O documento discute ações movidas pelo Ministério Público Federal contra políticos acusados de ocultar cadáveres de militantes políticos durante a ditadura militar no Brasil. Os procuradores acusam Romeu Tuma, Paulo Maluf e outros de esconder os corpos no cemitério de Perus em São Paulo. Também apontam a participação de legistas como Harry Shibata na falsificação de laudos para ocultar evidências de tortura.
1. PHA - Olá, tudo bem ?
Hoje vamos tratar da punição aos crimes do regime militar.
Da tortura e do desaparecimento de militantes políticos. O
Ministério Público Federal de São Paulo entrou com uma
ação civil contra o senador por São Paulo Romeu Tuma, e
o então prefeito de São Paulo e hoje deputado federal
Paulo Maluf.
Os dois são acusados de ocultar cadáveres de militantes
políticos no cemitério de Perus e Vila Formosa na cidade
de São Paulo.
Os procuradores da República em São Paulo Marlon
Alberto Weichert e Eugênia Augusta Fávero
responsabilizam ainda o médico legista Harry Shibata e
também o prefeito de São Paulo Miguel Colassuono.
Além disso, numa outra ação eles acusam quatro outros
médicos legistas, como Badan Palhares e Daniel Muñoz,
por impedirem ou dificultarem a identificação dos
cadáveres.
Fávero e Weichert são pioneiros nessas ações que visam
punir crimes praticados no regime militar. Eles são
responsáveis pela ação contra o coronel Carlos Alberto
Ustra, que comandou o Doi-Codi quando lá se torturavam
presos políticos.
Eu converso com Mario Alberto Weichert e com a
procuradora Eugênia Augusta Fávero. Muito obrigada por
tê-los aqui de volta em nosso programa, Entrevista Record.
PHA: A primeira questão seria descrever exatamente quais
2. as acusações que são feitas a esses personagens notórios
da política nacional, Romeu Tuma e Paulo Maluf?
EAF: Com relação ao Romeu Tuma, é no sentido de que
ele foi diretor do DOPS e ele era responsável por toda a
documentação dos presos torturados no Doi-Codi ou então
no próprio DOPS e esses presos muitas vezes eram
mortos. Esse homicídio era documentado de maneira a
ocultar a real identidade do preso, nada era comunicado à
família e esta pessoa era enviada ao Instituto Médico Legal
com base numa versão fantasiosa da morte, com um nome
falso. Essa versão era chancelada por sua vez no IML, que
encaminhava o corpo para um desses cemitérios, Vila
Formosa ou Perus, já com prévio acordo com o município.
E esses corpos eram enterrados em quadras específicas
para esses cadáveres denominados “especiais”, que eram
os cadáveres dos terroristas. E o cemitério de Perus
acabou então sendo construído na gestão do então prefeito
Paulo Maluf e já destinado a ser um centro de ocultação
desses cadáveres oriundos do IML.
PHA: Quer dizer, então, que o cemitério de Perus foi
construído para ocultar cadáveres?
MAW: Não só. Ele é um cemitério pensado acima de tudo
para enterrar indigentes. E a estratégia da ditadura militar
era fazer com que esses desaparecidos políticos fossem
também enterrados como indigentes. Embora a ditadura e
órgãos de repressão tivessem toda a informação
necessária para identificá-los adequadamente.
PHA: Embora eles fossem mandados para lá com nomes
falsos, os codinomes da atividade política...
MAW: Exatamente. Eles eram mandados com nomes
3. falsos, mas tanto o DOPS como o Doi-Codi sabiam
exatamente de quem se tratavam. E nós temos elementos
que estão juntados nesta ação e demonstram que,
inclusive, o Dops tinha conhecimento da identidade
verdadeira, tinha conhecimento da identidade falsa. E as
famílias procuraram o Dops pedindo informações...
PHA: Ou seja, procurou o Romeu Tuma?
MAW: Procurou o Dops, que era dirigida pelo réu Romeu
Tuma, para que informasse se sabia daquela prisão e
eventualmente daquela morte. E a posição do Dops,
inclusive do Romeu Tuma, era de negar que tivessem
alguma informação.
PHA: Qual a participação do legista Harry Shibata?
EAF: Harry Shibata assumiu posições administrativas de
comando no IML, mesmo quando o diretor oficialmente era
outro, outra pessoa, Doutor Arnaldo Siqueira, que lidava
com estes cadáveres “especiais”, os cadáveres dos
terroristas. (Shibata era) quem lidava com o município de
São Paulo, com o serviço funerário, na pessoa de Fábio
Bueno , inclusive nomeado para esta função pelo prefeito
Paulo Maluf...
PHA: Fábio Pereira Bueno, diretor do serviço funerário
municipal?
EAF: Exato. Era sempre Harry Shibata. Então, Harry
Shibata atuava tanto quanto médico, fazendo os laudos,
ele assinou vários laudos de pessoas que foram vítimas de
torturas intensas e deixaram marcas que eram impossíveis
não serem descritas no laudo. E mesmo assim, essas
4. pessoas passavam pelo IML e eram enterradas sem
nenhuma anotação relativa a essas marcas visíveis de
tortura.
PHA: O press-release do Ministério Público Federal aqui de
São Paulo diz que Harry Shibata assinou laudos
necroscópicos atestando falsamente causas da morte,
ignorando muitas vezes lesões de tortura, como foi por
exemplo, o caso de Wladimir Herzog e Sonia Angel Jones.
Ou seja, ele é um dos responsáveis pela tentativa de
ocultar a morte sob tortura do Herzog.
EAF: Era um procedimento da repressão
brasileira.Torturar, muitas vezes matar o opositor político e
o Instituto Médico Legal foi peça fundamental para que isso
tivesse sucesso. Então, (Shibata) assinava todos esses
laudos, com marcas evidentes de homicídio, por meio
cruel, que é a tortura,dizendo que foi obra de um
atropelamento,de um auto-estrangulamento, coisa que não
existe anotação parecida na medicina (auto-
estrangulamento). O caso da Sonia, é emblemático: ela
teve até os seios arrancados durante semanas de tortura a
que foi submetida.
PHA: Arrancados os seios?
EAF: Sim. Nada disso foi descrito no laudo pelo Harry
Shibata.
PHA: Qual a participação exata do Paulo Maluf?
MAW: Vamos voltar à nomeação de Paulo Maluf. Paulo
Maluf e sua família eram de relacionamento estreito com o
presidente Costa e Silva, o general que, então, governava
5. o país. E há fonte que revela que a nomeação de Paulo
Maluf se deu em função dessa proximidade. O presidente
determinou ao governador do Estado que nomeasse Maluf.
Ele fez parte dentro da estrutura de poder municipal
dessa... vamos chamar, dessa organização para permitir a
ocultação de vítimas da repressão. Então, é na sua gestão
que se constrói o cemitério de Perus com toda essa
vocação e essa organização onde se coloca o Fábio como
diretor, para que ele possa fazer essa ligação com o IML e
com DOPS. E mais, é na sua gestão que se pretende
construir um crematório para indigentes. Isso é tão sem
sentido, já que a cremação de um resto mortal pressupõe
sempre dois elementos fundamentais: 1- a plena
identificação da pessoa; e 2- que essa pessoa tenha
autorizado, em vida, sua cremação, ou que a família
autorize essa cremação. O que pressupõe, obviamente,
que ela está devidamente identificada. E o Brasil durante a
repressão, São Paulo, quis construir um ou dois
crematórios para indigentes. A tal ponto que a empresa
inglesa que ganhou a licitação se recusou, dizendo: olha,
eu não construo crematórios para indigentes. Crematório
pressupõe um espaço de oração, pressupõe uma
construção que seja incompatível com esse processo de
eliminação de provas...
... a cremação nunca pode ser aplicada em um caso de
morte onde haja suspeita de violência. (Deve-se) permitir
que uma exumação no futuro possa elucidar. E aqui em
São Paulo o que a prefeitura quis, liderada neste projeto
pelo prefeito (Maluf), era fazer o oposto. Vamos cremar
indigentes, e, mais uma vez, cremando indigentes, estamos
cremando opositores políticos.
6. PHA: Quer dizer que, além de criar as condições políticas
para que esse sistema todo funcionasse, Maluf queria criar
um crematório, construir fisicamente um crematório, ou
seja, transportar para cá uma tecnologia nazista, de um
campo de concentração, é isto?
EAF: É, inclusive o Fábio Pereira Bueno, que é réu nessa
ação, chegou a ser enviado em missão oficial à Argentina e
ao Uruguai... E lá, ele verifica que na Argentina estavam
cremando indigentes.Ou seja, milhares de corpos foram
cremados na Argentina com este processo. E o Fábio
Pereira Bueno descreve que o procedimento lá era uma
coisa assustadora. Queimavam corpos nus, os corpos
ficavam meses numa fila aguardando até o momento de
ser cremado. E ele fez um relatório e trouxe toda esta
experiência para o Brasil e tentou então...
PHA: Há esse relatório documentalmente?
EAF: Sim, sim. Houve um processo oficial. Ele foi em
missão oficial do serviço funerário municipal. Bem, então
isso tem início na gestão de Paulo Maluf. Mas o Paulo
Maluf ficou até 71, então, no processo, o que fica muito
claro é a colaboração do município com o sistema de
repressão de maneira a (usar) os cemitérios municipais
como centro de ocultação. Há dois projetos do período de
Paulo Maluf, duas menções e nenhum chegou a ser
implantado. Porque a própria empresa fabricante do forno
disse que estranhava as condições do projeto e ainda não
conseguiram operar a lei, no caso brasileira, que exige
autorização em vida para o caso de cremação. Foi onde
surge a vala de Perus, aí é mais um capítulo. Isso em 75.
7. PHA: Então, como não foi possível cremar, se criou a vala,
é isso?
EAF: exatamente. Aí entra Miguel Colassuono.
PHA: Ah, então, Miguel Colassuono...
MAW: São retirados os restos mortais dos indigentes,
desossados, que estavam em duas quadras de Perus e
são separados. Primeiro, com a notícia de que iam esperar
a construção do crematório para fazer a eliminação
definitiva desses restos mortais. Quando o projeto de
crematório de indigentes não vai adiante, então se constrói
essa vala clandestina, no cemitério de Perus, e se jogam ali
mais de mil ossadas das quadras de indigentes, que
sabidamente, incluíam os desaparecidos políticos. E essa
quadra então fica escondida embaixo de um cruzeiro, de
uma cruz, no cemitério de Perus, até que um trabalho
conjunto da imprensa com os familiares revela a existência
deste local clandestino de sepultamento.
PHA: Mas onde entra o Colassuono?
MAW: O Colassuono foi o prefeito ao tempo em que o
cemitério de Vila Formosa foi reformado, e o cemitério...
EAF: Tanto a vala quanto a reforma de Vila Formosa.
MAW: Porque o cemitério de Vila Formosa, antes da
inauguração do cemitério de Perus, era o destinado a
indigentes. E já se adotou lá esta pratica de colocar
desaparecidos políticos como indigentes, misturados. Em
1975, foi feito uma grande reforma, uma reurbanização do
cemitério de Vila Formosa. Passaram a retro escavadeira
por cima destas quadras, plantaram bosques... aterraram
uma parte, fizeram uma rua.
8. PHA: Isso, na gestão Colassuono?
EAF: exatamente.
PHA: Ele tentou reurbanizar...
EAF: Tentou não. Ele reurbanizou. Foram plantadas
árvores, abriram ruas, desconsiderando as sepulturas de
indigentes. Então, hoje, quando vamos a Vila Formosa, a
impressão é que sempre foi assim. Mas, se nós
conversamos com os coveiros da época, eles falam: não,
aqui tinha sepultura. Mas o que aconteceu com essas
sepulturas? Ah! A gente não sabe! Chegaram a mencionar
a existência de um ossário clandestino também em Vila
Formosa, isso também é agora objeto de investigação.
PHA: E todos os corpos que estiveram nessas valas
comuns, já estão identificados, separados para
identificação, ou ainda não?
MAW: Não. Na verdade esse é o motivo da segunda ação
que foi proposta pelo Ministério Federal na semana
passada. Porque desde 1990...
PHA: Esta que envolve o Badan Palhares, por exemplo?
MAW: Isto. Isto. E três universidades. Unicamp,
Universidade Federal de Minas Gerais e a USP. Porque
quando se faz a abertura da vala em 1990, o IML tinha
ainda entre seus profissionais diversos legistas que
atuaram durante a ditadura. Então, os movimentos dos
direitos humanos recusam a possibilidade de o IML ser a
instituição encarregada de fazer a exumação e
identificação destes corpos. Então, a Unicamp é
contratada, é escolhida, sob a liderança do professor
9. Badan Palhares. Começa inclusive com um excelente
resultado. Logo no inicio a identificação de cinco ossadas e
que levam até a um otimismo neste trabalho. Mas,
repentinamente, um ano após, dois anos após, há um
abandono,surpreendente abandono. A Unicamp, a equipe
da Badan Palhares passam a se desinteressar pelo
assunto. E em 1999, nove anos depois, é que o Ministério
Público foi procurado pelos familiares, já desanimados,
desesperados com a falta de apoio de todos os órgãos
públicos para fazer este trabalho e pede que a instituição
intervenha para que isto vá adiante.
PHA: Quer dizer que este trabalho de identificação está
congelado?
MAW: Na verdade, houve pouquíssimo avanço desde
1992, 20 anos praticamente...
EAF: E apenas por impulso do Ministério Publico Federal,
graças a requisições, mas tudo é muito lento.
PHA: Ou seja, a USP e a UFMG e a Unicamp não se
mexem?
MAW: Eles não se mexeram algum tempo, por isto estão
sendo processados, mas acho que o mais grave é que o
Governo Federal e o governo estadual não se interessam.
Há uma comissão especial...
PHA: Nem o governo Lula, nem o governo Serra?
MAW: É. E podemos falar também do governo Fernando
Henrique, do governo Alckmin, ou seja,isto é um processo
que vem de longa data.
PHA: É uma pedra que ninguém quer revirar.
10. MAW: Embora a lei preveja uma comissão especial, no
âmbito federal, uma comissão de mortos e desaparecidos
que é composta de membros notáveis. Só que a União não
lhe dá nenhuma estrutura para trabalhar e fazer essa
identificação. Ou seja, há pessoas que trabalham
gratuitamente, trabalham muito bem, mas, não tem um
cientista, não tem um carro, não tem assessor, não tem
laboratório, não tem nem datilografo. O computador talvez
eles levem o pessoal... (risos)
PHA: Agora, Dra Fávero, o que pode acontecer com o
Maluf, o deputado federal mais votado da história de São
Paulo, Paulo Maluf, e o senador Romeu Tuma? Eles
podem perder o mandato?
EAF: Não podem, porque essa é uma ação cível e a
Constituição brasileira proíbe perda de mandato nesses
casos. Mas, eles podem ser declarados como responsáveis
de todo esse processo que envolve o desaparecimento de
pessoas. Eles podem ser condenados a pagar dano moral
coletivo no valor de até 10% do seu patrimônio. Eles
podem perder eventuais aposentadorias ... não podem
assumir mais nenhuma outra função pública, ou perder
alguma função publica que não seja eletiva.
PHA: E se eles fizerem como o presidente Nelson Mandela
fez na África do Sul, forem a uma repartição pública e
confessarem tudo?
MAW: Isso não pode significar impunidade ...
PHA: Porque lá na África do Sul foi feito uma lei em que se
você confessasse, você ...
11. MAW: Com muitas restrições. A gente costuma achar que
lá houve uma troca pura e simplesmente de verdade por
punição,e não é bem assim. Era um processo muito
complexo, tinha que ser uma revelação integral dos fatos, a
família tinha que concordar, ele tinha que delatar outras
pessoas, o acusado era preso durante a confissão. E hoje,
o Direito internacional já não aceitaria claramente esta
proposta. A Colômbia pensou em fazer algo parecido para
desarmar as milícias, inclusive a FARC e não teve sucesso.
O Direito internacional proíbe, hoje não se aceita mais isso.
Agora, se aceita minorar o grau de responsabilização.
Então, o que nós apontamos nessa ação é que se, até a
sentença, algum dos réus fizer revelações
substancialmente novas, que digam sobre circunstâncias
de morte, sobre o modo de operação do aparelho de
repressão,então, pedimos que o juiz considere isto na
fixação ou numa redução da sanção patrimonial.
PHA: Como é possível conciliar este trabalho de vocês
com a Lei da Anistia?
EAF: A Lei da Anistia diz respeito a crimes. E ela fala em
perdão de penas. Então, é no âmbito penal e criminal. E
nós estamos falando de responsabilização civil. Para nós, a
Lei da Anistia não atingiria ações civis. Por outro lado, nós
também entendemos que o texto da Lei da Anistia é claro
ao beneficiar apenas os militantes políticos, os opositores
do governo. Ela diz que vai perdoar crimes políticos e
conexos com os crimes políticos. Crime político, por
definição, diz respeito àquele que quer derrubar o Governo,
e, não propriamente, àquele que quer defender o Governo.
Essa é uma questão jurídica, ela foi submetida ao Supremo
Tribunal Federal, e acreditamos que, se for aplicada uma
12. interpretação técnica para a Lei da Anistia, vai ficar muito
claro que ela não diz respeito aos militares, aos autores,
aos responsáveis militares e civis que protegiam o
Governo. E ainda há uma expressa proibição de auto-
anistia: o Governo não poderia se auto-perdoar,
especialmente numa questão deste tipo (ocultação de
cadáveres).
PHA: O senador Romeu Tuma, na qualidade de diretor
geral do DOPS, o deputadp Paulo Maluf, como prefeito da
cidade de São Paulo, Miguel Colassuono, como prefeito de
São Paulo, eles não estariam beneficiados pela Lei da
Anistia? Eles estavam defendendo o regime militar...
MAW: Mas, a Lei da Anistia tem que ser analisada apenas
com a matéria criminal, se trata de uma anistia criminal,
anistia penal, e o direto conhece duas grandes áreas - é a
área penal e a área civil. Então, uma anistia que foi dada
para a área penal não se expande naturalmente para a
área civil. Seria necessária uma outra lei que tratasse
especificamente deste modelo, e isso não há. Então, o que
tem quer aplicado é a regra geral da responsabilização.
Mas, acho que é muito importante, Paulo, entender que
esse atos praticados pelas pessoas envolvidas na
repressão,seja os militares, seja os civis que apanharam,
são muito graves, são violações do direito humano que a
comunidade internacional não tolera, em hipótese alguma.
Pelo menos desde o fim do regime nazista, quando se
revelaram as barbaridades que o Governo nazista havia
feito contra sua própria população. Acho que esse é um
aspecto muito importante.
PHA: Eu entendo isso Dr Weichert, mas veja, temos diante
de nós um grande obstáculo constitucional legal, que é
13. chamada a Lei da Anistia, sobre a qual já se manifestou,
antes que a questão estivesse sob julgamento do Supremo
Tribunal Federal, o presidente do STF,o ministro Gilmar
Mendes. Ele já disse que tratar desses assuntos de que
estamos tratando aqui é provocar uma desorganização
institucional no país,como aconteceu em outros países. Eu
não sei onde provocou, em que país do mundo, mas,
enfim, é a opinião dele, vamos levar em consideração. Com
esse raciocínio, por exemplo, ocultar o cadáver de um
militante político, tentar cremá-lo num crematório,
evidentemente que isso ultrapassa todos os limites da
nossa capacidade de não se indignar, mas como usar isso
para contornar a Lei da Anistia ?
MAW: Na verdade,não precisamos contornar a Anistia,
precisamos enfrentar a Lei Anistia e compreender o que ela
diz. O que ela poderia dizer no limite. E ela diz, para nós é
muito claro, que estão anistiados os crimes políticos,
aqueles que agiram contra o Estado, com a vontade de
derrubar o Governo. Não podemos ampliar e dizer: não,
como “crimes políticos” também estão aqueles que
defenderam o Estado autoritário. Isso (não é aceito) em
nenhuma interpretação técnica. A gente aprende isso na
faculdade, seria impossível essa lei ampliativa. E mesmo
que estivesse escrito na Lei – o que não está -, olha, os
militares e civis que colaboraram com a repressão estão
anistiados, vamos supor. Essa lei não seria válida, ela seria
absolutamente inválida diante das obrigações que o Estado
brasileiro tem com a comunidade internacional. O Direito
brasileiro teria um limite, que não poderia ser ultrapassado
prever impunidade para agente do Estado que torturou,
matou e perseguiu seus próprios cidadãos.
14. PHA: Dra. Fávero, qual o tipo de sanção ou recriminação
internacional que o Brasil pode sofrer se mantiver como
pedra angular da discussão toda que temos aqui a Lei da
Anistia.
EAF: As sanções internacionais são diversas. O Brasil
acaba ficando muito mal no cenário internacional, no
momento em que ele, sem sofrer ainda nenhuma
condenação no plano internacional formal, ele já se recusa
a responsabilizar civil ou criminalmente autores desses
fatos. O Brasil já vem recebendo recomendações da ONU
desde 2005, no mínimo. O Brasil já recebeu formalmente
um pedido da ONU: por favor, para fazer a transição para o
regime democrático, é preciso considerar além das
indenizações dos culpados por estes fatos.
PHA: E até agora só temos tratado do dinheiro?
EAF: Até agora só tratamos do dinheiro. Eu queria voltar no
obstáculo da Lei da Anistia. Na verdade, o obstáculo não é
a Lei da Anistia. É a interpretação que se faz dela. Os
tribunais brasileiros, no âmbito da justiça federal, por
exemplo, ainda não disseram que essas pessoas estão
cobertas pela Lei da Anistia Nós estamos ainda
perseguindo este caminho.
PHA: O que aconteceu com a ação que os senhores
moveram contra o coronel Ustra?
EAF: Está suspensa,aguardando a decisão do STF sobre a
Lei da Anistia. Então, suponhamos que o STF venha dizer
que sim, que a Lei da Anistia atinge os militares e civis que
contribuíram para a repressão política. Aí (essa decisão)
pode ser levada para cortes internacionais, e elas vão
15. recomendar ao Governo brasileiro que reveja sua posição.
E depois, se o Brasil continuar descumprindo (a lei
internacional) ele pode sofrer embargos, ele pode sofrer
sanções políticas. Ele pode por exemplo, não ter mais
condições de pleitear assentos na ONU, entre outras
pretensões no âmbito internacional.
PHA: Quer dizer então,que o Brasil pode deixar de ter um
assento permanente no Conselho de Segurança da ONU
por causa Paulo Maluf...
EAF: Se ele for um descumpridor das decisões
internacionais, sim. Ele estará em débito e não poderá
pleitear, fazer parte dessa comunidade, de cujas decisões
ele próprio discorda.
MAW:O Brasil já está respondendo a um processo na
Corte Interamericana de Direitos Humanos, no âmbito da
OEA, por esse desrespeito à apuração dos direitos
humanos, no caso da guerrilha do Araguaia. Mas a corte
pode chegar ao ponto de dizer: olha, isso que aconteceu
no Araguaia viola as obrigações do Brasil nas Américas.
Não só o que aconteceu no Araguaia, como o que está
acontecendo em toda situação de impunidade, de
ocultação, de mentira sobre o período da ditadura militar. A
partir desse momento, o Brasil entra numa espécie de lista
negra da OEA. A OEA vai publicá-la anualmente, enquanto
o Brasil não tiver revertido essa situação. (A OEA vai dizer)
que o Brasil não cumpriu uma decisão da corte
interamericana. Isso tem um impacto importante...
PHA: Quer dizer que o Brasil luta pela posse do Zelaya e
não pune o Maluf, é isso?
MAW: O Brasil apóia a punição dos nazistas, mas não quer
16. punir aqueles que aqui no Brasil imitaram a conduta dos
alemães.
PHA: Como, por exemplo, construir um crematório para
botar fogo nos militantes. Agora,vamos tentar rapidamente
comparar a posição brasileira com o que fizeram Uruguai,
Argentina, o Chile e outros países que integraram aquela
operação Condor, de que o Brasil fez parte. Em que pé
estamos?
EAF: O que ficou é que o Brasil foi o exemplo para a
Operação Condor. Parece que houve um certo
espelhamento desses países no que o Brasil fazia na
época. O Brasil foi um dos primeiros a começar com essa
conduta de perseguir. Contam que havia até cursos no
Brasil para esses militares . O Brasil teve então o papel
importante de precursor dessa política que uniu esses
países na perseguição política aos militantes. E agora o
Brasil está sendo exemplo, só que no sentido contrário.
Enquanto todos os demais estão adotando medidas ... o
que há é a demonstração de que esses países querem
fazer essa responsabilização, querem a revelação integral
da verdade.E o Brasil não está fazendo o mesmo.
PHA: No Chile, o Contreras que era o chefe do Doi-Codi
está preso. O Pinochet morreu em regime de prisão
domiciliar e processado. Só não foi preso porque deu parte
de maluco ...
MAW – E a Inglaterra acreditou ...
17. PHA – O Tony Blair ... Na Argentina tão todos sendo
julgados.
EAF: Mais de 300 casos.
MAW: Argentina é a que mais fez em termos de reparação,
responsabilização e apuração da verdade. Eles tem
também construído centros de memória, por exemplo, a
Escolada Armada foi transformada num centro de memória,
ela era talvez o maior centro de terror que a América Latina
conheceu.
PAH: Essa ação de vocês prevê também a criação de um
centro de memória, é isso?
MAW: Nós estamos discutindo que o Estado brasileiro, o
Governo federal e estadual façam um espaço de memória
para revelar às próximas gerações, nossos filhos, e a nós
mesmos, o que aconteceu. Tudo com a intenção de...
PAH: Como se fosse nosso Museu do Holocausto?
MAW: É isso. Se a gente não der a conhecer às próximas
gerações o que aconteceu no passado recente, nós
estamos assumindo o risco de que nada aconteceu, que
pode ser feito de novo. A Historia conta que aqueles que
não depuram adequadamente seu passado vão incorrer
nos mesmos erros no futuro.
EAF: Infelizmente, é o que já estamos vendo hoje no
Brasil. Temos pouco espaço de memória, mas os poucos
que existem, os estudantes estão sendo levados para
visitar e a fala recorrente é: nós não sabíamos de nada. E
hoje, quando falamos em ações desse tipo, eles dizem:
mas ainda há desaparecidos políticos no Brasil? Há
cadáveres para serem identificados? As pessoas se
18. espantam, porque pensam que é um tema absolutamente
superado, e isto não é verdade.
PHA: Onde seria esse centro da memória, o senhor chegou
a sugerir:?
MAW: A gente sugere, que, antes de tudo, seja o principal
centro de terror que foi o Doi-Codi (em São Paulo), que
hoje é uma delegacia que funciona aqui no bairro do
Paraíso.
PHA: Eu tive agora a possibilidade de no meu site, o
Conversa Afiada, publicar um documento que o Fernando
Moraes, aquele escritor, nos cedeu, de uma decisão do
Paulo Maluf cedendo a área para que se instalasse para
que se instalasse o Doi-Codi.
EAF: Nós comentamos isso na ação, a repressão política
ela foi organizada de fato, com a participação do estado e
do município. Essa cessão, desse espaço, pelo então
governador Paulo Maluf para então ser o pivô...
PHA: O quartel general!
MAW: A gente não pode esquecer que, antes do Doi-Codi,
houve a tal Operação Bandeirante. Ela era inclusive não-
oficial, ela era oficiosa. À margem da estrutura efetiva do
Exército e da Polícia.
PHA – É a OBAN, criada pelo governador Abreu Sodré...
MAW- ... E como ela não podia ter estruturas
orçamentárias, ela recolhia contribuições entre o
empresariado paulista.
19. PHA: E deu origem a um documentário a respeito do
“Cidadão Boilensen”. Dra Fávero muito obrigado, Dr.
Weichert, muito obrigado!