-
da, pra direita, como metaleiro em show. Antes,
bem antes, em algum momento, quase sempre,
um e outro movimento bioenergético – bater
pernas e braços como neném, balançar meu corpo
deitado como geleia, focar longe e perto... – da-
queles que vivi com Romel.
Sei que o terceiro toque do despertador aconte-
ce quarenta e cinco minutos depois do primeiro.
Tomo um banho, faço um cafezinho, sento aqui
por uma hora, uma e meia e me divirto em livre
associação, se não inteira, quase. Tenho gostado
de viver. Em casa não tenho remédios. Nenhum,
me orgulho.
Almoço no Panela de Barro, comida leve, saladas
e algo de soja ou queijo, eventualmente um arroz,
feijão. De vez em quando um refresco de guaraná
dito natural. E depois, descoberta, uma cocadi-
nha de Minas, feita com ameixa ou abóbora. O
vício, uns cafezinhos de máquina durante o dia, lá
onde também trabalho todo dia útil, pela manhã
e à tarde, oito a dez horas.
2012, feiras às terças, às vezes aos sábados. Faço
arroz, feijão pra três, quatro dias. Bem simples, só
água e fogo. Preparo o almoço: na frigideira seca,
terfal, um pouco de queijo curado, arroz, fogo
baixo, tampo. Pico algo como salsa, cebolinha,
coentro. Boto em cima do arroz. Do feijão já es-
quentado, pego um pouco sem caldo, acrescento.
Corto o inhame ou a batata baroa já cozida, co-
loco na frigideira. Tudo quente, viro de uma vez
num prato grande. Pronto meu almoço. Talvez
uma couve esquentada na água. Com certeza, na
mesa, pimenta malagueta. É minha refeição prin-
cipal, no meio do dia.
Pela manhã, mamão, eventualmente junto com
banana ou abacate. Durante o dia, quando dá
vontade, corto laranjas em quatro, retiro a cas-
ca com as mãos, uma delícia.
O fazedor italiano – aquele sextavado que já
se tornou popular – me oferece café quente e
novo umas três, quatro vezes ao dia. Água, va-
90 91
rio, tomo pouco, sinto que deveria tomar mais
um tanto.
Lavo mas não passo. Mantenho mas não varro.
Molho as plantas. Cada dia tem sido novo dia.
Gasto só o que tenho.Depois de 49 anos de traba-
lho, salve o INSS, sou um aposentado, digamos,
ativo. Mais foco no que sinto, no que penso, no
que falo, no que faço. Aprendo atenção nos meus
sentimentos, pensamentos, palavras e gestos. Im-
pressionante como volta e meia me descubro co-
locando pedras em meu caminho. Tropeço, dou
aquela corridinha que o tropeço causa, às vezes
caio.Aprendizado mais lento do que desejo. Mas,
confesso,nisto dependo só de mim.Reclamações?
Vou pro espelho.
Leio. Mergulho quando me toco.Alguns livros na
cabeceira, minha mão vai instintivamente onde
meu desejo da hora me leva.
Evito televisão. Só o necessário. Lembro Freud
quando ele afirma que a maioria dos sonhos tem
a ver com o dia anterior. Cuido de hoje pra ter
bons sonhos.
Ah! E toma de tomar banho.Alterno frio e quen-
te. Pouco sabão. Nos cabelos, neca de xampu e
condicionador, só água. Nada radical, como com
a comida. Em Roma, como os romanos. Quando
visito minha família mineira, como carne, ovo fri-
to, pão de queijo. Fantasio que sei o nome da gali-
nha sacrificada, como talvez soubesse nos tempos
de infância.
Limpo os óculos várias vezes ao dia. Sabão de
coco e água, ficam transparentes as lentes. De
duas em duas semanas um casal amigo, Jorge, o
Russo – e Eliany – dá uma geral aqui em casa.
Maravilha, um auxílio luxuoso.
Hoje mesmo – que já é passado – gravo aqui em
casa, só, as apresentações que faço dos programas
Saiba+ que têm ido ao ar pela TV Comunitá-
ria do Rio. Tento torná-los atemporais, pra que
possam ser veiculados em qualquer época. Os re-
cheios são os vídeos-registros-documentários que
realizei ou produzi, só ou com amigos e colegas.
Imagino possam ser veiculados como programas
de rádio, se não sem, quase sem alterações. Para
gravar, sei apertar os botões básicos da câmera
92 93
simples e boa que Elizeu me sugeriu. Já editar,
não sei, sou suprido por profissionais amigos.
E escrevo,re-escrevo,de acordo com os sentimen-
tos que variam em mim.
O FGTS que recebi quando fui demitido do Sesc
Rio tem sido a base para as despesas extras, como
a impressão do livro, a edição dos programas. Já
financiou parte das despesas com um Blogspot
onde reúno quase tudo que me exponho, textos e
links. E a página que o Videolog me oferece, onde
disponibilizo quase todos os vídeos. Já o desejado
sofá, só quando entrar um dinheiro extra de um
trabalho extra.A vida simples, mas boa, do dia-a-
-dia, o salário simples de aposentado garante.
10
incertas
Por limitações humanas,
quantas ideias, invenções, soluções simples foram
e estão sendo deixadas de lado por cada um de
nós? O que faz com que alguém acumule o que
não necessita e que poderia ser útil para outros?
O preenchimento de vazios dentro de si mesmos?
Se vazios, que vazios seriam estes? Quais origens
destes vazios individuais que talvez gerem tanto
consumo, tanta necessidade de poder? Tenho fei-
to a mim estas perguntas que faço a outros.
Pouco a pouco percebo como meus próprios va-
zios estimulam meus comportamentos. Dói to-
mar consciência do que sou, dissolver a imagem
ideal que tenho de mim. Tranquiliza reconhecer
meus limites, o que me falta. Facilita agir a partir
do que disponho. Fico do meu tamanho.
Ligo a TV e alguém que não conheço me
informa que preciso ter algo que antes des-
conhecia. Tenho em mim agora uma necessi-
94 95
dade. Se tenho recursos para supri-la, satisfa-
ção momentânea. Se não, um sentimento de
impotência, incompetência, outro vazio. Me
faz mal, muito mal, esta publicidade do que
não me faz bem... nem está ao meu alcance.
Imagino crianças e adultos inocentes, a todo
momento chamados para novas necessidades
que não têm condições de adquirir. E que não
suprem os afetos básicos, alicerces de bem-
-estar de fato.
Ronald Laing,
em Laços, sintetiza: Mamãe me ama. Eu me acho
bom. Eu me acho bom porque mamãe me ama. E, se
mamãe não me ama, eu me acho mau.
Criança inocente – imagino como muitas – de-
samores, desatenções alimentaram meus vazios.
Descubro em mim, não tenho esta dúvida: os va-
zios que vivi e não transcendi, repito diariamente
nos meus sentimentos, pensamentos, palavras,
gestos.Hoje,invertendo,talvez mamãe aqui signi-
fique aquela mamãe que volta e meia tenho opor-
tunidades de ser. Comigo, com o outro.
Compreendo ato falho
como algo que – diferente da minha intenção
consciente – espontaneamente penso, falo, faço.
Desde, sem querer-querendo, chamar o outro pelo
nome errado até pegar o caminho da casa da na-
morada quando aparentemente intencionava ir
para outro lugar. Assim, atos falhos me interes-
sam, traduzem o que lá dentro – fora da consci-
ência – guardo, retenho, sou.
Pulo
No mundo, hoje, grande parte dos recursos são
gastos em controles.
Mas, acredito, se responsabilidades e direitos –
ganhos e perdas incluídos – são compartilhados
com os trabalhadores de cada empreendimento
ou instituição, naturalmente cada um cuida me-
lhor do que também é seu. Neste cenário hu-
manizado, os custos e os controles diminuiriam
consideravelmente. A tendência, co-laboradora, o
ganha-ganha. Talvez aqui uma contribuição para
transcendência de crises econômicas. Na origem
de tudo, o desejo de quem decide o que está ao
seu alcance.
96 97
Reflexões singelas como estas – quando o olhar
para fora é voltado para dentro de mim – me aju-
dam orientar meus caminhos. Atento ao que está
ao meu alcance, reconheço o que falta e me falta,
delimito, ajo, realizo.
Descubro na internet
que existe uma rede de tecnologia social em que
soluções inventadas são disponibilizadas gratuita-
mente para quem deseje.A cisterna que o pedreiro
nordestino construiu e que acumula água de chu-
vas é referência.Cisternas semelhantes já minoram
a falta d’água para centenas de milhares de famílias.
Imagino uma pequena mudança de atitude minha
ou de qualquer um e de muitos: compartilho o
que aprendi e me facilita a vida, torno minha vida
mais agradável. Ofereço pelo prazer de dar. Co-
migo isto se torna mais fácil quando me permito
pequenos grandes prazeres.Ando descalço, espre-
guiço, como com as mãos, digo uns sins, digo uns
nãos. Abraço inteiro, brinco com o corpo, rio de
mim, divago. Trabalho sem perceber: quando me
dedico ao que gosto, 24 horas por dia estou atento
sem saber. Livres associações são imediatas.
Sempre que mudo de trabalho me dá um medo
danado. Depois de tantas mudanças aprendi que
dá tudo certinho, sou capaz de aprender o que
não acreditava possível. Sei também que quando
trabalho com o que não me identifico, sofro, fico
mal-humorado, chateio quem não tem nada a ver.
E,quando me permito estar bem comigo,trato aos
próximos como trato a mim. Fico bonito, me sinto
assim. Mas – mesmo já sabendo tanto – vario.
98 99
nham. Sirvo ao público com o melhor de mim. Sou
um servidor público. A regra de ouro, presente, me
tranquiliza: não faço a outros o que pra mim não
desejo.Tudo ao mesmo tempo aqui e agora.
Se reclamasse, seria de barriga cheia. Não tenho
um comprimido em casa, comida gostosa todo
dia, banho quente ou frio, máquina de lavar, la-
vanderia que leva e passa, arrumadores que var-
rem e cuidam, vizinhos que me protegem, telefo-
ne que funciona, eu desligado da tv. É meu, meu
tempo.Preciso ser atento e forte, não tenho tempo de
temer a morte, agradeço a Caetano. Desejo recu-
perar meu humor primário. Entreabro a porta de
minha segunda infância.
Eu também?
Posso ter entendido Winnicott diferente do
que escreveu. Arrisco. Ele fala da conveniência
de uma moça querer ser uma mulher. E de um
rapaz desejar ser um homem. Mas constata que
não é sempre assim. Quando se considera o in-
consciente e os sentimentos mais profundos,
descobre-se facilmente um homem durão que-
rendo muito ser uma moça. E uma adolescente
11
reflexos
Há tempos, um dia qualquer
Ontemehojemisturados:temposforadeordem,as
datas variam nestes escritos. Falo de outros, falo de
mim.Agendatãocheiaquenãotenhotempoprame
aproximar de mim mesmo.Escondo-me de mim no
trabalho, não me dou limites. Só posso reclamar ao
espelho. Ajo como se não tivesse consciência. Apa-
rente let it be, laissez-faire, deixa a vida me levar.
Terapia Comunitária me tocou,vou às aulas,pratico
as rodas, decido internamente fazer um vídeo, es-
tou em produção. Escrever como aqui me tem feito
bem. Levanto cedinho, três, quatro vezes por sema-
na,escrevo.Chega às minhas mãos uma transcrição
da fala do Dr. Luiz Moura no vídeo Auto-hemotera-
pia, já produzo a impressão de livreto, penso agora
como fazê-los chegar a quem precisa e se interessa.
Desegundaasexta,diainteironoSesc,cuidandodo
que me propus,burilando o que me decidiram.An-
tecipo,proponho movimentos antes que me propo-
100 101
com uma constante inveja dos homens. Isto pode
estar escondido no inconsciente reprimido.
Me angustio
com os que perambulam sem tudo – afeto, traba-
lho, comida, teto... Não sei o que fazer, dou um
real aqui, um olhar ali, pago um prato. Muito de
vez em quando quero saber, converso. Quando
não suporto, mudo de calçada, o coração aperta-
do, uma culpa danada.
Minha memória, alguém me diz,é de peixe,esque-
ço nomes, fatos. O que me comprometo, anoto,
agendo.Quase tudo é como se fosse a primeira vez.
Ajudo meus filhos quando cuido de minhas pró-
prias angústias. Quando não transfiro meus dese-
jos. Ajudo mais se consigo compreendê-los, aco-
lhê-los e a mim, lembrar-lhes quem somos. Estas
luzes são raras.O mais frequente,evito atrapalhá-
-los nas suas próprias buscas.
Quando estou equilibrado, aí sou bom. Suprido,
escuto. Solidarizo, fortaleço. Enquanto não sou
assim – aos meus olhos quase perfeito – me pro-
ponho ser. Pisco, tropeço em meus próprios bu-
racos.Com dores,paro,sinto,reflito,experimento
um passo atrás, pro lado, pra frente. Vivo como
aprendo a dançar. Este outro meu capital, o que
vivi, o que vivo.
Pausa pra escutar os homens do Bope que na
rua em frente correm agora cantando canções
de morte e guerra. Imagino se canções de ni-
nar, de roda, de dança.
Antonio Faundez,
em conversa com Paulo Freire, do que entendi, uti-
lizava a filosofia como meio para analisar a situação
política,a vida no mundo concreto.Estudava filoso-
fia como uma maneira de se apropriar de conceitos,
de capacidade crítica para entender a realidade.
Mais ou menos um dia
Um dia destes. O avião ronca. Quatro da matina,
cochilo, lembro da importância do som neste do-
cumentário. A entrevista com Adalberto, a roda
da terapia comunitária, as possibilidades de insi-
ghts ao vivo, os depoimentos de quem viveu. Este
o plano. Agora é com a realidade.
102 103
Ontem dia inteiro de reunião com o UNICEF,
focado no repensar o Encontros, experiência em
que jovens de camadas sociais diferentes se re-
únem e, desejo dos que promovem – Michel,
Cláudia, Gilberto, Luciana, Charles, Fernando...
– ampliam conhecimentos sobre si, o outro, o
mundo.
Antes, cedinho, saudação ao sol, café, imeios, tele-
fonemas, embalo livretos de autohemo, pra Gló-
ria, por favor, despachar pelos correios. À noite
converso com Elizeu sobre o roteiro que montou
e a busca de financiamento da Fiocruz.
Arrumo a mala, molho as plantas, telefono, lavo
e estendo a roupa, boto correspondência em dia,
carrego as baterias das câmeras, tomo banho,
como caqui e melancia e desço correndo pra en-
contrar Michel no táxi que nos leva ao encontro
de Hélio no aeroporto, rumo às Ocas do Índio, em
Morro Branco, pertinho de Fortaleza.A caminho
sinto falta das chaves de casa, telefono à uma da
manhã pro Jorge. Descobre que algum outro vizi-
nho já as trouxe, sãs e salvas, pra dentro.
À espera do embarque, entre conversas curtas,
puxo uma, Hélio, cordialmente crítico, me
lembra que sempre tenho uma solução pro
mundo. Entalo. É verdade.
Ocas do Índio
2008. Oito dias de frente prum mar morno e céu
estrelado, tempo todo mais atento a mim e a ou-
tros. Bioenergética cedinho, intercalo, intercala-
mos razões e emoções, descobertas e compaixões,
dores e prazeres. O clima é de reconhecimentos.
Somos entre trinta e quarenta, agora mais que
profissionais, pessoas. As noites são calmas, leves
as comidas e os pensamentos. Cuidando de mim,
aprendo um tanto cuidar de nós. Os que vivemos
nos tornamos próximos.
Adalberto de Paula Barreto é o mestre,maestro.Sua
Terapia Comunitária, já sabemos, facilita rapidinho
solidariedades. Neste espaço, combinamos antes,
cada um só fala a partir do que viveu, experienciou.
Conselhos, julgamentos não valem. Todos têm
oportunidade de se expressar. Quando cada um que
deseja fala – das suas alegrias ou, mais comum, do
104 105
que lhe atormenta –,todos escutam.É democratica-
mente escolhido, para aprofundamento, o problema
como qualmaispessoasseidentificam.Embuscade
melhor compreensão, quem fica na berlinda dá mais
informações e responde a perguntas. Contextualiza.
Depois, em silêncio, ouve quem contribui com o re-
lato de suas próprias vivências similares.
Emoções afloram, pipocam identificações, pesso-
as se aproximam. Ao final, os que querem, falam
do que levam desta roda. Muitas vezes conforto,
tranquilidade, compreensões, auto-conhecimento
e estima. Germinam vínculos, fortalecem-se laços,
nascem e se realizam projetos voltados para inte-
resses comuns ali descobertos.
Cultura,o que é?
Antonio Faundez lembra Paulo Freire e se identifi-
ca com o que ele dizia que descobrir uma cultura é
aceitaroutracultura,tolerá-la.Eafirmaqueacultura
é mais do que manifestação artística ou intelectual
através do pensamento. Sua manifestação mais pro-
funda está nos gestos simples do cotidiano, como os
diferentes jeitos de comer, dar a mão, relacionar-se
com o outro.
Eu próprio quando leio Faundez, o escuto im-
pregnado de minha própria cultura. Já não é mais
Faundez puro. Somos agora misturados, inclusive
a Paulo Freire.
Posses
Tudo muito bem, tudo muito certo. Reconheço, já
não tenho meu tempo. Descobri maduro que não
sou eu que tenho as coisas, são as coisas que me
têm. O carro que não tenho me obrigaria cuidá-
-lo,guardá-lo,emplacá-lo,mantê-lo.O animal que
não tive me pede atenção, cuidados. O dinheiro
requer guarda, controle. O que guardo nas prate-
leiras, no guarda-roupas me pede limpeza, arru-
mação. Tudo me pede tempo. Se não pede, toma.
Hoje, ainda, como não tenho meu tempo, corro.
Na minha infância não soube de faltas até o
momento em que, na cidade maior, vi a vitri-
ne. Desejei o que não tinha. E por muitas ve-
zes me angustiei por não me suprir das novas
necessidades criadas. Só agora compreendi
que o que aparentemente possuo é que me
possui. Minhas posses me aprisionam.
106 107
Foi bom tê-las – estas coisas que me têm – e
agora deixá-las a uma e outra. Por mim, hoje, só
escreveria, filmaria. Muito do que me impede é
minha carência, que me faz querer ser reconheci-
do, admirado, mesmo eu sabendo que – se minha
auto-estima depender do olhar de outros – posso
eu próprio não me reconhecer. Como diz o Adal-
berto, o que você quer que eu queira, pra eu querer?
Winnicott dedicou a vida
à pediatria e à psicanálise, especialmente a
infantil. Fez, nos últimos anos de vida, palestras
para os públicos mais diversos.
Tudo Começa em Casa é o título do livro póstumo
que contém estas palestras. Cada capítulo se en-
cerra em si mesmo.Sua leitura tem me facilitado a
vida, um tanto pela melhor compreensão de mim
mesmo, outro tanto pela compreensão do outro,
mamãe inclusive. E meus lados mãe, pai, filho.
Livre pensar,
levitação de tempo e espaço. Ausência de nada,
presença de tudo. Pulsação, inspiração, expiração.
O fio invisível que me abre o fluxo.
Limbo
Eu, 65, de repente mudança de referências. Me
desculpo, confundo, misturo vida e trabalho,
constante busca, antecipação de futuro – experi-
mento já desejos pro futuro. Utilizo indicadores:
tranquilo humorado me sinto no caminho certo.
Se não, que realizo para novo equilíbrio?
Algo clareia: aprender a viver – tranquilo humo-
rado – com o que está ao meu alcance?
Ficção
A busca-em-ação, a buscação é descoberta, expe-
rimentação, sim e não. Olho pra trás, domina a
memória enevoada. Quando emergem lembran-
ças, as felizes sobressaem. Tudo muito variado,
umas vezes assim, outra incorporado.
E eu,
aqui, em qualquer momento, impregnado de
mim. Confuso e lúcido. Em conversa cifrada co-
migo mesmo, num misto de coragem e medo.
Meu universo pulsa, sou centro e partícula, sou
todo volume e não sou. E a prática de realizar:
sonhar, lembrar, uma história, um plano passo a
108 109
passo,fazer passo-a-passo.Primeiro a estrutura –
o lugar de morar, a saúde para cozinhar, lavar não
passar, a feira, o mercado, o pequeno conserto, a
manutenção, cada coisa tem seu lugar. Aos que
frequentam, livre estar e cada coisa volta pro seu
lugar. + a destinação dos objetos acumulados que
me tornam um carregador do que possuo. As cai-
xas numeradas. E alimentação de processos que
dependem de outros.
Antes a ruptura. A palavra já não mais presa, a
consciência serena, a ética como o básico. A se-
gunda carta aberta, o email geral: compartilho
as perguntas que me faço, as respostas que me
dou.A primeira, aos mesmos contemporâneos da
instituição, sugestões para a prática interativa de
transmissão de conhecimentos que a lei determi-
na e os recursos estão aqui. Esta gera uma chama-
da de atenção formal. A outra, a demissão.
Dor e prazer. Alegria também pela alforria, raiva
pela cegueira do outro, tristeza pela recusa e falta.
Diluiu? Evaporou? Passado um tempo, já é passa-
do. E neste enorme cenário em vivo, tenho focado
no que me mantém tranquilo, também procuro
mel dentro do azedo. Dos bônus, o fundo de ga-
rantia, uma segurança. O plano de saúde mantém
o custo, cumpre a lei.
Então! Estrutura, a casa pronta
Que mais? Com método, cada tarefa agendada.
Pesquisa do necessário, separação de documen-
tos, reprodução, consulta a quem sabe como é o
processo todo. Contagem do tempo das contri-
buições, marcação apresentação. Um dia após 65
anos, entrevista, papéis corretos, direitos garanti-
dos, aposentadoria.
Orçamento responsável: despesa nunca maior
que receita. Adapto-me, camaleão. Vida mais
simples, comida saudável, nova rotina que nem
sei. Permanecem a saudação ao sol, os primeiros
movimentos bioenergéticos. Simplifico o vestuá-
rio. Estou organizado.
Aposentadoria,plano de saúde,objetivos alcança-
dos. O plano funcionou, o cronograma diferente
do previsto. Cuido da legalização da morada.
110 111
Tostão
De novo, quando leio, entendo do meu jeito. E
arrisco. O jogador, pensante, filosofa. Lembra da
solidariedade e da impossível liberdade total so-
nhada por Sócrates, o do Platão. A utopia como
referência, alimentação do desejo. Inalcançável. A
lembrança de Tostão me anima, faz bem. Sonho,
sem me limitar ao possível.
Narciso
Olho no espelho e me surpreendo, tão jovem e
com estas marcas... E é eu.
Insight
O mundo muda quando cai a ficha. Quando o
que compreendo me toca emocionalmente,minha
vida ganha novo sentido. Mudaram meus desejos
atuais quando me toquei que muitas das minhas
necessidades recentes de poder – e dinheiro e ob-
jetos – estavam relacionadas a afetos que desejei
e não tive na minha infância. Tenho me sentido
melhor quando hoje procuro suprir diretamente
os afetos que hoje desejo.
Primeiro,
aprendi do que vi, ouvi, tateei, cheirei, botei na
boca e senti. Desde criança transformei-me no
que me foi apresentado como modelo.
Estou fundamentalmente impregnado de in-
formações que, no correr da vida, recebi tanto
da escola, igreja, família quanto dos meios de
comunicações e dos que estão ao meu redor.
Eu mesmo colaboro para a manutenção da
moral atual, quando nos atos e encontros de
toda hora transmito meus preconceitos aos
meus filhos, amigos, vizinhos, colegas de tra-
balho. Enfim: o homem que sou hoje é fruto
do que antes senti, aprendi. O homem que
serei amanhã deverá ser fruto do que hoje
aprendo e sinto.
O que percebi em mim, percebo em outros. Ma-
puto, 1981, foi quando isto ficou claro pra mim.
Desde então faz parte de minha visão de mundo.
Desisto de mim ou de você?
O que é bom pra nós – pra mim, pra você – de-
fine o que podemos? Descomplicando, talvez já
112 113
saibamos como tornar possível nossa relação:
respeitar-me a mim e à outra, ao outro. Quero,
por exemplo publicar o que escrevo, inda mais
quando escrevo o que sinto. Me limito, me emu-
deço ou faço o que desejo? Desisto de mim ou
de você? Ou não desisto e realizo meu desejo,
independente de você? Amor implica em depen-
dência? Ou ao contrário? Amor não como pri-
são, mas como estímulo à liberdade? Vice versa?
Eu aqui com meus sentimentos.
12
balanços
Presente
Tempos passados, semana dessas...A semana co-
meça, dois dias e já me canso do trabalho que não
escolhi. Me pego ansioso em relação ao que me
propus: realizar o vídeo Terapias Comunitárias e
escrever um livro. Tenho tido prazer em levantar
cedo e escrever sem compromisso. Gravar situ-
ações emocionantes também é prazeroso. A an-
siedade, desconfio, vem da inclusão de limitações
ao tempo. Determinar datas me obriga a cumpri-
-las. E aí, já sei, minhas escolhas perdem sentido.
Que fazer?
Uma primeira opção é respeitar os tempos na-
turais, meus e dos outros. Uma série de tarefas
preparatórias antecede gravações. Depoimentos
conceituais, opiniões, visões do método, da sua
aplicação, eficiência, eficácia, já colhi suficientes
– com a ajuda de Michel, Naly, Carolina, outros
colegas do curso de formação. Agora são neces-
sárias rodas de TC. Fiz os primeiros contatos
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Uma vida em comum como qualquer um

  • 2. para Felipe e Pedro e quem deseje Copyright © 2012 Luiz Fernando Sarmento Ilustração Capa Luiz Fernando Sarmento Diagramação e Capa Pedro Sarmento CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ S255v Sarmento, Luiz Fernando Uma vida em comum como qualquer um / Luiz Fernando Sarmento. - 1.ed. - Rio de Janeiro : L. F. Sarmento, 2012. 264p. : 15 cm Índice ISBN 978-85-913883 1. Psicologia. I. Título. 12-4516. CDD: 150 CDU: 159.9 29.06.12 04.07.12 036637 uma vida incomum como qualquer um Luiz Fernando Sarmento
  • 3. 1. Fora de Ordem 10 2. Mamãe 25 3. Um quase nada de quase tudo 29 4. Redes 34 5. Agências de inFormações 52 6. Vários eu 58 7. Lembranças 65 8. Psi 82 9. Rotina 87 10. Incertas 93 11. Reflexos 98 12. Balanços 113 13. Programas de TV 121 14. Piripaco 127 15. Talvez 131 16. Outro dia, um como outro 134 17. Pausa 143 18. Juntomisturado 145 19. Manual de manutenção 158 20. Hoje, já passado 161 21. Insights? 165 22. Ficção, desarrumações 167 23. Sensação de juventude 169 24. Anotações 172 índice
  • 4. Aqui os tempos se misturam tanto quanto os assuntos. Fim e meio não sabem onde começam. Sorte de quem escolhe o que lê. E salta o que não lhe importa.
  • 5. 10 11 1 fora de ordem Tudo um tanto confuso, não sei direito quem sou, que faço. Só sinto, só penso. A novidade é que aqui e agora estou estru- turado, como desejei e produzi. Filhos cuidados, casa com cada coisa em seu lugar, despesas bási- cas de todo dia supridas – comida, condomínio, telefone, gás, luz, net-internet. Posso acordar e, em cada momento, escolher o que fazer da vida. Os desejos vão, vêm, se transformam.As variáveis que interferem nos meus desejos são inúmeras, inesperadas, fora do meu controle. O que é agora pode ser diferente depois. Quase como rotina, cuido de mim; alongo ao acordar, cozinho, lavo, mantenho o básico. Cada dia tem sido outro. De duas em duas semanas um casal arruma o apartamento. Outros amigos e colegas copiam vídeos que realizei só ou em par- cerias, incluem na internet, compõem programas alternativos de TV. Participo de encontros de in- teresse comum, ajo reativo ao processo de cada parceiro, despreocupado de tempos. Em relação ao bem-estar meu e do mundo, procuro distin- guir o que está ao meu alcance. Dentro de mim, cada vez mais tranquilo.Isto ontem,hoje de outro jeito, amanhã não sei. Quero agora escrever, fora de ordem. Princípio, meio, fim se misturam. E, dependentes de minha memória, se perdem ou nem se completam. Ima- gino – e proponho agora – cada leitor, se houver, cuide editar o que leia. Escolho o mais próximo do que sinto síntese. Vez ou outra me repito, como pra recordar. Detalhes, aprofundamentos, talvez mais adiante. Compartilho o que, inda que verde, me faz bem e imagino pos- sa fazer a outro. Se edito a prosa, encontro o verso. Se edito o ver- so, o hai-kai? Se edito o hai-kai, o silêncio. Nem tudo se resume a isto. Confesso, não sei direito o que é hai-kai.
  • 6. 12 13 Em pleno vôo, a aeromoça orienta. Quando as máscaras caírem, primeiro cuide de você, depois dos outros, mesmo crianças. Analogia imediata, cuidarei melhor do outro, se antes cuido de mim. Como você pode cuidar de mim, se não cuida de você? A pergunta que fiz a um amigo, tenho feito ao espelho: como posso cuidar do outro, se não cuido de mim? Tento inventar, descobrir, construir jeitos de rela- cionar-me que me supram.Aprendo que não pos- so dizer sim a algo que não está em mim. Facilita minha vida quando separo a loucura do outro da minha loucura. Se a mim não me permi- to, a outros inibo. E vice versa. Quando não beijo, por exemplo, muitas vezes não suporto outros se beijarem. Muitos“não!” que me chegam, são“lou- curas” de outros. Como Cacilda Becker, não tenho tido tempo pra lutar contra, só a favor. Como, talvez,Tom Jobim, aprendo que democracia é muito bom, inda mais se a pratico aqui com meus colegas de trabalho, lá em casa, com quem está ao meu alcance. Des- cubro que meus pensamentos são escolhas mi- nhas. Que gentilezas têm me gerado gentilezas. E quanto mais me conheço, melhor vivo. Na tentativa de tornar mais simples minha vida, aprendo que quanto menos tenho, mais leve me sinto. Um par de sapatos é suficiente, três me dão mais trabalho que um. Os objetos é que me têm, não eu que tenho os objetos. Carros dão traba- lhão. E plantas, animais: é o cachorro que me le- varia a passear, não eu a ele. Não posso deixar a casa sozinha se há plantas pra cuidar. Qualquer coisa que tenho, me dá trabalho. Um bibelô? Te- nho que espanar. Se tenho em excesso, trabalho em excesso. Sou assim quase escravo do que te- nho. Os objetivos também: pautam minha vida. Mas meus filhos não são meus, quase sempre eu me guio pelos meus filhos. Sinto bem. Os saldos positivos da minha vida estão relacionados aos afetos.Aprendo que um meu capital básico são as relações que cultivo, os afetos que me envolvem. Que sonhar me faz bem: me orienta o que faça. E que há vazios em mim que só eu posso aprender a preencher.
  • 7. 14 15 Alguma compaixão me nasce em relação a quem dedica a vida a acumular coisas e sentimentos, em tentativas de preencher vazios que em si mesmo desconhece.Aprendo que melhor aprendo,fazen- do. E que melhor ensino, sendo. E eu, que não consigo resolver esta pretensão de que sei um tan- to sobre quase tudo? Como eu, imagino que uma mãe, um pai, professor, patrão, governante, sacerdote... desejam que um outro seja o que não é. Eventualmente inconscientes, projetam no outro seus próprios desejos. Nuns e noutro, quando cai a ficha – se cai – a consciência se dá,a compreensão se instala,o comportamento tende a mudar. Quando a ficha não cai, permane- cem – eternas? – incompreensões. Livre associo, misturo de um tudo.Nas ruas,louras,louras,lou- ras. Chego mais perto, são negras as raízes dos ca- belos. As louras, na verdade, são morenas. Barbie, modelo de beleza, american way of life, é referên- cia. Nas falsas-louras nativas, talvez angústia por não serem semelhantes aos ídolos adotados. Comunicação é meio, mesmo o meio sendo em si mensagem. O pri- meiro desafio que vivo é perceber o que meu próprio inconsciente tenta me comunicar. Apesar dos impedimentos por parte de ou- tras partes de mim. Fico atento aos sinais que me dão meus atos falhos. Ato falho não falha! Conteúdos que me tocam me emocionam. Mi- nha memória afetiva, sinto, permanece. Minha memória racional me escapa. De que mesmo eu estava falando? Quero aprender, como diz Simone de Beauvoir, a “viver sem tempos mortos”. Concordo com Sérgio Mello: os planos funcionam, difícil é o cronograma. Também com alguém, não me lembro quem: seja o que deseja ser. De vez em quando me pego muito eficiente, no caminho errado. Perdi minha vida por educação. Foi Verlaine quem disse?
  • 8. 16 17 Esta aprendi com Adalberto de Paula Barreto – a pergunta que antes, submisso, fazia a outros, ago- ra tenho perguntado ao espelho: que você quer que eu queira, pr’eu querer? Aprendi e me tem feito bem: meu humor como indicador. Se estou de bom humor, estou bem. Se de mau humor, estou mal. Identifico-me com o que entendi do FIB, Felicidade Interna Bruta. Meus filhos,meus amigos aprendem comigo mais pelo que sou do que pelo que falo. Vice versa, eu também. Meus desejos me mobilizam. Eu me movimento a partir dos meus desejos. Desejos são básicos aos meus movimentos. Procuro descobrir quais meus desejos. Tento construir, pelas ações, pontes entre desejos e práticas. Pra facilitar, só quando preciso, numa coluna listo as tarefas que julgo necessárias para a realização do desejo. Ao lado de cada tarefa, em outras 4 colunas, prevejo datas, custos, responsá- veis e anoto outras observações. Dentro de mim, o conflito entre prever-planejar e não ter agenda, não limitar o futuro. Talvez eu possa planejar e adaptar à realidade o que antes previ. Se não gozo quando transo,permaneço com uma vi- vacidadejuvenil,oprazerpermanece.Ogozojánãoé meta.Ameta,seexiste,éoprazeremcadamomento. Onde vai meu pensamento, vai minha energia. Aprendo escolher pensamentos. De Freud entendi que muitos dos conteúdos dos sonhos estão relacionados a acontecimentos do dia anterior. Quando suporto alegria, antes de dormir, leio o que me faz sentir bem. Quando acordado, evito situações que me gerem senti- mentos desagradáveis. Outros em outras épocas já descobriram um tan- to disto tudo. Esta memória coletiva onde está? Sei que quando relaxo, capto. Volta e meia me pego, inconsciente, estragando prazeres: ao brigar com a namorada quando estava gostoso, ao chutar pe-
  • 9. 18 19 dra quando a caminhada tava boa, ao detonar um trabalho que me trazia enlevo... Muitas vezes senti como insuportável a alegria.A minha,as de outros. Percebi o mesmo em outros. Permaneço descon- fiado que isto se relaciona com minha cultura cristã, que proíbe emoções, prazeres – vide os 10 mandamentos e os 7 pecados capitais. Serei casti- gado – agora ou depois da morte – se transgrido alguma regra. Perdi minha inocência quando fui catequizado. Antes, em mim só existia um senso ético. Não existiam pecados mortais, veniais, in- fernos. A moral veio como doutrina. Internalizei as regras e as consequências de transgressões: dentro de mim associo o prazer ao castigo. Logo que percebo prazer, lembro castigo. Evito castigos eliminando prazeres. Os prazeres se tornam então insuportáveis. Agora, consciente, aprendo ser mais responsável por mim mesmo, minhas ações, minha vida. Sei que já não devo reclamar da pedra ao tropeçar nela. Eu é que não prestei atenção. Reclamo antes ao espelho. Algumas vezes minha vida ficou sem sentido. Tanto fazia viver, morrer. Não cheguei a procurar a morte. Mas a vida tava sem gosto. A lembran- ça dos filhos me animava. Eu era resiliente e não sabia: vim do quase fundo do poço ao equilíbrio dinâmico de agora. Antes dos 8 anos já sabia da proibição dos praze- res. Vivi prazer e medo em secretas descobertas infantis. E punhetas silenciosas das 2 da tarde au- mentavam culpas, pavores e rezas noturnas. Aos 14, no beco dos meninos, tive a sorte do acolhi- mento tranquilo naquele corpo diferente do meu. Aprendi a gostar de mulher. Mas perdi mesmo a grande inocência quando so- fri o catecismo. Não sabia de pecados – mortais, veniais – e castigos. Ficou um medo enorme do inferno eterno, chamas que nunca acabam. Foi como um insight ao contrário, um indark. Wilhelm Reich foi um choque bom. Perdi outra inocência, ganhei consciência: sou responsável por mim. Hoje leio sem ter que fazer provas. Só em boa companhia, adoro orelhas de livros, vejo
  • 10. 20 21 trechos de Freud, Jung, Nise, Bubber, Moreno, Lobsang, Rajneesh, Lacan, Platão,Voltaire, Saint- -Exupéry, Szasz, Chang, Capra, Moody, Rogers, Beauvoir, Lobato, Quino, Monroe, Veríssimo, Barreto, Cançado, Ferenczi,Angeli, Brunton, Eco, Laing, Freire, Ziraldo, Ludemir, Nietzsche, Feito- sa, Pessoa, Moraes, Pontes, Chacal, Robin... e por aí vou. Se entendo, ai, que bom. Se não, vou em frente, volto, folheio. Antes de dormir, então, lei- turas facilitam o sono, os sonhos. É uma forma de oração, cuidar do que me vai dentro. As sínteses de Pontes, o Roberto: todo mundo é, todo mundo pode ser. E: o saber em todo ser. Mais ainda: amor e medo, emoções básicas. Lembro a Chiquita Bacana de João de Barro: existencialista, com toda razão, só faz o que manda o seu coração. E talvez Sartre: não importa o que fizeram com minha vida. Importa o que vou fazer com o que fizeram da minha vida. E o título do livro póstumo de Winnicott: Tudo Começa em Casa. Atos fractais, um pedaço representa o todo? Pequenos atos têm me dado informações sobre quem os pratica. Quem joga na rua o lixo que tem na mão me infor- ma que não cuida dos outros. E talvez não cuide dos outros porque não aprendeu cuidar de si.Ima- gino: se não cuida de si, como cuidará de outros? Mas, como diz Barreto, o Adalberto de Paula, só reconheço no outro o que conheço – tenho? – em mim. Pelo que percebo, outros pequenos atos me denunciam. Se jogo lixo no chão, se falo grosso, se furo fila, se bato em criança, se desperdiço água, se critico alegria,se rio das pegadinhas,da desgra- ça do outro... Parece óbvio, mas só há pouco tempo constatei que meu humor tem sido meu melhor indicador: se estou de bom humor, estou bem. Agora sei que só consigo comunicar-me com quem me escuta.E vice versa.Acomunicação se dá quan- do entendo o que me foi dito. E sou entendido. Eu me sinto bem com cada ato que realizo para difundir o que sinto me faz bem.
  • 11. 22 23 Ouvi e concordo: minha saúde é coisa muito séria para ficar nas mãos de outros. Se não cuido de mim, quem cuidará?   A autonomia que me permito, desejo a cada um que a deseje. O sítio de mamãe chamava sossego. Era seu de- sejo. Sem saber disso, meu terapeuta Romel sin- tetizava em cumprimento: saúde, sucesso, sossego.   Há espectadores que acreditam mais na TV que na realidade? Em mim, é lento o processo de absorção de uma nova ideia, de mudança de comportamento. Há 7 anos desejo um sofá. Há 35 quero escrever um livro. Há 50 sonho ser dono do meu próprio na- riz. O que é novo me incomoda, me ameaça. Já desenhei o sofá, tento pela enésima vez escrever um livro, mas inda confundo meu nariz com o de outros. Com defesas ativas como as minhas – que atra- palham a realização dos meus desejos originais – imagino quantas inovações,descobertas filosóficas, tecnológicas, insights, invenções, criações... estão disponíveis para a humanidade e não nos chegam ao conhecimento. Percebo que boa parte dos custos de empresas e empre- endimentos é gerada pelos controles. Controlar dá trabalho, dá despesas. Por outro lado, a neces- sidade de controles diminui quando confianças mútuas estão presentes. Nas relações pessoais, familiares isto é nítido. Tenho certo que necessidades de controle di- minuem, se cultivadas relações de confiança. O medo gera controles. O amor gera confiança. Percebo em minha prática individual que quando remunero satisfeito – financeira e emocionalmen- te – serviços que me são prestados, recebo de vol- ta empenho espontâneo, com envolvimento e boa vontade. Quando cuido do outro, o outro cuida de mim, naturalmente. Admiro a inteligência dos empresários que repar-
  • 12. 24 25 tem lucros com quem com eles trabalha. É na- tural que cada trabalhador reconhecido se sinta reconhecido. E, tanto como se fosse seu, passa a melhor cuidar de tudo ligado ao trabalho: seja de equipamentos e insumos, seja de relações huma- nas com o público, colegas, demais stakeholders. Administrador, gerente que cuida de quem tra- balha próximo dorme tranquilo, vive melhor, tem assunto com os filhos. Não precisa esconder dos filhos malfeitos para os quais co-labore. Feitores – antigamente? – tinham esta função: obrigar ao outro fazer o que não quer. Administrador que age amorosamente tem retorno amoroso. Pare- ce complicado, mas é simples. É o tal do amor. O tao do amor? 2 mamãe Após a morte de mamãe, minhas irmãs sugeri- ram que eu escrevesse um necrológio. 1919. Nas- ce Heloisa. Vem para os Anjos, família grande numa Montes Claros criança. Amizades profun- das com primas vizinhas de quintais. Tudo tran- quilo neste porto protegido. 1928? Bum! Morre o pai, ficam sua mãe Antônia e 8 filhos. O avô pa- terno, Antônio, orienta, distribui. Cada filho um tio, um parente. 1934, de novo, seu mundo treme. Com a irmã Wanda,sós,vai pro lugar que não co- nhece, Salinas. Imagino inseguranças, saudades, solidões. Vive compaixões, compartilhamentos, cria vínculos. Aprende na vida, ensina no Grupo Escolar. Enamora Rodrigo. 1938, casa.Vêm quatro filhos. Cai a ficha, acredi- ta em si, toma as rédeas. 1948. Salinas fica pequena. Agora vejo, a história como se repete – pra abrir caminhos de liberda- de, distribui por um tempo os filhos: Lina fica
  • 13. 26 27 com Wanda, Stella com tia Odília, Luiz com d. Rosinha. Rodrigo, o marido, cuida de si. Mamãe dá o salto. João vai junto. Belorizonte, Instituto de Educação, mergulha. Volta, respira, arruma as malas, barriguda de Heloisa Helena: volta às ori- gens,Montes Claros,1951.O marido,é o possível, vai à luta em São João do Paraíso. Contribui de lá. Só com os filhos, a mãe, como defesa, controla. Tudo ou quase. Articula. Rodrigo regressa, a fa- mília recompleta. Sempre, dá aulas, educa. Nos intervalos, costura, remenda, orienta, organiza. 1954. Nasce o D. João Antônio Pimenta, Heloisa diretora, funda um Grupo Escolar. À noite dá aulas no Sesi. Por um tempo, acumula o Colégio Dioce- sano. Conhece, reconhece gente, constrói amizades. Cuida da família, corresponde aos que solicitam, dá as mãos, ensina, ensina, educa, educa, trabalha, tra- balha. Agora cuida também das normalistas: ensina a ensinar. Planta plantas, rega como planta e cultiva ideias, conhecimentos, relações. Solidária em mo- mentos necessários, fortalece o bem. Guarda confi- dências. Reflete, aconselha. Direto e reto. Não deixa para amanhã o que é de hoje. É consigo o que é com outros.Ama os próximos quase como aos filhos. Delegada de ensino. Gosta. Conversas e conver- sas e decisões. Interage. Norte de Minas e capital. 42 municípios sob sua tutela. Viaja, vai, vem, vai, vem. Modera, modela, representa. Articula para tornar viável, realiza junto. Integra órgãos estadu- ais e cidades.Com a equipe,consensua.Assim,50 anos de trabalho efetivo. E mais 18, aposentada, sutil nos afetos, atenta, pronta para escutar, pen- sar, falar, agir. Em toda a vida, emociona-se com serenatas e boas conversas ao anoitecer. Tem mão boa para plantar. Cava, semeia, rega. Adora uma arruma- ção. Quem estiver perto entra na roda. Nos mo- mentos mais diversos, exercita a solidariedade, constrói vínculos, valoriza amizades. 2002.Gasto,o corpo cansa.Rápida como sempre, prevê, organiza, distribui o que suou. E vai. Mi- nha mãe permanece em mim, em nós. Passado um tempo, quanto mais vivo, cultivo minha mãe boa. Caem em névoa os beliscões, os olhares determinantes, as limitações. Sinto que me compreendo quando
  • 14. 28 29 compreendo mamãe. E olha que, raivoso, briguei com ela um mês antes de sua morte. Mamãe esta- va com câncer brabo, ali em órgãos que filtram, se espalhando. Num momento, ela, aos meus olhos, maltratou uma moça que dela cuidava. Eu – que nunca lhe havia falado grosso – fui duro, impulsi- vo, gritei com mamãe. Ela ali, me olhando estupe- fata, de baixo pra cima, da sua provisória cadeira de rodas. Nos dias seguintes, emudeceu comigo, não respondia a meus “benção, mamãe?”. Diante de minha insistência, foi clara: “Perdoar, perdôo. Mas esquecer, não esqueço.”. Em relação a mamãe, não sei explicar direito, sei que meu coração está cada vez mais tranquilo. Desconfio que é porque fui sincero comigo mes- mo, com ela. Como fui pró-ativo em muitos mo- mentos que tomei a iniciativa do abraço, do beijo, da palavra doce. Parece que, como mamãe, sou assim, variado também em doce e amargo. 3 um quase nada de quase tudo Então ficamos assim: falo bem de você, você fala bem de mim. Uma dificuldade enorme, aqui, de aceitar elogios e agradecimentos. Vou aprendendo, mesmo sa- bendo que muito do que me move é minha pró- pria satisfação. E identificação. Relembro Marx, o Groucho: clube que me aceita como sócio eu não entro. Não deve prestar. Sinal de saúde, me orgulho: não sei onde fica meu fígado. Sujismundo era um personagem sempre rodeado de moscas, sujo, sujador. A campanha na TV foi eficaz: quem jogava papel na rua, se olhado como Sujismundo, se envergonhava, recolhia o papel, se recolhia. A atitude sujismundo gerava culpa e vergonha. A cidade do Rio ficou mais limpa por
  • 15. 30 31 um tempo. Tive notícia também – salvo engano, ali pela Escandinávia – de anúncio audiovisual em que um carro passava excessivamente veloz e, plano seguinte, uma moça fazia um sinal para ou- tra moça – dedo indicador se aproxima de dedo polegar – sugerindo a pequenez talvez do pau do motorista.Anúncios que geram culpa e vergonha. Imagino agora campanhas publicitárias positivas gerando satisfação e prazer, valorizando a afetu- osidade de quem contribui pruma vida coletiva melhor. É que, passado um tempo, meus convi- vas contemporâneos acreditam mais no que sou, no que faço, do que no que falo e não faço e não sou. Alegria gera alegria, gentileza gera gentileza. Exemplo de campanha assim, pra cima, relembro os conceitos de Pontes para divulgação de colônia de férias pra crianças numa favela: todo mundo é, todo mundo pode ser. O outro, este voltado para a universidade popular: o saber em todo o ser. Agora eu sei.Cada ato talvez tenha um significado. Quando fumo, agrido meu próprio corpo. Se ajo assim comigo, com o outro mais ainda. Sou então coerente quando jogo cigarro no chão, invado um sinal vermelho, dou um tapa, um tiro, solto uma palavra indelicada. Mas já sei que outros equilí- brios são possíveis,quando transcendo minha cul- tura masoque, cuido de outros ao cuidar de mim. Se não cuido de mim, como cuidarei de outros? Tenho lembranças do século XIX, são reais. Na década de 40 do século XX, Salinas estava longe dos grandes centros. As modas che- gavam tempos depois.Sem rádio,televisão,jornal. As notícias corriam, lentas, de boca em boca. Os causos contados na porta de casa eram de mula sem cabeça, almas penadas. Os costumes eram antigos.No porão da sua casa,tia Odília guardava os ossos de seu pai, meu bisavô. Pra se pentear, ela subia num banquinho e só então soltava os cabe- los que chegavam ao chão. Fazia linguiça. Enfiava ingredientes na tripa de porco. Para socar, usava uma chave grande, antiga. E quando curioso eu perguntei: que é isto, tia?, ela – chouriço, menino. Carrego dentro de mim o que então vivi. Carrego tudo, mesmo agora, cidadão do mundo, o hori- zonte mais próximo, tudo tão mutante.
  • 16. 32 33 Repito e tento: separar o que é meu, o que do ou- tro, especialmente os sentimentos. E quanto aos objetos e moedas, mais do que possuo as coisas, são as coisas que me têm. Wilhelm Reich me ensinou, na teoria e na práti- ca: meu corpo traz minha história. Quando faço o que gosto, sem perceber trabalho o tempo todo. Quando cai minha ficha, vejo o mundo diferente. Tento crescer, mas inda é difícil suportar alegrias. Tristeza é fácil, matava no peito todo dia. Posso me comunicar com o mundo. Quando compartilho, me acalmo, melhoro. Se não me permito, a outros inibo. Dou o livro que gosto, nem sei o que o presentea- do deseja. Só dou o que tenho. Meu corpo hoje me fala, volta e meia me relem- bra: se quero dormir bem, 5 horas antes já não como. Se como, regurgito, durmo sentado. Nos sonhos realizo meus desejos? Parece que quando vivencio situações sou quem melhor poderia conhecer estas situações que vi- vencio. Assim, talvez, potencialmente, seja eu quem melhor saiba das soluções das questões que vivencio. A consciência desta sabedoria talvez de- termine a possibilidade de ação transformadora em mim. Há expressões de outros – falas, atos, artes, escritos... – que me despertam consciências.
  • 17. 34 35 ção de relações, vínculos, confianças, descobertas de interesse comuns – temáticos, territoriais... E trocas, construções de parcerias, realizações de objetivos comuns. Assim se formam capitais so- ciais.Trabalhos sociais e comunitários dependem diretamente da participação coletiva, de cada um. Redes espontâneas: uma criança nasce, a tia te- lefona pra prima, que telefona pra avó, que fala pros netos, que espalham pros amigos... A rede nasce, cumpre sua função, desaparece. E reapare- ce quando necessária. Muitos agora sabem que a criança nasceu. São inúmeros os tipos de redes: presenciais, virtuais, fomentadas, redes de redes. Redes são diferentes de cadeias. Redes pressupõem espon- taneidade, ausência de hierarquia. Cadeias não: têm gente que manda em gente. Redes quando se somam, se multiplicam. Multiplicam de tamanho quando se articulam com outras redes. Por exem- plo,quando se comunicam entre si – movidos por interesse comuns – setores públicos, setores pri- vados, movimentos populares. 4 redes Fecho os olhos e respondo a mim mesmo: o que aqui procuro? O que aqui ofereço? Imagino agora que posso ex- pressar para todos: o que procuro e o que ofereço. Se este canal de comunicação se estabelece entre eu e outros, tendo cada um de nós esta liberdade de comunicação, estaremos em rede. Sei, imagino que todos sabemos, que conheci- mento é poder. E compartilhar conhecimento é compartilhar poder. Cássio Martinho me ensinou: rede é um esforço individual e coletivo de comunicação, um com- partilhamento de informações. Na rede, ausência de hierarquia, presença de iniciativa espontânea de quem participa. Eu praticava redes e não sabia. Redes fazem parte de um processo que pode chegar a transformações individuais e coletivas. Comunicações entre pessoas possibilitam cria-
  • 18. 36 37 Facilita a formação de redes presenciais a ausên- cia de discriminação de raça, crença, facção, parti- do político, ideologia, gênero, sexo...Também um espaço neutro, onde cada participante se sinta à vontade, seja evangélico, espírita, católico, budis- ta, maometano, taoista, ateu, agnóstico, duvido- so... Ou negro, branco, mulato, amarelo, albino, pobre, rico, remediado, democrata, liberal, socia- lista, anarquista, hétero, homo, bi, pan... Expansões da rede são estimuladas quando dis- ponibilizadas informações básicas – lista de pre- senças, com telefones, e-mails... – tanto durante os encontros quanto logo depois virtualmente pela internet. Mais ainda se também distribuídos, para cada um e para todos,os classificados sociais, que são descrições das ofertas e procuras que aconteceram durante os encontros. Os Classifi- cados Sociais e as Listas de Participantes servem para facilitar contatos e intercomunicações. Ten- do estas informações em mãos, depende de cada um a iniciativa de contatar e articular parcerias. E, naturalmente – base para relações humanas saudáveis – vínculos afetivos fortalecem redes. Linha do tempo Desde cedo trabalho. Hoje vejo o que plantei – onde investi minha vida, meus tempos e energias – e, acredito, compreendo um tanto porque me sinto bem à medida que amadureço. Em casa engraxava sapatos aos sábados, ajudava a passar a cera no assoalho, colaborava um pouco nos serviços domésticos. Aos 12, informalmente, vendi cestas de natal Titanus. Aos 16, dei aulas particulares de matemática. Aos 17 ou 18, pri- meira carteira assinada, auxiliar administrativo de uma distribuidora de bebidas. Em seguida, ou paralelo,não lembro,repórter policial do Jornal de Montes Claros. E fundei e publiquei, com amigos, o Setentrião, jornal distribuído gratuitamente. Já na Universidade de Brasília, fui monitor de estatística. Nas férias estagiei em escritório de planejamento e elaboração de projetos. Dei au- las pela Fundação Educacional do Distrito Fe- deral, trabalhei no Ministério da Agricultura, no Fundo Federal Agropecuário, um pouco para o Ministério da Educação. Com parceiros, monta- mos uma pequena tecelagem de camisas de ma-
  • 19. 38 39 lha. No Rio, agora no INCRA, participei de um grupo de trabalho que preparava uma reforma agrária: cuidei da seleção e treinamento de cap- tadores de dados relativos a parceiros, arrenda- tários, proprietários rurais... Em Amsterdam, quase como umas férias, des- cobertas pra vida inteira, ampliação de visão de mundo. Em Londres fui modelo para desenhis- tas, operário de obra, porteiro e vendedor de sor- vetes num teatro, voluntário na feitura de pães integrais. De volta ao Rio, funções variadas em um punhado de longas-metragens. Assessorei a direção da Embrafilme e, ainda lá, cuidei por seis meses do programa Coisas Nossas, veiculado pela TV Educativa. Na Globo Vídeo fui gerente de marketing sem saber direito o que era. Pulei para novos negócios. Na Fundação Roberto Ma- rinho dei continuidade ao Vídeo Escola, projeto que escrevi – a pedido da instituição anterior – e gerenciei a implantação. Nocorrerdavidarealizeiregistrosemvídeo,espe- cialmente na área psi, que sempre me atraiu. Com Ralph Viana,Valéria Pereira e muitos voluntários e parceiros ativos realizamos, no Parque Lage, o simpósio Alternativas no Espaço Psi – Psicologia, Psiquiatria e Psicanálise. Antes, durante anos, co- laborei com a Rádice, revista de psicologia. Um pouco com o Luta & Prazer, jornal libertário de espírito juvenil. Fui sócio de uma livraria, a Espa- ço Psi. Estive em Moçambique, como cooperante junto ao Instituto Nacional de Cinema. Realizei e produzi, só ou com parceiros, algu- mas dezenas de vídeo-registros e documentários. Na maioria, singelos, focados mais nos conteú- dos que nas formas. Candomblé, Ilha Grande, Energia da Vida, Auto-hemoterapia, Aparelhos Orgônicos, Aids – Boas Notícias, uma série: Psi- coterapias Corporais. E Quilombo, Folhas Sa- gradas, Terapia Comunitária, outra série – Rio, Estado de Alegria. Também Artistas de Rua, Una Madre de Plaza de Mayo, Práticas Chinesas de Auto Cura... Na década de 80, criei e experimentei um método, Videomobilização: os limites dos conteúdos eram nossos limites, a propriedade da imagem e do som era da pessoa objeto de gravação. Sugeríamos que,
  • 20. 40 41 quando assistisse o que foi gravado – só ou em companhia do seu terapeuta – desse mais aten- ção aos sentimentos provocados pela sua própria imagem e sons. Compreensões mais profundas corresponderiam a insights tão desejados. Muitos dos clientes eram terapeutas. O Sesc Rio Mergulhei no Sesc em 2.000. Éramos poucos mais de 400 para 3 vagas. 7 meses, o processo de seleção. Fui contratado como coordenador técni- co e locado no Sesc Ramos, ao lado do Complexo do Alemão. Minha função era cuidar da progra- mação, facilitar o trabalho de colegas que produ- ziam eventos, atividades sócio-culturais, esporti- vas, de lazer e promoção da saúde. Quando cheguei, uma média de 150 pessoas fre- quentavam diariamente os espaços da unidade operacional. Quando sai dali pra trabalhar na sede, 1200 a 1500 pessoas diárias. Tudo mui- to em colaboração com os colegas da época que apoiaram transformações. Logo no início, com a intenção de desburocratizar, estudei os caminhos dos papéis. Na verdade, os caminhos desde a ideia à avaliação, passando pelo consenso na pro- gramação, alocamento de recursos, preparação, contratações, realização, pagamentos... Criamos e implantamos ali uma metodologia que chamei de Sistema Sesc de Produção. Processos e procedimentos se simplificaram e, com o tempo, natural e espontaneamente outras unidades operacionais do Sesc Rio adotaram a metodologia. Nela, o IBAS – Informações BÁ- Sicas – que nomeei em homenagem a Betinho, do IBASE, continha respostas às 7 perguntas básicas necessárias para a realização de eventos e atividades: o que, quando, porque, como, onde, quem, quanto. Criamos e distribuímos muitos e muitas folhetos e filipetas para os moradores da área, convites para frequentar o espaço. Experi- mentamos, junto a funcionários, um outro mé- todo que chamei de Rodízio Criativo. E criamos e implantamos as Redes Comunitárias, adotada posteriormente pela instituição como um todo. Ampliamos a atuação para fora do espaço físico do Sesc Ramos. Fomos até onde nosso público estava. Era o Sesc fora do Sesc.Tudo isto estimu- lado pela missão original do Sesc:
  • 21. 42 43 “O bem-estar social dos comerciários e seus dependentes, através de serviços de caráter sócio-educativo nas áreas da Saúde, Cultura, Educação, Lazer e Esporte, com qualidade e efetividade. Bem-estar social é aqui entendi- do como o resultado de ações de uma estrutu- ra de atividades e serviços de cunho educativo que contribuem para a informação, capacita- ção e desenvolvimento de valores. Os comerciários e seus dependentes repre- sentam o público prioritário do SESC-RJ na prestação de seus serviços, os quais são tam- bém extensivos à sociedade.” Lembro que o Sesc faz parte do Sistema S – Sesi, Senac, Senai, Sebrae, Sest, Senat, Senar... Do que entendi, o Sistema S trabalha com dinheiro público e tem missões originais voltadas para o público, especialmente trabalhadores e seus de- pendentes. Em relação ao Sesc, especificamente, comerciários e seus dependentes podem frequen- tar gratuitamente suas dependências e usufruir dos serviços que as unidades operacionais do Sesc oferecem: eventos e atividades nas áreas de esporte, lazer, sócio-educativa, turismo e saúde, como, por exemplo, assistência odontológica de boa qualidade. Sou profundamente agradecido à instituição pela oportunidade de ali realizar trabalhos com o senso ético que carrego em mim. Porém, não me identifico com a orientação definida pela direção do Sesc Rio nos últimos tempos em que lá traba- lhei, em 2011. Vídeos Já na sede,no Flamengo,na Assessoria de Projetos Comunitários supervisionada por Gilberto Fugi- moto, planejamos e realizamos diversas ações co- munitárias, enormes e pequenas. Para difundir a metodologia encomendamos e orientamos a reali- zação do vídeo institucional Redes Comunitárias. Um tanto pela importância daquilo que fazíamos, eu me propus realizar registros em vídeo, espe- cialmente de encontros de redes comunitárias. Comprei, com meus recursos, equipamentos – 2 conjuntos: câmeras, tripés, microfones direcio- nais, extensões... – e gravei. Gravei muito. Já no
  • 22. 44 45 momento das edições, solicitei e recebi o apoio do Sesc, que pagou o trabalho de edição. Em contra- partida inclui nos créditos agradecimentos e auto- rizei copiagens para distribuição junto a pessoas e instituições interessadas na metodologia. A par- tir do movimento de cada um que se identificou – vivenciou e tomou conhecimento do novo jeito de se encontrar e objetivar conversas – as redes se ampliaram e se ampliam. No Sesc criamos outros encontros. O METS – Movimentos Emocional e Transformações So- ciais, com Michel Robin, nos espaços do Centro de Movimento Deborah Colker – encontro-pes- quisa em busca de informações sobre mudanças individuais e coletivas. O LPS – Livre Pensar So- cial, com Gilberto Fugimoto – roda de conversa entre instituições interessantes e interessadas no bem estar social. O CCI – Comunicação Comu- nitária Interativa – roda de conversa entre pesso- as atuantes em comunicações comunitárias, com a participação de George de Araújo. Os vídeos que realizei com o apoio do Sesc Rio estão disponíveis para que a instituição utilize em benefício do público. Estão acessíveis no www. luizsarmento.blogspot.com e no www.videolog. tv/luizfernandosarmento. Disponibilizamos tam- bém pouco mais de 500 classificados sociais, um a um,no http://www.youtube.com/redescomuni- tarias.Tudo um tanto singelo. Relações humanas incluem relações emocionais. O que me leva ou o que me impede relacionar com outro? Os METS foram encontros periódicos, às vezes esporádicos, que procuravam congregar quem considera desenvolvimento emocional como base para desenvolvimento humano e social. Demos um tempo nos METS quando conhecemos as TCs – Terapias Comunitárias, criadas por Adalberto de Paula Barreto. Nas TCs, teoria, metodologia e prática somam conhecimentos acadêmicos e populares.A TC é política pública no Brasil, hoje. Saiba + no www.abratecom.org.br, no www. luizsarmento.blogspot.com ou no www.videolog. tv/luizfernandosarmento Os LPS – Livre Pensar Social – eram encontros voltados para reflexões e fomento de políticas pú-
  • 23. 46 47 blicas.Articuladores,apoiadores e realizadores de projetos comunitários – sem compromisso con- clusivo ou deliberativo – compartilham ideias, in- formações e reflexões focadas em desenvolvimen- to humano, social, integral. Antes, apoiado nas práticas por Lídia Nobre, a assistente social, criamos as Redes Comunitárias, onde cada participante tem espaço para falar do que oferece e do que procura em relação ao lugar que vive ou ao tema que lhe interessa. Pra mim, redes comunitárias cuidam do objetivo. E terapia comunitária do subjetivo. Como tudo, ou quase, na vida, varia. A ideia das Agências de inFormação deu motivo para que George de Araújo e eu, com apoio de Carolina Pelegrino e Andrea Medrado, reali- zássemos os CCI – Comunicação Comunitária Interativa, encontros de pessoas e instituições ativas e interessadas em levar e trazer informa- ções para quem não é escutado e para quem não é representado por mídias formais. É gente que trabalha com jornais, rádios, TVs comunitários, folhetos, alto-falantes, comunicação popular. Gente que leva e traz informações e notícias,inte- rage com seu público. E que, nos encontros, refle- te sobre o que faz e comunica, conteúdo e forma. Estes encontros muitas vezes foram sementes que geraram vínculos, parcerias e movimentos. Tudo em ondas, frutos de contribuições de cada um, de acordo com suas possibilidades e desejos. Gravei em vídeo, com apoio de muitos, muitos destes encontros. Cada editor – criação e muito suor – deu personalidade a cada vídeo. Em sua maioria, os vídeos estão na internet. Os ouvintes querem falar: todos sabemos que há gente procurando e ofe- recendo de um tudo. Quando se encontram e se entendem, se suprem. Quando não sabem um do outro, oportunidades desaparecem. Início do milênio, Sesc Ramos, ao lado do Complexo do Alemão, Rio de Janeiro. Fórum Transformações Sociais – O que Pode dar Certo. Palestrantes experientes numa mesa,
  • 24. 48 49 trezentas pessoas na platéia. Nem mesmo falas interessantes interessaram aos presentes. Em menos de uma hora, evasão. Das trezentas, somente umas cinquenta, sessenta ficaram. Levamos o microfone ao público. Agarram, bo- tam pra fora:“o governo não presta...“. Muita gente na fila, todos querem falar. Eu, inseguro: “Peraí! Seja objetivo por favor: o que você veio procurar aqui? O que você veio oferecer? Dois minutos para cada um.”. Pronto, surgiu o jeito, a metodologia. Convida- mos quem se interessasse para uma primeira con- versa, juntos. Em roda, os tratos iniciais - aqui, neste momento, somos iguais em direitos e de- veres. Encontro sem palestra nem eventos, só as falas individuais... Cada um sintetiza quem-é-o-que-faz, se-repre- senta-uma-instituição, o que procura, o que ofe- rece. Tempo limitado, um-dois-cinco minutos, dependendo de quantos estão presentes e do tempo total que pretendemos estar juntos naque- le encontro. É um desafio sintetizar, falar pouco e objetivamente. Aprendemos juntos. Para facilitar o controle dos tempos individuais, há encontros em que utilizamos uma ampulheta, outros em que batemos palmas no limite ou simplesmente avisamos, cordiais: tempo esgotado. Depois que todos falam, os interessados se deslocam para o café. E, ao redor da mesa, cada um aprofunda a conversa com aqueles por cuja oferta-procura se interessou.Trocam informações, ideias, se conhe- cem. Constroem parcerias. Base das redes comunitárias, os encontros são voltados para a construção de realizações, para a prática de parcerias, através de pessoas repre- sentativas – interessantes e interessadas – de co- munidades e instituições privadas, públicas e do terceiro setor. De modo simples e objetivo, cada representante se apresenta e fala o que veio procu- rar e o que veio oferecer.Todos têm oportunidade de falar e ouvir. E, quando cada um sabe quem é quem,o espaço se abre para o aprofundamento de relações e formação de parcerias. Normalmente os encontros acontecem periodicamente – men- salmente, por exemplo – no mesmo local ou em
  • 25. 50 51 espaços alternados. A metodologia naturalmente é adaptável a cada realidade. O importante é que gere os frutos desejados e possíveis. Permanecem como memória os classificados so- ciais e a lista de participantes. Nos classificados, cada um descreve sinteticamente o que oferece, o que procura e dá seu nome, telefone, email. Estes dados são posteriormente digitados e disponibili- zados diretamente para cada um – via email – e quando possível para o público em geral, também virtualmente através da internet. Cópias xeroca- das podem ser distribuídas para os participantes de encontros posteriores. Estes classificados são cumulativos: a cada encontro,novas ofertas e pro- curas, relativas a novos e antigos interessados. Rodízio criativo: imagine uma instituição de porte médio: empre- sa, serviço público, ong... Em consenso interno, trabalhadores de um setor liberam um ou mais do grupo, por um ou mais dias, para visitarem- -estagiarem em outros setores. Os que permane- cem no setor original cuidam do cumprimento do conjunto das suas obrigações normais. Esta a ideia básica.   Parece ser bom para a instituição – e para o traba- lhador e seu grupo – que cada um tenha o olhar do todo,além de capacitação aliada ao seu próprio desejo. E parece ser bom para cada trabalhador ter acesso a oportunidades que facilitem acrésci- mos a seus conhecimentos pessoais e profissio- nais. A prática tem ensinado o melhor caminho.
  • 26. 52 53 5 agências de inFormações Consciência  É mais fácil eu compreender meus processos de transformações, quando reconheço e considero o que vai pelo meu inconsciente. Meus atos falhos me dão sinais. E o que eu compreendo em mim, talvez melhor compreenda no outro, nos outros. Reich, Freud, Jung me ensinam que eu, no correr da vida, adquiro e internalizo defesas. Elas têm a função de impedir incômodos, especialmente sentimentos. Por outro lado, a construção de relações de con- fiança facilita comunicações mais profundas. As- sim, antes de entrar propriamente nos conteúdos, é necessário cuidar de mim,estabelecer aproxima- ções comigo mesmo.E depois com o outro.Como no namoro: há o olhar, a empatia, a delicadeza na aproximação, as identificações comuns, os sinais, o pegar na mão, a construção da relação. As inFormações profundas somente chegam ao seu destino quando o destinatário está receptivo. Comunicar é uma arte. Agências de inFormações Retrato rápido: jornais pendurados nas bancas exibem quase sempre as mesmas notícias, escritas de forma um pouco diferentes.As fontes de infor- mações, parece, são as mesmas. No Brasil, umas poucas agências de notícias. Agências O Globo, Folha de São Paulo...? Uma jovem conhecida,na primeira década do sécu- lo XXI,registrou que manchetes de grandes jornais de 27 cidades européias exibiam,no mesmo dia,fo- tos semelhantes sobre a mesmo assunto. Também lá poucas agências como fontes de informações. Reuters, UPI, France Presse, China Press... Bom problema: como podemos contribuir para chegar a nós, à população, informações diversifi- cadas e com qualidade de conteúdo? É possível a realização de uma ou mais agências de inFormações independentes. Porém, estas
  • 27. 54 55 novas fontes só fazem sentido se os conteúdos das inFormações a serem oferecidos contribuí- rem para o bem-estar – individual e coletivo – de quem as produza e de quem as receba. De outro lado, observa-se, tudo potencialmente conspira a favor: conteú- dos, público, veículos, financiadores, apoiadores. Há conteúdos de qualidade ainda invisíveis para a maioria da população. Há veículos potencial- mente interessados em difundir estas inForma- ções. Há públicos potencialmente interessados nestes conteúdos. Há instituições potencial- mente apoiadoras e/ou financiadoras de agên- cias de inFormações voltadas para o bem-estar coletivo. Há pessoas e instituições animadas, in- teressadas em fazer circular estas inFormações. Como integrar estes conteúdos, veículos, públi- cos, apoiadores-financiadores, pessoas-institui- ções animadas? A ideia é simples Uma agência, inicialmente com inFormações atemporais. Uma pessoa, um espaço, que pode ser residencial ou institucional. Um computador, telefone, scanner, fax, internet, softwares que fa- cilitem acessos a veículos de comunicação. Havia no mercado – há ainda? – empresas espe- cializadas que oferecem softwares e dados atuali- zados sobre veículos de comunicação de todo o Brasil – rádios, jornais, TV, revistas... Informam seus endereços físicos e virtuais, telefones, emails, nome de editores de áreas específicas e mais. Assessorias de Imprensa utilizam estes serviços, talvez saibam melhor de quem fornece dados e softwares. Como exemplos, a confirmar, o Comu- nique-se www.comunique-se.com.br, o Meio & Mensagem www.meioemensagem.com.br Esta pessoa que se propõe ser um agente de in- Formações: contata e articula produtores de in- Formações atemporais, constrói um baú virtual de textos disponibilizáveis, contata e articula edi- tores e colunistas de veículos de comunicação em todo o país, oferece os textos do baú. Assim, trata e se relaciona com um conjunto de veículos que disponibilizam para seus leitores as informações originais que esta pessoa cuidou de produzir.
  • 28. 56 57 Se há interação com os leitores, novas inForma- ções chegam às agências, realimentando o proces- so, dinâmico. Vão e vêm inFormações. Esta pessoa: ao aprender-fazendo, testa e recria- -adapta à sua realidade uma metodologia singela que poderá ser compartilhada com instituições e pessoas ativas, interessadas em montar suas pró- prias agências para fomentar a difusão – através de veículos de comunicação já existentes – de in- Formações específicas atemporais. Na prática, o que agências de inFormações poderão oferecer: no mínimo, artigos e contribuições para pautas de veículos de comunicação já ativos. Imagine agências independentes de inFormações focadas em conhecimentos de interesse público.Inu- meráveis. Só de pensar o que me interessa – e, acre- dito, também a muitos – sonho de estalo agências voltadas para educação, saúde, agronomia, alimenta- ção...Ouespecíficasparapais,paracrianças,escolas... E para psicologia-psiquiatria-psicanálise, para oferta e procura de trabalhos,esportes,teatro,brincadeiras, voluntariado, solidariedade... Podem ser inForma- ções específicas.Ou gerais... Imagino um mundo com inFormações variadas, de fontes diversas... que eu tenha prazer em saber e compartilhar com meus filhos,vizinhos,amigos, com o mundo ao meu alcance. Vejo os jornais e me angustio com a constante escolha do Esta- do-polícia pela atuação mortal ao invés de utilizar inteligência e afeto. E me pergunto: que atuações benéficas estão ao meu alcance? Ao meu alcance está cuidar de mim e das minhas relações com quem convivo: filhos, amigos, vizi- nhos, colegas de trabalho. Escutar um e outro que procuram por escuta, me colocar no lugar do ou- tro, seja próximo ou passante. Cuidar de mim significa também mudar para o melhor programa, fugir da fofoca, escolher meus pensamentos. Lembro Wittgenstein, de quem penso que sei só isto: o pensamento é a linguagem.
  • 29. 58 59 6 vários eu Sinto um pedaço do mundo Outra noite encontrei uma moça a chorar de dor. Está com medo de caminhar sozinha. Relata que alguém tapou sua boca, tentou estuprá-la. Ao re- agir, levou um paralelepípedo na cabeça, dói e dói. Quer ir ao pronto-socorro, quer fazer queixa à polícia. Não sabe escrever nem ler. Caminhamos de quase Parque Guinle até o Largo do Macha- do. Só consegui escutar e oferecer o da condução. Inda nervosa, inda com medo, toma o ônibus pro hospital. Um tanto de sua tristeza e impotência ficam comigo. Negra, pobre, gorda, catarro e tos- se, lágrimas, tristeza, raiva e rua como residência. Relembro pra não me esquecer Aquela de Adalberto de Paula Barreto: que você quer que eu queira preu querer? Toda vez que me lembro dela, lembro de meus momentos de sub- missão. Hoje sei que é uma pergunta que só devo fazer ao espelho. Do que entendi de Freud, sonho com o desejo re- alizado. Em Interpretação dos Sonhos, ele fala de que, quando à noite come azeitonas ou algo sal- gado, vem sede durante o sono e tende a sonhar tomando algo que supra a sede que de fato sente. Quando acorda, acorda com sede. Mas sonha su- prindo a sede, realizando o desejo. A comunicação se dá quando o outro entende o que falo. Alguém já disse algo como a comunica- ção se dá quando o outro entende. As coisas me têm, mesmo que eu tenha as coisas. Se tenho um carro, um trabalho para mantê-lo. Se dois, mais trabalho. Se tenho um computa- dor, devo limpá-lo, espaná-lo. Ou trabalho eu ou quem eu trate para trabalhar por mim. Ah, se eliminássemos os controles do mundo, quanto trabalho a menos, quantos recursos libe- rados. Talvez, lá no fundo, os medos sejam as ori- gens dos controles. Aqui escolhas constantes entre prazer e dor.Treino esboço de sorriso,arris- co o palco que desejo. Tropeço, volto pro espelho,
  • 30. 60 61 reclamo de mim mesmo. Como num bolero, dois pra frente, um pra trás. Não me lembro quem me lembra: seja o mundo que você quer. Outros eus No viver minha vida construo minha visão de mundo, que se transforma de acordo com o que vivencio. Tem gente que sente que o mundo lhe deve. Acu- mula. Tem gente que sente que deve ao mundo. Se sacrifica. Tem gente que o mundo e o eu são um só. Compartilha com o outro que é eu. Ora é um,ora é outro.Como eu,ora sou um,ora outros. Outra noite – que outro dia foi ontem – ainda incomodado com um documentário sobre a re- pressão de 40 anos de ditadura na Albânia, olhei no espelho. Eu tinha 18 anos quando militares tomaram o poder em 64. E 39 quando houve no- vamente eleições,mesmo que indiretas.Nestes 21 anos de minha juventude aprendi o medo de me expressar livremente. A quase paranóia, descubro chateado, volta à tona volta e meia. Tanta coisa pra desaprender... Olhopratrás,praantesdemime,umtantoinseguro, confirmo que o homem que domina outro homem está presente no decorrer dos tempos. Dominador e dominado se complementam,talvez co-responsáveis pela situação. Um age como se o mundo lhe devesse umtanto...etomadooutrocomosefosseseu.Outro se submete,como sem saber do que é capaz. Natentativadeolharcomoolhardooutro–daque- le para quem o outro não tem valor – a associação que faço,imediata,é de que algo lhe foi tirado.Se na infância ele viveu em si, incompreendida, uma falta, ele quer agora isto e aquilo e mais. Aquela falta ge- rou uma necessidade constante de ser tapada, como se fosse um buraco“agora dentro de mim”.Sem cons- ciência da falta original, consome a vida em busca de poder, objetos e afins.Arrisco: se desmamado de repente,fica um vazio incompreendido? A mesma falta afetou os afetos.Agora, uma busca constante de afetos perdidos, de reconhecimento. Não só isto, mas um tanto.
  • 31. 62 63 Já o oprimido aprendeu desde cedo que não tem valor. Relembro Groucho Marx – clube que me aceita como sócio, não entro. Quem o aceita, não serve. Tão desvalorizado diante de si mesmo, como respeitar a quem o valoriza? Ao contrário, parece que o complexo de inferiori- dade esconde o de superioridade. Ah, você pensa que sou fraquinho? Você não sabe como sou forte. Você vai ver! Me engano que gosto. Reconheço este homem – um e outro – a partir do que me conheço. Antes desvalorizado ante mim mesmo, descubro pouco a pouco meus va- lores. Tanta vida aprendendo o que agora procu- ro desaprender. Tantas faltas sem sentido ago- ra se esclarecem, mesmo difusas. A alegria fica mais próxima, o poder menos necessário, obje- tos também. E estes menos dão menos trabalho, libertam-me. Mas dói quando vejo recursos empregados pra suprir reconhecimentos e faltas, pra mostrar po- deres que nem são. Pedaço de conversa de rua, duas mulheres que passam:“...não viveu a vida, morreu cedo. Todo mundo se ajeitou.” Civilização? Quanto tempo os vikings demora- ram pra se transformar em suecos? Mudanças de comportamento, do que tenho aprendido, mais se dão com o passar de anos. Às vezes na mesma geração, às vezes não. Ferenczi pra Freud. Freud pra Ferenczi, corres- pondências. Papo reto, direto. Atos falhos expos- tos.Tudo com delicadeza.A dureza do dito agora espanta, em seguida aproxima. Auto-análises, ex- posições do confuso, da dúvida. Ferenczi ama a mulher mais velha. Comparti- lham interesses intelectuais. Ela é quase comple- ta, só lhe falta juventude. Ferenczi analisa a filha da mulher que ama, contra-transfere, se apaixo- na. Pede ajuda, Freud analisa a moça. Os 4 sabem do triângulo familiar. Ferenczi dá razão à razão, transpõe a emoção. Amizades se constroem. A psicanálise se refina.
  • 32. 64 65 Fofoca Esta ouvi do Dr. Fritz, em transe: João falou pro Pedro: quero lhe contar o que aconteceu com Joa- quim. Pedro perguntou: o que você vai me contar, é bom pro Joaquim? E João: não. Pedro continua: e pra você? João: não. Pedro, de novo: e pra mim? João: não, não é bom pra você também. Pedro arremata: então não me conte não. De Agnès Jaoui, que exerce múltiplas funções, em matéria d’O Globo: Ser atriz e cantora é como ser criança, a gente brinca. Escrever é como ser adulto. E dirigir é como ser um pai ou uma mãe, você tem que prestar atenção a todo mundo. São profissões di- ferentes, por isso amo todas. 7 lembranças Escrevo para lembrar: olha eu aqui, existo. Também para me entender, a mim, a outros, ao mundo. Quero ser reconhecido, amado. Tenho medo do que não compreendo. O que não compreendo, no início, é difuso, confu- so. Não enxergo um palmo diante do nariz. Sin- to que viver é perigoso, mas não viver parece ser mais. Quando apalpo, ando, chego mais perto, a vista se acostuma à névoa, o mistério vai clarean- do, a compreensão substitui o medo, alguma or- dem se segue ao caos. O tempo passa, a memória me trai, multiplicam- -se os mistérios. Sessenta e um anos e permane- cem marcas infantis, desejos juvenis, dúvidas an- teriores a mim. Tem coisas que sinto que sei. Um tanto aprendi do que vivi.Outros tantos do que li, ouvi, encostei, cheirei, provei. Agora a memória mais remota é porta de rua, gente grande conversando, eu com dois, três anos.
  • 33. 66 67 Ficaram histórias de almas de outro mundo, mu- las sem cabeça, uma foto de uma morta num cai- xão. No berço, sombras. Os olhos fechados pra fugir dos medos. Tão apertados que distorceram – na segunda infância, sem enxergar direito, fui Luiz Ceguim. Eu era pobre e não sabia. Não havia o que compa- rar, felicidade e infelicidade eram desconhecidas. Não havia rádio, telefone, televisão, internet, luz elétrica. Calorão tropical. Farinha na cuia pros que pediam esmola à porta. Água do pote pra be- ber. Chão de espécie de tijolo. Arroz, feijão, fari- nha, rapadura, carne seca. Gamela, pilão. Banana, melancia, manga. Café torrado, fogão a lenha. Ba- nho frio na bacia, toalha de saco. Roupa lavada no rio. Praça com cruzeiro, esquina de rua que leva ao cemitério, mortos que passam carregados em seus caixões.O vizinho que estudou muito e ficou doido.A tia mocetona, presa no quarto, canta ser- taneja se eu pudesse, se papai do céu me desse duas asas pra voar... Hoje sinto que era rico e não sabia. Não sabia se eu era pobre ou era rico. Nem sabia o que era ser rico ou ser pobre. Daquele tempo ficou em mim, forte, a memória afetiva. Já os fatos, como névoas. Mamãe chegou a Salinas pra dar aulas, aos quinze anos. Papai já estava lá, amado e mi- mado pelo pai adotivo. Cheguei quando meu ir- mão e duas irmãs já tinham nascido. Mamãe aos vinte e sete, quando se percebeu grávida de mim, imagino o sentimento imediato: ah, não! Talvez só minha imaginação, não ter sido desejado no primeiro momento. Soube por mamãe que, aos 29, cuidou cuidar da própria vida. Um filho em cada casa de amigo, o mais velho com ela, foi se capacitar em Belorizon- te. Isso facilitou a nossa mudança, dois anos de- pois, para Montes Claros, onde mamãe estava em casa, próxima a muitos dos seus catorze irmãos, parentes e amigos de infância. De Salinas minha memória traz os cheiros, os sons, o sol, uns medos, uns deslumbramentos. Imagens das pernas de presos pra fora das janelas da cela, um clima de festa na feira dos sábados – bruacas, animais, sacos de grãos e farinhas, gente,
  • 34. 68 69 muita gente. Eu num vai e vem, movimento no movimento. Panelas, boizinhos e cavalinhos de barro, colheres de pau, biscoito, requeijão, pão de queijo, tacho de cobre. Um bocado de mistérios. Já em Montes Claros, medo mesmo tive no cate- cismo. Aquele inferno que nunca acaba, chamas eternas, pavores. E as dúvidas do que era pecado mortal, venial. Quaresma, panos roxos cobrem os santos, carne nenhuma à mesa. Os olhares tris- tes das imagens, os ferimentos de cristo. Os dez mandamentos, os sete pecados capitais. A proibi- ção do ócio, do sexo, da raiva, da alegria, das ex- pressões de emoções. Eu era pecador e não sabia. Antes eventualmente sofria, agora o sofrimento estava dentro de mim, constante. À crueldade dos adultos se somou a das crianças. Mamãe definiu: brigou na rua, apanha em casa. Inseguro, provocado, tirava os óculos, fechava os olhos, dobrava o corpo e dava murros às cegas. Apanhava na rua, apanhava em casa.Até hoje não sei brigar. Mas brincava de roda, pegador, seu rei mandou dizer. Ouvia serenatas, me lambuzava de manga, pipoca era uma festa. O cheiro que a chuva pro- voca na terra, finca, bilboquê, luta de espadas, pa- pagaio na linha, pé no chão. Latim, matemática, desenho, trabalhos manuais, português, geografia, religião, história. Um pouco de francês, inglês, co- ral. Recreio, trabalho na cantina. Férias. São João, passeios no mato,banho de rio.Tarzan,Mandrake, Fantasma, Cavaleiro Negro, Zorro. Matinê, seria- do, Rock Lane, Roy Rogers, Kung Fu. A boiada passando na porta de casa. Os compromissos es- colares,as obrigações caseiras – comprar o pão,en- graxar sapatos, passar cera no assoalho, arrumar a cama,levar e trazer o que for preciso,eventualmen- te buscar marmita. E olhares afetuosos de quem gostava de si. E de mim. Permaneço criança, fantasiado de adulto. Sinto hoje minha criança presente em tudo o que sou e faço.Amadurecendo, aprendo agora gostar de mim. Reconheço – recor- do que fiz o melhor que soube,que pude em quase, se não todos, momentos da minha vida.
  • 35. 70 71 Depois, horas dançantes, desejos fortes. Os apertos de mãos,o bate-coxas,os rostos colados,os beijos de língua, as mãos nos peitos. A iniciação no bequinho dosmeninos,orisco,ofrisson,ogozorápido.Sempre presente,proibido – um tanto fora,um tanto dentro de mim – o sexo. Aosdoze,paraganharumpouco,vendicestasdena- tal.Que alegria um dinheirinho fruto do meu traba- lho.Depois,lápeloscatorze,aulasdematemáticapro filho do representante da Brahma na região, que me contratou depois como auxiliar administrativo.Fiz o segundo científico em Belorizonte, o primeiro e ter- ceiro em Montes Claros.Vestibular – não passei em BH– escolhi,mesmosemsaberoqueera,economia eláfuieupraBrasília.Deiaulasdematemáticaànoi- te no Gama,fui monitor de estatística na UnB,esta- giário no Ministério daAgricultura,Socorrofoimeu amor e com razão me deixou. Sai de dois serviços públicos, errei como pequeno industrial de malhas. Arrisquei o Rio. Início dos anos setenta Conjugado dividido em Copa, um karman-ghia, paquera aleatória diária, sexo como objetivo. Cul- pas misturadas com prazeres. Trabalho no Insti- tuto de Colonização e Reforma Agrária, o Incra, aqui responsável pela coordenação do treinamen- to e seleção de quem cuidaria de fazer os levanta- mentos de dados em campo. O combinado era uma passiva reforma agrária, através da taxação progressiva tanto das pro- priedades menores, os minifúndios, quanto das propriedades maiores, os latifúndios. Maiores ou menores em relação à área definida em cada mi- crorregião como a suficiente para a sobrevivência e desenvolvimento econômico de uma família tra- balhadora. Levantamento feito, memória difusa, quem detinha o poder de assinar, decidir optou pela proteção aos latifúndios. Larguei mais este serviço público, vendi o carro – já um fusca – e, com Ana, pegamos o navio em direção incerta, hippies sem saber que éramos. Uma semana em Barcelona, dez dias em An- dorra acolhidos por um índio peruano, um frio danado, atravessamos a Europa batendo a mão, carona pura até Amsterdam. Lá, centro da cidade, na redlight, mulheres na vitrine, encontramos um
  • 36. 72 73 quarto bom,ambiente aquecido,chuveiro externo quentão,baratinho.Ana foi posar na escola de de- senho e pintura, eu aprender a bater perna. O Kosmos, um choque. Centro cultural para jo- vens holandeses, financiado pelo governo, duas moedas pra entrar, de cara um salão grande, algu- ma fumaça com cheiro bom como os dos bolos e tortas, música suave, pessoas calmas espalhadas. Outra porta, um forno elétrico, barro à vontade para quem quisesse esculpir e levar. Depois um salão, cubos grandes em muitos níveis, espaço para apresentações de artistas passantes, asiáti- cos, europeus, africanos, latinos, americanos, de outros mundos. Desço escada, uma cozinha com aquelas comidas estranhas, cheirosas, leves, casei- ras, que depois descobri macrobióticas e naturais. Sauna grandona, homens e mulheres conversam e agem como se não estivessem nus. Tudo muito paraíso. Noutro lugar, à noite, o Paradiso. Coca e maconha oferecidos na calçada, música a mais moderna adentro. Corri da coca, medroso de me apaixonar. Aos meus olhos tudo muito leve, tudo muito puro. Alegria quase insuportável. Assim as portas se me abriram para outras janelas. Antes, em Brasília, vislumbre de nova vida. 1965, dezoito anos, meus tempos e afazeres por minha conta. Duzentos e trinta professores demitidos, greve boa parte do ano na universidade. Estudos intercalados com aventuras. A população masculina predomina- va. Zona boêmia, rendez-vous só fora do distrito federal. Pegava carona, lá ia eu mendigar por amor, carinho, consideração. Bati errante, errado em portas erradas. Madrugadas frias, solidão. Também por carência - necessidade de estar pró- ximo a colegas, de ser aceito - perdi no baralho muito de minhas mesadas.Já no segundo ano,mo- nitor de estatística na universidade, estagiário de economia no Ministério da Agricultura, professor de matemática para o ginasial de escola da Fun- dação Educacional do Distrito Federal. Em 66 já tinha um fusquinha. Em 67 completei rapidi- nho todas as matérias do currículo de Economia, fiz outras de Administração Pública enquanto esperava o tempo mínimo para me diplomar. Muito jovem aprendi a ser bonzinho.Pra não apa- nhar, literal e simbolicamente. Como uma defesa
  • 37. 74 75 diante do mundo. Meu humor era leve, brincava fácil. Cedo percebi que podia escolher meus ru- mos. Era só me responsabilizar pelos resultados do que fazia. Atenção redobrada ao que acontecia fora e dentro de mim, ao que era real e ao imaginado. Medos antecedendo às decisões.Culpas depois das ações. A cada fugida da regra, da normalidade, medos e culpas e reflexões. Erro e acerto, tateando atento, emimesmado. A regra de ouro presente: não fazer a outro o que não desejo pra mim. Como auto-referência, meu humor. Se bem-humorado, vale, valeu. Se mal, o que está ao meu alcance? Adulto jovem descobri que quando alguém me diz não! devo rapidim verificar se este não é de quem diz ou é meu.Volta e meia querem cortar meu cabelo,mu- dar meu jeito, trocar minha camisa, que eu cons- trua uma pirâmide. Normalmente é problema de quem tem problema com seu próprio cabelo, seu jeito, camisa. E de quem complica sua vida cons- truindo as pirâmides que inventa. Agora mesmo agradeço oportunidade de me candidatar a recursos para realizar documen- tário que quero. O assunto, terapia comunitá- ria, me interessa profundamente. Mas me an- gustiam prazos, prestações formais de contas, limitações externas de conteúdos. Acordei já com o estômago contraído. Decido pelo que desejo e está ao meu próprio alcance, com meus recursos e tempos. Imediatamente meu corpo relaxa, meus pensamentos se aquietam, me acalmo. Nada a ver, tudo a ver, uma quase dúvida: juven- tude é estado de espírito? E velhice? Amsterdam se foi inesperadamente A morte da mãe de Ana nos trouxe de volta. Fo- mos até Cádiz, atravessamos o estreito de Gi- braltar, Marrocos. Meu rabo de cavalo agora em coque, receio não ser aceito cabeludo em cultura estranha. Tetuan, o ônibus tosco pega e deixa pelo caminho gente, carga e animais. Punhais
  • 38. 76 77 saem de djelabs para descascar frutas, cortar nacos de carne. Camelos passam ao largo. Aos trancos, Marrakesh. No Zoco, mercado central, montes de castanhas, aquela música serpenteante vinte e quatro horas por dia. Gente que conversa pegando na gente. Um que passa com duas luvas de boxe à procu- ra de contendores que apostem no seu próprio taco. Às tardinhas, o mesmo personagem – aga- chado como seus espectadores – conta histórias como novelas. Um menino me puxa e oferece atento a tudo – kif, kif, cinq dirrans! Compro aquela mão cheia de maconha - haxixe? - vou esgueirando pra pensão, aperto um baseado com alguns desconhecidos aventureiros espanhóis, fica tudo escuro de re- pente, perco a visão por catorze horas. Badtrip. Talvez decorrência daquele ácido potente que to- mei inocente no banheiro em Amsterdam, alguns dias atrás – fiquei então seis horas em orgasmo contínuo, e outras tantas em puro terror, a zanzar pelas ruas e canais da cidade estranha. Na África a visão voltou, meus medos me fizeram limitar-me ao botequim frequentado por euro- peus errantes como eu. Enquanto Ana, como se estivesse em casa, já com vestimenta local, andava pelos becos a descobrir de um tudo da cidade e sua gente. Só Jung pra explicar esta memória an- cestral de Ana, nascida Aben-Athar. Pegamos o destino errado, na volta Só homens no vagão, o chefe de trem sacou o pe- rigo e nos acomodou numa cabine isolada. Passa- da a noite em nebulosa direção, retomamos não sei como o caminho para Casablanca. Dali, Espa- nha, Portugal ainda salazariano, avião pro Brasil de Médici. Ou Geisel. No Rio, busca de uma nova rotina, burocracias. Nos meses que antecederam a ida pra Europa morávamos sete numa casa, comunidade urba- na criada por nós – Ana, Paulo Cangussú e eu. Inicialmente três, colocamos anúncio em jornal, talvez Pasquim ou JB, e acolhemos quatro desco- nhecidos. Era tanto movimento que volta e meia dormíamos fora, em busca de sossego.
  • 39. 78 79 Uma vez,em Ipanema,na praia,quando acordamos, Paulo, primo amigo comunitário original, deu por faltadosóculos.Procuradaliedaqui,rastrosderatos nos levaram aos seus buracos. As lentes continham celulose,apetitosaprosroedores.Foram-seosóculos. Outra vez abri a parte de cima do armário do meu quartoe,lá,numasacoladasCasasdaBanha,daque- la de papel, maconha até o tampo. Surpresa que ex- plicou tamanho entra e sai de gente estranha.Talvez ali a gota d’água pra dissolver a casa e a comunidade. 1973 Alugamos com Roberto Amaral um sala e quarto na Barra. Prédio com cento e quarenta e quatro pequenos apartamentos, só nós morando duran- te a semana. Água potável trazíamos de fora. Em busca de glória, dinheiro e de não sei mais de que, catálogo telefônico nas mãos, ofereci de porta em porta meu trabalho gratuito a produtoras de cine- ma. Memória insegura. Um concunhado que era filho de uma prima de Lucy, mulher de Luiz Carlos Barreto, entrea- briu uma fresta. Barreto me acolheu, me deixou à vontade. Durante três meses cheguei cedinho, sai noitinha, mexendo, escutando, atento. Espe- cialmente a partir de informações de Lucy, escre- vi um manual de produção de cinema, com tudo quanto é tarefa e controle. Frilança, fiz uma se- cretaria de produção d’A Estrela Sobe, de Bruno. Nelson Pereira dos Santos, talvez não se lembre, sem me conhecer, me marcou pela atenção com afeto.A produtora era um centro cultural, vaivém de gente diferente. Dali fui segundo assistente de montagem de Es- corel e Amaury no Guerra Conjugal, de Joaquim Pedro. Na Mapa de Zelito, na Urca, rolava no fi- nal das tardes uma comida caseira deliciosa e à mesa sentavam os chamados senadores do cine- ma novo – Cacá, Leon, Jabor, além de Joaquim, Nelson, Zelito, e, olha a memória curta, talvez Glauber. Ali, acredito, o berço da Embrafilme. No Largo do Machado encontrei Carlos Alberto Prates Correia. Carlos Alberto, minha referência amiga mais forte no cinema, me ensinou ser dire- tor de produção de seu filme Perdida, que arreba- nhou em Gramado a maioria dos kikitos daquele
  • 40. 80 81 ano. E, na história da Embrafilme, único filme a devolver dinheiro não gasto do financiamento. 1976 De novo, navio mais barato que avião, doze dias no mar, Europa. Londres, rapidinho encontra- mos o porão certo da casa condenada. North Go- wer Street, pertinho da Union London University, a ULU, onde – para nosso fraco inglês não nos denunciar intrusos – calados entrávamos, calados almoçávamos e tomávamos banho. Na casa comunitária da esquina da nossa rua aju- dávamos fazer pães integrais. Ana trazia doces indianos deliciosos do restaurante onde trabalha- va na cozinha. Eu, não sei como – imagino fazia mímicas – arrumava trabalho por telefone. Pulei de operário ajudante de obra para modelo de es- cola de desenho. Depois lanterninha e vendedor de sorvete no teatro da ULU. Lia as poesias de Mao em português, comia kebab, batia perna pelo centro da cidade. Desconfiei serem agentes do DOPS os fotógrafos que clicavam em passeata de protesto contra Gei- sel, em visita oficial a Londres. Medroso de não poder voltar ao Brasil, arrumamos rapidinho as malas e, seis meses após nossa chegada, voltamos de avião para casa. Não sei agora a ordem das coisas. Na fronteira de Santa Tereza com o Silvestre, a Equitativa tinha um quê de paraíso – a floresta da Tijuca à jane- la, gente em busca alternativa como nós, aluguel barato de um apartamento velho por restaurar, uma pracinha com vista de cartão postal da baia da Guanabara.
  • 41. 82 83 8 psi Wilhelm Reich foi um choque Almir, jornalista agitado, apresentou o Combate Sexual da Juventude, escrito na década de trin- ta para jovens alemães. Pela primeira vez, uma orientação sexual não moralista. Eu trazia em mim as culpas do catecismo,reforçadas pela leitu- ra do limitado Vida Sexual de Solteiros e Casados, de João Mohana, padre e médico. Que experiên- cias teriam homens com voto de castidade para dar orientações sexuais a inocentes crédulos? Mergulhei, fui fundo em Reich, li A Função do Orgasmo, Revolução Sexual, Psicologia de Massas do Fascismo, Irrupção da Moral Sexual Repressiva, Escuta Zé Ninguém, Casamento Indissolúvel ou Re- lação Sexual Duradoura, Análise do Caráter. Para sentir, só me restava viver. O pecado seria não ex- perimentar.A regra de ouro permanecia: não faço a outros o que não desejo que façam a mim. Romel Alves Costa, psiquiatra, também tinha sido tocado por Reich. Experimentou técnicas te- rapêuticas com um colega, deixou o emprego no INSS, abriu espaço e colocou anúncio-tijolinho no Jornal do Brasil. Lá fui eu, por cinco anos, muitas vezes por sema- na, hora marcada, nu de corpo e alma, me emo- cionar,tentar me sentir e me entender.Respiração e movimentos, atento. Volta e meia formigamen- tos. Se os suportava, vinham reflexos. Com os reflexos afloravam sensações, sentimentos, pen- samentos. A memória fazia presente o passado. Fichas caiam, compreendia dentro de mim, insi- ghts bem vindos. Movimentos de braços, pernas, pélvis, olhos... Em meu corpo, minha memória, minha história. Na penumbra, seguia com os olhos a luzinha manuseada pelo tera- peuta.Derepente,tantasvezes,lapsos.Quandodava pormim,estavaemposiçãofetal,comlembrançasre- motas de infância. Eu no berço, antes dos dois anos, os olhos muito apertados, um jeito de fugir daquele medoqueassombrasmetraziam.Medodealmasde outro mundo,mulas sem cabeça,defuntos.
  • 42. 84 85 Descobri ali no consultório de Romel a origem de minha visão distorcida. De tanto apertar os olhos, acredito ter forçado a musculatura local a ponto de perder a elasticidade. Com os exercícios, pouco a pouco recuperei esta mobilidade muscu- lar. A lente direita de meus óculos diminuiu de quatro graus e meio para zero vírgula setenta e cinco. Depois de usar óculos por vinte e sete anos, passei três anos de cara limpa, enxergando tudo, suficientemente bem. Ao mesmo tempo, medos presentes, antigos e novos. Passado um tempo, não suportei nem os medos nem as alegrias. Voltei a usar óculos, mas perdi outra inocência: sou responsável por mim mes- mo. Reclamo primeiro ao espelho. Na Equitativa conheci Ralph Viana A Rádice já estava no sexto ou sétimo número. Era uma revista de psicologia com visão ampla. Trazia da Inglaterra a antipsiquiatria de Laing, da Itália o movimento antimanicomial de Basa- glia, apresentava Nise da Silveira e seu Museu de Imagens do Inconsciente, abria espaço para os argentinos, para a latinoamérica, pro universo psi mundial. Além de Freud, Jung, Reich, Lowen, Alex Polari, outros visionários chegavam a quem abrisse suas páginas. Meu coração se juntou às ondas. Me ajudei, aju- dando. Resumos de livros, administração, dis- tribuição, divulgação, próximo de quase tudo. Imagino: mesmo quem não foi saberá como eram maravilhosas as festas de Ralph quando se re- cordar das suas próprias melhores lembranças. Guerrilha cultural, jornais e revistas nasciam, cumpriam sua missão, eram colecionadas lá den- tro de quem lia.A Teoria Crítica mergulhava mais fundo. O Luta & Prazer era leve. O Espaço Psi, o Nexos, o Estar Bem, o Bem-estar..., como todos jornais, eram distribuídos gratuitamente. E os simpósios? O Alternativas no Espaço Psi – Psicologia, Psiquiatria e Psicanálise, cento e doze eventos em três ou quatro dias intensos. Em vários espaços, ao mesmo tempo, palestras, de- bates, vivências, intercalado com festas, recreios, namoros. Clima fraterno, solidário. Com zero ou quase de dinheiro, uma multiplicação de ajun- tamentos do que cada um co-laborava. Valéria
  • 43. 86 87 Pereira, Ralph, eu – e muita gente, Sérgio, Dau Bastos, Viola, quem mais? – interagíamos com os voluntários. Mas não éramos sós. Tarefas relacionadas, um a um definia o que se propunha realizar e em que prazo. Exercício de autonomia integrada. Rede sem sabermos que era rede. Parque Laje, eventos diferentes a cada duas horas em cada um dos oito espaços. Quem entrava se dirigia para o que esco- lhia. Foram, na verdade, mil e cem simpósios, um para cada uma das mil e cem pessoas presentes. Os conteúdos, os jeitos de fazer se espalharam pelos brasis, adaptados às realidades locais. Hoje teses acadêmicas recuperam memórias, sopram novos movimentos libertários. 9 rotina Escrevo para me confortar, gostar de mim, alegrar com o que vivo e com o que vivi. 2011, até abril. Outro dia, quase rotina. O pri- meiro toque do celular-despertador tem sido às seis. Depois, seis e meia, seis e quarenta e cinco. Meia hora pra espreguiçar, obnubilado nesta né- voa da volta ao dia.Novo toque,se já não comecei, levanto as pernas pra cima, permaneço um pouco em cada posição, me dobro até os pés encontra- rem o espaço atrás de minha cabeça. Ao mesmo tempo, entreabertos olhos, circulo o olhar exercitando a musculatura. Pernas pra cima de novo, depois, um pouco, me aperto em posição fetal, equilibro um tantinho as pernas no ar e me curvo pra frente, sentado, as mãos segurando os pés. Sento de novo, torço meu tórax prum lado, pro outro. Repito tudo.
  • 44. 88 89 Levanto e faço a saudação ao sol, que Regina me ensinou. Duas vezes, intercalada com balançares de braços como li em Castañeda e como aprendi com Juracy Cançado. Rodo a cabeça, pra esquer- da, pra direita, como metaleiro em show. Antes, bem antes, em algum momento, quase sempre, um e outro movimento bioenergético – bater pernas e braços como neném, balançar meu corpo deitado como geleia, focar longe e perto... – da- queles que vivi com Romel. Sei que o terceiro toque do despertador aconte- ce quarenta e cinco minutos depois do primeiro. Tomo um banho, faço um cafezinho, sento aqui por uma hora, uma e meia e me divirto em livre associação, se não inteira, quase. Tenho gostado de viver. Em casa não tenho remédios. Nenhum, me orgulho. Almoço no Panela de Barro, comida leve, saladas e algo de soja ou queijo, eventualmente um arroz, feijão. De vez em quando um refresco de guaraná dito natural. E depois, descoberta, uma cocadi- nha de Minas, feita com ameixa ou abóbora. O vício, uns cafezinhos de máquina durante o dia, lá onde também trabalho todo dia útil, pela manhã e à tarde, oito a dez horas. 2012, feiras às terças, às vezes aos sábados. Faço arroz, feijão pra três, quatro dias. Bem simples, só água e fogo. Preparo o almoço: na frigideira seca, terfal, um pouco de queijo curado, arroz, fogo baixo, tampo. Pico algo como salsa, cebolinha, coentro. Boto em cima do arroz. Do feijão já es- quentado, pego um pouco sem caldo, acrescento. Corto o inhame ou a batata baroa já cozida, co- loco na frigideira. Tudo quente, viro de uma vez num prato grande. Pronto meu almoço. Talvez uma couve esquentada na água. Com certeza, na mesa, pimenta malagueta. É minha refeição prin- cipal, no meio do dia. Pela manhã, mamão, eventualmente junto com banana ou abacate. Durante o dia, quando dá vontade, corto laranjas em quatro, retiro a cas- ca com as mãos, uma delícia. O fazedor italiano – aquele sextavado que já se tornou popular – me oferece café quente e novo umas três, quatro vezes ao dia. Água, va-
  • 45. 90 91 rio, tomo pouco, sinto que deveria tomar mais um tanto. Lavo mas não passo. Mantenho mas não varro. Molho as plantas. Cada dia tem sido novo dia. Gasto só o que tenho.Depois de 49 anos de traba- lho, salve o INSS, sou um aposentado, digamos, ativo. Mais foco no que sinto, no que penso, no que falo, no que faço. Aprendo atenção nos meus sentimentos, pensamentos, palavras e gestos. Im- pressionante como volta e meia me descubro co- locando pedras em meu caminho. Tropeço, dou aquela corridinha que o tropeço causa, às vezes caio.Aprendizado mais lento do que desejo. Mas, confesso,nisto dependo só de mim.Reclamações? Vou pro espelho. Leio. Mergulho quando me toco.Alguns livros na cabeceira, minha mão vai instintivamente onde meu desejo da hora me leva. Evito televisão. Só o necessário. Lembro Freud quando ele afirma que a maioria dos sonhos tem a ver com o dia anterior. Cuido de hoje pra ter bons sonhos. Ah! E toma de tomar banho.Alterno frio e quen- te. Pouco sabão. Nos cabelos, neca de xampu e condicionador, só água. Nada radical, como com a comida. Em Roma, como os romanos. Quando visito minha família mineira, como carne, ovo fri- to, pão de queijo. Fantasio que sei o nome da gali- nha sacrificada, como talvez soubesse nos tempos de infância. Limpo os óculos várias vezes ao dia. Sabão de coco e água, ficam transparentes as lentes. De duas em duas semanas um casal amigo, Jorge, o Russo – e Eliany – dá uma geral aqui em casa. Maravilha, um auxílio luxuoso. Hoje mesmo – que já é passado – gravo aqui em casa, só, as apresentações que faço dos programas Saiba+ que têm ido ao ar pela TV Comunitá- ria do Rio. Tento torná-los atemporais, pra que possam ser veiculados em qualquer época. Os re- cheios são os vídeos-registros-documentários que realizei ou produzi, só ou com amigos e colegas. Imagino possam ser veiculados como programas de rádio, se não sem, quase sem alterações. Para gravar, sei apertar os botões básicos da câmera
  • 46. 92 93 simples e boa que Elizeu me sugeriu. Já editar, não sei, sou suprido por profissionais amigos. E escrevo,re-escrevo,de acordo com os sentimen- tos que variam em mim. O FGTS que recebi quando fui demitido do Sesc Rio tem sido a base para as despesas extras, como a impressão do livro, a edição dos programas. Já financiou parte das despesas com um Blogspot onde reúno quase tudo que me exponho, textos e links. E a página que o Videolog me oferece, onde disponibilizo quase todos os vídeos. Já o desejado sofá, só quando entrar um dinheiro extra de um trabalho extra.A vida simples, mas boa, do dia-a- -dia, o salário simples de aposentado garante. 10 incertas Por limitações humanas, quantas ideias, invenções, soluções simples foram e estão sendo deixadas de lado por cada um de nós? O que faz com que alguém acumule o que não necessita e que poderia ser útil para outros? O preenchimento de vazios dentro de si mesmos? Se vazios, que vazios seriam estes? Quais origens destes vazios individuais que talvez gerem tanto consumo, tanta necessidade de poder? Tenho fei- to a mim estas perguntas que faço a outros. Pouco a pouco percebo como meus próprios va- zios estimulam meus comportamentos. Dói to- mar consciência do que sou, dissolver a imagem ideal que tenho de mim. Tranquiliza reconhecer meus limites, o que me falta. Facilita agir a partir do que disponho. Fico do meu tamanho. Ligo a TV e alguém que não conheço me informa que preciso ter algo que antes des- conhecia. Tenho em mim agora uma necessi-
  • 47. 94 95 dade. Se tenho recursos para supri-la, satisfa- ção momentânea. Se não, um sentimento de impotência, incompetência, outro vazio. Me faz mal, muito mal, esta publicidade do que não me faz bem... nem está ao meu alcance. Imagino crianças e adultos inocentes, a todo momento chamados para novas necessidades que não têm condições de adquirir. E que não suprem os afetos básicos, alicerces de bem- -estar de fato. Ronald Laing, em Laços, sintetiza: Mamãe me ama. Eu me acho bom. Eu me acho bom porque mamãe me ama. E, se mamãe não me ama, eu me acho mau. Criança inocente – imagino como muitas – de- samores, desatenções alimentaram meus vazios. Descubro em mim, não tenho esta dúvida: os va- zios que vivi e não transcendi, repito diariamente nos meus sentimentos, pensamentos, palavras, gestos.Hoje,invertendo,talvez mamãe aqui signi- fique aquela mamãe que volta e meia tenho opor- tunidades de ser. Comigo, com o outro. Compreendo ato falho como algo que – diferente da minha intenção consciente – espontaneamente penso, falo, faço. Desde, sem querer-querendo, chamar o outro pelo nome errado até pegar o caminho da casa da na- morada quando aparentemente intencionava ir para outro lugar. Assim, atos falhos me interes- sam, traduzem o que lá dentro – fora da consci- ência – guardo, retenho, sou. Pulo No mundo, hoje, grande parte dos recursos são gastos em controles. Mas, acredito, se responsabilidades e direitos – ganhos e perdas incluídos – são compartilhados com os trabalhadores de cada empreendimento ou instituição, naturalmente cada um cuida me- lhor do que também é seu. Neste cenário hu- manizado, os custos e os controles diminuiriam consideravelmente. A tendência, co-laboradora, o ganha-ganha. Talvez aqui uma contribuição para transcendência de crises econômicas. Na origem de tudo, o desejo de quem decide o que está ao seu alcance.
  • 48. 96 97 Reflexões singelas como estas – quando o olhar para fora é voltado para dentro de mim – me aju- dam orientar meus caminhos. Atento ao que está ao meu alcance, reconheço o que falta e me falta, delimito, ajo, realizo. Descubro na internet que existe uma rede de tecnologia social em que soluções inventadas são disponibilizadas gratuita- mente para quem deseje.A cisterna que o pedreiro nordestino construiu e que acumula água de chu- vas é referência.Cisternas semelhantes já minoram a falta d’água para centenas de milhares de famílias. Imagino uma pequena mudança de atitude minha ou de qualquer um e de muitos: compartilho o que aprendi e me facilita a vida, torno minha vida mais agradável. Ofereço pelo prazer de dar. Co- migo isto se torna mais fácil quando me permito pequenos grandes prazeres.Ando descalço, espre- guiço, como com as mãos, digo uns sins, digo uns nãos. Abraço inteiro, brinco com o corpo, rio de mim, divago. Trabalho sem perceber: quando me dedico ao que gosto, 24 horas por dia estou atento sem saber. Livres associações são imediatas. Sempre que mudo de trabalho me dá um medo danado. Depois de tantas mudanças aprendi que dá tudo certinho, sou capaz de aprender o que não acreditava possível. Sei também que quando trabalho com o que não me identifico, sofro, fico mal-humorado, chateio quem não tem nada a ver. E,quando me permito estar bem comigo,trato aos próximos como trato a mim. Fico bonito, me sinto assim. Mas – mesmo já sabendo tanto – vario.
  • 49. 98 99 nham. Sirvo ao público com o melhor de mim. Sou um servidor público. A regra de ouro, presente, me tranquiliza: não faço a outros o que pra mim não desejo.Tudo ao mesmo tempo aqui e agora. Se reclamasse, seria de barriga cheia. Não tenho um comprimido em casa, comida gostosa todo dia, banho quente ou frio, máquina de lavar, la- vanderia que leva e passa, arrumadores que var- rem e cuidam, vizinhos que me protegem, telefo- ne que funciona, eu desligado da tv. É meu, meu tempo.Preciso ser atento e forte, não tenho tempo de temer a morte, agradeço a Caetano. Desejo recu- perar meu humor primário. Entreabro a porta de minha segunda infância. Eu também? Posso ter entendido Winnicott diferente do que escreveu. Arrisco. Ele fala da conveniência de uma moça querer ser uma mulher. E de um rapaz desejar ser um homem. Mas constata que não é sempre assim. Quando se considera o in- consciente e os sentimentos mais profundos, descobre-se facilmente um homem durão que- rendo muito ser uma moça. E uma adolescente 11 reflexos Há tempos, um dia qualquer Ontemehojemisturados:temposforadeordem,as datas variam nestes escritos. Falo de outros, falo de mim.Agendatãocheiaquenãotenhotempoprame aproximar de mim mesmo.Escondo-me de mim no trabalho, não me dou limites. Só posso reclamar ao espelho. Ajo como se não tivesse consciência. Apa- rente let it be, laissez-faire, deixa a vida me levar. Terapia Comunitária me tocou,vou às aulas,pratico as rodas, decido internamente fazer um vídeo, es- tou em produção. Escrever como aqui me tem feito bem. Levanto cedinho, três, quatro vezes por sema- na,escrevo.Chega às minhas mãos uma transcrição da fala do Dr. Luiz Moura no vídeo Auto-hemotera- pia, já produzo a impressão de livreto, penso agora como fazê-los chegar a quem precisa e se interessa. Desegundaasexta,diainteironoSesc,cuidandodo que me propus,burilando o que me decidiram.An- tecipo,proponho movimentos antes que me propo-
  • 50. 100 101 com uma constante inveja dos homens. Isto pode estar escondido no inconsciente reprimido. Me angustio com os que perambulam sem tudo – afeto, traba- lho, comida, teto... Não sei o que fazer, dou um real aqui, um olhar ali, pago um prato. Muito de vez em quando quero saber, converso. Quando não suporto, mudo de calçada, o coração aperta- do, uma culpa danada. Minha memória, alguém me diz,é de peixe,esque- ço nomes, fatos. O que me comprometo, anoto, agendo.Quase tudo é como se fosse a primeira vez. Ajudo meus filhos quando cuido de minhas pró- prias angústias. Quando não transfiro meus dese- jos. Ajudo mais se consigo compreendê-los, aco- lhê-los e a mim, lembrar-lhes quem somos. Estas luzes são raras.O mais frequente,evito atrapalhá- -los nas suas próprias buscas. Quando estou equilibrado, aí sou bom. Suprido, escuto. Solidarizo, fortaleço. Enquanto não sou assim – aos meus olhos quase perfeito – me pro- ponho ser. Pisco, tropeço em meus próprios bu- racos.Com dores,paro,sinto,reflito,experimento um passo atrás, pro lado, pra frente. Vivo como aprendo a dançar. Este outro meu capital, o que vivi, o que vivo. Pausa pra escutar os homens do Bope que na rua em frente correm agora cantando canções de morte e guerra. Imagino se canções de ni- nar, de roda, de dança. Antonio Faundez, em conversa com Paulo Freire, do que entendi, uti- lizava a filosofia como meio para analisar a situação política,a vida no mundo concreto.Estudava filoso- fia como uma maneira de se apropriar de conceitos, de capacidade crítica para entender a realidade. Mais ou menos um dia Um dia destes. O avião ronca. Quatro da matina, cochilo, lembro da importância do som neste do- cumentário. A entrevista com Adalberto, a roda da terapia comunitária, as possibilidades de insi- ghts ao vivo, os depoimentos de quem viveu. Este o plano. Agora é com a realidade.
  • 51. 102 103 Ontem dia inteiro de reunião com o UNICEF, focado no repensar o Encontros, experiência em que jovens de camadas sociais diferentes se re- únem e, desejo dos que promovem – Michel, Cláudia, Gilberto, Luciana, Charles, Fernando... – ampliam conhecimentos sobre si, o outro, o mundo. Antes, cedinho, saudação ao sol, café, imeios, tele- fonemas, embalo livretos de autohemo, pra Gló- ria, por favor, despachar pelos correios. À noite converso com Elizeu sobre o roteiro que montou e a busca de financiamento da Fiocruz. Arrumo a mala, molho as plantas, telefono, lavo e estendo a roupa, boto correspondência em dia, carrego as baterias das câmeras, tomo banho, como caqui e melancia e desço correndo pra en- contrar Michel no táxi que nos leva ao encontro de Hélio no aeroporto, rumo às Ocas do Índio, em Morro Branco, pertinho de Fortaleza.A caminho sinto falta das chaves de casa, telefono à uma da manhã pro Jorge. Descobre que algum outro vizi- nho já as trouxe, sãs e salvas, pra dentro. À espera do embarque, entre conversas curtas, puxo uma, Hélio, cordialmente crítico, me lembra que sempre tenho uma solução pro mundo. Entalo. É verdade. Ocas do Índio 2008. Oito dias de frente prum mar morno e céu estrelado, tempo todo mais atento a mim e a ou- tros. Bioenergética cedinho, intercalo, intercala- mos razões e emoções, descobertas e compaixões, dores e prazeres. O clima é de reconhecimentos. Somos entre trinta e quarenta, agora mais que profissionais, pessoas. As noites são calmas, leves as comidas e os pensamentos. Cuidando de mim, aprendo um tanto cuidar de nós. Os que vivemos nos tornamos próximos. Adalberto de Paula Barreto é o mestre,maestro.Sua Terapia Comunitária, já sabemos, facilita rapidinho solidariedades. Neste espaço, combinamos antes, cada um só fala a partir do que viveu, experienciou. Conselhos, julgamentos não valem. Todos têm oportunidade de se expressar. Quando cada um que deseja fala – das suas alegrias ou, mais comum, do
  • 52. 104 105 que lhe atormenta –,todos escutam.É democratica- mente escolhido, para aprofundamento, o problema como qualmaispessoasseidentificam.Embuscade melhor compreensão, quem fica na berlinda dá mais informações e responde a perguntas. Contextualiza. Depois, em silêncio, ouve quem contribui com o re- lato de suas próprias vivências similares. Emoções afloram, pipocam identificações, pesso- as se aproximam. Ao final, os que querem, falam do que levam desta roda. Muitas vezes conforto, tranquilidade, compreensões, auto-conhecimento e estima. Germinam vínculos, fortalecem-se laços, nascem e se realizam projetos voltados para inte- resses comuns ali descobertos. Cultura,o que é? Antonio Faundez lembra Paulo Freire e se identifi- ca com o que ele dizia que descobrir uma cultura é aceitaroutracultura,tolerá-la.Eafirmaqueacultura é mais do que manifestação artística ou intelectual através do pensamento. Sua manifestação mais pro- funda está nos gestos simples do cotidiano, como os diferentes jeitos de comer, dar a mão, relacionar-se com o outro. Eu próprio quando leio Faundez, o escuto im- pregnado de minha própria cultura. Já não é mais Faundez puro. Somos agora misturados, inclusive a Paulo Freire. Posses Tudo muito bem, tudo muito certo. Reconheço, já não tenho meu tempo. Descobri maduro que não sou eu que tenho as coisas, são as coisas que me têm. O carro que não tenho me obrigaria cuidá- -lo,guardá-lo,emplacá-lo,mantê-lo.O animal que não tive me pede atenção, cuidados. O dinheiro requer guarda, controle. O que guardo nas prate- leiras, no guarda-roupas me pede limpeza, arru- mação. Tudo me pede tempo. Se não pede, toma. Hoje, ainda, como não tenho meu tempo, corro. Na minha infância não soube de faltas até o momento em que, na cidade maior, vi a vitri- ne. Desejei o que não tinha. E por muitas ve- zes me angustiei por não me suprir das novas necessidades criadas. Só agora compreendi que o que aparentemente possuo é que me possui. Minhas posses me aprisionam.
  • 53. 106 107 Foi bom tê-las – estas coisas que me têm – e agora deixá-las a uma e outra. Por mim, hoje, só escreveria, filmaria. Muito do que me impede é minha carência, que me faz querer ser reconheci- do, admirado, mesmo eu sabendo que – se minha auto-estima depender do olhar de outros – posso eu próprio não me reconhecer. Como diz o Adal- berto, o que você quer que eu queira, pra eu querer? Winnicott dedicou a vida à pediatria e à psicanálise, especialmente a infantil. Fez, nos últimos anos de vida, palestras para os públicos mais diversos. Tudo Começa em Casa é o título do livro póstumo que contém estas palestras. Cada capítulo se en- cerra em si mesmo.Sua leitura tem me facilitado a vida, um tanto pela melhor compreensão de mim mesmo, outro tanto pela compreensão do outro, mamãe inclusive. E meus lados mãe, pai, filho. Livre pensar, levitação de tempo e espaço. Ausência de nada, presença de tudo. Pulsação, inspiração, expiração. O fio invisível que me abre o fluxo. Limbo Eu, 65, de repente mudança de referências. Me desculpo, confundo, misturo vida e trabalho, constante busca, antecipação de futuro – experi- mento já desejos pro futuro. Utilizo indicadores: tranquilo humorado me sinto no caminho certo. Se não, que realizo para novo equilíbrio? Algo clareia: aprender a viver – tranquilo humo- rado – com o que está ao meu alcance? Ficção A busca-em-ação, a buscação é descoberta, expe- rimentação, sim e não. Olho pra trás, domina a memória enevoada. Quando emergem lembran- ças, as felizes sobressaem. Tudo muito variado, umas vezes assim, outra incorporado. E eu, aqui, em qualquer momento, impregnado de mim. Confuso e lúcido. Em conversa cifrada co- migo mesmo, num misto de coragem e medo. Meu universo pulsa, sou centro e partícula, sou todo volume e não sou. E a prática de realizar: sonhar, lembrar, uma história, um plano passo a
  • 54. 108 109 passo,fazer passo-a-passo.Primeiro a estrutura – o lugar de morar, a saúde para cozinhar, lavar não passar, a feira, o mercado, o pequeno conserto, a manutenção, cada coisa tem seu lugar. Aos que frequentam, livre estar e cada coisa volta pro seu lugar. + a destinação dos objetos acumulados que me tornam um carregador do que possuo. As cai- xas numeradas. E alimentação de processos que dependem de outros. Antes a ruptura. A palavra já não mais presa, a consciência serena, a ética como o básico. A se- gunda carta aberta, o email geral: compartilho as perguntas que me faço, as respostas que me dou.A primeira, aos mesmos contemporâneos da instituição, sugestões para a prática interativa de transmissão de conhecimentos que a lei determi- na e os recursos estão aqui. Esta gera uma chama- da de atenção formal. A outra, a demissão. Dor e prazer. Alegria também pela alforria, raiva pela cegueira do outro, tristeza pela recusa e falta. Diluiu? Evaporou? Passado um tempo, já é passa- do. E neste enorme cenário em vivo, tenho focado no que me mantém tranquilo, também procuro mel dentro do azedo. Dos bônus, o fundo de ga- rantia, uma segurança. O plano de saúde mantém o custo, cumpre a lei. Então! Estrutura, a casa pronta Que mais? Com método, cada tarefa agendada. Pesquisa do necessário, separação de documen- tos, reprodução, consulta a quem sabe como é o processo todo. Contagem do tempo das contri- buições, marcação apresentação. Um dia após 65 anos, entrevista, papéis corretos, direitos garanti- dos, aposentadoria. Orçamento responsável: despesa nunca maior que receita. Adapto-me, camaleão. Vida mais simples, comida saudável, nova rotina que nem sei. Permanecem a saudação ao sol, os primeiros movimentos bioenergéticos. Simplifico o vestuá- rio. Estou organizado. Aposentadoria,plano de saúde,objetivos alcança- dos. O plano funcionou, o cronograma diferente do previsto. Cuido da legalização da morada.
  • 55. 110 111 Tostão De novo, quando leio, entendo do meu jeito. E arrisco. O jogador, pensante, filosofa. Lembra da solidariedade e da impossível liberdade total so- nhada por Sócrates, o do Platão. A utopia como referência, alimentação do desejo. Inalcançável. A lembrança de Tostão me anima, faz bem. Sonho, sem me limitar ao possível. Narciso Olho no espelho e me surpreendo, tão jovem e com estas marcas... E é eu. Insight O mundo muda quando cai a ficha. Quando o que compreendo me toca emocionalmente,minha vida ganha novo sentido. Mudaram meus desejos atuais quando me toquei que muitas das minhas necessidades recentes de poder – e dinheiro e ob- jetos – estavam relacionadas a afetos que desejei e não tive na minha infância. Tenho me sentido melhor quando hoje procuro suprir diretamente os afetos que hoje desejo. Primeiro, aprendi do que vi, ouvi, tateei, cheirei, botei na boca e senti. Desde criança transformei-me no que me foi apresentado como modelo. Estou fundamentalmente impregnado de in- formações que, no correr da vida, recebi tanto da escola, igreja, família quanto dos meios de comunicações e dos que estão ao meu redor. Eu mesmo colaboro para a manutenção da moral atual, quando nos atos e encontros de toda hora transmito meus preconceitos aos meus filhos, amigos, vizinhos, colegas de tra- balho. Enfim: o homem que sou hoje é fruto do que antes senti, aprendi. O homem que serei amanhã deverá ser fruto do que hoje aprendo e sinto. O que percebi em mim, percebo em outros. Ma- puto, 1981, foi quando isto ficou claro pra mim. Desde então faz parte de minha visão de mundo. Desisto de mim ou de você? O que é bom pra nós – pra mim, pra você – de- fine o que podemos? Descomplicando, talvez já
  • 56. 112 113 saibamos como tornar possível nossa relação: respeitar-me a mim e à outra, ao outro. Quero, por exemplo publicar o que escrevo, inda mais quando escrevo o que sinto. Me limito, me emu- deço ou faço o que desejo? Desisto de mim ou de você? Ou não desisto e realizo meu desejo, independente de você? Amor implica em depen- dência? Ou ao contrário? Amor não como pri- são, mas como estímulo à liberdade? Vice versa? Eu aqui com meus sentimentos. 12 balanços Presente Tempos passados, semana dessas...A semana co- meça, dois dias e já me canso do trabalho que não escolhi. Me pego ansioso em relação ao que me propus: realizar o vídeo Terapias Comunitárias e escrever um livro. Tenho tido prazer em levantar cedo e escrever sem compromisso. Gravar situ- ações emocionantes também é prazeroso. A an- siedade, desconfio, vem da inclusão de limitações ao tempo. Determinar datas me obriga a cumpri- -las. E aí, já sei, minhas escolhas perdem sentido. Que fazer? Uma primeira opção é respeitar os tempos na- turais, meus e dos outros. Uma série de tarefas preparatórias antecede gravações. Depoimentos conceituais, opiniões, visões do método, da sua aplicação, eficiência, eficácia, já colhi suficientes – com a ajuda de Michel, Naly, Carolina, outros colegas do curso de formação. Agora são neces- sárias rodas de TC. Fiz os primeiros contatos