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CULTURA COM FUSÃO OU SEM FUSÃO
"Era uma vez um czar naturalista que caçava homens. Quando lhe disseram que também se caçam
borboletas e andorinhas, ficou muito espantado e achou uma barbaridade." "Anedota Búlgara" de Carlos
Drummond de Andrade Texto de Sebastião de Almeida Júnior


Cada humano vê o mundo a partir de uma base cultural, além de ver a si próprio a partir dessa mesma
base, é claro. Muita gente sabe disso ou, pelo menos, diz saber. Essa base cultural se constitui antes. A
cultura já está presente na língua, nos hábitos e valores de uma sociedade quando um novo indivíduo
nasce e passa a imitar as práticas alheias. Por meio da imitação, assimila. Depois, pode até refletir a
respeito da forma como essas coisas acontecem, mas para isso precisa se esforçar para superar a visão de
superfície, caso contrário, não conseguirá sequer avaliar seus atos.

Geralmente, o humano interpreta sua cultura como sendo algo inato ou natural. Isso é uma ilusão: toda
cultura é artificialmente constituída. É convencionada. Mas, da mesma forma que o animal não consegue
enxergar seus próprios olhos, um individuo não consegue perceber o grau de determinação de seus atos
pela convivência/conveniência social com aqueles considerados seus semelhantes, aqueles que se
identificam com a mesma cultura.

As evidências aparecem quando UM compara seus hábitos, valores e expressões com a de OUTRO,
considerado não tão semelhante. Aqueles acostumados, por exemplo, a comer alimentos muito
condimentados acreditam que a comida temperada moderadamente não tem sabor. Aqueles que desde a
infância comem direto com as mãos, consideram talheres uma extravagância ou uma perda de tempo.
Quando as diferenças ficam evidentes, cada um acredita que a sua versão é superior às demais. Assim foi
entre gregos e troianos; entre europeus e índios. Assim continua sendo entre israelenses e palestinos ou
entre corintianos e palmeirenses.

Nenhuma cultura, no entanto, pode ser classificada em relação à outra. Se em uma determinada sociedade,
um rapaz e uma moça somente se encontram com a aprovação dos pais de ambos; e em outra os
encontros se dão de acordo com a veneta de cada um, não há nenhum critério objetivo e isento que possa
ser utilizado para classificar uma prática como superior à outra, uma vez que todas são fruto de convenções
construídas ao longo da história, por pessoas comuns. Talvez em função não só disso, mas principalmente
dos horrores cometidos durante as duas Grandes Guerras (1914 a 1918 e 1939 a 1945), na atualidade
desenvolve-se certo culto à tolerância.

As culturas, no entanto, não se desenvolvem somente na dimensão dos “povos”. Determinadas cadeias de
suprimento também podem gerar versões baseadas na utilização de termos técnicos específicos, rituais de
inclusão e exclusão, além de critérios para tomada de decisão. Bem como algumas empresas podem
constituir algo de cultural em função de seu porte e/ou representatividade nos âmbitos econômico e social.
E quando essas diferenças culturais entre empresas ficam evidentes? De acordo com o que tenho
acompanhado durante os últimos trinta anos, as diferenças se evidenciam quando representantes de
diferentes culturas empresariais se aproximam para negociar, quando a competição entre empresas fica
acirrada, ou quando duas empresas se fundem.

Para que o ritual de negociação seja celebrado por representantes de diferentes empresas, toda uma
preparação é desenvolvida, visando não só a identificar os traços característicos da cultura da outra parte,
como a alternativas para tornar os acordos e as trocas viáveis. Foi isso que aconteceu com frequência
significativa quando a China passou a ser considerada o “paraíso das oportunidades”. Os pioneiros
cometeram muitas gafes e realizaram perdas. Mas essas serviram para orientar os passos dos demais na
busca de apoio de chineses para entender como agiam aqueles empresários e burocratas empenhados em
viabilizar a economia de um país com população e área continentais, e com um histórico de décadas de
propaganda comunista.
Com isso, cursos de boas maneiras orientais e introdução à culinária chinesa foram frequentados por
empresários e executivos brasileiros. Houve até quem se propusesse a conhecer algumas expressões
básicas em mandarim, mas esses foram raros. Todos buscando errar o menos possível na hora de afinar a
sintonia entre empresas. Quando se trava a competição, todos já sabem: o importante é demonstrar que
tudo o que uma equipe entrega é muito melhor do que o prometido pelo concorrente! Assim, orientados
para o conflito, cada competidor considera sua cultura superior a todas as outras. Isso pode ser excitante
ou até divertido, mas não colabora com a integração entre as partes. O máximo que se pode alcançar por
meio dessa via é a indiferença ou a hipocrisia.

Quando se trata de fusões de empresas, é recomendável considerar dois aspectos: as diretrizes da fusão e
representatividade de cada organização envolvida diante do mercado. Esses casos podem ajudar a
entender mais facilmente essa dinâmica.

Um extremo

Há alguns anos, uma fábrica de biscoitos da Região Metropolitana de Campinas conquistou destaque para
uma linha de produtos populares. Chamou atenção e recebeu um convite para se fundir a uma organização
internacional do ramo de alimentos. Depois de pouco tempo, os planos de expansão se tornaram ousados
demais para o fundador e ex-proprietário e esse cedeu sua parte. A partir daí, as diretrizes ficaram claras
para todos os empregados dessa unidade de negócio: era mandatório se adaptar à cultura da organização
internacional, caracterizada a partir de um conjunto de diretrizes, normas e procedimentos.

Alguém poderia argumentar: oportunidades de ganho podem ter sido perdidas! Mas seu argumento não
chegaria aos ouvidos dos decisores, certos de que o domínio da tecnologia de ponta estava garantido e de
que os profissionais da unidade incorporada poderiam ser facilmente substituídos. (Processo equivalente
está ocorrendo na atualidade, nessa Região, no setor de armações para óculos)

Outro extremo

Durante décadas, alguns conglomerados internacionais vêm se constituindo em negócios de bilhões de
dólares. Sua estratégia prevê, entre outros recursos, a fusão. Dessa forma, quando os executivos de uma
empresa internacional da “cadeia do frio” (com ramificações no Brasil) foram procurados para debater uma
incorporação, sabiam que o termo “sinergia” não era usado por acaso. A ideia era mesmo unir esforços
para ganhar em escala mundial, visando a enfrentar concorrentes. Não só a concorrência atual como as
chances de concorrência futura foram consideradas, do ponto de vista de “formação de hábitos de
consumo” e de “estabelecimento de padrões internacionais”, aspectos que servem de base para os custos,
produtividade, qualidade e lucratividade industriais.

Nesse caso, as forças se fundem e as diferenças culturais são consideradas e até cultivadas quando se
entende que essas não têm valor em si, mas têm valor para o negócio, uma vez que propiciam o
aperfeiçoamento e adequação dos processos de produção, avaliação e comercialização às situações de
cada mercado onde atuam. Nenhuma parte quer dominar a outra em função da complexidade, da
diversidade de competências, do volume de capital demandado e dos riscos envolvidos. Mesmo assim, a
cultura organizacional se atualiza em decorrência das pressões exercidas pelas diferentes partes, com
maior ou menor influência de uns ou de outros, propiciando que determinadas oportunidades sejam
perseguidas e outras, desprezadas.

Em qualquer caso, é bom lembrar: cultura não se compra, se vende ou se impõe. Cultura se cultiva e se
cultua. E mais: são as pessoas, no seu dia a dia, que constituem uma cultura capaz de contagiar os hábitos
de consumo dos demais. Assim sendo, é aconselhável não desprezar os aspectos culturais quando o
objetivo é unir forças para melhorar a competitividade empresarial.
Sebastião de Almeida Jr. é consultor na área de desenvolvimento gerencial e organizacional desde 1987,
professor convidado do Instituto de Economia da UNICAMP, autor de cinco livros sobre “Negociação”
pela Qualitymark Editora. e-mail: consultor@almeidaecappeloza.com.br telefone (19) 3241.3535

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  • 1. CULTURA COM FUSÃO OU SEM FUSÃO "Era uma vez um czar naturalista que caçava homens. Quando lhe disseram que também se caçam borboletas e andorinhas, ficou muito espantado e achou uma barbaridade." "Anedota Búlgara" de Carlos Drummond de Andrade Texto de Sebastião de Almeida Júnior Cada humano vê o mundo a partir de uma base cultural, além de ver a si próprio a partir dessa mesma base, é claro. Muita gente sabe disso ou, pelo menos, diz saber. Essa base cultural se constitui antes. A cultura já está presente na língua, nos hábitos e valores de uma sociedade quando um novo indivíduo nasce e passa a imitar as práticas alheias. Por meio da imitação, assimila. Depois, pode até refletir a respeito da forma como essas coisas acontecem, mas para isso precisa se esforçar para superar a visão de superfície, caso contrário, não conseguirá sequer avaliar seus atos. Geralmente, o humano interpreta sua cultura como sendo algo inato ou natural. Isso é uma ilusão: toda cultura é artificialmente constituída. É convencionada. Mas, da mesma forma que o animal não consegue enxergar seus próprios olhos, um individuo não consegue perceber o grau de determinação de seus atos pela convivência/conveniência social com aqueles considerados seus semelhantes, aqueles que se identificam com a mesma cultura. As evidências aparecem quando UM compara seus hábitos, valores e expressões com a de OUTRO, considerado não tão semelhante. Aqueles acostumados, por exemplo, a comer alimentos muito condimentados acreditam que a comida temperada moderadamente não tem sabor. Aqueles que desde a infância comem direto com as mãos, consideram talheres uma extravagância ou uma perda de tempo. Quando as diferenças ficam evidentes, cada um acredita que a sua versão é superior às demais. Assim foi entre gregos e troianos; entre europeus e índios. Assim continua sendo entre israelenses e palestinos ou entre corintianos e palmeirenses. Nenhuma cultura, no entanto, pode ser classificada em relação à outra. Se em uma determinada sociedade, um rapaz e uma moça somente se encontram com a aprovação dos pais de ambos; e em outra os encontros se dão de acordo com a veneta de cada um, não há nenhum critério objetivo e isento que possa ser utilizado para classificar uma prática como superior à outra, uma vez que todas são fruto de convenções construídas ao longo da história, por pessoas comuns. Talvez em função não só disso, mas principalmente dos horrores cometidos durante as duas Grandes Guerras (1914 a 1918 e 1939 a 1945), na atualidade desenvolve-se certo culto à tolerância. As culturas, no entanto, não se desenvolvem somente na dimensão dos “povos”. Determinadas cadeias de suprimento também podem gerar versões baseadas na utilização de termos técnicos específicos, rituais de inclusão e exclusão, além de critérios para tomada de decisão. Bem como algumas empresas podem constituir algo de cultural em função de seu porte e/ou representatividade nos âmbitos econômico e social. E quando essas diferenças culturais entre empresas ficam evidentes? De acordo com o que tenho acompanhado durante os últimos trinta anos, as diferenças se evidenciam quando representantes de diferentes culturas empresariais se aproximam para negociar, quando a competição entre empresas fica acirrada, ou quando duas empresas se fundem. Para que o ritual de negociação seja celebrado por representantes de diferentes empresas, toda uma preparação é desenvolvida, visando não só a identificar os traços característicos da cultura da outra parte, como a alternativas para tornar os acordos e as trocas viáveis. Foi isso que aconteceu com frequência significativa quando a China passou a ser considerada o “paraíso das oportunidades”. Os pioneiros cometeram muitas gafes e realizaram perdas. Mas essas serviram para orientar os passos dos demais na busca de apoio de chineses para entender como agiam aqueles empresários e burocratas empenhados em viabilizar a economia de um país com população e área continentais, e com um histórico de décadas de propaganda comunista.
  • 2. Com isso, cursos de boas maneiras orientais e introdução à culinária chinesa foram frequentados por empresários e executivos brasileiros. Houve até quem se propusesse a conhecer algumas expressões básicas em mandarim, mas esses foram raros. Todos buscando errar o menos possível na hora de afinar a sintonia entre empresas. Quando se trava a competição, todos já sabem: o importante é demonstrar que tudo o que uma equipe entrega é muito melhor do que o prometido pelo concorrente! Assim, orientados para o conflito, cada competidor considera sua cultura superior a todas as outras. Isso pode ser excitante ou até divertido, mas não colabora com a integração entre as partes. O máximo que se pode alcançar por meio dessa via é a indiferença ou a hipocrisia. Quando se trata de fusões de empresas, é recomendável considerar dois aspectos: as diretrizes da fusão e representatividade de cada organização envolvida diante do mercado. Esses casos podem ajudar a entender mais facilmente essa dinâmica. Um extremo Há alguns anos, uma fábrica de biscoitos da Região Metropolitana de Campinas conquistou destaque para uma linha de produtos populares. Chamou atenção e recebeu um convite para se fundir a uma organização internacional do ramo de alimentos. Depois de pouco tempo, os planos de expansão se tornaram ousados demais para o fundador e ex-proprietário e esse cedeu sua parte. A partir daí, as diretrizes ficaram claras para todos os empregados dessa unidade de negócio: era mandatório se adaptar à cultura da organização internacional, caracterizada a partir de um conjunto de diretrizes, normas e procedimentos. Alguém poderia argumentar: oportunidades de ganho podem ter sido perdidas! Mas seu argumento não chegaria aos ouvidos dos decisores, certos de que o domínio da tecnologia de ponta estava garantido e de que os profissionais da unidade incorporada poderiam ser facilmente substituídos. (Processo equivalente está ocorrendo na atualidade, nessa Região, no setor de armações para óculos) Outro extremo Durante décadas, alguns conglomerados internacionais vêm se constituindo em negócios de bilhões de dólares. Sua estratégia prevê, entre outros recursos, a fusão. Dessa forma, quando os executivos de uma empresa internacional da “cadeia do frio” (com ramificações no Brasil) foram procurados para debater uma incorporação, sabiam que o termo “sinergia” não era usado por acaso. A ideia era mesmo unir esforços para ganhar em escala mundial, visando a enfrentar concorrentes. Não só a concorrência atual como as chances de concorrência futura foram consideradas, do ponto de vista de “formação de hábitos de consumo” e de “estabelecimento de padrões internacionais”, aspectos que servem de base para os custos, produtividade, qualidade e lucratividade industriais. Nesse caso, as forças se fundem e as diferenças culturais são consideradas e até cultivadas quando se entende que essas não têm valor em si, mas têm valor para o negócio, uma vez que propiciam o aperfeiçoamento e adequação dos processos de produção, avaliação e comercialização às situações de cada mercado onde atuam. Nenhuma parte quer dominar a outra em função da complexidade, da diversidade de competências, do volume de capital demandado e dos riscos envolvidos. Mesmo assim, a cultura organizacional se atualiza em decorrência das pressões exercidas pelas diferentes partes, com maior ou menor influência de uns ou de outros, propiciando que determinadas oportunidades sejam perseguidas e outras, desprezadas. Em qualquer caso, é bom lembrar: cultura não se compra, se vende ou se impõe. Cultura se cultiva e se cultua. E mais: são as pessoas, no seu dia a dia, que constituem uma cultura capaz de contagiar os hábitos de consumo dos demais. Assim sendo, é aconselhável não desprezar os aspectos culturais quando o objetivo é unir forças para melhorar a competitividade empresarial.
  • 3. Sebastião de Almeida Jr. é consultor na área de desenvolvimento gerencial e organizacional desde 1987, professor convidado do Instituto de Economia da UNICAMP, autor de cinco livros sobre “Negociação” pela Qualitymark Editora. e-mail: consultor@almeidaecappeloza.com.br telefone (19) 3241.3535