SlideShare uma empresa Scribd logo
2
CARTA AOS QUE FICAM
No antigo Paço da Boa vista, nas audiências dos sábados, quando
recebia toda gente, atendeu D.Pedro II a um negro velho, de carapinha
branca, e em cujo rosto, enrugado pelo frio de muitos invernos, se
descobria o sinal de muita penas e muitos maus-tratos.
-Ah! Meu Senhor grande – exclamou o infeliz – como é duro ser
escravo!...
O magnânimo imperador encarou suas mãos cansadas no leme da
direção do povo e aquelas outras, engelhadas, na excrescência dos calos
adquiridos na rude tarefa das senzalas, e tranqüilizando-o comovido:
-Oh! meu filho, tem paciência! Também sou escravo dos meus
deveres e eles são bem pesados... Teus infortúnios vão diminuir...
E mandou libertar o preto.
Mais tarde, nos primeiros tempos do seu desterro, o bondoso
monarca, a bordo do Alagoas, recebeu a visita do seu ex-ministro; às
primeiras interpelações de Ouro Preto, respondeu-lhe o grande exilado:
-Em suma, estou satisfeito e tranqüilo.
E, aludindo à sua expatriação:
É a minha carta de alforria... Agora posso ir onde quero.
A coroa era pesada demais para a cabeça do monarca republicano.
Aos que perguntarem no mundo sobre a minha posição em face da
morte, direi que ele teve para mim a fulguração de um Treze de Maio para
os filhos de Angola.
A morte não veio buscar a minha alma, quando esta se comprazia nas
redes douradas da ilusão. A sua tesoura não me cortou fios da mocidade
e de sonho, porque eu não possuía senão neves brancas à espera do sol
para se desfazerem. O gelo dos meus desenganos necessitava desse calor
de realidade, que a morte espalha no caminho em que passa com a sua
foice derrubadora.Resisti, porém ao seu cerco como Aquiles no heroísmo
indomável de quem vê a destruição de suas muralhas e redutos. Na minha
trincheira de sacos de água quente, eu a vi chegar quase todos os dias...
Mirava-me nas pupilas chamejantes dos seus olhos, pedindo-lhe
complacência e ela me sorria consoladora nas suas promessas. Eu não
podia, porém adivinhar o seu fundo mistério, porque a dúvida obsidiava
o meu espírito, enrodilhando-se no meu raciocínio como tentáculos de
um polvo.
E, na alegria bárbara, sentia-me encurralado no sofrimento, como um
lutador romano aureolado de rosas.
Triunfava da morte e como Ájax recolhi as últimas esperanças no
rochedo da minha dor, desafiando o tridente dos deuses.
A minha excessiva vigilância trouxe-me a insônia, que arruinou a
tranqüilidade dos meus últimos dias. Perseguido pela surdez, já os meus
olhos se apagavam como as derradeiras luzes de um navio soçobrando
em mar encapelado no silêncio da noite. Sombra, movendo-se dentro das
sombras, não me acovardeidiante do abismo. Sem esmorecimentos atirei-
me ao combate, não para repelir mouros na costa, mas para erguer muito
alto o coração, retalhado nas pedras do caminho como um livro de
experiências para os que vinham depois dos meus passos, ou como a
réstia luminosa que os faroleiros desabotoam na superfície das águas,
prevenindo os incautos dos perigos das sirtes traiçoeiras do oceano.
Muitos me supuseram corroído da lepra e de vermina como se fosse
Bento de Labre, raspando-me com a escudela de Jô. Eu, porém estava
apenas refletindo a claridade das estrelas do meu imenso crepúsculo.
Quando, me encontrava nessa faina de semear a resignação, a primeira e
última flor dos que atravessam o deserto das incertezas da vida, a morte
abeirou-se do meu leito; devagarinho, como alguém que temesse acordar
um menino doente. Esperou que tapassem com anestesia todas as janelas
e interstícios dos meus sentimentos. E quando o caos mais absoluto no
meu cérebro, záz! Cortou as algemas a que me conservava retido por
amor aos outros condenados, irmãos meus, reclusos no calabouço da vida.
Adormeci nos seus braços como um ébrio nas mãos de uma deusa.
Despertando dessa letargia momentânea, compreendi a realidade da vida,
que eu negara, além dos ossos que se enfeitam com os cravos rubros da
carne.
- Humberto!... Humberto... exclamou uma voz longínqua – recebe os
que te enviam da Terra!
Arregalei os olhos com horror e com enfado:
-Não! Não quero saber de panegíricos e agora não me interessam as
seções necrológicas dos jornais.
Enganas-te – repetiu – as homenagens da convenção não se
equilibram até aqui. A hipocrisia é como certos micróbios de vida muito
efêmera. Toma as preces que se elevaram por ti a Deus, dos peitos
sufocados, onde penetraste com as tuas exortações e conselhos. O
sofrimento retornou sobre o teu coração um cântaro de mel.
Vi descer de um ponto indeterminado do espaço, braçadas de flores
inebriantes como se fossem feitas de neblina resplandecente, e escutei,
envolvendo o meu nome pobre, orações tecidas com suavidade e doçura.
Ah! Eu não vira o céu e a sua corte de bem-aventurados; mas Deus
receberia aquelas deprecações no seu sólio de estrelas encantadas como a
hóstia simbólica do catolicismo se perfuma na onda envolvente dos
aromas de um turíbulo. Nossa Senhora deveria ouvi-las no seu trono de
jasmins bordados de ouro, contornado dos anjos que eternizam a sua
glória.
Aspirei com força aqueles perfumes. Pude locomover-me para
investigar o reino das sobras, onde penso sem miolos na cabeça. Amava
e ainda sofria, reconhecendo-me no pórtico de uma nova luta.
Encontrei alguns amigos a quem apertei fraternalmente as mãos. E
voltei cá. Voltei para falar com os humildes e infortunados, confundidos
na poeira da estrada de suas existências, como frangalhos de papel,
rodopiando ao vento. Voltei para dizer aos que não pude interpretar no
meu ceticismo de sofredor:
- Não sois os candidatos ao casarão da Praia Vermelha.[Hospício
Nacional]. Plantai pois nas almas a palmeira da esperança. Mais tarde ela
descobrirá sobre as vossas cabeçasencanecidas os seus leques enseivados
e verdes...
E posso acrescentar, como o neto de Marco Aurélio, no tocante à
morte que me arrebatou da prisão nevoenta da Terra:
- É a minha carta de alforria... Agora posso ir onde quero.
Os amargores do mundo eram pesados demais para o meu coração.
Humberto de Campos.
(Recebida em Pedro Leopoldo em 28 de março de 1935).

Mais conteúdo relacionado

Mais procurados

A visão e a voz - Crowley
A visão e a voz - CrowleyA visão e a voz - Crowley
A visão e a voz - CrowleyMarcelo Ferreira
 
Poemas de Olavo Bilac
Poemas de Olavo BilacPoemas de Olavo Bilac
Poemas de Olavo BilacMax Pessanha
 
12 um céptico
12   um céptico12   um céptico
12 um céptico
Fatoze
 
Os quinhentos da galileia
Os quinhentos da galileiaOs quinhentos da galileia
Os quinhentos da galileia
Fatoze
 
Renúncia
RenúnciaRenúncia
Renúncia
celulaespirita
 
Expiações e provações
Expiações e provaçõesExpiações e provações
Expiações e provações
Helio Cruz
 
3 aos meus filhos
3   aos meus filhos3   aos meus filhos
3 aos meus filhos
Fatoze
 
Liber al vel legis (o livro da lei) - aleister crowley
Liber al vel legis (o livro da lei) - aleister crowleyLiber al vel legis (o livro da lei) - aleister crowley
Liber al vel legis (o livro da lei) - aleister crowleyMarcelo Ferreira
 
16 chico xavieremmanuel-renúncia
16 chico xavieremmanuel-renúncia16 chico xavieremmanuel-renúncia
16 chico xavieremmanuel-renúnciacentrodeestudos1987
 
Jesus - Amanhecer da Ressurreição
Jesus - Amanhecer da RessurreiçãoJesus - Amanhecer da Ressurreição
Jesus - Amanhecer da Ressurreição
Antonino Silva
 
DIÁRIO DE SANTA FAUSTINA
DIÁRIO DE SANTA FAUSTINADIÁRIO DE SANTA FAUSTINA
DIÁRIO DE SANTA FAUSTINA
GRUPO DE ORAÇÃO ANJO RAFAEL
 
Nosso lar 01naszonasinferiores
Nosso lar 01naszonasinferioresNosso lar 01naszonasinferiores
Nosso lar 01naszonasinferiores
Duda Neto
 
Mensagem de Mãe Maria
Mensagem  de Mãe MariaMensagem  de Mãe Maria
Mensagem de Mãe Maria
Regina Sylvia
 

Mais procurados (18)

O mundo-desperto
O mundo-despertoO mundo-desperto
O mundo-desperto
 
A visão e a voz - Crowley
A visão e a voz - CrowleyA visão e a voz - Crowley
A visão e a voz - Crowley
 
Poemas de Olavo Bilac
Poemas de Olavo BilacPoemas de Olavo Bilac
Poemas de Olavo Bilac
 
12 um céptico
12   um céptico12   um céptico
12 um céptico
 
Os quinhentos da galileia
Os quinhentos da galileiaOs quinhentos da galileia
Os quinhentos da galileia
 
Renúncia
RenúnciaRenúncia
Renúncia
 
Expiações e provações
Expiações e provaçõesExpiações e provações
Expiações e provações
 
3 aos meus filhos
3   aos meus filhos3   aos meus filhos
3 aos meus filhos
 
Coéforas
CoéforasCoéforas
Coéforas
 
Liber al vel legis (o livro da lei) - aleister crowley
Liber al vel legis (o livro da lei) - aleister crowleyLiber al vel legis (o livro da lei) - aleister crowley
Liber al vel legis (o livro da lei) - aleister crowley
 
Vicente
VicenteVicente
Vicente
 
Sexo e destino
Sexo e destinoSexo e destino
Sexo e destino
 
16 chico xavieremmanuel-renúncia
16 chico xavieremmanuel-renúncia16 chico xavieremmanuel-renúncia
16 chico xavieremmanuel-renúncia
 
Jesus - Amanhecer da Ressurreição
Jesus - Amanhecer da RessurreiçãoJesus - Amanhecer da Ressurreição
Jesus - Amanhecer da Ressurreição
 
Terço da misericórdia
Terço da misericórdiaTerço da misericórdia
Terço da misericórdia
 
DIÁRIO DE SANTA FAUSTINA
DIÁRIO DE SANTA FAUSTINADIÁRIO DE SANTA FAUSTINA
DIÁRIO DE SANTA FAUSTINA
 
Nosso lar 01naszonasinferiores
Nosso lar 01naszonasinferioresNosso lar 01naszonasinferiores
Nosso lar 01naszonasinferiores
 
Mensagem de Mãe Maria
Mensagem  de Mãe MariaMensagem  de Mãe Maria
Mensagem de Mãe Maria
 

Destaque

Ave maria na hora da crise
Ave maria   na hora da criseAve maria   na hora da crise
Ave maria na hora da crise
Fatoze
 
Ave maria fenômeno mediúnico
Ave maria   fenômeno mediúnicoAve maria   fenômeno mediúnico
Ave maria fenômeno mediúnico
Fatoze
 
Ave maria jovens
Ave maria   jovensAve maria   jovens
Ave maria jovens
Fatoze
 
Ave maria a mulher ante o cristo
Ave maria   a mulher ante o cristoAve maria   a mulher ante o cristo
Ave maria a mulher ante o cristo
Fatoze
 
Ave maria ao sol do amor
Ave maria   ao sol do amorAve maria   ao sol do amor
Ave maria ao sol do amor
Fatoze
 
Ave maria sexo e amor
Ave maria   sexo e amorAve maria   sexo e amor
Ave maria sexo e amor
Fatoze
 
Ave maria campanha na campanha
Ave maria   campanha na campanhaAve maria   campanha na campanha
Ave maria campanha na campanha
Fatoze
 
Ave maria na grande transição
Ave maria   na grande transiçãoAve maria   na grande transição
Ave maria na grande transição
Fatoze
 
Ave maria justiça e amor
Ave maria   justiça e amorAve maria   justiça e amor
Ave maria justiça e amor
Fatoze
 
Ave maria sonâmbulos
Ave maria   sonâmbulosAve maria   sonâmbulos
Ave maria sonâmbulos
Fatoze
 
Evangelho no lar com crianças (26)
Evangelho no lar com crianças (26)Evangelho no lar com crianças (26)
Evangelho no lar com crianças (26)
Fatoze
 
Reino do coração
Reino do coraçãoReino do coração
Reino do coração
Fatoze
 
8 a passagem de richet
8   a passagem de richet8   a passagem de richet
8 a passagem de richet
Fatoze
 
Ave Maria amor
Ave Maria  amorAve Maria  amor
Ave Maria amor
Fatoze
 
15 a casa de ismael
15   a casa de ismael15   a casa de ismael
15 a casa de ismael
Fatoze
 
Progração de Computadores
Progração de ComputadoresProgração de Computadores
Progração de Computadores
Sompo Seguros
 
El índice de confianza del consumidor (ICC) cae 1,6% en enero
El índice de confianza del consumidor (ICC) cae 1,6% en eneroEl índice de confianza del consumidor (ICC) cae 1,6% en enero
El índice de confianza del consumidor (ICC) cae 1,6% en enero
Eduardo Nelson German
 
SHARON SANTOS REVISED new
SHARON SANTOS REVISED newSHARON SANTOS REVISED new
SHARON SANTOS REVISED newSharon Santos
 
Dominacja w hierarchii psów.
Dominacja w hierarchii psów.Dominacja w hierarchii psów.
Dominacja w hierarchii psów.tajmikemao
 
Huldy orjuela
Huldy orjuelaHuldy orjuela
Huldy orjuela
Mónica Molina
 

Destaque (20)

Ave maria na hora da crise
Ave maria   na hora da criseAve maria   na hora da crise
Ave maria na hora da crise
 
Ave maria fenômeno mediúnico
Ave maria   fenômeno mediúnicoAve maria   fenômeno mediúnico
Ave maria fenômeno mediúnico
 
Ave maria jovens
Ave maria   jovensAve maria   jovens
Ave maria jovens
 
Ave maria a mulher ante o cristo
Ave maria   a mulher ante o cristoAve maria   a mulher ante o cristo
Ave maria a mulher ante o cristo
 
Ave maria ao sol do amor
Ave maria   ao sol do amorAve maria   ao sol do amor
Ave maria ao sol do amor
 
Ave maria sexo e amor
Ave maria   sexo e amorAve maria   sexo e amor
Ave maria sexo e amor
 
Ave maria campanha na campanha
Ave maria   campanha na campanhaAve maria   campanha na campanha
Ave maria campanha na campanha
 
Ave maria na grande transição
Ave maria   na grande transiçãoAve maria   na grande transição
Ave maria na grande transição
 
Ave maria justiça e amor
Ave maria   justiça e amorAve maria   justiça e amor
Ave maria justiça e amor
 
Ave maria sonâmbulos
Ave maria   sonâmbulosAve maria   sonâmbulos
Ave maria sonâmbulos
 
Evangelho no lar com crianças (26)
Evangelho no lar com crianças (26)Evangelho no lar com crianças (26)
Evangelho no lar com crianças (26)
 
Reino do coração
Reino do coraçãoReino do coração
Reino do coração
 
8 a passagem de richet
8   a passagem de richet8   a passagem de richet
8 a passagem de richet
 
Ave Maria amor
Ave Maria  amorAve Maria  amor
Ave Maria amor
 
15 a casa de ismael
15   a casa de ismael15   a casa de ismael
15 a casa de ismael
 
Progração de Computadores
Progração de ComputadoresProgração de Computadores
Progração de Computadores
 
El índice de confianza del consumidor (ICC) cae 1,6% en enero
El índice de confianza del consumidor (ICC) cae 1,6% en eneroEl índice de confianza del consumidor (ICC) cae 1,6% en enero
El índice de confianza del consumidor (ICC) cae 1,6% en enero
 
SHARON SANTOS REVISED new
SHARON SANTOS REVISED newSHARON SANTOS REVISED new
SHARON SANTOS REVISED new
 
Dominacja w hierarchii psów.
Dominacja w hierarchii psów.Dominacja w hierarchii psów.
Dominacja w hierarchii psów.
 
Huldy orjuela
Huldy orjuelaHuldy orjuela
Huldy orjuela
 

Semelhante a 2 carta aos que ficam

1 de um casarão do outro mundo
1   de um casarão do outro mundo1   de um casarão do outro mundo
1 de um casarão do outro mundo
Fatoze
 
Francisco Gil Castelo Branco - Conto Romantico Um Figurino
Francisco Gil Castelo Branco - Conto Romantico Um FigurinoFrancisco Gil Castelo Branco - Conto Romantico Um Figurino
Francisco Gil Castelo Branco - Conto Romantico Um Figurinowilson-alencar
 
José de Alencar - A alma do lázaro
José de Alencar - A alma do lázaroJosé de Alencar - A alma do lázaro
José de Alencar - A alma do lázaro
Francis Monteiro da Rocha
 
43 resposta de humberto campos a uma mãe aflita
43   resposta de humberto campos a uma mãe aflita43   resposta de humberto campos a uma mãe aflita
43 resposta de humberto campos a uma mãe aflita
Fatoze
 
Cinquenta Anos Depois
Cinquenta Anos DepoisCinquenta Anos Depois
Cinquenta Anos Depois
celulaespirita
 
50 anos depois
50 anos depois50 anos depois
50 anos depois
Serginho Lopes Ator
 
iracema.pdf1222222222222222222222222222222222
iracema.pdf1222222222222222222222222222222222iracema.pdf1222222222222222222222222222222222
iracema.pdf1222222222222222222222222222222222
miguelmv076
 
Alexandre herculano a cruz mutilada
Alexandre herculano   a cruz mutiladaAlexandre herculano   a cruz mutilada
Alexandre herculano a cruz mutiladaTulipa Zoá
 
Cartas sem Moral Nenhuma
Cartas sem Moral NenhumaCartas sem Moral Nenhuma
Cartas sem Moral Nenhuma
Loulet
 
Ha 2000 Anos
Ha 2000 AnosHa 2000 Anos
Ha 2000 Anos
celulaespirita
 
Viag11 poesia quental- semana leitura cartas
Viag11 poesia quental- semana leitura cartasViag11 poesia quental- semana leitura cartas
Viag11 poesia quental- semana leitura cartas
IsabelPereira2010
 

Semelhante a 2 carta aos que ficam (20)

O mandarim
O mandarimO mandarim
O mandarim
 
1 de um casarão do outro mundo
1   de um casarão do outro mundo1   de um casarão do outro mundo
1 de um casarão do outro mundo
 
Francisco Gil Castelo Branco - Conto Romantico Um Figurino
Francisco Gil Castelo Branco - Conto Romantico Um FigurinoFrancisco Gil Castelo Branco - Conto Romantico Um Figurino
Francisco Gil Castelo Branco - Conto Romantico Um Figurino
 
José de Alencar - A alma do lázaro
José de Alencar - A alma do lázaroJosé de Alencar - A alma do lázaro
José de Alencar - A alma do lázaro
 
43 resposta de humberto campos a uma mãe aflita
43   resposta de humberto campos a uma mãe aflita43   resposta de humberto campos a uma mãe aflita
43 resposta de humberto campos a uma mãe aflita
 
11 chico xavier-emmanuel-50anosdepois
11 chico xavier-emmanuel-50anosdepois11 chico xavier-emmanuel-50anosdepois
11 chico xavier-emmanuel-50anosdepois
 
Cinquenta Anos Depois
Cinquenta Anos DepoisCinquenta Anos Depois
Cinquenta Anos Depois
 
50 anos depois
50 anos depois50 anos depois
50 anos depois
 
50 anos depois
50 anos depois50 anos depois
50 anos depois
 
72
7272
72
 
iracema.pdf1222222222222222222222222222222222
iracema.pdf1222222222222222222222222222222222iracema.pdf1222222222222222222222222222222222
iracema.pdf1222222222222222222222222222222222
 
Alexandre herculano a cruz mutilada
Alexandre herculano   a cruz mutiladaAlexandre herculano   a cruz mutilada
Alexandre herculano a cruz mutilada
 
Cartas sem Moral Nenhuma
Cartas sem Moral NenhumaCartas sem Moral Nenhuma
Cartas sem Moral Nenhuma
 
10 chico xavier-emmanuel-há2000anos
10 chico xavier-emmanuel-há2000anos10 chico xavier-emmanuel-há2000anos
10 chico xavier-emmanuel-há2000anos
 
Há 2000 anos
Há 2000 anosHá 2000 anos
Há 2000 anos
 
Há 2000 anos
Há 2000 anosHá 2000 anos
Há 2000 anos
 
Ha 2000 Anos
Ha 2000 AnosHa 2000 Anos
Ha 2000 Anos
 
Viag11 poesia quental- semana leitura cartas
Viag11 poesia quental- semana leitura cartasViag11 poesia quental- semana leitura cartas
Viag11 poesia quental- semana leitura cartas
 
Romance
RomanceRomance
Romance
 
am
amam
am
 

Mais de Fatoze

Evangelho animais 95
Evangelho animais 95Evangelho animais 95
Evangelho animais 95
Fatoze
 
Evangelho animais 94
Evangelho animais 94Evangelho animais 94
Evangelho animais 94
Fatoze
 
Evangelho animais 93
Evangelho animais 93Evangelho animais 93
Evangelho animais 93
Fatoze
 
Evangelho animais 92
Evangelho animais 92Evangelho animais 92
Evangelho animais 92
Fatoze
 
Evangelho animais 91
Evangelho animais 91Evangelho animais 91
Evangelho animais 91
Fatoze
 
Evangelho no lar com crianças (69)
Evangelho no lar com crianças (69)Evangelho no lar com crianças (69)
Evangelho no lar com crianças (69)
Fatoze
 
Evangelho no lar com crianças (68)
Evangelho no lar com crianças (68)Evangelho no lar com crianças (68)
Evangelho no lar com crianças (68)
Fatoze
 
Evangelho no lar com crianças (67)
Evangelho no lar com crianças (67)Evangelho no lar com crianças (67)
Evangelho no lar com crianças (67)
Fatoze
 
Evangelho no lar com crianças (66)
Evangelho no lar com crianças (66)Evangelho no lar com crianças (66)
Evangelho no lar com crianças (66)
Fatoze
 
68 oitava categoria - caso 14
68   oitava categoria - caso 1468   oitava categoria - caso 14
68 oitava categoria - caso 14
Fatoze
 
67 oitava categoria - caso 12 e caso 13
67   oitava categoria - caso 12 e caso 1367   oitava categoria - caso 12 e caso 13
67 oitava categoria - caso 12 e caso 13
Fatoze
 
66 oitava categoria - caso 10 e caso 11
66   oitava categoria - caso 10 e caso 1166   oitava categoria - caso 10 e caso 11
66 oitava categoria - caso 10 e caso 11
Fatoze
 
65 oitava categoria - caso 08 e caso 09
65   oitava categoria - caso 08 e caso 0965   oitava categoria - caso 08 e caso 09
65 oitava categoria - caso 08 e caso 09
Fatoze
 
Evangelho no lar com crianças (65)
Evangelho no lar com crianças (65)Evangelho no lar com crianças (65)
Evangelho no lar com crianças (65)
Fatoze
 
Evangelho no lar com crianças (64)
Evangelho no lar com crianças (64)Evangelho no lar com crianças (64)
Evangelho no lar com crianças (64)
Fatoze
 
Evangelho no lar com crianças (63)
Evangelho no lar com crianças (63)Evangelho no lar com crianças (63)
Evangelho no lar com crianças (63)
Fatoze
 
Evangelho animais 90
Evangelho animais 90Evangelho animais 90
Evangelho animais 90
Fatoze
 
Evangelho animais 89
Evangelho animais 89Evangelho animais 89
Evangelho animais 89
Fatoze
 
Evangelho animais 88
Evangelho animais 88Evangelho animais 88
Evangelho animais 88
Fatoze
 
Aula 15 irmaos
Aula 15   irmaosAula 15   irmaos
Aula 15 irmaos
Fatoze
 

Mais de Fatoze (20)

Evangelho animais 95
Evangelho animais 95Evangelho animais 95
Evangelho animais 95
 
Evangelho animais 94
Evangelho animais 94Evangelho animais 94
Evangelho animais 94
 
Evangelho animais 93
Evangelho animais 93Evangelho animais 93
Evangelho animais 93
 
Evangelho animais 92
Evangelho animais 92Evangelho animais 92
Evangelho animais 92
 
Evangelho animais 91
Evangelho animais 91Evangelho animais 91
Evangelho animais 91
 
Evangelho no lar com crianças (69)
Evangelho no lar com crianças (69)Evangelho no lar com crianças (69)
Evangelho no lar com crianças (69)
 
Evangelho no lar com crianças (68)
Evangelho no lar com crianças (68)Evangelho no lar com crianças (68)
Evangelho no lar com crianças (68)
 
Evangelho no lar com crianças (67)
Evangelho no lar com crianças (67)Evangelho no lar com crianças (67)
Evangelho no lar com crianças (67)
 
Evangelho no lar com crianças (66)
Evangelho no lar com crianças (66)Evangelho no lar com crianças (66)
Evangelho no lar com crianças (66)
 
68 oitava categoria - caso 14
68   oitava categoria - caso 1468   oitava categoria - caso 14
68 oitava categoria - caso 14
 
67 oitava categoria - caso 12 e caso 13
67   oitava categoria - caso 12 e caso 1367   oitava categoria - caso 12 e caso 13
67 oitava categoria - caso 12 e caso 13
 
66 oitava categoria - caso 10 e caso 11
66   oitava categoria - caso 10 e caso 1166   oitava categoria - caso 10 e caso 11
66 oitava categoria - caso 10 e caso 11
 
65 oitava categoria - caso 08 e caso 09
65   oitava categoria - caso 08 e caso 0965   oitava categoria - caso 08 e caso 09
65 oitava categoria - caso 08 e caso 09
 
Evangelho no lar com crianças (65)
Evangelho no lar com crianças (65)Evangelho no lar com crianças (65)
Evangelho no lar com crianças (65)
 
Evangelho no lar com crianças (64)
Evangelho no lar com crianças (64)Evangelho no lar com crianças (64)
Evangelho no lar com crianças (64)
 
Evangelho no lar com crianças (63)
Evangelho no lar com crianças (63)Evangelho no lar com crianças (63)
Evangelho no lar com crianças (63)
 
Evangelho animais 90
Evangelho animais 90Evangelho animais 90
Evangelho animais 90
 
Evangelho animais 89
Evangelho animais 89Evangelho animais 89
Evangelho animais 89
 
Evangelho animais 88
Evangelho animais 88Evangelho animais 88
Evangelho animais 88
 
Aula 15 irmaos
Aula 15   irmaosAula 15   irmaos
Aula 15 irmaos
 

Último

Zacarias - 005.ppt xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx
Zacarias - 005.ppt xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxZacarias - 005.ppt xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx
Zacarias - 005.ppt xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx
lindalva da cruz
 
Simbologia do Galo na Maçonaria - Roberto Lico.pdf
Simbologia do Galo na Maçonaria - Roberto Lico.pdfSimbologia do Galo na Maçonaria - Roberto Lico.pdf
Simbologia do Galo na Maçonaria - Roberto Lico.pdf
MaurcioS8
 
Bíblia Sagrada - Amós - slides powerpoint.ppsx
Bíblia Sagrada - Amós - slides powerpoint.ppsxBíblia Sagrada - Amós - slides powerpoint.ppsx
Bíblia Sagrada - Amós - slides powerpoint.ppsx
Igreja Jesus é o Verbo
 
Evangelho no Lar - Pão Nosso - Cap. 137 - Inimigos
Evangelho no Lar - Pão Nosso - Cap. 137 - InimigosEvangelho no Lar - Pão Nosso - Cap. 137 - Inimigos
Evangelho no Lar - Pão Nosso - Cap. 137 - Inimigos
Ricardo Azevedo
 
A CÚPULA DO VATICANO É HOMOSSEXUAL [CATOLICISMO]
A CÚPULA DO VATICANO É HOMOSSEXUAL [CATOLICISMO]A CÚPULA DO VATICANO É HOMOSSEXUAL [CATOLICISMO]
A CÚPULA DO VATICANO É HOMOSSEXUAL [CATOLICISMO]
ESCRIBA DE CRISTO
 
Pregação sobre as 5 Lições De Gideão para nós
Pregação sobre as 5 Lições De Gideão para nósPregação sobre as 5 Lições De Gideão para nós
Pregação sobre as 5 Lições De Gideão para nós
Linho Zinho
 
Estudo Bíblico da Carta aos Filipenses - introdução
Estudo Bíblico da Carta aos Filipenses - introduçãoEstudo Bíblico da Carta aos Filipenses - introdução
Estudo Bíblico da Carta aos Filipenses - introdução
Pr. Welfany Nolasco Rodrigues
 
SERÁ QUE O CRENTE PERDE A SALVAÇÃO? COMENTADO
SERÁ QUE O CRENTE PERDE A SALVAÇÃO? COMENTADOSERÁ QUE O CRENTE PERDE A SALVAÇÃO? COMENTADO
SERÁ QUE O CRENTE PERDE A SALVAÇÃO? COMENTADO
ESCRIBA DE CRISTO
 
ESTUDO SOBRE PREMONIÇÃO [PARAPSICOLOGIA]
ESTUDO SOBRE PREMONIÇÃO [PARAPSICOLOGIA]ESTUDO SOBRE PREMONIÇÃO [PARAPSICOLOGIA]
ESTUDO SOBRE PREMONIÇÃO [PARAPSICOLOGIA]
ESCRIBA DE CRISTO
 
PT-BR_fundamentos_nazarenos_rev150414BR.pdf
PT-BR_fundamentos_nazarenos_rev150414BR.pdfPT-BR_fundamentos_nazarenos_rev150414BR.pdf
PT-BR_fundamentos_nazarenos_rev150414BR.pdf
DaniSoares37
 
Lição 9 - Resistindo à Tentação no Caminho.pptx
Lição 9 - Resistindo à Tentação no Caminho.pptxLição 9 - Resistindo à Tentação no Caminho.pptx
Lição 9 - Resistindo à Tentação no Caminho.pptx
Celso Napoleon
 
Estudo sobre os quatro temperamentos.pptx
Estudo sobre os quatro temperamentos.pptxEstudo sobre os quatro temperamentos.pptx
Estudo sobre os quatro temperamentos.pptx
FabiodeMaria3
 

Último (12)

Zacarias - 005.ppt xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx
Zacarias - 005.ppt xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxZacarias - 005.ppt xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx
Zacarias - 005.ppt xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx
 
Simbologia do Galo na Maçonaria - Roberto Lico.pdf
Simbologia do Galo na Maçonaria - Roberto Lico.pdfSimbologia do Galo na Maçonaria - Roberto Lico.pdf
Simbologia do Galo na Maçonaria - Roberto Lico.pdf
 
Bíblia Sagrada - Amós - slides powerpoint.ppsx
Bíblia Sagrada - Amós - slides powerpoint.ppsxBíblia Sagrada - Amós - slides powerpoint.ppsx
Bíblia Sagrada - Amós - slides powerpoint.ppsx
 
Evangelho no Lar - Pão Nosso - Cap. 137 - Inimigos
Evangelho no Lar - Pão Nosso - Cap. 137 - InimigosEvangelho no Lar - Pão Nosso - Cap. 137 - Inimigos
Evangelho no Lar - Pão Nosso - Cap. 137 - Inimigos
 
A CÚPULA DO VATICANO É HOMOSSEXUAL [CATOLICISMO]
A CÚPULA DO VATICANO É HOMOSSEXUAL [CATOLICISMO]A CÚPULA DO VATICANO É HOMOSSEXUAL [CATOLICISMO]
A CÚPULA DO VATICANO É HOMOSSEXUAL [CATOLICISMO]
 
Pregação sobre as 5 Lições De Gideão para nós
Pregação sobre as 5 Lições De Gideão para nósPregação sobre as 5 Lições De Gideão para nós
Pregação sobre as 5 Lições De Gideão para nós
 
Estudo Bíblico da Carta aos Filipenses - introdução
Estudo Bíblico da Carta aos Filipenses - introduçãoEstudo Bíblico da Carta aos Filipenses - introdução
Estudo Bíblico da Carta aos Filipenses - introdução
 
SERÁ QUE O CRENTE PERDE A SALVAÇÃO? COMENTADO
SERÁ QUE O CRENTE PERDE A SALVAÇÃO? COMENTADOSERÁ QUE O CRENTE PERDE A SALVAÇÃO? COMENTADO
SERÁ QUE O CRENTE PERDE A SALVAÇÃO? COMENTADO
 
ESTUDO SOBRE PREMONIÇÃO [PARAPSICOLOGIA]
ESTUDO SOBRE PREMONIÇÃO [PARAPSICOLOGIA]ESTUDO SOBRE PREMONIÇÃO [PARAPSICOLOGIA]
ESTUDO SOBRE PREMONIÇÃO [PARAPSICOLOGIA]
 
PT-BR_fundamentos_nazarenos_rev150414BR.pdf
PT-BR_fundamentos_nazarenos_rev150414BR.pdfPT-BR_fundamentos_nazarenos_rev150414BR.pdf
PT-BR_fundamentos_nazarenos_rev150414BR.pdf
 
Lição 9 - Resistindo à Tentação no Caminho.pptx
Lição 9 - Resistindo à Tentação no Caminho.pptxLição 9 - Resistindo à Tentação no Caminho.pptx
Lição 9 - Resistindo à Tentação no Caminho.pptx
 
Estudo sobre os quatro temperamentos.pptx
Estudo sobre os quatro temperamentos.pptxEstudo sobre os quatro temperamentos.pptx
Estudo sobre os quatro temperamentos.pptx
 

2 carta aos que ficam

  • 1. 2 CARTA AOS QUE FICAM No antigo Paço da Boa vista, nas audiências dos sábados, quando recebia toda gente, atendeu D.Pedro II a um negro velho, de carapinha branca, e em cujo rosto, enrugado pelo frio de muitos invernos, se descobria o sinal de muita penas e muitos maus-tratos. -Ah! Meu Senhor grande – exclamou o infeliz – como é duro ser escravo!... O magnânimo imperador encarou suas mãos cansadas no leme da direção do povo e aquelas outras, engelhadas, na excrescência dos calos adquiridos na rude tarefa das senzalas, e tranqüilizando-o comovido: -Oh! meu filho, tem paciência! Também sou escravo dos meus deveres e eles são bem pesados... Teus infortúnios vão diminuir... E mandou libertar o preto. Mais tarde, nos primeiros tempos do seu desterro, o bondoso monarca, a bordo do Alagoas, recebeu a visita do seu ex-ministro; às primeiras interpelações de Ouro Preto, respondeu-lhe o grande exilado: -Em suma, estou satisfeito e tranqüilo. E, aludindo à sua expatriação: É a minha carta de alforria... Agora posso ir onde quero. A coroa era pesada demais para a cabeça do monarca republicano. Aos que perguntarem no mundo sobre a minha posição em face da morte, direi que ele teve para mim a fulguração de um Treze de Maio para os filhos de Angola. A morte não veio buscar a minha alma, quando esta se comprazia nas redes douradas da ilusão. A sua tesoura não me cortou fios da mocidade e de sonho, porque eu não possuía senão neves brancas à espera do sol para se desfazerem. O gelo dos meus desenganos necessitava desse calor de realidade, que a morte espalha no caminho em que passa com a sua foice derrubadora.Resisti, porém ao seu cerco como Aquiles no heroísmo indomável de quem vê a destruição de suas muralhas e redutos. Na minha trincheira de sacos de água quente, eu a vi chegar quase todos os dias... Mirava-me nas pupilas chamejantes dos seus olhos, pedindo-lhe complacência e ela me sorria consoladora nas suas promessas. Eu não podia, porém adivinhar o seu fundo mistério, porque a dúvida obsidiava
  • 2. o meu espírito, enrodilhando-se no meu raciocínio como tentáculos de um polvo. E, na alegria bárbara, sentia-me encurralado no sofrimento, como um lutador romano aureolado de rosas. Triunfava da morte e como Ájax recolhi as últimas esperanças no rochedo da minha dor, desafiando o tridente dos deuses. A minha excessiva vigilância trouxe-me a insônia, que arruinou a tranqüilidade dos meus últimos dias. Perseguido pela surdez, já os meus olhos se apagavam como as derradeiras luzes de um navio soçobrando em mar encapelado no silêncio da noite. Sombra, movendo-se dentro das sombras, não me acovardeidiante do abismo. Sem esmorecimentos atirei- me ao combate, não para repelir mouros na costa, mas para erguer muito alto o coração, retalhado nas pedras do caminho como um livro de experiências para os que vinham depois dos meus passos, ou como a réstia luminosa que os faroleiros desabotoam na superfície das águas, prevenindo os incautos dos perigos das sirtes traiçoeiras do oceano. Muitos me supuseram corroído da lepra e de vermina como se fosse Bento de Labre, raspando-me com a escudela de Jô. Eu, porém estava apenas refletindo a claridade das estrelas do meu imenso crepúsculo. Quando, me encontrava nessa faina de semear a resignação, a primeira e última flor dos que atravessam o deserto das incertezas da vida, a morte abeirou-se do meu leito; devagarinho, como alguém que temesse acordar um menino doente. Esperou que tapassem com anestesia todas as janelas e interstícios dos meus sentimentos. E quando o caos mais absoluto no meu cérebro, záz! Cortou as algemas a que me conservava retido por amor aos outros condenados, irmãos meus, reclusos no calabouço da vida. Adormeci nos seus braços como um ébrio nas mãos de uma deusa. Despertando dessa letargia momentânea, compreendi a realidade da vida, que eu negara, além dos ossos que se enfeitam com os cravos rubros da carne. - Humberto!... Humberto... exclamou uma voz longínqua – recebe os que te enviam da Terra! Arregalei os olhos com horror e com enfado: -Não! Não quero saber de panegíricos e agora não me interessam as seções necrológicas dos jornais. Enganas-te – repetiu – as homenagens da convenção não se equilibram até aqui. A hipocrisia é como certos micróbios de vida muito
  • 3. efêmera. Toma as preces que se elevaram por ti a Deus, dos peitos sufocados, onde penetraste com as tuas exortações e conselhos. O sofrimento retornou sobre o teu coração um cântaro de mel. Vi descer de um ponto indeterminado do espaço, braçadas de flores inebriantes como se fossem feitas de neblina resplandecente, e escutei, envolvendo o meu nome pobre, orações tecidas com suavidade e doçura. Ah! Eu não vira o céu e a sua corte de bem-aventurados; mas Deus receberia aquelas deprecações no seu sólio de estrelas encantadas como a hóstia simbólica do catolicismo se perfuma na onda envolvente dos aromas de um turíbulo. Nossa Senhora deveria ouvi-las no seu trono de jasmins bordados de ouro, contornado dos anjos que eternizam a sua glória. Aspirei com força aqueles perfumes. Pude locomover-me para investigar o reino das sobras, onde penso sem miolos na cabeça. Amava e ainda sofria, reconhecendo-me no pórtico de uma nova luta. Encontrei alguns amigos a quem apertei fraternalmente as mãos. E voltei cá. Voltei para falar com os humildes e infortunados, confundidos na poeira da estrada de suas existências, como frangalhos de papel, rodopiando ao vento. Voltei para dizer aos que não pude interpretar no meu ceticismo de sofredor: - Não sois os candidatos ao casarão da Praia Vermelha.[Hospício Nacional]. Plantai pois nas almas a palmeira da esperança. Mais tarde ela descobrirá sobre as vossas cabeçasencanecidas os seus leques enseivados e verdes... E posso acrescentar, como o neto de Marco Aurélio, no tocante à morte que me arrebatou da prisão nevoenta da Terra: - É a minha carta de alforria... Agora posso ir onde quero. Os amargores do mundo eram pesados demais para o meu coração. Humberto de Campos. (Recebida em Pedro Leopoldo em 28 de março de 1935).