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A EPISTEMOLOGIA
DA PESSOA
Prof. Dr. Oswaldo Pereira de Lima Junior
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
A epistemologia da pessoa
■ No Direito e na Ética, um dos conceitos de maior
importância é o de “PESSOA”.
– O Código Civil afirma, em seu artigo 1.º,
complementado por seu art. 2.º:
■ Art. 1o Toda pessoa é capaz de direitos e
deveres na ordem civil.
■ Art. 2o A personalidade civil da pessoa começa
do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo,
desde a concepção, os direitos do nascituro.
– Também a Constituição Federal determina especial
atenção ao vocábulo:
■ Art. 1º A República Federativa do Brasil,
formada pela união indissolúvel dos Estados e
Municípios e do Distrito Federal, constitui-se
em Estado Democrático de Direito e tem como
fundamentos: (...)
■ III - a dignidade da pessoa humana;
■ Mas fica a pergunta: O QUE É UMA
PESSOA?
A epistemologia da pessoa
■ A ausência de definição da pessoa é correta, pois não cabe à
Lei ou ao Direito definir termos que lhes são prévios: são
epistêmicos!
– A epistemologia é a teoria que estuda os fundamentos e
os métodos do conhecimento científico (teoria do
conhecimento).
■ Assim que é preciso saber a origem etimológica e histórica
da própria palavra “pessoa”, para reconstruir a intrincada
cadeia de significação que o termo contém.
– “Marcel Mauss tece interessantes considerações acerca
do caráter histórico e inacabado do conceito de pessoa,
expondo que, antes de ser uma concepção inata do ser
humano, representa uma noção fruto de uma história em
especial (a do Ocidente) que fora, através do tempo,
moldada e que ainda se encontra “flutuante, delicada,
preciosa, e passível de maior elaboração”. A pessoa
revela-se como categoria do espírito, por isso pensada e
elevada ao nível filosófico de uma ontologia, mas
representa sobretudo o resultado de uma história social
e contém, assim, o caminho de desenvolvimento
filosófico que fora trilhado até que se chegasse ao seu
conceito atual. (MAUSS, 2003, pp. 369, 389)”.
A epistemologia da pessoa
■ A palavra “pessoa” sempre teve ligação com a “personagem”.
– Mesmo povos antigos da América, como os indígenas “Pueblos” compreendiam
os vocativos como manifestação antepassada e divina, compreendendo o papel
dos indivíduos na sociedade e no clã.
■ As máscaras ritualísticas davam direitos, deveres, atitudes identidades e a troca de
nomes compunha essa manifestação primária da personagem como um papel na
sociedade.
A epistemologia da pessoa
■ A palavra “pessoa” sempre teve ligação com a “personagem”.
– Dessa noção de “personagem” se chega à de pessoa (persona), como ser
consciente, derivada da noção latina de cidadania.
■ Em Roma, a persona é mais do que uma máscara, é uma fato fundamental do Direito.
■ Os homens livres de Roma eram cidadãos e, assim, possuíam a persona civil romana.
A epistemologia da pessoa
■ A palavra “pessoa” sempre teve ligação com a “personagem”.
– Esse conceito jurídico evolui para um conceito moral de pessoa, atribuído à
Filosofia Estoica, principalmente.
■ A palavra grega prósopo (πρόσωπον) tinha o sentido de máscara, passando a ser também
compreendida como “caráter”, não a máscara, mas a verdadeira face desse ser.
■ Agora não apenas com um sentido jurídico, mas com uma conotação moral de ser
consciente, independente e livre.
■ A pessoa passa a ser o ser e não as honrarias.
A epistemologia da pessoa
■ A palavra “pessoa” sempre teve ligação com a “personagem”.
– Da pessoa moral passa-se à pessoa cristã, aquela que é uma entidade
metafísica em comunhão com um Deus.
■ Aqui se completa a noção de pessoa como sendo simplesmente o ser humano, não um ser
humano investido de um estado especial (de direito, moral etc).
■ Cassiodoro (escritor e estadista romano) a resume: pessoa é uma substancia racional
indivisível, um indivíduo (persona - substantia rationalis individua).
A epistemologia da pessoa
■ A palavra “pessoa” sempre teve ligação com a “personagem”.
– A pessoa evolui, agora, para pessoa como ser psicológico, abraçando a
categoria do Eu.
■ A pessoa não é mais uma ideia inata, imutável, mas um ser em constante edificação,
principalmente com o conhecimento de si (a consciência psicológica).
■ Filosófos como Descartes (Cogito ergo sum), Hume, Locke e, principalmente, Kant e
Fichte.
■ Em Kant toma a condição precisa de ser vocacionado e capaz da razão prática
(moralidade).
■ Fichte coloca o Eu como condição da própria consciência e da ciência, deslocando-a para
a razão pura.
A epistemologia da pessoa
■ O conceito latino de persona é inestimável ao Direito, representando a verdadeira
natureza do indivíduo.
– Por isso não é estranho enunciar, por exemplo, que a personalidade, atributo
qualificativo da pessoa, apresenta-se como a “...aptidão genérica para adquirir
direitos e contrair obrigações ou deveres na ordem civil” (GONÇALVES, 2012a, p. 88).
– É clara manifestação da capacidade do eu-autônomo de Kant, suscetível à
imputabilidade, ao domínio de seus apetites e ao controle de suas ações pela razão.
Uma noção jurídica que esconde, pois, outra, que remonta à tradição lockeana de
sujeito consciente, e que teve um salto de refinamento na autonomia da vontade
kantiana.
– Contudo, interpretada como proposição sintética das características físicas e psíquicas
da pessoa humana (WOLFF, 2012, p. 299), tolera as mais bizarras proposições a
respeito do feto e do recém-nascido, ambos, em algum grau, incapazes de participar
com efetividade desse conceito de pessoa.
■ Sua consequência lógica?
– E dela advém a consequência jurídica de que “Só não há capacidade de aquisição de
direitos onde falta personalidade, como no caso do nascituro, por exemplo”
(GONÇALVES, 2012a, p. 90).
A epistemologia da pessoa
■ Verifica-se, assim, que “pessoa” é uma construção social, precisamente um
monumento do Ocidente que influencia aquilo que será determinado pelo
Direito.
– Muito do que se analisa sobre a pessoa nos Códigos e Constituições
reflete essa noção epistêmica de pessoa como o ente autônomo
kantiano...
■ Isso não significa que esse conteúdo não possa ser contestado ou evoluir:
– Absorta de sua realidade, a pessoa emerge como fruto da compreensão
abstrata das características materiais do sujeito racional livre (SÈVE,
1994, p. 26). Isto é, pasteurizada por um predicamento que lhe fora
arbitrariamente adjudicado, perde-se em devaneios cujo distanciamento
do real, da pessoa de fato, fazem dela menos certa e universal e mais
impositiva e autoritária, mero fruto de uma cultura em particular (SÈVE,
1994, p. 25).
– Para esquivar-se dessa figuração particular e imposta, apela-se ao
denominado estudo multifacetário da pessoa. Opta-se por vê-la como
ente complexo, cuja natureza transcende ao fato e vai até o valor. Valor
que, por sua vez, age sobre o fato modificando-o e dando-lhe contorno
apreciativo que só pode ser expresso pelas lentes sociais que pairam
sobre as pessoas (e sobre o nascituro). Não será a razão fática, ou
material, determinada pelos móbiles físicos e psicológicos, que institui a
consciência do vivente e determina o seu valor moral. A moralidade está
na consideração ampla do ser e, portanto, depende, em grande escala,
do discurso social no qual está inserido e sobre o qual se pode

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  • 1. A EPISTEMOLOGIA DA PESSOA Prof. Dr. Oswaldo Pereira de Lima Junior Universidade Federal do Rio Grande do Norte
  • 2. A epistemologia da pessoa ■ No Direito e na Ética, um dos conceitos de maior importância é o de “PESSOA”. – O Código Civil afirma, em seu artigo 1.º, complementado por seu art. 2.º: ■ Art. 1o Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil. ■ Art. 2o A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro. – Também a Constituição Federal determina especial atenção ao vocábulo: ■ Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (...) ■ III - a dignidade da pessoa humana; ■ Mas fica a pergunta: O QUE É UMA PESSOA?
  • 3. A epistemologia da pessoa ■ A ausência de definição da pessoa é correta, pois não cabe à Lei ou ao Direito definir termos que lhes são prévios: são epistêmicos! – A epistemologia é a teoria que estuda os fundamentos e os métodos do conhecimento científico (teoria do conhecimento). ■ Assim que é preciso saber a origem etimológica e histórica da própria palavra “pessoa”, para reconstruir a intrincada cadeia de significação que o termo contém. – “Marcel Mauss tece interessantes considerações acerca do caráter histórico e inacabado do conceito de pessoa, expondo que, antes de ser uma concepção inata do ser humano, representa uma noção fruto de uma história em especial (a do Ocidente) que fora, através do tempo, moldada e que ainda se encontra “flutuante, delicada, preciosa, e passível de maior elaboração”. A pessoa revela-se como categoria do espírito, por isso pensada e elevada ao nível filosófico de uma ontologia, mas representa sobretudo o resultado de uma história social e contém, assim, o caminho de desenvolvimento filosófico que fora trilhado até que se chegasse ao seu conceito atual. (MAUSS, 2003, pp. 369, 389)”.
  • 4. A epistemologia da pessoa ■ A palavra “pessoa” sempre teve ligação com a “personagem”. – Mesmo povos antigos da América, como os indígenas “Pueblos” compreendiam os vocativos como manifestação antepassada e divina, compreendendo o papel dos indivíduos na sociedade e no clã. ■ As máscaras ritualísticas davam direitos, deveres, atitudes identidades e a troca de nomes compunha essa manifestação primária da personagem como um papel na sociedade.
  • 5. A epistemologia da pessoa ■ A palavra “pessoa” sempre teve ligação com a “personagem”. – Dessa noção de “personagem” se chega à de pessoa (persona), como ser consciente, derivada da noção latina de cidadania. ■ Em Roma, a persona é mais do que uma máscara, é uma fato fundamental do Direito. ■ Os homens livres de Roma eram cidadãos e, assim, possuíam a persona civil romana.
  • 6. A epistemologia da pessoa ■ A palavra “pessoa” sempre teve ligação com a “personagem”. – Esse conceito jurídico evolui para um conceito moral de pessoa, atribuído à Filosofia Estoica, principalmente. ■ A palavra grega prósopo (πρόσωπον) tinha o sentido de máscara, passando a ser também compreendida como “caráter”, não a máscara, mas a verdadeira face desse ser. ■ Agora não apenas com um sentido jurídico, mas com uma conotação moral de ser consciente, independente e livre. ■ A pessoa passa a ser o ser e não as honrarias.
  • 7. A epistemologia da pessoa ■ A palavra “pessoa” sempre teve ligação com a “personagem”. – Da pessoa moral passa-se à pessoa cristã, aquela que é uma entidade metafísica em comunhão com um Deus. ■ Aqui se completa a noção de pessoa como sendo simplesmente o ser humano, não um ser humano investido de um estado especial (de direito, moral etc). ■ Cassiodoro (escritor e estadista romano) a resume: pessoa é uma substancia racional indivisível, um indivíduo (persona - substantia rationalis individua).
  • 8. A epistemologia da pessoa ■ A palavra “pessoa” sempre teve ligação com a “personagem”. – A pessoa evolui, agora, para pessoa como ser psicológico, abraçando a categoria do Eu. ■ A pessoa não é mais uma ideia inata, imutável, mas um ser em constante edificação, principalmente com o conhecimento de si (a consciência psicológica). ■ Filosófos como Descartes (Cogito ergo sum), Hume, Locke e, principalmente, Kant e Fichte. ■ Em Kant toma a condição precisa de ser vocacionado e capaz da razão prática (moralidade). ■ Fichte coloca o Eu como condição da própria consciência e da ciência, deslocando-a para a razão pura.
  • 9. A epistemologia da pessoa ■ O conceito latino de persona é inestimável ao Direito, representando a verdadeira natureza do indivíduo. – Por isso não é estranho enunciar, por exemplo, que a personalidade, atributo qualificativo da pessoa, apresenta-se como a “...aptidão genérica para adquirir direitos e contrair obrigações ou deveres na ordem civil” (GONÇALVES, 2012a, p. 88). – É clara manifestação da capacidade do eu-autônomo de Kant, suscetível à imputabilidade, ao domínio de seus apetites e ao controle de suas ações pela razão. Uma noção jurídica que esconde, pois, outra, que remonta à tradição lockeana de sujeito consciente, e que teve um salto de refinamento na autonomia da vontade kantiana. – Contudo, interpretada como proposição sintética das características físicas e psíquicas da pessoa humana (WOLFF, 2012, p. 299), tolera as mais bizarras proposições a respeito do feto e do recém-nascido, ambos, em algum grau, incapazes de participar com efetividade desse conceito de pessoa. ■ Sua consequência lógica? – E dela advém a consequência jurídica de que “Só não há capacidade de aquisição de direitos onde falta personalidade, como no caso do nascituro, por exemplo” (GONÇALVES, 2012a, p. 90).
  • 10. A epistemologia da pessoa ■ Verifica-se, assim, que “pessoa” é uma construção social, precisamente um monumento do Ocidente que influencia aquilo que será determinado pelo Direito. – Muito do que se analisa sobre a pessoa nos Códigos e Constituições reflete essa noção epistêmica de pessoa como o ente autônomo kantiano... ■ Isso não significa que esse conteúdo não possa ser contestado ou evoluir: – Absorta de sua realidade, a pessoa emerge como fruto da compreensão abstrata das características materiais do sujeito racional livre (SÈVE, 1994, p. 26). Isto é, pasteurizada por um predicamento que lhe fora arbitrariamente adjudicado, perde-se em devaneios cujo distanciamento do real, da pessoa de fato, fazem dela menos certa e universal e mais impositiva e autoritária, mero fruto de uma cultura em particular (SÈVE, 1994, p. 25). – Para esquivar-se dessa figuração particular e imposta, apela-se ao denominado estudo multifacetário da pessoa. Opta-se por vê-la como ente complexo, cuja natureza transcende ao fato e vai até o valor. Valor que, por sua vez, age sobre o fato modificando-o e dando-lhe contorno apreciativo que só pode ser expresso pelas lentes sociais que pairam sobre as pessoas (e sobre o nascituro). Não será a razão fática, ou material, determinada pelos móbiles físicos e psicológicos, que institui a consciência do vivente e determina o seu valor moral. A moralidade está na consideração ampla do ser e, portanto, depende, em grande escala, do discurso social no qual está inserido e sobre o qual se pode