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1
2
O
Livro de
Mateus
3
índice.
idade: mês-dia
à morte,.................................................................................................12
Inari 36:09-29......................................................................................... 19
Mateus 35:11-12 .................................................................................... 29
Mateus 36:09-30 .................................................................................... 35
Mateus 24:04-27 .................................................................................... 39
Mateus 06:07-21 por Tiago.....................................................................45
Inari 36:10-01......................................................................................... 51
Mateus 36:10-04 .................................................................................... 59
Mateus 05:10-04 .................................................................................... 60
Mateus 36:10-07 .................................................................................... 67
Mateus 36:10-10 .................................................................................... 80
Mateus 27:05-01 .................................................................................... 89
Mateus 36:10-12 .................................................................................... 95
Mateus 36:10-13 .................................................................................. 105
Mateus 32:06-20 .................................................................................. 109
Mateus 36:10-15 .................................................................................. 116
Mateus 12:07-12 .................................................................................. 128
Inari 36:10-15....................................................................................... 132
Inari 36:10-29....................................................................................... 142
4
Mateus 36:10-29 .................................................................................. 149
Mateus 36:03-30 .................................................................................. 157
Mateus 36:04-18 .................................................................................. 165
Inari 36:11-01....................................................................................... 169
Mateus 11:11-11 .................................................................................. 188
Mateus 36:11-05 .................................................................................. 192
Mateus 36:11-12 .................................................................................. 198
Mateus 36:11-15 .................................................................................. 204
Inari 36:11-17....................................................................................... 215
Mateus 36:11-17 .................................................................................. 223
Mateus 36:11-08 .................................................................................. 235
Mateus 36:11-22 .................................................................................. 241
Inari 36:11-25....................................................................................... 249
Inari 36:11-26....................................................................................... 261
Juroo 111:05-30.................................................................................... 273
Bibliografia........................................................................................... 283
5
Um livro dedicado ao Deus
que está em cada um de nós,
dedicado, então, a todos. Por
mim, por nós, para todos.
6
Quando eu pensei em escrever,
não imaginei que algumas folhas soltas do que
pretendia ser um diário poderiam se tornar um livro. Sempre
quis registrar as minhas experiências e com elas, segundo as
exigências da minha biografia – porque eu não consegui
encontrar ninguém mais interessante, ou seja, cheio de
problemas –, rememorar as principais divagações e torná-las
vivas mais uma vez.
Hoje, depois de quase dois anos, descobri
profundamente que sei que nada sei, cada explicação é seguida
de uma torrente incontinente de novas dúvidas, como se
houvesse cortado uma das cabeças da hydra. Portanto eu
assumi uma postura submissa diante do inevitável, porém o
inevitável começa a se parecer com o desejado. O medo, as
angústias, a raiva não passam de perturbações que criamos
7
porque não compreendemos. E não compreendemos porque
não temos todas as respostas. Por isso julgamos em vez de
discernir.
Estou tentando lutar contra ilusões criadas e mantidas
por minha mente. Causa e efeito que dependem
exclusivamente de uma realidade que não compreendo e que
defino segundo as minhas crenças.
Depois de reler o que escrevi, várias vezes seguidas,
comecei a entender o quanto nos iludimos com certas verdades
flexíveis, nos condicionamos a reagir às regras do jogo. Desta
observação, dos escombros do meu ego, tentando me
autoconhecer, deparei-me comigo mesmo. E fui ludibriado e
levado a acreditar que eu não era assim para que, ao admitir a
minha ignorância, tivesse que evoluir. Destas leituras e suas
impressões, hoje eu compreendo o quanto negava as minhas
inépcias. Só uma doença incurável poderia mudar isto.
Mateus Göettees, outubro de 2013.
8
Todos temos um compromisso com a verdade.
Esta verdade dependerá das suas escolhas e estará
intimamente ligada com às suas capacidades. Na verdade não
dependerá das suas capacidades pois elas jamais nos
impediriam de saber a verdade. O que nos impede de ver a
verdade, seja porque acreditamos que as nossas capacidades
são incompetentes ou porque a verdade está oculta, não passa
de uma ilusão.
A verdade é intrínseca. Somos nós que repetimos e
acreditamos que ela deve ser encontrada. Uma busca eterna
pelas respostas que sempre terão perguntas inesgotáveis. No
fim, a verdade jamais será encontrada enquanto acreditarmos
que o Todo é finito.
É uma boa premissa para que possamos evoluir,
aprimorar nossas capacidades e chegar sempre mais perto da
verdade. No entanto negligenciamos quem somos ao aceitar
que temos falhas a serem corrigidas. Proponho que, antes de
9
sair atrás da verdade, encontre quem você é. Submeta-se a si e
encontre as suas verdades.
Ao se recolher em si, um processo de
autoconhecimento dispara o gatilho da transformação. Esta
transformação ampliará a sua autoestima e esta auxiliará
progressivamente a transformação. Muitas ferramentas
poderão ser usadas como meio, são meios hábeis, para que o
conhecimento de si seja inimaginável. A meditação poderá ser
uma profunda concentração se quiser, mas também poderá ser
um exercício de discernimento.
A intuição e a inspiração serão bússolas tão poderosas
que farão a lógica e as leis humanas caírem por terra.
Os relacionamentos serão conexões.
O espírito controlará o ego.
Basta observar.
Tiago.
10
“Quando o Sol se derramar em toda a sua essência. Desafiando o
poder da ciência, para combater o mal. E o mar com suas águas bravias, levar
consigo os pós dos nossos dias, vai ser um bom sinal. Os palácios vão desabar
sob a força de um temporal e os ventos vão sufocar o barulho infernal. Os
homens vão se rebelar dessa farsa descomunal. Vai voltar tudo ao seu lugar,
afinal. Vai resplandecer, uma chuva de prata, do céu vai descer. O esplendor
da mata vai renascer e o ar vai ser de novo natural. Vai florir e em cada grande
cidade, o mato vai cobrir. Das ruínas um novo povo vai surgir e vai cantar,
afinal. As pragas e as ervas daninhas, as armas e os homens do mal vão
desaparecer nas cinzas de um carnaval”. Clara Nunes - As forças da natureza.
11
1944
“A piedade é a virtude que mais vos
aproxima dos anjos; é a irmã da caridade,
que vos conduz até Deus...” A piedade,
capítulo XIII, Evangelho Segundo o
Espiritismo.
12
à morte,
à tolice e ao orgulho.
Amanhecia sob a luz onipresente que se irradiava
através das nuvens lilases. E a longa aurora ainda se dispersava
entre alguns dos meus pensamentos mais perturbadores.
O céu de um azul intenso procurava se mesclar, no
horizonte, ao oceano que se esparzia brutal lançando-se aos
céus. Em ondas espumosas e brancas ela se debatia contra os
derradeiros penedos da terra-mãe. Para mim, estas costas azuis
seriam as primeiras comprovações de terra nada firme, uma
morada fragmentada pela cruz gamada que desprezava
infatigável, a tudo. E o vento zunia produzido por mim
enquanto o sol já se equilibrava nos quadrantes superiores.
Nada me levava ao desejo de contemplar a vida
letárgica logo abaixo, a alguns pés. Para mim ela estava se
tornando distraída e sem sentido, até mesmo eu, alguém que
13
diziam expressa-la além das expectativas da imaginação. Quem
poderia matutar que os apaixonados também se
esmoreceriam?
Por instantes retornei ao meu pequeno mundo
mecânico.
Os giros constantes dos motores de meu aeroplano
davam às hélices um aspecto quase tangível e o ritmo
monótono de seus roncos pareciam me hipnotizar. Os
instrumentos pareciam estar em ordem, com seus ponteiros
sempre nas mesmas posições de que tudo andaria bem. Os
controles reagiam ao leve movimento e as asas guinavam e
sacolejavam ao arrasto. Desta vez eles não estariam
endurecidos pelo frio das altas altitudes e nem a respiração do
cordão umbilical, opressiva.
E ainda dedilhava os mostradores só por precaução
cerimonial.
Em minha cabeça já não estava certo se os ponteiros
indicavam alguma precisão. Só tentava lembrar-me do meu
parco quarto arrefecido, onde as labaredas de um aquecedor
14
dançavam, me embalando em sonhos infactíveis.
Havia escrito cartas, muitas delas acabaram maiores e,
irrefreáveis, espalhavam ideias. Mas havia escrito muitas cartas,
algumas – inevitavelmente – para minha mãe. Contudo poucas
teriam tanto peso em meu destino quanto às que acabei de
pousar no console de minha escrivaninha.
Só eu quem as acabaria descobrindo.
Todo o peso da minha frustração engolia-me em
divagações incontroláveis. Um frenesi ensurdecedor causado
pela minha arrogância indiscriminada. Um poder inexistente
concedido pela voz, um sussurro sem rosto, que me
transformou em uma marionete das inépcias humanas. Eu que
podia levar os homens a chorar diante da ferocidade em que os
seus irmãos se mostravam. Uma empatia acolhida de simples
parágrafos de linhas negras. A vida sem cor que podíamos
absorver, chorar e esquecer sem sermos arrastados para
dentro.
Infelizmente eu era o criador que acabara devorado
pela criatura e amassado como os papéis que considerava tão
15
importante, jogado pelos cantos. Com sorte poderia aquecer
algum coração, mas os homens ainda não estavam preparados.
E a sorte seria se acabasse mantendo algum fogo acesso de uma
noite fria desta contenda.
Eu também não estava pronto.
A minha prepotência estava em me considerar a voz
acima das outras, a que lutaria por todos. Neste instante a
máquina despencou dentro de uma corrente de ar tirando-me
de minhas maldições. Como ninguém me atendia? Onde
estavam aqueles que me bajularam e em tapinhas depositavam
todos os seus prestimosos e incondicionáveis apoios? Que tolo
eu fui.
Derrotado pela minha ilusão.
Mais uma vez fui despertado pelo mundo real, parecia
que outra corrente me atirava para o lado. Porém senti uma
vertigem tépida. De minhas pernas escorria a vida. Guinei e
constatei que estava sendo caçado. Um pavor pelo qual jamais
me preparei. Estava voando muito baixo e logo deveria ser
como um reflexo para o inimigo.
16
Reagi conforme o medo, pensei que poderia escapar
pousando em terra quase neutra de Vichy. Dando-me sem
reação. Esmorecido pelo meu ego inflado.
Fui vencido pelos meus medos. Uma dor profunda
alimentava minha frustração, minha tristeza. Não pensei mais.
Abaixei o manche rumo ao mar da tranquilidade e no momento
do impacto temi a morte e pousei adiando o trauma.
Atordoado afundava devagar, mergulhando na
escuridão insonhável. O pavor respondia pela minha tentativa
de me salvar. Mas as pernas dilaceradas e a cabine travada
adiaram o inevitável. Morria apavorado.
Um suicida incógnito.
O herói da nação um covarde diante de sua maior
prova. Para os homens que leriam seu obituário, o maior entre
os maiores.
Um suicida. E ninguém jamais saberia.
Só eu e a minha consciência.
Em algum lugar, um porto seguro, um amigo esperaria
17
além do limite de suas esperanças. Acenderia outro cigarro
enquanto a noite despertava em estrelas de magnitude.
Com olhar inconsolado verificava as cartas enquanto
as recolhia para um bolso interno. Nelas estavam as minhas
últimas palavras para o mundo. Amargas e duras, quase uma
despedida.
Pude perceber que ele olhava para o alto e pensava
em pequenos planetas com um sorriso de garoto. Descartava o
cigarro e retornava para o seu gabinete aquecido, de labaredas
gentis e envolventes...
18
19
1
“Aqueles que passam por nós, não vão sós,
não nos deixam sós. Deixam um pouco de si,
levam um pouco de nós”. Antoine de Saint-
Exupery.
Inari 36:09-29
O vento galgava os prados com intensa mansuetude,
friccionando os seus corpos etéreos no campo florido que
crescia ao cume da colina desgastada. Dividia-se em línguas que
usurpava o templo, soando os guizos de algumas centenas de
proteções divinas. As bandeirolas se retesavam e emitiam um
halo de pigmento alaranjado que se impregnava nos monstros
20
invisíveis enquanto as faces pétreas das estátuas de raposas
eram avivadas pelo bailado de seus cachecóis vermelhos.
As lanternas japonesas eram fustigadas a engasgar-se
pela ferocidade da ventania que percorria os antros divinos,
irrompendo pelas frestas antes de se digladiarem nas florestas
eternas de bambus.
Com os olhos fechados sentia o estrondo e o
movimento destes dragões sibilosos e sinuosos. Antigos amigos,
originários do ar que brincavam com a terra, a água, o fogo e a
madeira. Despregavam o tecido de minhas vestes como se eu
fosse um navio em águas tormentosas. Um acariciar táctil que
dizia a mim que eu existia, onde quer que eu esteja.
Com os pés descalços fincados no manto verde
derramado, agitava as pontas dos dedos como se jamais tivesse
experimentado algo parecido. O tempo já se abeirava do ocaso
com nuvens lilases e sol em ouro velho. Poucas ocasiões seriam
tão demoradamente prazerosas quanto esta. Olhei para os tênis
com suas línguas de meias soltas enquanto alguns aldeões se
preparavam para algum acontecimento. A colina estava sendo
avivada pela liberdade de muitas pipas, empinadas por crianças
21
enfeixadas por quimonos coloridos. A animação fortuita
intensificava a paisagem que tomava as cores de uma gravura.
Era a hora de me despedir e caminhar ao encontro dos
meus demônios. A noite seria preenchida com cantos e risos de
festejos ao redor de fogueiras e contemplações de luz e
sombras em danças embriagadas. De crianças correndo em
brincadeiras que gostaria de correr e delícias devotadas aos
deuses do templo da montanha. Apesar disso estaria longe
demais para só escutar, carreado pelo vento, o instante em que
o vozerio adormecesse. Teria ainda alguns instantes sagrados,
observando o manto perfurado da noite, refletido no espelho
de águas límpidas de um lago, às margens de pedras à borda da
floresta mágica.
Mas algo em mim dizia que não.
Sentei-me aos primeiros degraus de madeira
acinzentada e primorosamente esculpida em seus encaixes
milenares. Pus os tênis assistindo uma criança se aproximar de
costas em vigília de sua acanhada irmã atrás de borboletas
caladas dentro do campo de flores do campo. Uma
circunstância imprevista por mim, para quem não sabia se
22
relacionar com alguém daquelas paragens.
Cumprimentei-o simplesmente balançando a minha
melhor cabeça cerimoniosa de costumes adversos e recebi um
sorriso. Devolvi o presente e subi pela escadaria já me
adiantando alguns passos quando recebi uma reprimenda.
― Não deveria pôr os pés no lugar mais sagrado para
nós!
Intrigado porque alguém havia falado comigo, girei os
calcanhares guinchando o plástico da sola e, boquiaberto, não
sabia o que responder.
Vislumbrei mais uma vez o vale, com sua cidade
despertada, viviam centenas, talvez milhares, de sombras
minhas. O mundo germinou da minha compulsão de me
conhecer melhor. Antes eu só ia até o lago. Aos poucos cunhei o
templo que me abrigava das ilusões perturbadoras.
Com aquela indisfarçável sensação de que não correria
até os intermináveis degraus de uma escadaria rústica,
bordejada por torii vermelhos em ideogramas indecifráveis, que
23
me levaria compulsoriamente até o lago.
Mantinha o olhar perdido, entre duas escolhas.
Decidi-me. Avancei dois passos e saltei algumas braças
para cair flexionado ao lado do averiguador. Não podia perder a
oportunidade de me exibir. Ele não se abalou com esta
demonstração pueril e desdenhou-me de face impassível.
― Quem é você?! ― como se eu não o soubesse, pelo
menos é o que eu supunha.
― Agora eu sou chamado de Juroo.
Uma resposta que fundia a dúvida de palavras ditas
com impressões minhas sobre aquela ficção. Eu me
experimentava muito bem em sua presença e o ato de que não
sabia exatamente como agir diante de quem tem uns treze anos
não me causava o constante nervosismo. E eu bem sabia o
porquê.
Voltei-me para o vale onde, a pouco, o sol se abrigava
por entre os picos mais altos. Que era serpenteado por um
riacho que se perdia de vista à oeste. Talvez a impressão breve
24
de que todos deviam viver como pescadores, com os seus
rostos abrasados, teria reescrito a paisagem. Agora o sol
mergulhava num eterno oceano, que engolia-nos em garras de
sombras em meio ao nevoeiro que se adensava no horizonte e
uma brisa úmida e salobra chegava até os meus sentidos.
Maravilhado cai-me de lótus.
Com o silêncio pude fixar os olhos em mim, melhor.
Estava esplêndido com a minha revigorada adolescência; cabelo
negro e mais comprido e liso que deixava alguns fios atacar a
minha fronte serena. Vestia um moletom leve de cor ocre
emoldurada por trechos escuros como admirava em usar algum
dia. Ele quebrou o silêncio; quase me esquecia de que as
sombras podiam me ver.
― Acredita mesmo que nós somos tão insossos? ― e
mirou-me fixamente por algum tempo que eu não soube
precisar. ― E como devo te chamar?
― Eu não sei. Sinto-me ridículo falando com...
― Aqui, todos te chamamos de Inari. E não me chame
de sombra de sua imaginação ou como gostaria de dizer, mas
25
supõe que eu não compreenda, de projeção do subconsciente.
Eu sabia que ainda me chamava Mateus, mas estava
escandalizado e muito apreensivo, apesar de me manter firme
diante dele. Com quem eu estaria conversando? Não era uma
subversão do que eu imaginava? Isto tudo não era nada mais do
que um tratamento para o meu espírito enfermo.
― Então o quê está se passando? ― certo de que em
algum momento entre a ideia e a criação, nascia a vida.
Curioso que você não a saiba, pois eu esperava que me
dissesse. ― comentava Juroo-kun.
Olhava para a menina saltitando por entre as flores
fartas enquanto pensava. Em minhas memórias renasciam as
formas daquele mundo, onde guardaria a profundeza de meu
ser. A mim, ou pelo menos àquele a quem eu seria. Um lugar
por onde eu corporificaria os meus desejos intensos de minhas
convicções perseverantes. Convicções que me assolavam como
ondas e pouco ainda me davam para o que refletir de suas
insinuações.
Em pouco tempo o santuário surgia e, em sua
26
ilimitada dilatação, um lago. As vilas abandonadas, como reflexo
do meu desmoronamento do espírito, seriam invadidas por
centenas de trabalhadores que seguiam estas novas convicções.
Precisava me restaurar das ruínas de mim mesmo.
Mas, mesmo antes de chegar ao fim, o garoto me
apontava sua ideia de liberdade através da menininha que já
corria sem sopro em risos eternos. ― Sabe, todos nós somos
partes de quem você é.
Sabia, porém eu não estava pronto para a verdade. ―
E como soube?
― Não somos tão diferentes assim. Sou sua melhor
parte. Esta que atingiu algo ainda mais elevado.
Estas pessoas que se afunilavam rumo às trilhas que
levariam para algum acontecimento insonhável, passavam
indiferentes por nós. Desconhecendo os seus destinos,
confiados às ilusões.
De olhar arqueado, Juroo-kun sempre deixava
transparecer sua dúvida. ― Que ilusões?!
27
Fui acometido de surpresa, pois não conseguia definir
o que era realidade ou ilusão. Não para ele, muito menos para
mim. No entanto percebi que a resposta seria dúbia para
aqueles que quisessem entender onde estão.
E ele sorriu concordando.
Ele estava me testando? ― Juroo-kun, você é a melhor
parte de mim?!
― A melhor, aquela que transcende todas as barreiras.
E o que considera o melhor de ti.
― Aquela que está unida ao Todo, que está acima. ―
divaguei em voz alta.
― Quer dizer, com Deus?
Não podia negar. ― Sim.
― E você também é uma parcela deste Deus?
Sorri. ― Sim, sempre. ― E só recentemente me dei
conta disso.
Estava me deparando com a parte de mim que atingiu
28
seu Todo, eu. Pois eu havia atingido o meu, Deus. E esta
revelação me deixou eufórico. Ele chegou à mesma afirmação.
― Somos aqueles que se conectam com que está
acima e...
Rematei, pois eu era o intermediário. ― abaixo.
29
2
“A probidade [integridade] nunca está
perdida para sempre, a menos que a
abandonemos... se ela parece desaparecer é
porque nós estamos perdendo a retidão de
nossa própria mente”. A Doutrina de Buda.
Mateus 35:11-12
Estava inquieto diante das voltas dadas pelo destino
que me colocou naquela casa de saúde. Pois eu mesmo não
saberia como nomeá-la, os residentes falavam em uma casa de
apoio ao paciente com câncer e doenças degenerativas, com
grifo de interesse meu. O primeiro vislumbre era de que estava
sendo enfiado num destes leprosários do século antepassado.
30
Quartos brancos, camas metálicas e asseadas preenchidas de
almas entorpecidas, contidas em seu desespero de gritar a
plenos pulmões. Contudo, todos estávamos por vontade e
coação de nossos egos em estertores.
O ego, que em aflição, digladiava-se entre perpetuar o
seu domínio sobre a alma ou destruir-se, por mais absurdo que
isto soasse. Provocado por doenças incontroláveis e incuráveis
que exigiam dele novos paradigmas. Um paradoxo que poderia
provocar o seu extermínio. Porém ele era mais forte do que
supunham, e sua aflição era quase injustificada. Os hábitos
sempre voltavam.
Caminhei vacilante. Anoitecia e a pouca luz parecia dar
ao lugar ares de lampião em casas sertanejas. Tomava um traje
com fresta nas costas e aguardava ser chamado. Não estava
preocupado, até aquele instante.
Fui assaltado de tremendo pavor, não justificado.
Compreendia o que estava acontecendo, conhecia o processo,
havia visto em mais de uma oportunidade o que seria feito em
mim. Mas jamais o havia experimentado.
31
Em poucos minutos seria submetido a uma cirurgia
espiritual. Como a doença distinguia-se como incurável, onde
mais eu encontraria uma esperança! Começava a ver o quanto
estava me enganando. Acreditei em médicos que nos dizem
aquilo que outros doutores perpetuam. Os médicos não passam
de técnicos – altamente especializados – daquilo que os
pesquisadores descobrem, desenvolvem ou supõem. Tão
somente baseado naquilo que consideram existir.
É verdade, sou espírita.
Acredito em todas as inépcias que a humanidade
apregoa. Senão, como eu acreditaria em medicina ou
tecnologia. Aceitar a versão da história das coisas e renegar a
fantasia que, sutil e ambígua, nos diz quem somos e molda
nossa personalidade por demais complicada.
O meu corpo estava definhando. Braços e pernas não
respondem mais aos meus apelos. Não sentia o meu mundo.
Estava enfaixado por substância imponderável que restringia o
meu tato. Órgãos internos agiam como autômatos, produzindo
as suas versões precárias de funcionamento, indiferentes ao
corpo e seus intricados mecanismos de equilíbrio. Excessos e
32
deficiências de glândulas e neurônios. Estava literalmente me
consumindo em banho-maria.
O coração palpitava desconfortável quando surgiu
uma mão amiga que, num apertar singelo, soube me
tranquilizar. O seu sorriso largo dissipou o temor que se
transformou em algo indefinível. Sentia-me como um enviado
que estava na linha de frente de uma grande descoberta.
Carregado por uma cadeira de rodas, fui levado até o
ambiente cirúrgico que era coordenado por alguns médicos sem
instrumentos visíveis. Certifiquei-me antecipadamente que não
haveria facas, bisturis, agulhas ou ferramentas pontiagudas ou
afiadas que me dessem a certeza de que não deveria estar lá.
Não suportava a ideia – nem cogitava imaginar – de
ter as córneas raspadas com faca de cozinha, mas acreditava no
poder da fé. Ainda que a minha estivesse sendo aperfeiçoada.
Tinha inveja de quem se submetia ao procedimento confiando
tão somente na providência divina. Eu já havia passado deste
ponto; sem retorno.
Cogitava repensar, confiança em quem?!
33
Não presenciei o momento mais importante de minha
existência porque estava de costas, com o rosto enfiado em um
travesseiro. E o tempo excepcionalmente ambíguo, como se
estivéssemos em um tempo paralelo, um instante quase eterno
que durou menos que um minuto. As impressões foram
intensas e intrincadas e, de todas as palavras que eu me
recordava, boas ou más, usei a mais inesperada para a situação.
A nunca dita e pouco ouvida, quase perfeita quando a expressei
por pensamento brusco e inaudível – assim pensei – que, em
frações de segundo, estagnou o vira e mexe que faziam por
toda a espinha, mais o bulbo e o cérebro desmielinizados.
Puta que pariu! – perdão pela expressão.
Rápida e impensadamente desculpei-me em
pensamento e os médiuns prosseguiram, sem jamais saber se
me escutaram. Foram as mais estranhas sensações que ficaram
marcadas por nenhuma dor e algumas cicatrizes que pareciam
ser costuras que eu senti passar por debaixo da coluna cervical
como se eu fosse feito de tecido preso à máquina de costurar.
Quis me levantar, e entendi o porquê da cadeira de
rodas. Como estava internado seria posto em meu catre com
34
relutância. Todos já dormiam.
Comecei a sentir as minhas mãos, esfregando-as
contra a barba cerrada em crescente euforia. Depois seriam as
pernas e pés contra o gradeado. Friccionado-os em tudo. Não
dormi. Também, não precisava mais.
35
3
“A realidade é eterna, a realidade não
adoece, a realidade não envelhece, a
realidade não morre; ao fato de conhecer
esta Verdade se diz conhecer o caminho”.
Sutra Chuva de Néctares da Verdade,
Seicho-no-ie. Masaharu Taniguchi.
Mateus 36:09-30
Abri os olhos.
Estava bastante sobressaltado para manter uma
conversação com Juroo-kun. Diante de mim um quarto modesto
me trazia segurança. Escrito nas paredes, um resumo das
conjugações verbais japonesas em kanjis e hiraganas que
36
insistentemente aprenderia, apesar...
E em realce, uma reprodução da gravura A Grande
Onda de Hokusai sobre uma parede lilás que eu não pintei para
mim, contudo eu gostei assim mesmo.
E aquela voz que parecia ter mais conhecimento, do
que eu mesmo, havia se fundido com uma sombra ocasional de
minhas mentalizações – ou visualizações – terapêuticas. Um
mecanismo que estava usando para fortalecer a ideia de me
curar, ou de suplantar o hábito que criou a doença. A autocura
através da voz pujante e vibrante de Divaldo – Pereira Franco –
em gravação introspectiva e in fraudem legis.
O lago se misturou com o exercício de criar um lar
para a minha Luz Divina, o templo foi se construindo a cada
nova cirurgia espiritual e, as cidades foram sugestões
imaginárias minhas para interpretar o assalto dos famigerados
Linfócitos T contras as células neurogliais que incansavelmente
protegiam os axônios com uma coberta – não tão generosa – de
mielina.
37
E assim os axônios eram aquedutos rompidos que não
chegavam às vilas mais remotas – pés, mãos – simuladas em
gênero e escala imprecisos. E os arruaceiros linfócitos não têm
culpa se confundem a mielina com algo indesejado para o
corpo, já que não deveriam estar no cérebro ou sistema
nervoso central.
Como um pseudoarquiteto comecei o saneamento das
cidades dando uma vontade incoercível às projeções do meu
subconsciente para que impedissem a destruição, lutando e
reconstruindo os canais. Se bem que elas – as projeções
imaginárias – nem façam ideia do porquê da súbita
manifestação de uma perseverança sem origem.
Estes eventos não foram minuciosamente aguardados
por mim e tampouco foram efeitos não-previstos de uma busca
intensa pelo autoconhecimento. Eu sou um doente de nenhum
recurso médico em vista.
Se eu sequer pudesse imaginar o que me aconteceria
em poucos meses, teria que rolar de rir. Jamais estive em busca
38
da verdade. – me conformava com teorias de conspiração. E
nem esperava por algo maior. – até a cura me era inalcançável.
39
4
“Não poucas vezes, por imaturidade, toma
decisões compulsivas e derrapa em estado
de perturbação; demarcando fronteiras e
evitando atravessá-las, assim perdendo
contato com as possibilidades existentes...
que poderiam definir os rumos”. Amor,
imbatível amor. Divaldo Franco.
Mateus 24:04-27
Um belo dia. Azul como jamais havia visto um.
Talvez fosse a ansiedade que me escoltava em minha
inspeção. Observei os encaixes das asas com os flaps e ailerons
com minucioso exagero, demandando um tempo muito acima
da média. Segui pela estrutura lonada da carlinga até os
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profundores e bequilha.
O aeroplano era de uma aparência sofrível e devia ser
o desgosto de todo aeronauta. Mas para mim era a liberdade
encarnada mais extraordinária de todo o mundo. Uma sensação
que só experimentei por igual quando era criança, quando
embolsava uma tolice qualquer que arquitetava como o maior
desejo de todos os tempos. – até aquele momento.
Estava tão radiante que aquela observação demorada
servia para amenizar a minha impaciência. Sentia-me estranho.
Como se a saudade estivesse com os minutos contados.
Quando me inscrevi para o curso, buscava atropelar o
meu medo de dirigir – carros. Se eu pudesse executar um voo, o
quê mais me impediria. O que não mata, cura. O céu seria o
limite. E não era só isso.
O avião, em si, não parecia ser uma simples
coincidência. Sentia como se o destino estivesse me socorrendo.
Após averiguar o combustível, o instrutor sentou-se
atrás, sem visão dos instrumentos que seriam narrados por mim
por meio de aparelhagem de comunicação. Estava
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experimentando os freios enquanto taxiava para uma das
cabeceiras. Executava curvas que me atordoavam e num giro
completo encabecei a pista livre.
Tagarelei para um controle de torre faltante e acelerei.
Os instrumentos, vários, tomavam a minha atenção quando
puxei delicadamente o manche para que o avião se alinhasse
imprimindo maior velocidade.
Quando percebi estava voando e vigiando
intermináveis instrumentos e ouvindo conselhos – exortações
cuspidas – para estabelecer voo de cruzeiro. A bússola girava
tão devagar que nem percebia estar me deslocando. O barulho
do motor era reconfortante.
De todas as reações possíveis que eu esperava sentir,
eu fui tomado de febril e incompreensível saudade. Sentia-me
muito além de minhas recordações. Uma sensação de percorrer
raides subsaarianos, mergulhar através dos contrafortes de
cordilheiras austrais e deliciar-me com lugares jamais
explorados.
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Fiz manobras de aprendiz e retornei para o aeródromo
para um pouso por entre duas colinas. Parecia o buraco de uma
agulha.
A aproximação corria dentro dos parâmetros do
instrutor e eu não estava nem um pouco apreensivo. Estava
dentro do meu jogo. Quando estava para tocar no solo senti-me
tão seguro que, mesmo que o instrutor usasse o manche
auxiliar – e eu não o saberia –, deslizei suavemente. Eu havia
feito um pouso perfeito.
Não foi somente uma conquista mecânica, havia uma
sensação, uma emoção que jamais voltaria a provar. Eu sabia
que poderia voar sempre que eu quisesse. Transcendia o
tempo.
Contudo, ainda não conseguia dirigir.
E com o tempo encontrei um grande inimigo aos
pilotos ávidos, não conseguia entender as comunicações via
rádio. Nem o tempo melhoraria os chiados e ruídos. Mas o
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problema era outro.
A providência se encarregou de me ajudar e o
aeroporto foi fechado para reformas eternas. Aproveitei para
desistir do impossível. Conhecia os meus limites e, quando eles
não se dilatavam me dando mais sobrevida, perseverar
representaria uma tolice.
Os céus já não eram livres. Tudo que havia para ser
descoberto já estava desvelado. Regras e mais leis que me
impediam de sonhar. Não precisava me apegar às recordações
que também doíam.
Amuado, somei esta frustração às que se seguiam.
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45
5
“O mundo é como uma casa em chamas que
está sendo sempre destruída e reconstruída.
Os homens embaçados pelas trevas da
ignorância, desperdiçam as suas mentes na
ira, descontentamento, ciúmes,
preconceitos e paixões mundanas. Eles são
como crianças precisando de uma mãe...”. A
Doutrina de Buda.
Mateus 06:07-21
Narrado por Tiago.
Ele choramingava copiosamente.
E abraçado por uma noite festiva, cheia de doces e
crianças incansáveis, ele se afastou sem levantar a menor
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suspeita. A dor quase o enlouqueceu.
Estava sozinho, – supunha – sentado sobre uma
mureta oculta na escuridão afastada de um bosque de
eucaliptos murmurantes. A alameda de seixos estava vazia e o
brilho opaco de alguns postes mortiços dava contornos mortos
às sombras.
― Não se angustie, ficarei por perto. ― Estava
ajoelhado com o braço sobre o seu ombro, consolando-o. E que
não percebia a minha presença.
Ao longe, a celebração de grandes letras acartonadas
chegava ao ápice com o exagero de palmas e assopros. Mateus
estava transtornado e em suas presunções de uma mente de
criança tentava assimilar o que estava acontecendo.
Levantei-me no aguardo de alguém que se
apresentaria como um anjo. Destes anjos que nos acompanham
por toda uma vida e além.
― Como foi o despertar dele? ― Não precisava
discorrer, Mateus deixava o conflito transparecer em seu rosto.
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Era o fim de sua liberdade pueril.
Daquele dia em diante ele seria perseguido pelos
medos de outrora. Um esboço de quem era. Premido pelos
traumas, assim como pelas virtudes.
― Ele suportará esta decisão?
― Sim. Se os obstáculos forem bem implantados ele
será encaminhado... ― O anjo calou-se.
Aos seis anos, o garoto enfrentava o despertar de sua
consciência que, nesta idade, poderia ser bastante adaptável.
Porém, em alguns casos, se houver necessidade, ríspida e
atordoante.
De um dia ao outro se tornou tímido e desconfiado.
Receoso das intenções dos outros, incapaz e amedrontado
diante dos problemas diários. A graça que toda criança parece
possuir, se desfez em artifícios que moldariam o seu novo ego.
Havia um desígnio por trás de tudo.
Estes escopos morais cerceadores o abraçariam,
restringindo um suposto livre-arbítrio com a finalidade de
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atingir o seu alvo. O livre-arbítrio do espírito, que está acima das
vontades do corpo e da mente. Porque Deus é perfeito.
Tão esquematizado e aguardado que nenhum
obstáculos chega a gerar frustração. Ou que ela seja dosada e
dominada para os fins do espírito.
― A sua singular vantagem é que está ciente de suas
falhas. Assim como de suas conquistas. E as está aplicando a seu
favor. ― o anjo se dirigia a mim. ― Mateus só não deseja
reproduzir os mesmos erros.
― Tenho receios. ― disse.
― Por isso que ele vai dominar-se, através de inserções
que reprisarão os fatos mais obscuros do seu passado de forma
a fortalecer o seu espírito obliterado neste estado ilusório. ―
Precisamente quando estava encarnado.
Ponderei que em minha ignorância havia concordado
com Mateus antes de seu renascimento. Havia tanto o que
fazer, entretanto, desta vez, ele estaria a par das suas
obrigações espirituais. Menos daquelas que nem um anjo
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poderia calcular.
Observei Mateus por mais alguns instantes, seria
nosso primeiro afastamento em seis anos. Ele parecia não
entender os sentimentos que o assolavam. E com sua pouca
ideia do que se passava, medo da tolice falaz e do orgulho
delirante, pensou que sentia raiva ou angústia ou
incompetência. Ele olhou para a balbúrdia e projetou-as. Ele
não conseguia definir este algo que o engolia vorazmente. E
recolheu-se em sua ignorância infantil pensando que estava
com ciúmes.
Lá no fundo ele sabia que não era isso.
Só não sabia explicar o quê.
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“Se conhecerdes que todos os seres vivos
são entre si irmãos, que todas as vidas são
entre si irmãs, que, sendo indivisíveis, as
vidas todas são um só corpo, que Deus é pai
de todas as vidas, nascerá
espontaneamente em vós o coração que
ama e exulta”. Sutra Chuva de Néctares da
Verdade. Seicho-no-ie. Masaharu Taniguchi.
Inari 36:10-01
Não queria uma meditação.
Bastaria fechar os meus olhos e me encontraria no
templo. Olhei por toda a volta e admirei o promontório que se
entrecruzava numa das passagens do bosque. Se eu seguisse
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pela trilha acabaria regressando ao lago. O meu destino era
outro, ascender à escadaria dos torii e descortinar os jardins de
areia com suas linhas paralelas e precisas enquanto um monge
meditava às sombras de grandes cerejeiras em flores.
Para o meu espanto, o templo não estava ali.
Uma grande soma de toras de madeira, pedras e
artífices bailavam dando os esboços de um lar inexistente. E
para o meu espanto, o monge meditava distraído do ambiente
caótico. Só se manifestou por pressentir a minha chegada e,
com acenos insistentes, chamou-me para junto.
O velho tinha a mais comprida barba que eu jamais
vira. E sua cabeça enrugada estava pontilhada de manchas de
decrepitude adiantada. Assim como os olhos – que eram
naturalmente semicerrados – que quase não deixavam se ver
através das pálpebras serenas. Ele se ajeitou em sua túnica azul
ensanguentada chacoalhando suas contas de um marfim
amarelado pelo passar dos anos.
Mantinha estas impressões enclausuradas em mim
com medo do cajado a tiracolo.
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Ele sorriu e eu pude distinguir a singularidade daquele
reconhecimento anacrônico. Retornei os olhos para a criação do
templo e supus que presenciava o princípio. Quando na verdade
era o seu extremo oposto.
― Juroo-kun, é você? ― Não sabia se devia lhe dirigir
um título de respeito ou menção ou curvar-me diante. Isto
também não me agradou.
Ele acenou cerimonioso e eu caí aos seus pés.
― Mas o quê aconteceu ao templo?
Suspirou e vacilante prosseguiu. ― Foi destruído e sua
construção segue conforme a sua vontade.
― Por quê? ― Ele balançou os ombros me achando
divertido. Eu estava encabulado e, àquela altura, não adiantava
me entender. Se eu queria respostas teria que as encontrar
dentro de mim. E como já estava lá...
― Parece que se passou toda uma vida.
― Obrigado pela oportunidade de toda uma vida. ―
senti os meus olhos se encherem de lágrimas. ― Por se fazer
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visível todos os dias de minha vida.
Mal sabia ele que este era o segundo advento ao
nosso mundo. ― Por que você – ainda o consideraria um filho –
diz que estou presente a cada segundo de sua vida?
― É o ar, as árvores e as águas. Os animais dos três
elementos, os homens e o conhecimento. É o nosso deus. ―
Juroo-sama deve ter percebido o meu espanto e não parecia
decepcionado. ― Recorde-se, tudo é parte de quem você é.
Este mundo é uma imagem de mim?! O tudo e o nada
que constitui o meu ser, pensei rápido.
― Este vilarejo, assim como tudo que nós apreciamos
pelos nossos sentidos, é sua mente despedaçada em frações
inacessíveis às criaturas de seu mundo. As pessoas são
expressões únicas de seus traços basilares e suas interações
formam um todo que você chama de personalidade. ― Tossiu
sem que eu me manifestasse. ― Se você nos observar e
entender como somos, compreenderá a si.
Se eu compreendesse aquelas sombras, estaria me
conhecendo melhor, mas como? Passei um tempo observando
55
os vários personagens daquela terra e percebi que elas
apresentavam certas peculiaridades que eu não considerava
minhas. Eu já as tinha visto em outras pessoas da minha
realidade, contudo as pequenas criaturas atarefadas em
trabalhos cooperativos de erguer as imensas traves eram
frações, partes, parcelas de mim. Devia tomar consciência desta
realidade.
― Eles não se parecem em nada comigo.
― Eles são você. Existem fragmentos em nós que não
queremos admitir e isto faz toda a diferença. ― e ele sabia que
eu agora tinha a resposta, pois ele acabava de desvelar a sua. ―
Existe dentro de si o bondoso, o socorrista e o caridoso.
― Assim como o malvado, o rabugento e o egoísta. ―
tinha que o admitir. ― O carrasco, o ladrão e o assassino. O
adúltero, o infame e o covarde.
Juroo-sama arrematou com bastante ênfase ao último
vocábulo. ― E o sublime, o corajoso e o iluminado.
Nada havia me preparado para o que concluí com o
auxílio do meu monge, ou de mim mesmo, do meu melhor
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fragmento da minha personalidade.
― Creio que, como projeções que somos de sua
mente, não somos tão perfeitos como me sugere a sua reação,
mas para mim a perfeição é expressa pela oportunidade de
compreender que, mesmo sendo um sopro, eu consiga divisar
a sua realidade, a realidade de Deus e de tudo. A verdade não
está escrita em palavras. Os meios para se alcançá-la, sim.
Se eu podia apreciar as partes de mim, as suas
conexões e relacionamentos, e ainda me espantar com o fato
de elas criarem um mundo similar ao que julgava caótico. Em
que nós, a expressão do egoísmo e do orgulho, sequer tínhamos
consciência de que somos partes de Deus, assim como as
sombras, o que aconteceria se alguém rompesse esta barreira.
Eu percebi o que Juroo-sama queria me dizer. Tudo
ganhava um novo senso. Eu sabia, só não sabia. Um livreto, que
eu considerava um dos meus muitos oráculos de cabeceira,
contou-me e somente agora eu ouvi.
“A verdade para a qual deveis vós despertar
primeiramente é o fato de que a essência do eu é unicamente
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Deus. Sabeis vós que a infinidade de almas humanas são todas
reflexos do Espírito Divino Único. [...] Deus é a fonte luminosa
do homem e o homem é Luz emanada de Deus.” E eu que
justamente não entendia estes escritos religiosos carregados de
sutilezas, para descobrir que sempre foram claríssimos.
Faltavam-lhes, aos seus escritores, palavras para descrever
impressões indescritíveis.
Somos partes de Deus.
Estamos unidos a Ele, sem que nós precisemos de
subterfúgios ou orações extrínsecas. Ele está em nós. Bem
dentro de nós. Só nos basta experimentar.
E todos nós estaríamos unidos aos outros fragmentos
Dele. Eu estava conectado a todos. Éramos mais do que irmãos.
Por falta de vocabulário, irmão seria o que mais se aproximaria
de nossa ideia de comunhão ou relacionamento entre as partes.
Deus era como uma vela em chama e nós, o reflexo de
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infinitos espelhos, não seríamos desiguais, no entanto, ainda
assim, reflexos. E como luz emanada, onde terminaria a minha e
onde começaria as dos outros? Será que estávamos realmente
separados.
Ergui pensativo e andei a esmo.
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7
“O sentimento é a linguagem da alma. Se
quiser saber o que é verdade para você em
relação a alguma coisa, veja como se sente
em relação a ela. [...] O pensamento mais
elevado é sempre o mais alegre. A palavra
mais clara é sempre aquela que é
verdadeira. O sentimento mais nobre é
sempre aquele que chamam de amor”.
Conversando com Deus I, Neale D. Walsch.
Mateus 36:10-04
Eu acredito que as boas recordações são como
programas que corrigem e reescrevem a nossa programação
original que se constitui do emaranhado de funções sinápticas
de nossos cérebros, das conexões extrassensoriais entre corpo e
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alma, das implicações psicológicas do(s) ego(s) e dos problemas
que consideramos insolúveis – pelo menos para nós.
E uma dessas recordações se perde num passado tão
distante que é constituído de fragmentos nebulosos. Um
devaneio renovado por objetos que sobreviveram por um
tempo suficientemente propício para que resistissem em minha
memória de recordações mais firmes. E é possível que estas
lembranças tenham criado novos contornos, sobretudo a
sensação primordial e instintiva que sobrevive e se soma à
personalidade. Nada é por acaso.
E é esta memória que tenho de Cosme e Damião e
outros santos.
Mateus 05:10-04
Anoitecia bem rápido.
Para chegar lá eu tinha que atravessar um túnel
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enorme e escuro. Era molhado e manchado. Cheirava roupa
velha. Quando terminava, sempre correndo para que ficasse o
menos possível, via uma escada que não terminava nunca.
Tinha dificuldade de respirar porque os degraus eram
enormes. Molhados e manchados. Eu pegava na mão dos meus
pais para não me encostar à parede enorme, molhada e
manchada também.
Antes de entrar, a porta já estava aberta e muitas
pessoas se espremiam. Olhei em volta e lá estavam os vasos de
plantas assustadas e outras fedidas num canto feito de cacos de
azulejo vermelho. Não era enorme, nem tão molhado.
Havia música. Esquisita e interessante.
Mas eu não enxergava direito o quê estava
acontecendo dentro. As pessoas estavam de pé e eu só queria
ver um pouquinho. Apertei-me e empurrei pernas e bundas até
chegar lá.
E era maravilhoso.
Um homem tocava um atabaque. Tinha aquelas
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plantas assustadas e flores espalhadas. Duas estátuas grudadas
com meninos de capas vermelhas e coroas ficavam num
aparador cheios de pacotinhos que eu sabia que eram de doces.
Nem dei importância para os meus avôs. Deixei que
eles continuassem engatinhando de roupas brancas. Só quando
começaram a falar como criança é que eu percebi que a vovó
estava de chupeta.
Estava tudo tão maravilhoso que eu queria bater
palmas, mas estavam todos sérios e carrancudos. Na verdade
estava ansioso para que tudo terminasse logo e pudesse ganhar
o saquinho de doces.
Aborrecido, e como toda a pressa é castigada, ainda
tropecei num taco solto quando tentava receber o meu pacote.
O chão machucava e olhei para uma bunda enorme...
―
Talvez tenha sido uma das últimas vezes em que os vi
assim, depois eles passariam a ser iguais aos outros avôs. E as
recordações estranhas, que se tornaram tão prosaicas para
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mim, também tinham origem na segunda avó.
―
Vovó estava apressada. Trocava-se com pressa sem se
descuidar dos pós e batons. Eu tinha medo daquele quarto que
escondia um monstro dentro do armário. Ela o chamava de
peruca e ficava numa cabeça de isopor sem olhos, nariz ou boca.
E mesmo assim ela nos encarava.
Corri para o outro quarto para pegar a camiseta,
olhando demoradamente os santos e as velas postas sobre uma
cômoda com tampo de mármore. Aqueles badulaques não
deviam existir quando o quarto pertencia ao meu pai. Gostava
da cama de molas e do cheiro do ramo seco de arruda na
fronha.
Ela me ajudava a vestir a camisa que tinha gola
apertada e que quase me arrancou as orelhas. Partimos de
carro. Eu lia as placas com o nariz colado no porta-luvas
achando que ela não enxergava bem. Também era noite e eu
estava ansioso porque sabia aonde íamos.
Estava cheio de gente, sentados em bancos de
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madeira. Como sempre nos sentamos onde eu não conseguia
ver nada. O tempo era interminável.
Vez ou outra eu me levantava e sentava, pois deitava
no banco querendo dormir quando acontecia algo diferente.
Uma mão flutuava no ar segurando uma rosa sobre as nossas
cabeças. Cansei-me ansioso com o fim.
Por fim houve palmas e música e então, o momento
mais aguardado. Pipocas eram arremessadas sobre nós e caia
ao chão. E eu tentava catar todas e enfiar na boca, inclusive as
do chão.
―
Com o tempo percebi que estas coisas não eram nada
normais. Porém são exatamente estas – e muitas outras –
lembranças que permitem que eu entenda o planejamento
espiritual e o aceite com bastante passividade e amor.
Lamentavelmente, como efeito colateral, tenho pavor dos
rituais católicos, de gente com togas e túnicas e chapéus
esdrúxulos.
E até pouquíssimo tempo guardava as minhas roupas
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no mesmo guarda-roupa em que a peruca ficava me
afrontando. Não acho que a minha infância tenha sido
preenchida de fatos bizarros e incongruentes, é uma questão de
hábito. Quando crescemos, temos a tendência de julgar nossos
atos de criança, e fico feliz em não achar falhas. – se bem que
ainda não entendo a razão pelo qual derramei carrinhos de
plástico para brincar em um açude na praia de pedra.
E são estas memórias infantis que me suscitam a
confiança de que todos nós passamos quase toda uma vida
buscando esta sensação de liberdade, de ingenuidade e de uma
profunda felicidade pelas coisas mais simples.
Na simplicidade de perguntar e ter respostas claras.
Amizades com disposição tola. Sem maldade e cheio de
vitalidade. E Jesus ainda declamava para que lhe deixassem vir
às criancinhas.
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8
“Neste mundo há três errôneos pontos de
vista: Diz-se que toda a experiência humana
baseia-se no DESTINO; afirma-se que tudo é
criado por DEUS e controlado por sua
vontade e; que tudo acontece ao ACASO,
sem ter uma causa ou condição.” A
Doutrina de Buda.
Mateus 36:10-07
Um sopro talhante dilatava os ruídos de artefatos
sempre emudecidos, que são sempre suprimidos pelo turbilhão
de almas acéfalas. Apreciava o skyline com impassibilidade
mórbida, estava me escondendo dentro de mim.
― Hum! Lugar bastante interessante. ― ouvi-o por
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detrás e muito mais perto do que sonharia, arregalei os olhos,
surpreso. Girei a cabeça com cautelosa lentidão para
demonstrar a minha indignação com a intromissão, e assim
disfarçaria o medo de olhar quem era. O aspecto era
indisfarçavelmente óbvio, ou seria outra projeção de minha
mente fértil ou um anjo...
―... Da guarda. ― ele concluiu para o meu azar, e por
este mesmo azar, também lia pensamentos.
Agachou-se ao meu lado no largo dissimulado pelas
sombras geométricas projetadas pelas pernas da torre Eiffel. ―
Pensei que, pelo menos aqui, eu poderia ficar só.
― Muito interessante. Paris assim tão deserta, você
aumenta a percepção de isolamento e solidão. ― E era
primavera em Paris.
― Então, esse era o meu desejo até você aparecer. ―
nem o conhecia e já estava despachando. Quem era ele?
― Sou só um amigo. Esperei trinta anos para que
pudéssemos ter este bate-papo. E por que você escolheu este
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lugar para se esconder?
― Deite-se! ― fui ríspido e direto. Não estava com
ânimo para uma conversa franca. Precisava descansar a minha
cabeça que queimava – literalmente – com as inflexíveis e
infatigáveis impressões colhidas no Templo da Montanha e que
suscitavam ininterruptas novas perguntas nos breves instantes
que eu poderia chamar de tranquilos.
Observando a torre por ângulo jamais cogitado, de
pernas dobradas e mãos à nuca dei-lhe a solução. ― Nos
mapas, um X sempre marca o local do tesouro. ― e eu
acreditava que este seria só meu.
― Até mesmo deprimido, as suas ideias são
inusitadas. Mas eu também estou vendo um pouco da sua
arrogância e soberba. Precisava de um local para meditar que
fosse do tamanho de uma cidade? E ainda assim fez questão de
evacuá-la?
Estava tão desanimado que aquela advertência não
estava totalmente errada. Olhei mais uma vez para os edifícios
mortos e aceitei a minha altivez. ― E por que você está aqui?
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O rapaz, vestido como um anjo pós-moderno, com
jeans alvíssimo e os tênis mais gastos da eternidade, sorriu com
a deixa. ― Promessas devem ser cumpridas. E vou aproveitar
para confirmar algumas de suas suspeitas e esclarecer outras
questões já em ebulição.
Ainda estava deprimido.
― E como vou saber que não estou em outra
discussão acalorada com uma das minhas personalidades
autônomas, correndo atrás de meu rabo? ― comparação
horrível.
― Em duas ocasiões eu me mostrei de forma
incontestável. Após a cirurgia eu afirmei, conforme as suas
dúvidas sobre a abrangência de Deus, que toda a ação do mal
passa pelo crivo da bondade dEle.
― Levei um tempo para entendê-la. ― e era bem a
verdade.
― Após um tempo, eu te chamei de autocrata. ― ele
queria gargalhar. Aborreci-me por causa do sentido em que a
palavra foi articulada, em tom bastante espirituoso. E eu nem
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sabia o que ela significava.
No dicionário eu sou o governante cujo poder é
absoluto e independente; que exerce seu poder sem partilhá-lo
com outros, impondo-o de forma arbitrária e tiranicamente. E
de uso pejorativo. Resumindo, pior que um presunçoso
arrogante vivendo em seu mundo de fantasia.
― Foi só uma expressão de linguagem para reforçar
os seus desejos.
Decididamente ele tentava me confortar com
respostas vazias. O que ele poderia me dizer que eu já não
desconfiava? Assim eu acabei descobrindo o seu nome, um
deles. ― Tiago, mesmo entendendo em parte o processo,
aceitando as novas diretivas, eu não consigo repetir o evento. ―
Me referindo ao Evento Pós-Cirúrgico que praticamente apagou
os meus, já consolidados, modelos do meu ego sobre as
interações que governavam a minha vida, uma nova matriz que
ia contra as que eu tentava domar.
Ele pôs a mão ao queixo. ― Aquelas respostas,
sugeridas pelos textos que você elegeu, não foram
72
coincidências. Nada é por acaso. E o caminho não poderia ser
direto, você ainda precisava amadurecer alguns conceitos...
― Foi o que pensei quando comecei a receber
respostas absurdamente claras às dúvidas. ― e como elas
provinham de várias fontes estranhas. ― E sempre serviam de
ponte para questões mais complexas.
―... Completas. ― Tiago pediu que continuasse.
― E o quê tinha acontecido? ― Por onde começar?
― Se a vida fosse uma autoestrada de cinco pistas, –
como todo bom mestre faria, uma parábola, uma fábula
mecânica a La Fontaine – quais seriam as suas escolhas? Carros
nas pistas da direita teriam vários desvios e paradas e sua
viagem pela vida, compartimentada. Carros à esquerda teriam
viagem mais veloz, com o risco de acessar um retorno. A viagem
mais rápida, tranquila e eficiente seria o...
― Caminho do meio! ― Nem Buda teria imaginado
que as suas lições se transformassem em tábuas asfálticas. ― E
o que você quer me dizer com...?!
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― A vida é como esta estrada.
Supus. ― Pré-definida?! Destino.
― “Se assim fosse, todos os planos e esforços para a
melhora ou progresso seriam em vão e à humanidade não
restariam esperanças. Tudo acontece ou se manifesta tendo por
fonte uma série de causas e condições”. A vida não é o carro e
nem o roteiro. Mesmo que siga pelo caminho do meio, o carro
precisará de combustível – e até substituições. Seguir o caminho
do meio exige muita disciplina para que os reabastecimentos
sejam os menos prejudiciais para a viagem. E também implica
que você conheça a estrada e seus desvios, retornos e paradas.
― Com qual objetivo? ― As árvores da esplanada
farfalharam ensurdecedoras.
― Evitar acidentes é um deles. ― Tiago estava
esquentando os motores. ― O caminho do meio não é como
uma ideia do trajeto, descrita pelos que se consideram sábios.
Nem Buda se atreveu a tanto, ele acreditava que somente
conseguiria a Libertação após a morte, o Nirvana.
74
― E quem sabe o caminho, pode me dizer?
― Aqueles que têm consciência de todas as suas
qualidades e defeitos. Que conhecem cada pedaço da estrada e
conseguem criar o caminho do meio, isto é, o melhor traçado
considerando as ferramentas à sua disposição.
Pedi tempo com as mãos em frenesi. ― Então não é a
pista central? E de que ferramentas você está falando?
― Hum. Pensam que alcançar o melhor traçado
depende de evitar todos os problemas e isto é impossível. Mas
minimizar já é outra história. Centrar-se em evitar os defeitos e
deficiências em prol das virtudes e qualidades, os tornam
incompletos. O que lhe aconteceria se o sofrimento, o ódio, a
cobiça e demais tolices jamais fossem experimentadas? Como
saber se é salgado se nunca experimentou o doce? ― Precisava
ser mais específico. ― O desejo do sábio é conhecer e
experimentar tudo para que domine os excessos.
― E as ferramentas? ― Ainda estava pensando no
controle dos excessos.
― Existem várias, lembre-se nada é por acaso. Nem o
75
tipo de asfalto, o pedágio, as placas. Estas últimas são as mais
claras indicações de caminho. Quero dizer, nós as conhecemos
por sonhos – e em casos extremos de presságio, premonição,
cognição, vidência e etc. – e como eles não nos parecem tão
óbvios como as placas de trânsito, costumamos ignorá-los. As
sinalizações indicam as condições da estrada adiante. Preveem
o futuro.
― Entretanto existem outras ferramentas...
Tiago percebeu aonde eu queria chegar. ― Quando
desejamos seguir o melhor traçado, muito planejamento reduz
os riscos e prevê possíveis problemas de viagem. Este
planejamento pode ser descrito pelo controle dos excessos, não
é preciso correr para chegar a tempo no destino. Nesta viagem é
certo que todos chegaremos ao final. Eu gosto de exemplificar
que o planejamento é como um estudo do caminho que chega a
ponto de antecipar as sinalizações. São sentimentos mais fortes
do que um sonho poderia sugerir. É a matriz da mente
inconsciente. O planejamento, quando bem executado, poderia
fazer um cego dirigir.
― E como eu percebo isto? ― Sabia a resposta, porém
76
precisava saber como ela se encaixaria naquela fábula.
― Se já decorou o traçado e não quer sofrer
interferências que lhe prejudique o raciocínio, que não lhe tire a
concentração, – porque homem não pergunta mesmo – você
deve resolver os problemas assim que eles apareçam.
E como fica o destino? Pensei alto.
― Não há destino, o livre-arbítrio pode indicar os
caminhos, mas o destino sempre será um. Portanto ele é
irrelevante. Quanto mais excessos são subjugados pela sua
vontade, maior será o seu esclarecimento.
― Hã.― acho que não entendi.― Existe ou não existe
destino?
― Sim e não. Bem sabe que a ideia comum é que nos
unamos a Deus, portanto este destino é imutável. Contudo
temos objetivos, ou etapas, que são como um planejamento e se
parecem muito com um destino. ― Tiago parou por uns
instantes, e penso que ele percebeu que eu estava tentando dar
outra designação à palavra destino. ― O destino que você
compreende e aceita seria mais bem compreendido se fosse
77
nomeado de desígnios. E eles variam conforme as mudanças de
trajeto... É impossível manter um plano original, por isso é
impossível produzir um destino.
― Por quê?
― Causas e condições que dependem de muitas e
muitas variáveis. Não está sozinho na estrada, os outros carros
podem e interferem nos seus desígnios, obrigando-o a tomar
outros caminhos.
― Como? ― como uma criança.
― Tudo afeta os seus desígnios. Seu planejamento
depende de suas respostas aos eventos não previstos – que é
uma ilusão – e quanto mais experiências, melhor será o seu
retorno ao plano original. Você está desconsiderando o mais
importante.
― O quê?
― A estrada, o planejamento, o carro, as placas, a sua
interação com os outros usuários desta estrada, – e até os
atalhos que eu ainda não mencionei – não são importantes
78
quando percebemos que eles são mecanismos que geram as
experiências.
― Quer dizer, conhecimento? ― generalizando como
o certo.
― Não, experiências. O conhecimento é intrínseco a
todos os espíritos – ou almas.
Oportunamente começaram a surgir pessoas na
cidade das sombras. Nós precisamos nos levantar para não
sermos pisoteados. A minha imaginação estava se esfacelando
e eu já não conseguia impedir as suas tentativas de me afastar
daquele diálogo.
Tiago me olhou com compreensão. ― Teremos outras
oportunidades. ― Sabendo que eu não queria permanecer no
assunto por causa da minha intervenção subconscienciosa com
a vinda de milhares de parisienses.
Cheiros invadiam o ar com sabores de vendedores
ambulantes e já não era possível ouvir os pássaros encobertos
pelos ruídos dos carros nervosos.
79
― E ainda tem mais, não é possível que em uma só
vida você consiga percorrer toda a estrada.
Porém eu estava curioso. ― E os atalhos?!
80
9
“A realidade é eterna, a realidade não
adoece, a realidade não envelhece, a
realidade não morre; ao fato de conhecer
esta Verdade se diz conhecer o caminho”.
Sutra chuva de Néctares da Verdade ,
Seicho-no-ie. Masaharu Taniguchi.
Mateus 36:10-10
Joguei-me na cama com olhar inexpressivo nas
imperfeições do quarto. A brisa de um inverno alongado de
primaveras sufocantes dava a impressão que as meias-estações
não existiam mais.
Creio que descobri um bom local onde eu poderia
estar completamente só – sobretudo com a porta às sete
81
chaves.
Por vezes inda ouvia alguém tentando me levar à
alienação. E como as conversas difíceis sempre me tiravam do
ar, estagnei a mente em futilidades. As conversas, e ainda mais
aquelas que me fazem pensar, dando nova formulação aos
meus mais básicos, perfeitos e indiscutíveis conhecimentos,
surpreendiam-me. Surpreendiam-me porque tudo muda sem
que nada mude.
É o mesmo que um copo meio vazio ser um copo
meio cheio. Um ponto preto ser menos – ou mais – formidável
que a folha de papel que o criou. Deus ser o Tudo e
especialmente o Nada.
É dificílimo não reagir aos acontecimentos. Quem eu
estou enganando além de mim mesmo.
E é quando eu penso que estou atingindo novas
metas, e anjos ou projeções começam a me dar sermões na
montanha, que desisto destas divagações. Por onde eu me
desvencilho deste drama psicológico.
― Não tem mais volta.― uma voz na cabeça teimava
82
em continuar o diálogo.
Por que eu não podia ficar só? Esta era a minha
realidade e se Tiago for outra sombra, que se cale no meu
subconsciente superativo.
― Eu nunca desisto. Não importa se você não
consegue superar as intervenções do seu ego. A sua
personalidade deve reagir, é a sua natureza.
― E como eu fico? Saltando de um estado emocional
para outro? Exercendo a compaixão incondicional para, em
seguida, reclamar, espernear e esbravejar? ― e já estava
conversando com ele.
― Ninguém está pedindo que você aja diferente.
Quem está se enganando é você. ― cheiro de baixa autoestima.
― Só tem que controlar os excessos e pensar e experimentar.
Pois não existe um só dia de sua existência que não tenha sido
admirável, ou ainda acredita que somos intenções da
casualidade?! Eu afirmo que estou aqui.
Suspirei aliviado, há ocasiões em que queremos estar
sozinhos. Outras em que seria bom ter um ombro amigo. E eu
83
confiava nele. ― Assim mesmo eu suponho que você não passa
de uma ilusão e estas conversas sem sentido. Acho que estou
correndo em círculos, já te disse.
― Nem vou perder tempo discutindo! ― Tiago estava
exasperado.
― E anjos têm raiva?
― Muita. Somos estúpidos e idiotas quando temos que
guiar pessoas que não chegam a se decidir. Em outras situações
somos obrigados a admitir que sempre seremos assim. ―
respirou fundo, pelo que pude supor. ― Qual é a sua versão de
mim?
― Que anjos têm raiva. E não gostam de quem não
persiste.
― Mateus, você realmente está com medo?
― Sim.
O silêncio perdurou por mais alguns minutos. Tinha
que admitir, mesmo que ele fosse uma projeção, – uma fantasia
84
– possuía uma confiança que eu não tinha.
Nuvens negras me assolavam. Uma tempestade de
granizo começou a despencar.
― A satisfação pessoal deve começar pela superação,
mediante rigorosa autoanálise das realidades reais com as
aparentes. Não é possível extinguir o ego se quiser permanecer
consciente diante das provas.
― Por que não confio em mim?
Tiago complementou.― A preocupação é a porta de
entrada para os medos...
E mesmo ciente de tudo, deixava-me levar pelos
acontecimentos prosaicos que sempre preencheriam e
ocupariam tudo o que fosse presumível. Cada brecha de uma
mentalidade entulhada por pensamentos ilusórios que seriam
como combustível para o fogo das paixões humanas. Eu até
conseguia ver além das aparências, mas mesmo assim, nada
conseguia fazer para recriar o Evento.
E eu sabia a fórmula para recriá-lo e dependia tão
85
somente de disciplina. Todas as religiões, seitas, filosofias,
doutrinas e ciências também a conheciam, apesar de
empregarem linguagens diferentes e não divergentes. De
quantas maneiras diferentes é possível contar a mesma estória?
Tantas quantas quisermos.
E elas se adaptarão ao gosto do leitor.
Tinha que recomeçar o mantra. Para cada vez que eu
fosse atingido por uma perturbação, recorreria ao bordão.
Advinha algo repentino ou perturbativo e eu estava pronto para
esclarecer – a mim – que Deus era o princípio de tudo e a causa
primária de todas as coisas.
Com o tempo esta frase se sintetizaria em que Deus é
perfeito.
Um amálgama de julgamentos que dariam a entender
que eu estaria desesperado ou, insanamente se agarrando a
todos os santos, seitas, ervas, milagres e patuás.
A verdade é muito mais pura, o caminho nem sempre
seria revelado por fórmulas, métodos, evangelhos, ou tábuas da
salvação, medicina experimental, rezas brabas, mantras, ou
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benzedeiras, neurocientistas e outros enfermos incessantes em
falar sem parar.
O mais atraente é que todos estão certos, quando se
conhece a verdade percebe-se que ela pode ter vários nomes e
ser dita conforme a circunstância, contudo teimo em achar isso
ou aquilo, estabelecer interpretações e empurrar a
responsabilidade para alguém.
E pensar que o Cristo confirmou que nós somos deuses
e tudo que ele havia feito, nós poderíamos fazer e até mais. –
não exatamente com estas palavras. E é por isso que eu
acredito que vivo em profunda ilusão.
Acho que não tenho preconceitos e, quando a
essência do Tudo se torna a mais clara palavra unida ao mais
alegre pensamento, eu apreendo que o caos, o sofrimento,
provas e expiações não passam das partes mais formidáveis da
minha aspiração. A essência de tudo sempre será a
simplicidade.
Friso que, são desejos d’alma.
E tenho conhecimento do que a alma deseja? Para
87
qualquer das duas respostas teria que saber porque eu ajo
supondo. Supondo que eu saiba ou não, quando o maior trunfo
da alma é me esconder a verdade.
Firmei os pés e tentei me levantar da cama. Foram
apenas duas tentativas e já ziguezagueava como Frankenstein
rumo ao armário, dois passos só. Um mal-estar provocado pela
hebdomadária betainterferona interferia com o meu humor de
opiniões trancadas a sete chaves, isso se eu não queria falar o
que não devia. Com o tempo percebi que não passavam de
admoestações provocadas pela sensibilidade ao som, à luz e aos
cheiros.
88
89
10
“Ideias demoradamente recalcadas, que se
negam a externar-se – tristezas, incertezas,
medos, ciúmes, ansiedades – contribuem
para estados nostálgicos e depressão, que
somente podem ser resolvidos, à medida
que sejam liberados, deixando a área
psicológica em que se refugiam e
libertando-as da carga emocional
perturbadora”. Amor, Imbatível Amor.
Divaldo Franco.
Mateus 27:05-01
Eu estaria mentindo se eu dissesse que nunca quis me
matar. E provavelmente me contradiria ao afirmar que jamais
me suicidaria. Não estava procurando por métodos que
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usassem cordas, facas, raticidas, trens ou pontes. Tão somente
a boa e velha inexistência.
Que Deus jamais tivesse me criado, e para Ele seria tão
simples como um estalar de dedos – e Deus tem dedos? Enfim,
por que eu teria que me arrastar por uma existência fracassada,
ou pior, existências que se perdiam no passado e teriam que ser
rastejadas no futuro?
Acabava de abandonar o meu último resquício de
perseverança e com isso afundava a esperança e a confiança em
mim – e nos outros. Agir com compaixão e humildade já não
seria possível, pois estava entregue às mãos do destino que me
arrastava sem que eu me abstivesse.
Uma morbidade se apossou de mim como um
obsessor invisível que resgatasse os seus direitos de cativeiro.
Não sabia a gravidade, no entanto possuía dois minúsculos
atributos que me impediam de atingir o fundo do poço. O medo
de morrer – não da morte – e ter plena convicção de que todos
me amavam.
Por que eu não conseguia alcançar os meus desejos
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tão bem calculados? E as incoerências só me causavam mais
estranheza e rancor. Parecia um plano bem executado para me
manter sempre com a estima baixa. E quem era o meu carrasco!
E com o fim de mim. Em um ato de ajuizado desespero
me ofereci às circunstâncias antes que elas se complicassem.
Deliberadamente abandonei o emprego que me daria
autonomia, sentindo tanta raiva de mim, de minha ineptidão.
De não entender de onde ela provinha. De não conseguir me
conhecer. Que aceitei a minha derrota ao reconhecer a minha
ignorância e inabilidade em tudo o que eu pretendesse.
Um choque que atingiu o meu orgulho em cheio.
Nos últimos anos eu era pressionado a pensar que
nunca conseguiria ser proveitoso, enquanto todos me julgavam
extraordinário. Todas as tentativas, mesmas a somente
pensadas, se transformaram em tormentos. E também atingiam
a todos que me cercavam, realimentando o medo, a
preocupação sem justificativa.
Por um tempo eu ainda me saía bem com a
fascinação de estar no domínio de mim. Na faculdade o
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processo se desmoronava a cada período. E eu começava a
rever o que era realmente imutável em uma mente jovem e
amadurecida.
Não compreendia por que um projeto que era
reprovado servia para uma exposição? Sugestões inconcebíveis
estagnavam-me sem solução? Ideias contraditórias que me
impediam de seguir. Um empate?
Estágio repetitivo e rotineiro que era um desafio?
Estava me desconstruindo e as antigas atribuições pareciam
eternamente novas. Assomava-se o medo de não atingir as
expectativas – as minhas. O medo de ter que realizar duas ações
ao mesmo tempo, de esquecer algo. Estar sobrecarregado por
nada.
Ser repreendido.
As desculpas pareciam outras. E enquanto pensava
que era por causa do stress, das recriminações que nunca
aprendi a descartar, por nunca dizer não e, aquelas incertezas
que eu administrava tão bem por estar em meu território,
foram esfaceladas quando fui exposto ao incontrolável. Não tive
93
outra escolha senão me expor.
O ambiente foi cuidadosamente preparado para que
eu não conseguisse superá-lo em segredo. Todas as opções
foram vetadas e eu cedi. Aniquilado, fiz o que mais me doía,
antes que eu machucasse alguém, reconheci a minha estupidez
perante todos.
E a crença de que era o bom, se mostrou como
soberba. O elogio terminou em desprezo.
A raiva se dissipou e só me restou o choro cruciante.
Continuava perdido nas minhas divagações, mas eu não estava
sozinho.
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95
11
“A Dificuldade Inicial. O começo pode ser
difícil, mas, depois de superada a
dificuldade inicial, as perspectivas são
favoráveis. Procure a ajuda ou o conselho
de um amigo”. I Ching.
Mateus 36:10-12
Caminhava a pé pela estrada sinuosa e estreita
quando as brumas se afastaram orquestralmente, desvelando-
me um lago azul profundo. Amanhecer aprazível de pulôver e
ares frescos de pinheiros me propiciava uma caminhada em
meio ao arvoredo inquiridor enquanto admirava os barcos e
veleiros em suas manobras brandas de um vento moroso. O
lago estava dentro de uma cratera dormente e assim, o
96
caminho, que cingia as águas e o sopé de montanhas sagradas,
era a linha de equilibro entre os reinos.
Por todo o caminho, não descuidava do trânsito dos
pequenos compactos em mão inglesa e dos acessos rústicos
para as casas de barcos e demais marinas com dezenas de
embarcações de velas seladas.
A Tōkaidō atravessava a cidade muito próxima das
margens e, então, parei para admirar a circulação de
passageiros de um terminal fluvial. Passei um lenço na testa
suada e retirei a mochila para pegar alguns ienes que seriam
engolidos por uma máquina de refrigerantes. O sol já
despontava por entre os montes e encostei-me à amurada do
estacionamento do terminal tomando avidamente a bebida
gelada.
O burburinho de turistas já se encaminhava às portas
de meus ouvidos, tentando agrupar-se, quando ouvi um turista
de minha terra se pronunciar em sussurros.
Ele subiu no guarda-corpo para poder me encarar com
lábios arqueados e risonhos. Fiz uma contração voluntária e não
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escondi a minha decepção com um muxoxo e olhos virados. Os
turistas já haviam entrado no ônibus que os levariam ao templo
no topo do Monte Myoboku e seus cincos sapos sagrados. Havia
um salutar odor lacustre que se somava aos fortes cheiros de
comida de um restaurante de lámen. Que os excursionistas se
aglomeravam entre as vitrines de um e da loja de omiyagi –
souvenires – logo abaixo do monstruoso Torii.
Cruzei os braços na amurada e bati com a testa
diretamente sobre eles. Fechei os olhos por um instante e achei
tudo muito estranho. Como um sonho dentro de um sonho.
Girei para o meu observador, que estava sentado em uma das
duas inusitadas poltronas marrom-avermelhadas estacionadas
em uma vaga para kanjis incompreensíveis, e puxei os fones do
player que tocava música de Motohiro. Tiago estava de óculos
escuros e mãos entrelaçadas com os cotovelos apoiados nos
braços da poltrona.
― Não preciso tomar a pílula azul ou vermelha, já me
contento com as vacinas semanais. ― reconheci a cena.
― Só não queria me sentar no chão. ― ele ainda se
98
lembrava de Paris.
Busquei sentar e nem me preocupei com os olhares
enviesados dos residentes e nem se eu estava sentado num
barril de pólvora como suponho que seja o vulcão abaixo do
lago. Fiz menção para que ele desembuchasse.
― Eu queria saber por que tudo tem que ser
perfeitamente idêntico à sua realidade física? Os cenários, as
pessoas, as possibilidades...
Iniciei. ― Não acho que seja assim. É somente uma
experiência para recriar alguns elementos que reconheço. Nem
imagino como seja um susuki no outono, mas eles estão por
todos os cantos. ― estava contente com o resultado final.
― Os personagens, eles dão um toque especial. Preste
atenção nas interações entre eles.
― O quê você está sugerindo? ― Achava que estes
eram cenográficos.
Tiago esperou que eu observasse alguns. ― Eles
continuam sendo fragmentos de sua personalidade, os tais
99
subegos ou subpersonalidades ou projeções de seu
subconsciente, e não estão isentos de criar algo totalmente
novo neste mundo.
― Como eles podem ter uma vida completa se são
frações? E o que você quer dizer com criar algo novo? ― Acabei
com o refrigerante sem o oferecer.
― Todo o seu conhecimento é oferecido a eles, as suas
frações psicológicas tomam-no para si como um computador
que precisa de um sistema operacional. Estas frações podem se
apropriar de outras estruturas psicológicas suas para, digamos
assim, reconfigurar as suas disposições naturais. As
combinações podem ser infinitas e mesmo assim você pode
reconhecê-las.
― E reconhecendo estas individualizações minhas e
suas personalidades, eu me conheceria? ― frisei com dúvidas.
― Não é só isso. ― aguardou teatralmente. ―
Também somos parte de algo muito Maior, que criou um
universo. Reconheça os seus subegos e se conhecerá na
totalidade de si. E por que Deus não pode fazer o mesmo, em
100
escalas universais? Somos seus subegos, micropersonalidades
autônomas que se relacionam das mais variadas formas. O
nosso diálogo é uma destas criações.
― Hã.
― As suas personalidades fragmentadas podem e
devem interagir e, este mundo subjetivo pode e deve se recriar
sem a sua interferência. Colha as experiências.
Um ônibus estacionava ao nosso lado, inteiramente
lotado de dezenas de câmeras em flashes apontados para nós.
Eles estavam agindo além das minhas expectativas, eu havia
criado um monstro. Tiago percebeu.
― Espere um pouco. Você ainda não tem a capacidade
de gerenciar tais criações, e este é só o primeiro passo. ― as
luzes faiscantes o incomodava. ― Além destas montanhas não
existe nada e as suas projeções não devem possuir uma alma. E
tudo está subordinado à sua vontade e limites...
― E as pessoas que criam jogos, filmes?
― Elas determinam todas as variáveis. Sabem o
101
começo, os meios e os fins. É um pacote impermeável e
imutável. Embora a sua origem provenha da realidade que
conhecem, de fatos pré-definidos, o produto final tem como
resultado aquilo pelo qual foi criado. Não há brechas, senão
aquelas implantadas e que acabam não sendo.
Gritei alarmado. ― Então eles – sobre as minhas
projeções inconscientes – podem me superar, me surpreender
com atitudes inimagináveis?
― Como dizem, você é peixe pequeno. As suas
projeções ainda não podem reagir aos estímulos, como supõe.
Elas estão atreladas ao seu conhecimento e as suas relações
devem respondem ao que você já experimentou. Mas eu não
vim para destruir os seus sonhos...
Levantei-me e desta vez comprei duas latas. Acalmei o
meu espírito que estava ansioso para seguir em frente. O ônibus
partia com nova tripulação que acabava de sair do terminal em
escandalosa conversação de balançar interminável de cabeças
agradecidas. Concentrei-me nas sutilezas e ações que eu não
precisava pensar. Eles se constituíam de autonomia e
102
imprevisibilidade.
― Livre-arbítrio. ― E pensar que ele existia. Dentro de
um mundo tão contido e organizado. Reflexo das Leis Naturais
que eu determinaria para eles.
Estava absorto quando depositei o refrigerante junto à
poltrona e estiquei a mão para entregar o outro. Rapidamente,
sem pensar, dei um tapa na mão de Tiago que recuou rindo e
reclamando da dor.
― Se estiver imaginando que anjos não devem tomar
refrigerantes, eu te asseguro que isto não fará mal às asas. ―
Agarrando a lata. ― No entanto essa não é a sua preocupação,
não é?
― O quê acontece se eu mudar as regras deste
mundo? ― com remorso de ter batido em um anjo.
― Diga-me você. Se, por exemplo, os barcos
começassem a afundar neste lago.
― Ou poderiam achar tudo normal, porque eu assim
determinei. Ou poderiam correr de um lado para o outro,
103
desesperados, achando que é magia. ― Tinha certeza que seria
o outro ou...
― Ou eles mandariam os melhores cientistas para
verificar alguma mudança na densidade da água ou de sua
resistência hidrodinâmica. Enfim, descobririam uma resposta
que seria fundamentada por suas Leis ou desvendariam novas
que gerariam uma gama de novas interpretações.
― Mas é o que nós – da minha realidade – faríamos!
― Foi um susto tão grande que eu percebi o óbvio. ― Tudo é
um infindável fractal.
Queria acertar Tiago com um taco de beisebol, mas
não seria prudente castigar um anjo. ― Por que você não me
explicou desde o começo?
Ele deu de ombros, achando graça do meu
aborrecimento. Eu tinha que dar o troco. Pus a mochila e
acenei, íamos subir até o Templo por um caminho íngreme e
sufocante.
Sem ônibus.
104
Suas ideias eram outras. Saltou no lago.
― Eu admito conhecer as premissas do mundo que
criei. ― e Tiago andava sobre as águas. Pus-me a alcançá-lo.
Nunca cogitei que fosse complicado andar sobre um
lago que escorregava como gelo e balançava como gelatina. O
desequilíbrio me forçou a mergulhar de cabeça.
― Existem coisas que só funcionam na teoria...
― Ou nos cartoons. ― e como ele conseguiu?
105
12
“O autoamor não pode se confundir com
egoísmo, que é o orgulho de ter e ser mais
do que é. De suplantar o outro pela
submissão. O autoamor impõe o seu caráter
humanitário à um estado superior de si. O
ser ideal é aquele que caminha no meio, em
equilíbrio entre o orgulho e a submissão, a
arrogância e a humildade que nada mais é
do que a sublimação”.
Mateus 36:10-13
Após as chuvas de cinzas custeadas por um vulcão,
entre espirros e alergias. Da suspensão de minhas intenções
xintoístas em uma luta travada contra centenas de incansáveis
formigas envenenadas que não queriam ser aspiradas ou
106
varridas. Teria o meu prêmio com as agradáveis agulhas do
acupuntor.
Com o tempo você acaba se acostumando. Essa
expressão, tão condicionada pela consternação, nunca reflete a
realidade das intenções mais nobres. Nós não nos
acostumamos.
Com o tempo tudo se transforma, as dores podem ser
maximizadas ou superadas. Eu acreditava que pertencia ao
bando de reclamadores e lamentadores que aceitavam que o
mundo estava se acabando em enxofre e caldeirões de água
queimante. No entanto fui pego me afeiçoando aos reclamantes
com suas moléstias inquietas.
Nunca armei ser um bom par de ouvidos, e o desfile
de reclamações justificáveis – por causa de doenças terríveis –
me acalmaria os ânimos. E assim eu quase me sentia saudável
em meio aos flagelos pessoais, dos outros.
As minhas incurabilidades não se mostravam tão
imutáveis. Estava animado com as sessões de acupuntura que
me devolviam as sensações desaparecidas de mãos e pernas.
107
Por mais que eu queira escolher aquilo que me trouxe avanços,
tenho que admitir, sem provas materiais, que nada acontece
por acaso. Existe uma perfeita simbiose entre todas as
pseudocoincidências.
A acupuntura é o caminho para consolidar os
benefícios alcançados com as cirurgias espirituais. Sem se
conhecerem, elas trabalham em sintonia tão magistral que colhi
algumas surpresas. Acabei descobrindo, através destas
pseudocoincidências, que um dos sintomas não era o que eu
supunha. Obtinha uma nova doença autoimune para o meu
currículo de incuráveis. Entretanto esta era, pelo menos,
controlável desde que não me aproximasse de glúten. E eu
achava que tinha descoberto tudo sozinho, me rejubilando pela
minha sagacidade de ver as informações sendo esfregadas no
meu nariz.
Contudo, a maior conquista seria me afeiçoar aos
outros pacientes lamentadores que aguardavam
impacientemente as agulhas de um médico com pretensões
sádicas. As pautas do dia sempre seriam as calúnias políticas, a
indignação médica e, no meu caso, o clima.
108
Adorava notar as pequenas – ou grandes –
manifestações destas personalidades com as suas
particularidades que, às vezes, me cansava. E em alguns casos,
bastava o relógio parar de funcionar, e o caos de suposições
preenchia um ambiente heterogêneo, como aquela antessala
de espera, com angustiosa e divertida exasperação.
E o universo ainda brincava comigo.
109
13
“Não afeteis orar muito em vossas preces,
como fazem os gentios, que pensam ser
pela multidão de palavras que serão
atendidos. Não vos torneis, pois,
semelhantes a eles, porque vosso Pai sabe
do que necessitais antes de o pedirdes”. São
Mateus 5:5-8
Mateus 32:06-20
Sou suspeito para julgar. Sentado no posto de saúde
onde seria interrogado pelo médico, escutava as narrativas dos
outros pacientes que pareciam se deliciar com os trágicos e
intrigantes enredos de suas doenças escabrosas. Em lamúrias
perpétuas que não queriam soluções e sim um par de ouvidos.
110
Se eu tentasse embarcar na mesma repetição monótona e
tediosa de queixas, – pois tinha conteúdo para o assunto – seria
sumariamente interrompido.
Eu não era senil o suficiente para reclamar e nem
parecia estar tão adoentado assim. Eles até paravam por um
instante, me avaliavam com olhares nada discretos e se davam
por satisfeitos. Recomeçavam as reclamações.
Logo estava me acostumando com a pouco ou
nenhuma seriedade que uma doença sem feridas, pústulas,
cirurgias agonizantes ou erros médicos poderia provocar. Tudo
bem que era incurável e degenerativa.
Daria novo sentido à palavra paciência.
Estiquei as pernas e atravessei os braços para me
aquecer enquanto o ambiente hospitalar se esvaziava e me
perdia nas imagens de uma televisão muda. Não gostava de
esperar por algo cujo resultado eu sabia. As lâmpadas
fluorescentes falhavam.
Estava escuro quando fui convocado. Bem sabia que a
consulta seria mais uma interminável rotina para verificar o
111
meu quadro de saúde – ou de piora.
Para ser sincero, ainda não me sentia enfermo.
Entretanto havia recebido um título que poderia mudar a vida
de um homem, para sempre. Ainda me lembro do diagnóstico
depois de ressonâncias e exames de sangue, para o meu pavor
de agulhas. Nestes episódios eu me aproveitava da falsa
impressão de que tudo estava bem e me confiava ao medo com
o subterfúgio de uma personalidade que eu só usava em casos
extremos.
Fechava bem fortes os olhos, dominava a minha
admoestação e terminava com expressão de bon-vivant. Pois
era esta que ainda me mantinha confortável perante as
circunstâncias que eu mais detestava. Médicos, hospitais,
doentes e impotência.
Um dia desses, eu percebi um comentário que me
abalou. Ninguém quer ficar doente. Nada mais lógico. Contudo,
assim que eu soube que estava incuravelmente diagnosticado,
experimentei um alívio. Muito alívio.
Tanto alívio que o médico, que esperava alguma
112
reação nefasta ou confusa, ficou me encarando absorto. Tenho
quase certeza que ele pensou que eu não havia entendido, ou
estava em choque, ou mais doente do que cogitava. E daí se me
sentia bem?
Um doente só é feito de seus exames.
E seus medicamentos, que no meu caso se
compunham de vacinas dia sim e não. Se era para ser uma
catarse com agulhas, eu teria que aplicá-las sozinho. E com o
tempo se tornaria mais um hábito – doloroso.
Porém a doença é no cérebro, e eu desconfio que
afeta algumas das áreas mais inconvenientes para mim. Pois eu
ainda tremo só de pensar em agulhas, mesmo as finas e
pequenas subcutâneas de aplicadores violentos – que eu jamais
pensei em usar.
A doença pode ser um carma, um sofrimento sem fim,
a doença deprime e corrói os sentimentos, destrói as fundações
familiares, sociais e profissionais. A doença redefine atitudes e
ações e atrai aqueles que te amam e afastam os falsos. Ou o
contrário, afasta aqueles que diziam te amar e atrai o amor de
113
incógnitos.
Conforme suas crenças, a doença pode ser uma prova
ou expiação, um castigo, a punição de Deus. Dívidas contraídas
de um passado, missão ou a bondade de Deus. Porque todo o
mal passa inexoravelmente pelo crivo da bondade de Deus.
Por convenção eu me enquadraria naqueles cuja
enfermidade é a prova para aperfeiçoamento de algum débito
nascido em vidas antigas o suficiente para não me recordar.
Ou seja, fiz e agora tenho que pagar. Por sorte ainda consigo
aceitar a resignação e possivelmente consiga me adaptar às
dificuldades que venham a surgir.
Menos para as mais óbvias. Porque tenho a
incapacidade de perceber os meus erros, assim como a maioria
das pessoas que apontam julgamentos de dedos firmes e não
percebem que possuem as mesmíssimas qualidades ao qual se
apressam em denegrir.
As minhas aptidões neste campo incluem que todos
sempre são mais admiráveis do que eu. E acabo passando a
impressão errada de que eu estou melhor do que eu mesmo
114
suponho.
Na primeira chance em que eu me confrontasse com o
espelho, veria um idiota que não conseguia disfarçar a sua
azucrinante arrogância adubada por tolice.
Valendo-se de uma doença como pretexto para uma
situação que chegava à sua fronteira. Por isso senti alívio
quando algo justificou a minha fraqueza. Eu não era acusado
pelas derrotas. Embora também o seja.
Alguém assumia as minhas culpas – uma doença
degenerativa incurável – enquanto eu ganhava tempo para
respirar aliviado.
Estava aborrecido.
E doente.
115
116
14
“Se isso for ser esperto... Prefiro passar
minha vida inteira como um idiota!”.
Masashi Kishimoto.
Mateus 36:10-15
Aonde quer que eu olhe, as árvores contraiam uma
tonalidade ocre que prenunciava o outono tardio. As
montanhas precipitavam estas nuanças na limpidez do lago
azul. Estava a passos lentos, quando enlacei firme o lenço rubro
como uma badana e sorvi toda uma garrafa de água em um só
gole, observava Tiago logo atrás.
Ele estava mudo, não se deixando levar pelo meu
intuito de caminhar com sofrimento e molhado. E ele carregava
117
um rolo de pergaminho preso às suas costas, com bastante
destreza, considerando as dimensões e considerações.
Atravessamos a enseada e, após os primeiros lances, eu
desmoronei aos pés de uma arvoreta como um bonsai titânico.
Tiago se sentou nos degraus de um humilde templo,
abaixo das grossas cordas que estavam repletas de guizos e
ornamentos bizarros, deixando o pergaminho escorado. O
templo ostentava um altar com oferendas de arroz e muito
incenso com suas colunas ondulantes de fumaça aromática. Não
havia inscrições, nem estátuas.
E as lacunas na sombra teimavam em me cegar.
Quando me acomodei, flexionei os braços sob a cabeça,
descansando-a na ramificação, e dobrei as pernas com descaso.
― Quero me desculpar por tratá-lo com desrespeito,
não foi a minha intenção. ― Tiago somente sorriu. Eu me
envergonhei.
― Nós somos amigos. Eu te compreendo. Suponho que
esteja aborrecido pelo meu atraso em... ― acenei arrependido.
Era o meu melhor amigo e eu nem me recordava. Talvez ele me
118
respondesse.
― As pessoas costumam idolatrar os seus anjos,
sabia? ― Dignou-se a confirmar se eu estava pronto. Frisei com
um aceno duvidoso. ― O que você pensa de estar doente?
Poderia falar tudo sobre a moléstia, inclusive das
minhas teorias bastante sugestivas. Mas de como eu me
sentia?! ― Tenso.
― Posso complementar? ― continuou sério. ― É por
causa das divergências criadas entre ser o doente, atender a sua
versão das expectativas de todos, as suas próprias e reescrever
as impressões que davam corpo ao seu ego. Porque você ainda
não consegue extingui-lo.
― E por que me mostraram como é ser sem ego?
― Quem lhe garante que não foi você mesmo?
Pressente que tudo possui uma razão, desmerece as
coincidências e, mesmo assim, precisa de uma autorização?
Quem melhor para o trabalho do que você?! ― E qual seria o
papel dos anjos da guarda, guias e outros arcanjos? Pensava
enquanto eu era açoitado por mais perguntas. ― Eu não estou
119
com você em tempo absoluto.
― Eu quero acreditar que toda a minha vida tem
algum sentido... ― ele interrompeu-me com voracidade.
― Cada segundo é meticulosamente calculado. Tudo
que lhe soa errado pode ser precisamente o contrário. O plano
sempre tem cumprido todos os passos.
― Os traumas, as incertezas, as inseguranças, os
medos e os obstáculos são alguns destes planejamentos com
gosto amargos?
― No seu caso, quase todos são amargos, azedos ou
intragáveis. Mas nunca foram difíceis de engolir. ― abrindo o
pergaminho abruptamente no ar que caiu suave sobre o
gramado. ― Eram barreiras criadas para impedir que os
acontecimentos do passado fossem recriados e você repetisse os
mesmos erros.
Fiquei surpreso porque estava inconscientemente
ciente dos fatos que me levaram ao suicídio. ― Que em cada
episódio detestável havia um fim? Pode imaginar os transtornos
120
pelo qual eu passei?
― E pode imaginar o trabalho que me foi assegurar a
sua infalibilidade? ― escondendo-me que os fatos jamais saiam
dos trilhos. Havia outros personagens no traçado.
Fez-se um silêncio abrasador.
Tiago apontou para o pergaminho que tinha algumas
partes rasuradas para o meu constrangimento. Eram alguns
registros desta minha biografia.
― Mas antes vamos rever alguns fatos. ― ele
percebeu que eu estava nervoso com o que fosse dizer sobre
mim. ― Como anda as coincidências?
― Agora elas são absurdamente recorrentes. Qual é o
objetivo destes sinais?
― São reforços. Ou você ainda acredita que a sua vida
é repleta de escolhas e oportunidades infinitas? Há um ciclo de
eventos repetitivos que, se você perceber os sinais, o persegue
infatigável. ― estava bem atento. ― No início parecem simples
coincidências, porém se aceitar o fato de que elas são mais do
121
que parecem...
Hum. ― o que eu poderia dizer?!
― Esta certeza pode aprimorar as suas convicções, e
as coincidências passam a ser... ― ele não parecia saber o que
dizer.
Adiantei-me. ―... palavras-chaves?!
― Melhor, a matriz básica do plano desta vida. E que
contem um projeto mais abrangente por detrás. ― Ele se
iluminou com um pensamento oportuno. ― Tem um texto
afixado ao seu armário que diz mais ou menos assim. “O seu
potencial é ilimitado em tudo o que escolhe fazer. Não presuma
que a alma que escolhe renascer em um corpo que você
considera limitado não realiza todo o seu potencial, porque você
não sabe o que a alma está tentando fazer”.
Tive que concordar, entretanto a citação só me
deixava mais abatido, não saber o que estamos fazendo e
mesmo assim se entregar a desígnios imperceptíveis?!
― O universo conspira a seu favor. ― foi a minha vez
122
de ficar sem saber o que falar. ― Sabe o que significa a frase?
― Sim.
― Comecemos pelo início. O plano. O seu objetivo é
extrair ou enfraquecer alguns excessos. Eu posso citar alguns:
orgulho excessivo, intolerância e arrogância, egoísmo,
desrespeito, medos sociais e mais algumas falhas. ― engoli em
seco. ― As palavras são duras, mas nem todas são extremas.
Todos precisam de uma dose de covardia para que a coragem
não se torne temeridade.
Não amenizou o impacto. ― Eu vou usar as suas
palavras escritas no diário, com o cabeçalho horrível de
Impositivos da Lei Divina. ― e só piorou.
“Não sei ouvir as pessoas, trato-as com certo
distanciamento. Procuro aconselhar evitando compreendê-las. O
trato social é minimamente inclusivo. E por que todos gostam de
mim?”.
“Não sei lidar com os sentimentos, principalmente se
forem ilógicos. A autopreservação gera frustração. Esperar que
todos ajam logicamente implica que eu pouco conheço do ser
123
humano e suas fragilidades. A doença me obriga a enfrentar
este dilema. Será que conseguirei ouvir?”.
Chorava diante da verdade. ― E foi por causa desta
autoafirmação que a semente da transformação nasceu. É difícil
reconhecer as falhas de caráter, apesar disso é muito mais difícil
assumi-las. Dominar-se a si próprio é uma vitória maior do que
vencer a milhares em uma batalha.
― Não entendo a razão de tanto sofrimento. ― o
efeito indesejado.
― O sofrimento não existe, a sua ideia de que é difícil
abrir mão de seu ego – e suas distorções – lhe impõe este
obstáculo irreal. Se ele parece intransponível é exclusivamente
por sua causa. É a reação natural daquele que não quer se
submeter.
― Submeter-me a quem? ― com medo da resposta.
― Às suas pseudocoincidências, os desígnios. Se
submeter a este fatídico destino – desígnios – é colaborar
consigo. Agir como se as pseudocoincidências fossem
imposturas ou obstáculos indica que você ainda não quer abrir
124
mão de seu personagem ricamente titubeante com as
pequeninas facetas que definem a sua realidade.― Ele me disse
que precisava buscar outro termo, um mais adequado, para
pseudocoincidência. Porque coincidências não existem. ― E
assim, em cada obstáculo há mais de uma ação.
― What? Como assim?
― Quando muito novo você sofreu um breve acidente,
certo? ― concordei levando as mãos para o acidente no meio
das pernas. ― E pensou que ele serviria para conter alguns
excessos futuros?
― E não era? ― Para que mais ele serviria.
― Esta era somente a ação perceptível, porém o
motivo principal lhe escapou inteiramente à sua astúcia. ― Ele
teatralmente esperou. ― Te livrar do seu inflexível fascínio por...
Eu não estava entendendo, o que poderia me causar
tamanho deslumbramento a ponto de ser impetuosamente
arrancado dos meus hábitos de criança? ― O seu fascínio
deveria se conter, seria apenas uma incursão, uma inserção de
ideias e valores que deveriam brotar depois que estivesse
125
maduro. As fortes impressões colhidas neste novo mundo
poderiam enlouquecê-lo se não fossem obliteradas a tempo.
― A que você se refere? ― o que me aconteceu
quando garoto?
― A sua implicação com a cultura, outros olhares,
outros costumes e que começava com os seus amigos. As
crenças orientais que tanto o maravilhavam, não encontrariam
terra fértil e avassaladoramente o engoliriam em repercussões
não digeríveis. Precisávamos arrancá-lo de seus amigos e suas
famílias.
Não imaginava. ― Então é por isso que nunca mais
tive contato com eles? Do acidente se seguiu a transferência de
colégios e, logo mais, de cidade.
― E muitas outras coisas surgiram desde então. Que
não seriam possíveis sem esta interrupção. ― Tiago estava sério
e mantinha um olhar de perseverança e aquiescência. ― Como
as ações que te levaram a tomar consciência das suas
experiências da vida passada. Sem os deslumbramentos que nos
causariam maiores atrasos.
O voo final rumo à liberdade
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O voo final rumo à liberdade

  • 1. 1
  • 3. 3 índice. idade: mês-dia à morte,.................................................................................................12 Inari 36:09-29......................................................................................... 19 Mateus 35:11-12 .................................................................................... 29 Mateus 36:09-30 .................................................................................... 35 Mateus 24:04-27 .................................................................................... 39 Mateus 06:07-21 por Tiago.....................................................................45 Inari 36:10-01......................................................................................... 51 Mateus 36:10-04 .................................................................................... 59 Mateus 05:10-04 .................................................................................... 60 Mateus 36:10-07 .................................................................................... 67 Mateus 36:10-10 .................................................................................... 80 Mateus 27:05-01 .................................................................................... 89 Mateus 36:10-12 .................................................................................... 95 Mateus 36:10-13 .................................................................................. 105 Mateus 32:06-20 .................................................................................. 109 Mateus 36:10-15 .................................................................................. 116 Mateus 12:07-12 .................................................................................. 128 Inari 36:10-15....................................................................................... 132 Inari 36:10-29....................................................................................... 142
  • 4. 4 Mateus 36:10-29 .................................................................................. 149 Mateus 36:03-30 .................................................................................. 157 Mateus 36:04-18 .................................................................................. 165 Inari 36:11-01....................................................................................... 169 Mateus 11:11-11 .................................................................................. 188 Mateus 36:11-05 .................................................................................. 192 Mateus 36:11-12 .................................................................................. 198 Mateus 36:11-15 .................................................................................. 204 Inari 36:11-17....................................................................................... 215 Mateus 36:11-17 .................................................................................. 223 Mateus 36:11-08 .................................................................................. 235 Mateus 36:11-22 .................................................................................. 241 Inari 36:11-25....................................................................................... 249 Inari 36:11-26....................................................................................... 261 Juroo 111:05-30.................................................................................... 273 Bibliografia........................................................................................... 283
  • 5. 5 Um livro dedicado ao Deus que está em cada um de nós, dedicado, então, a todos. Por mim, por nós, para todos.
  • 6. 6 Quando eu pensei em escrever, não imaginei que algumas folhas soltas do que pretendia ser um diário poderiam se tornar um livro. Sempre quis registrar as minhas experiências e com elas, segundo as exigências da minha biografia – porque eu não consegui encontrar ninguém mais interessante, ou seja, cheio de problemas –, rememorar as principais divagações e torná-las vivas mais uma vez. Hoje, depois de quase dois anos, descobri profundamente que sei que nada sei, cada explicação é seguida de uma torrente incontinente de novas dúvidas, como se houvesse cortado uma das cabeças da hydra. Portanto eu assumi uma postura submissa diante do inevitável, porém o inevitável começa a se parecer com o desejado. O medo, as angústias, a raiva não passam de perturbações que criamos
  • 7. 7 porque não compreendemos. E não compreendemos porque não temos todas as respostas. Por isso julgamos em vez de discernir. Estou tentando lutar contra ilusões criadas e mantidas por minha mente. Causa e efeito que dependem exclusivamente de uma realidade que não compreendo e que defino segundo as minhas crenças. Depois de reler o que escrevi, várias vezes seguidas, comecei a entender o quanto nos iludimos com certas verdades flexíveis, nos condicionamos a reagir às regras do jogo. Desta observação, dos escombros do meu ego, tentando me autoconhecer, deparei-me comigo mesmo. E fui ludibriado e levado a acreditar que eu não era assim para que, ao admitir a minha ignorância, tivesse que evoluir. Destas leituras e suas impressões, hoje eu compreendo o quanto negava as minhas inépcias. Só uma doença incurável poderia mudar isto. Mateus Göettees, outubro de 2013.
  • 8. 8 Todos temos um compromisso com a verdade. Esta verdade dependerá das suas escolhas e estará intimamente ligada com às suas capacidades. Na verdade não dependerá das suas capacidades pois elas jamais nos impediriam de saber a verdade. O que nos impede de ver a verdade, seja porque acreditamos que as nossas capacidades são incompetentes ou porque a verdade está oculta, não passa de uma ilusão. A verdade é intrínseca. Somos nós que repetimos e acreditamos que ela deve ser encontrada. Uma busca eterna pelas respostas que sempre terão perguntas inesgotáveis. No fim, a verdade jamais será encontrada enquanto acreditarmos que o Todo é finito. É uma boa premissa para que possamos evoluir, aprimorar nossas capacidades e chegar sempre mais perto da verdade. No entanto negligenciamos quem somos ao aceitar que temos falhas a serem corrigidas. Proponho que, antes de
  • 9. 9 sair atrás da verdade, encontre quem você é. Submeta-se a si e encontre as suas verdades. Ao se recolher em si, um processo de autoconhecimento dispara o gatilho da transformação. Esta transformação ampliará a sua autoestima e esta auxiliará progressivamente a transformação. Muitas ferramentas poderão ser usadas como meio, são meios hábeis, para que o conhecimento de si seja inimaginável. A meditação poderá ser uma profunda concentração se quiser, mas também poderá ser um exercício de discernimento. A intuição e a inspiração serão bússolas tão poderosas que farão a lógica e as leis humanas caírem por terra. Os relacionamentos serão conexões. O espírito controlará o ego. Basta observar. Tiago.
  • 10. 10 “Quando o Sol se derramar em toda a sua essência. Desafiando o poder da ciência, para combater o mal. E o mar com suas águas bravias, levar consigo os pós dos nossos dias, vai ser um bom sinal. Os palácios vão desabar sob a força de um temporal e os ventos vão sufocar o barulho infernal. Os homens vão se rebelar dessa farsa descomunal. Vai voltar tudo ao seu lugar, afinal. Vai resplandecer, uma chuva de prata, do céu vai descer. O esplendor da mata vai renascer e o ar vai ser de novo natural. Vai florir e em cada grande cidade, o mato vai cobrir. Das ruínas um novo povo vai surgir e vai cantar, afinal. As pragas e as ervas daninhas, as armas e os homens do mal vão desaparecer nas cinzas de um carnaval”. Clara Nunes - As forças da natureza.
  • 11. 11 1944 “A piedade é a virtude que mais vos aproxima dos anjos; é a irmã da caridade, que vos conduz até Deus...” A piedade, capítulo XIII, Evangelho Segundo o Espiritismo.
  • 12. 12 à morte, à tolice e ao orgulho. Amanhecia sob a luz onipresente que se irradiava através das nuvens lilases. E a longa aurora ainda se dispersava entre alguns dos meus pensamentos mais perturbadores. O céu de um azul intenso procurava se mesclar, no horizonte, ao oceano que se esparzia brutal lançando-se aos céus. Em ondas espumosas e brancas ela se debatia contra os derradeiros penedos da terra-mãe. Para mim, estas costas azuis seriam as primeiras comprovações de terra nada firme, uma morada fragmentada pela cruz gamada que desprezava infatigável, a tudo. E o vento zunia produzido por mim enquanto o sol já se equilibrava nos quadrantes superiores. Nada me levava ao desejo de contemplar a vida letárgica logo abaixo, a alguns pés. Para mim ela estava se tornando distraída e sem sentido, até mesmo eu, alguém que
  • 13. 13 diziam expressa-la além das expectativas da imaginação. Quem poderia matutar que os apaixonados também se esmoreceriam? Por instantes retornei ao meu pequeno mundo mecânico. Os giros constantes dos motores de meu aeroplano davam às hélices um aspecto quase tangível e o ritmo monótono de seus roncos pareciam me hipnotizar. Os instrumentos pareciam estar em ordem, com seus ponteiros sempre nas mesmas posições de que tudo andaria bem. Os controles reagiam ao leve movimento e as asas guinavam e sacolejavam ao arrasto. Desta vez eles não estariam endurecidos pelo frio das altas altitudes e nem a respiração do cordão umbilical, opressiva. E ainda dedilhava os mostradores só por precaução cerimonial. Em minha cabeça já não estava certo se os ponteiros indicavam alguma precisão. Só tentava lembrar-me do meu parco quarto arrefecido, onde as labaredas de um aquecedor
  • 14. 14 dançavam, me embalando em sonhos infactíveis. Havia escrito cartas, muitas delas acabaram maiores e, irrefreáveis, espalhavam ideias. Mas havia escrito muitas cartas, algumas – inevitavelmente – para minha mãe. Contudo poucas teriam tanto peso em meu destino quanto às que acabei de pousar no console de minha escrivaninha. Só eu quem as acabaria descobrindo. Todo o peso da minha frustração engolia-me em divagações incontroláveis. Um frenesi ensurdecedor causado pela minha arrogância indiscriminada. Um poder inexistente concedido pela voz, um sussurro sem rosto, que me transformou em uma marionete das inépcias humanas. Eu que podia levar os homens a chorar diante da ferocidade em que os seus irmãos se mostravam. Uma empatia acolhida de simples parágrafos de linhas negras. A vida sem cor que podíamos absorver, chorar e esquecer sem sermos arrastados para dentro. Infelizmente eu era o criador que acabara devorado pela criatura e amassado como os papéis que considerava tão
  • 15. 15 importante, jogado pelos cantos. Com sorte poderia aquecer algum coração, mas os homens ainda não estavam preparados. E a sorte seria se acabasse mantendo algum fogo acesso de uma noite fria desta contenda. Eu também não estava pronto. A minha prepotência estava em me considerar a voz acima das outras, a que lutaria por todos. Neste instante a máquina despencou dentro de uma corrente de ar tirando-me de minhas maldições. Como ninguém me atendia? Onde estavam aqueles que me bajularam e em tapinhas depositavam todos os seus prestimosos e incondicionáveis apoios? Que tolo eu fui. Derrotado pela minha ilusão. Mais uma vez fui despertado pelo mundo real, parecia que outra corrente me atirava para o lado. Porém senti uma vertigem tépida. De minhas pernas escorria a vida. Guinei e constatei que estava sendo caçado. Um pavor pelo qual jamais me preparei. Estava voando muito baixo e logo deveria ser como um reflexo para o inimigo.
  • 16. 16 Reagi conforme o medo, pensei que poderia escapar pousando em terra quase neutra de Vichy. Dando-me sem reação. Esmorecido pelo meu ego inflado. Fui vencido pelos meus medos. Uma dor profunda alimentava minha frustração, minha tristeza. Não pensei mais. Abaixei o manche rumo ao mar da tranquilidade e no momento do impacto temi a morte e pousei adiando o trauma. Atordoado afundava devagar, mergulhando na escuridão insonhável. O pavor respondia pela minha tentativa de me salvar. Mas as pernas dilaceradas e a cabine travada adiaram o inevitável. Morria apavorado. Um suicida incógnito. O herói da nação um covarde diante de sua maior prova. Para os homens que leriam seu obituário, o maior entre os maiores. Um suicida. E ninguém jamais saberia. Só eu e a minha consciência. Em algum lugar, um porto seguro, um amigo esperaria
  • 17. 17 além do limite de suas esperanças. Acenderia outro cigarro enquanto a noite despertava em estrelas de magnitude. Com olhar inconsolado verificava as cartas enquanto as recolhia para um bolso interno. Nelas estavam as minhas últimas palavras para o mundo. Amargas e duras, quase uma despedida. Pude perceber que ele olhava para o alto e pensava em pequenos planetas com um sorriso de garoto. Descartava o cigarro e retornava para o seu gabinete aquecido, de labaredas gentis e envolventes...
  • 18. 18
  • 19. 19 1 “Aqueles que passam por nós, não vão sós, não nos deixam sós. Deixam um pouco de si, levam um pouco de nós”. Antoine de Saint- Exupery. Inari 36:09-29 O vento galgava os prados com intensa mansuetude, friccionando os seus corpos etéreos no campo florido que crescia ao cume da colina desgastada. Dividia-se em línguas que usurpava o templo, soando os guizos de algumas centenas de proteções divinas. As bandeirolas se retesavam e emitiam um halo de pigmento alaranjado que se impregnava nos monstros
  • 20. 20 invisíveis enquanto as faces pétreas das estátuas de raposas eram avivadas pelo bailado de seus cachecóis vermelhos. As lanternas japonesas eram fustigadas a engasgar-se pela ferocidade da ventania que percorria os antros divinos, irrompendo pelas frestas antes de se digladiarem nas florestas eternas de bambus. Com os olhos fechados sentia o estrondo e o movimento destes dragões sibilosos e sinuosos. Antigos amigos, originários do ar que brincavam com a terra, a água, o fogo e a madeira. Despregavam o tecido de minhas vestes como se eu fosse um navio em águas tormentosas. Um acariciar táctil que dizia a mim que eu existia, onde quer que eu esteja. Com os pés descalços fincados no manto verde derramado, agitava as pontas dos dedos como se jamais tivesse experimentado algo parecido. O tempo já se abeirava do ocaso com nuvens lilases e sol em ouro velho. Poucas ocasiões seriam tão demoradamente prazerosas quanto esta. Olhei para os tênis com suas línguas de meias soltas enquanto alguns aldeões se preparavam para algum acontecimento. A colina estava sendo avivada pela liberdade de muitas pipas, empinadas por crianças
  • 21. 21 enfeixadas por quimonos coloridos. A animação fortuita intensificava a paisagem que tomava as cores de uma gravura. Era a hora de me despedir e caminhar ao encontro dos meus demônios. A noite seria preenchida com cantos e risos de festejos ao redor de fogueiras e contemplações de luz e sombras em danças embriagadas. De crianças correndo em brincadeiras que gostaria de correr e delícias devotadas aos deuses do templo da montanha. Apesar disso estaria longe demais para só escutar, carreado pelo vento, o instante em que o vozerio adormecesse. Teria ainda alguns instantes sagrados, observando o manto perfurado da noite, refletido no espelho de águas límpidas de um lago, às margens de pedras à borda da floresta mágica. Mas algo em mim dizia que não. Sentei-me aos primeiros degraus de madeira acinzentada e primorosamente esculpida em seus encaixes milenares. Pus os tênis assistindo uma criança se aproximar de costas em vigília de sua acanhada irmã atrás de borboletas caladas dentro do campo de flores do campo. Uma circunstância imprevista por mim, para quem não sabia se
  • 22. 22 relacionar com alguém daquelas paragens. Cumprimentei-o simplesmente balançando a minha melhor cabeça cerimoniosa de costumes adversos e recebi um sorriso. Devolvi o presente e subi pela escadaria já me adiantando alguns passos quando recebi uma reprimenda. ― Não deveria pôr os pés no lugar mais sagrado para nós! Intrigado porque alguém havia falado comigo, girei os calcanhares guinchando o plástico da sola e, boquiaberto, não sabia o que responder. Vislumbrei mais uma vez o vale, com sua cidade despertada, viviam centenas, talvez milhares, de sombras minhas. O mundo germinou da minha compulsão de me conhecer melhor. Antes eu só ia até o lago. Aos poucos cunhei o templo que me abrigava das ilusões perturbadoras. Com aquela indisfarçável sensação de que não correria até os intermináveis degraus de uma escadaria rústica, bordejada por torii vermelhos em ideogramas indecifráveis, que
  • 23. 23 me levaria compulsoriamente até o lago. Mantinha o olhar perdido, entre duas escolhas. Decidi-me. Avancei dois passos e saltei algumas braças para cair flexionado ao lado do averiguador. Não podia perder a oportunidade de me exibir. Ele não se abalou com esta demonstração pueril e desdenhou-me de face impassível. ― Quem é você?! ― como se eu não o soubesse, pelo menos é o que eu supunha. ― Agora eu sou chamado de Juroo. Uma resposta que fundia a dúvida de palavras ditas com impressões minhas sobre aquela ficção. Eu me experimentava muito bem em sua presença e o ato de que não sabia exatamente como agir diante de quem tem uns treze anos não me causava o constante nervosismo. E eu bem sabia o porquê. Voltei-me para o vale onde, a pouco, o sol se abrigava por entre os picos mais altos. Que era serpenteado por um riacho que se perdia de vista à oeste. Talvez a impressão breve
  • 24. 24 de que todos deviam viver como pescadores, com os seus rostos abrasados, teria reescrito a paisagem. Agora o sol mergulhava num eterno oceano, que engolia-nos em garras de sombras em meio ao nevoeiro que se adensava no horizonte e uma brisa úmida e salobra chegava até os meus sentidos. Maravilhado cai-me de lótus. Com o silêncio pude fixar os olhos em mim, melhor. Estava esplêndido com a minha revigorada adolescência; cabelo negro e mais comprido e liso que deixava alguns fios atacar a minha fronte serena. Vestia um moletom leve de cor ocre emoldurada por trechos escuros como admirava em usar algum dia. Ele quebrou o silêncio; quase me esquecia de que as sombras podiam me ver. ― Acredita mesmo que nós somos tão insossos? ― e mirou-me fixamente por algum tempo que eu não soube precisar. ― E como devo te chamar? ― Eu não sei. Sinto-me ridículo falando com... ― Aqui, todos te chamamos de Inari. E não me chame de sombra de sua imaginação ou como gostaria de dizer, mas
  • 25. 25 supõe que eu não compreenda, de projeção do subconsciente. Eu sabia que ainda me chamava Mateus, mas estava escandalizado e muito apreensivo, apesar de me manter firme diante dele. Com quem eu estaria conversando? Não era uma subversão do que eu imaginava? Isto tudo não era nada mais do que um tratamento para o meu espírito enfermo. ― Então o quê está se passando? ― certo de que em algum momento entre a ideia e a criação, nascia a vida. Curioso que você não a saiba, pois eu esperava que me dissesse. ― comentava Juroo-kun. Olhava para a menina saltitando por entre as flores fartas enquanto pensava. Em minhas memórias renasciam as formas daquele mundo, onde guardaria a profundeza de meu ser. A mim, ou pelo menos àquele a quem eu seria. Um lugar por onde eu corporificaria os meus desejos intensos de minhas convicções perseverantes. Convicções que me assolavam como ondas e pouco ainda me davam para o que refletir de suas insinuações. Em pouco tempo o santuário surgia e, em sua
  • 26. 26 ilimitada dilatação, um lago. As vilas abandonadas, como reflexo do meu desmoronamento do espírito, seriam invadidas por centenas de trabalhadores que seguiam estas novas convicções. Precisava me restaurar das ruínas de mim mesmo. Mas, mesmo antes de chegar ao fim, o garoto me apontava sua ideia de liberdade através da menininha que já corria sem sopro em risos eternos. ― Sabe, todos nós somos partes de quem você é. Sabia, porém eu não estava pronto para a verdade. ― E como soube? ― Não somos tão diferentes assim. Sou sua melhor parte. Esta que atingiu algo ainda mais elevado. Estas pessoas que se afunilavam rumo às trilhas que levariam para algum acontecimento insonhável, passavam indiferentes por nós. Desconhecendo os seus destinos, confiados às ilusões. De olhar arqueado, Juroo-kun sempre deixava transparecer sua dúvida. ― Que ilusões?!
  • 27. 27 Fui acometido de surpresa, pois não conseguia definir o que era realidade ou ilusão. Não para ele, muito menos para mim. No entanto percebi que a resposta seria dúbia para aqueles que quisessem entender onde estão. E ele sorriu concordando. Ele estava me testando? ― Juroo-kun, você é a melhor parte de mim?! ― A melhor, aquela que transcende todas as barreiras. E o que considera o melhor de ti. ― Aquela que está unida ao Todo, que está acima. ― divaguei em voz alta. ― Quer dizer, com Deus? Não podia negar. ― Sim. ― E você também é uma parcela deste Deus? Sorri. ― Sim, sempre. ― E só recentemente me dei conta disso. Estava me deparando com a parte de mim que atingiu
  • 28. 28 seu Todo, eu. Pois eu havia atingido o meu, Deus. E esta revelação me deixou eufórico. Ele chegou à mesma afirmação. ― Somos aqueles que se conectam com que está acima e... Rematei, pois eu era o intermediário. ― abaixo.
  • 29. 29 2 “A probidade [integridade] nunca está perdida para sempre, a menos que a abandonemos... se ela parece desaparecer é porque nós estamos perdendo a retidão de nossa própria mente”. A Doutrina de Buda. Mateus 35:11-12 Estava inquieto diante das voltas dadas pelo destino que me colocou naquela casa de saúde. Pois eu mesmo não saberia como nomeá-la, os residentes falavam em uma casa de apoio ao paciente com câncer e doenças degenerativas, com grifo de interesse meu. O primeiro vislumbre era de que estava sendo enfiado num destes leprosários do século antepassado.
  • 30. 30 Quartos brancos, camas metálicas e asseadas preenchidas de almas entorpecidas, contidas em seu desespero de gritar a plenos pulmões. Contudo, todos estávamos por vontade e coação de nossos egos em estertores. O ego, que em aflição, digladiava-se entre perpetuar o seu domínio sobre a alma ou destruir-se, por mais absurdo que isto soasse. Provocado por doenças incontroláveis e incuráveis que exigiam dele novos paradigmas. Um paradoxo que poderia provocar o seu extermínio. Porém ele era mais forte do que supunham, e sua aflição era quase injustificada. Os hábitos sempre voltavam. Caminhei vacilante. Anoitecia e a pouca luz parecia dar ao lugar ares de lampião em casas sertanejas. Tomava um traje com fresta nas costas e aguardava ser chamado. Não estava preocupado, até aquele instante. Fui assaltado de tremendo pavor, não justificado. Compreendia o que estava acontecendo, conhecia o processo, havia visto em mais de uma oportunidade o que seria feito em mim. Mas jamais o havia experimentado.
  • 31. 31 Em poucos minutos seria submetido a uma cirurgia espiritual. Como a doença distinguia-se como incurável, onde mais eu encontraria uma esperança! Começava a ver o quanto estava me enganando. Acreditei em médicos que nos dizem aquilo que outros doutores perpetuam. Os médicos não passam de técnicos – altamente especializados – daquilo que os pesquisadores descobrem, desenvolvem ou supõem. Tão somente baseado naquilo que consideram existir. É verdade, sou espírita. Acredito em todas as inépcias que a humanidade apregoa. Senão, como eu acreditaria em medicina ou tecnologia. Aceitar a versão da história das coisas e renegar a fantasia que, sutil e ambígua, nos diz quem somos e molda nossa personalidade por demais complicada. O meu corpo estava definhando. Braços e pernas não respondem mais aos meus apelos. Não sentia o meu mundo. Estava enfaixado por substância imponderável que restringia o meu tato. Órgãos internos agiam como autômatos, produzindo as suas versões precárias de funcionamento, indiferentes ao corpo e seus intricados mecanismos de equilíbrio. Excessos e
  • 32. 32 deficiências de glândulas e neurônios. Estava literalmente me consumindo em banho-maria. O coração palpitava desconfortável quando surgiu uma mão amiga que, num apertar singelo, soube me tranquilizar. O seu sorriso largo dissipou o temor que se transformou em algo indefinível. Sentia-me como um enviado que estava na linha de frente de uma grande descoberta. Carregado por uma cadeira de rodas, fui levado até o ambiente cirúrgico que era coordenado por alguns médicos sem instrumentos visíveis. Certifiquei-me antecipadamente que não haveria facas, bisturis, agulhas ou ferramentas pontiagudas ou afiadas que me dessem a certeza de que não deveria estar lá. Não suportava a ideia – nem cogitava imaginar – de ter as córneas raspadas com faca de cozinha, mas acreditava no poder da fé. Ainda que a minha estivesse sendo aperfeiçoada. Tinha inveja de quem se submetia ao procedimento confiando tão somente na providência divina. Eu já havia passado deste ponto; sem retorno. Cogitava repensar, confiança em quem?!
  • 33. 33 Não presenciei o momento mais importante de minha existência porque estava de costas, com o rosto enfiado em um travesseiro. E o tempo excepcionalmente ambíguo, como se estivéssemos em um tempo paralelo, um instante quase eterno que durou menos que um minuto. As impressões foram intensas e intrincadas e, de todas as palavras que eu me recordava, boas ou más, usei a mais inesperada para a situação. A nunca dita e pouco ouvida, quase perfeita quando a expressei por pensamento brusco e inaudível – assim pensei – que, em frações de segundo, estagnou o vira e mexe que faziam por toda a espinha, mais o bulbo e o cérebro desmielinizados. Puta que pariu! – perdão pela expressão. Rápida e impensadamente desculpei-me em pensamento e os médiuns prosseguiram, sem jamais saber se me escutaram. Foram as mais estranhas sensações que ficaram marcadas por nenhuma dor e algumas cicatrizes que pareciam ser costuras que eu senti passar por debaixo da coluna cervical como se eu fosse feito de tecido preso à máquina de costurar. Quis me levantar, e entendi o porquê da cadeira de rodas. Como estava internado seria posto em meu catre com
  • 34. 34 relutância. Todos já dormiam. Comecei a sentir as minhas mãos, esfregando-as contra a barba cerrada em crescente euforia. Depois seriam as pernas e pés contra o gradeado. Friccionado-os em tudo. Não dormi. Também, não precisava mais.
  • 35. 35 3 “A realidade é eterna, a realidade não adoece, a realidade não envelhece, a realidade não morre; ao fato de conhecer esta Verdade se diz conhecer o caminho”. Sutra Chuva de Néctares da Verdade, Seicho-no-ie. Masaharu Taniguchi. Mateus 36:09-30 Abri os olhos. Estava bastante sobressaltado para manter uma conversação com Juroo-kun. Diante de mim um quarto modesto me trazia segurança. Escrito nas paredes, um resumo das conjugações verbais japonesas em kanjis e hiraganas que
  • 36. 36 insistentemente aprenderia, apesar... E em realce, uma reprodução da gravura A Grande Onda de Hokusai sobre uma parede lilás que eu não pintei para mim, contudo eu gostei assim mesmo. E aquela voz que parecia ter mais conhecimento, do que eu mesmo, havia se fundido com uma sombra ocasional de minhas mentalizações – ou visualizações – terapêuticas. Um mecanismo que estava usando para fortalecer a ideia de me curar, ou de suplantar o hábito que criou a doença. A autocura através da voz pujante e vibrante de Divaldo – Pereira Franco – em gravação introspectiva e in fraudem legis. O lago se misturou com o exercício de criar um lar para a minha Luz Divina, o templo foi se construindo a cada nova cirurgia espiritual e, as cidades foram sugestões imaginárias minhas para interpretar o assalto dos famigerados Linfócitos T contras as células neurogliais que incansavelmente protegiam os axônios com uma coberta – não tão generosa – de mielina.
  • 37. 37 E assim os axônios eram aquedutos rompidos que não chegavam às vilas mais remotas – pés, mãos – simuladas em gênero e escala imprecisos. E os arruaceiros linfócitos não têm culpa se confundem a mielina com algo indesejado para o corpo, já que não deveriam estar no cérebro ou sistema nervoso central. Como um pseudoarquiteto comecei o saneamento das cidades dando uma vontade incoercível às projeções do meu subconsciente para que impedissem a destruição, lutando e reconstruindo os canais. Se bem que elas – as projeções imaginárias – nem façam ideia do porquê da súbita manifestação de uma perseverança sem origem. Estes eventos não foram minuciosamente aguardados por mim e tampouco foram efeitos não-previstos de uma busca intensa pelo autoconhecimento. Eu sou um doente de nenhum recurso médico em vista. Se eu sequer pudesse imaginar o que me aconteceria em poucos meses, teria que rolar de rir. Jamais estive em busca
  • 38. 38 da verdade. – me conformava com teorias de conspiração. E nem esperava por algo maior. – até a cura me era inalcançável.
  • 39. 39 4 “Não poucas vezes, por imaturidade, toma decisões compulsivas e derrapa em estado de perturbação; demarcando fronteiras e evitando atravessá-las, assim perdendo contato com as possibilidades existentes... que poderiam definir os rumos”. Amor, imbatível amor. Divaldo Franco. Mateus 24:04-27 Um belo dia. Azul como jamais havia visto um. Talvez fosse a ansiedade que me escoltava em minha inspeção. Observei os encaixes das asas com os flaps e ailerons com minucioso exagero, demandando um tempo muito acima da média. Segui pela estrutura lonada da carlinga até os
  • 40. 40 profundores e bequilha. O aeroplano era de uma aparência sofrível e devia ser o desgosto de todo aeronauta. Mas para mim era a liberdade encarnada mais extraordinária de todo o mundo. Uma sensação que só experimentei por igual quando era criança, quando embolsava uma tolice qualquer que arquitetava como o maior desejo de todos os tempos. – até aquele momento. Estava tão radiante que aquela observação demorada servia para amenizar a minha impaciência. Sentia-me estranho. Como se a saudade estivesse com os minutos contados. Quando me inscrevi para o curso, buscava atropelar o meu medo de dirigir – carros. Se eu pudesse executar um voo, o quê mais me impediria. O que não mata, cura. O céu seria o limite. E não era só isso. O avião, em si, não parecia ser uma simples coincidência. Sentia como se o destino estivesse me socorrendo. Após averiguar o combustível, o instrutor sentou-se atrás, sem visão dos instrumentos que seriam narrados por mim por meio de aparelhagem de comunicação. Estava
  • 41. 41 experimentando os freios enquanto taxiava para uma das cabeceiras. Executava curvas que me atordoavam e num giro completo encabecei a pista livre. Tagarelei para um controle de torre faltante e acelerei. Os instrumentos, vários, tomavam a minha atenção quando puxei delicadamente o manche para que o avião se alinhasse imprimindo maior velocidade. Quando percebi estava voando e vigiando intermináveis instrumentos e ouvindo conselhos – exortações cuspidas – para estabelecer voo de cruzeiro. A bússola girava tão devagar que nem percebia estar me deslocando. O barulho do motor era reconfortante. De todas as reações possíveis que eu esperava sentir, eu fui tomado de febril e incompreensível saudade. Sentia-me muito além de minhas recordações. Uma sensação de percorrer raides subsaarianos, mergulhar através dos contrafortes de cordilheiras austrais e deliciar-me com lugares jamais explorados.
  • 42. 42 Fiz manobras de aprendiz e retornei para o aeródromo para um pouso por entre duas colinas. Parecia o buraco de uma agulha. A aproximação corria dentro dos parâmetros do instrutor e eu não estava nem um pouco apreensivo. Estava dentro do meu jogo. Quando estava para tocar no solo senti-me tão seguro que, mesmo que o instrutor usasse o manche auxiliar – e eu não o saberia –, deslizei suavemente. Eu havia feito um pouso perfeito. Não foi somente uma conquista mecânica, havia uma sensação, uma emoção que jamais voltaria a provar. Eu sabia que poderia voar sempre que eu quisesse. Transcendia o tempo. Contudo, ainda não conseguia dirigir. E com o tempo encontrei um grande inimigo aos pilotos ávidos, não conseguia entender as comunicações via rádio. Nem o tempo melhoraria os chiados e ruídos. Mas o
  • 43. 43 problema era outro. A providência se encarregou de me ajudar e o aeroporto foi fechado para reformas eternas. Aproveitei para desistir do impossível. Conhecia os meus limites e, quando eles não se dilatavam me dando mais sobrevida, perseverar representaria uma tolice. Os céus já não eram livres. Tudo que havia para ser descoberto já estava desvelado. Regras e mais leis que me impediam de sonhar. Não precisava me apegar às recordações que também doíam. Amuado, somei esta frustração às que se seguiam.
  • 44. 44
  • 45. 45 5 “O mundo é como uma casa em chamas que está sendo sempre destruída e reconstruída. Os homens embaçados pelas trevas da ignorância, desperdiçam as suas mentes na ira, descontentamento, ciúmes, preconceitos e paixões mundanas. Eles são como crianças precisando de uma mãe...”. A Doutrina de Buda. Mateus 06:07-21 Narrado por Tiago. Ele choramingava copiosamente. E abraçado por uma noite festiva, cheia de doces e crianças incansáveis, ele se afastou sem levantar a menor
  • 46. 46 suspeita. A dor quase o enlouqueceu. Estava sozinho, – supunha – sentado sobre uma mureta oculta na escuridão afastada de um bosque de eucaliptos murmurantes. A alameda de seixos estava vazia e o brilho opaco de alguns postes mortiços dava contornos mortos às sombras. ― Não se angustie, ficarei por perto. ― Estava ajoelhado com o braço sobre o seu ombro, consolando-o. E que não percebia a minha presença. Ao longe, a celebração de grandes letras acartonadas chegava ao ápice com o exagero de palmas e assopros. Mateus estava transtornado e em suas presunções de uma mente de criança tentava assimilar o que estava acontecendo. Levantei-me no aguardo de alguém que se apresentaria como um anjo. Destes anjos que nos acompanham por toda uma vida e além. ― Como foi o despertar dele? ― Não precisava discorrer, Mateus deixava o conflito transparecer em seu rosto.
  • 47. 47 Era o fim de sua liberdade pueril. Daquele dia em diante ele seria perseguido pelos medos de outrora. Um esboço de quem era. Premido pelos traumas, assim como pelas virtudes. ― Ele suportará esta decisão? ― Sim. Se os obstáculos forem bem implantados ele será encaminhado... ― O anjo calou-se. Aos seis anos, o garoto enfrentava o despertar de sua consciência que, nesta idade, poderia ser bastante adaptável. Porém, em alguns casos, se houver necessidade, ríspida e atordoante. De um dia ao outro se tornou tímido e desconfiado. Receoso das intenções dos outros, incapaz e amedrontado diante dos problemas diários. A graça que toda criança parece possuir, se desfez em artifícios que moldariam o seu novo ego. Havia um desígnio por trás de tudo. Estes escopos morais cerceadores o abraçariam, restringindo um suposto livre-arbítrio com a finalidade de
  • 48. 48 atingir o seu alvo. O livre-arbítrio do espírito, que está acima das vontades do corpo e da mente. Porque Deus é perfeito. Tão esquematizado e aguardado que nenhum obstáculos chega a gerar frustração. Ou que ela seja dosada e dominada para os fins do espírito. ― A sua singular vantagem é que está ciente de suas falhas. Assim como de suas conquistas. E as está aplicando a seu favor. ― o anjo se dirigia a mim. ― Mateus só não deseja reproduzir os mesmos erros. ― Tenho receios. ― disse. ― Por isso que ele vai dominar-se, através de inserções que reprisarão os fatos mais obscuros do seu passado de forma a fortalecer o seu espírito obliterado neste estado ilusório. ― Precisamente quando estava encarnado. Ponderei que em minha ignorância havia concordado com Mateus antes de seu renascimento. Havia tanto o que fazer, entretanto, desta vez, ele estaria a par das suas obrigações espirituais. Menos daquelas que nem um anjo
  • 49. 49 poderia calcular. Observei Mateus por mais alguns instantes, seria nosso primeiro afastamento em seis anos. Ele parecia não entender os sentimentos que o assolavam. E com sua pouca ideia do que se passava, medo da tolice falaz e do orgulho delirante, pensou que sentia raiva ou angústia ou incompetência. Ele olhou para a balbúrdia e projetou-as. Ele não conseguia definir este algo que o engolia vorazmente. E recolheu-se em sua ignorância infantil pensando que estava com ciúmes. Lá no fundo ele sabia que não era isso. Só não sabia explicar o quê.
  • 50. 50
  • 51. 51 6 “Se conhecerdes que todos os seres vivos são entre si irmãos, que todas as vidas são entre si irmãs, que, sendo indivisíveis, as vidas todas são um só corpo, que Deus é pai de todas as vidas, nascerá espontaneamente em vós o coração que ama e exulta”. Sutra Chuva de Néctares da Verdade. Seicho-no-ie. Masaharu Taniguchi. Inari 36:10-01 Não queria uma meditação. Bastaria fechar os meus olhos e me encontraria no templo. Olhei por toda a volta e admirei o promontório que se entrecruzava numa das passagens do bosque. Se eu seguisse
  • 52. 52 pela trilha acabaria regressando ao lago. O meu destino era outro, ascender à escadaria dos torii e descortinar os jardins de areia com suas linhas paralelas e precisas enquanto um monge meditava às sombras de grandes cerejeiras em flores. Para o meu espanto, o templo não estava ali. Uma grande soma de toras de madeira, pedras e artífices bailavam dando os esboços de um lar inexistente. E para o meu espanto, o monge meditava distraído do ambiente caótico. Só se manifestou por pressentir a minha chegada e, com acenos insistentes, chamou-me para junto. O velho tinha a mais comprida barba que eu jamais vira. E sua cabeça enrugada estava pontilhada de manchas de decrepitude adiantada. Assim como os olhos – que eram naturalmente semicerrados – que quase não deixavam se ver através das pálpebras serenas. Ele se ajeitou em sua túnica azul ensanguentada chacoalhando suas contas de um marfim amarelado pelo passar dos anos. Mantinha estas impressões enclausuradas em mim com medo do cajado a tiracolo.
  • 53. 53 Ele sorriu e eu pude distinguir a singularidade daquele reconhecimento anacrônico. Retornei os olhos para a criação do templo e supus que presenciava o princípio. Quando na verdade era o seu extremo oposto. ― Juroo-kun, é você? ― Não sabia se devia lhe dirigir um título de respeito ou menção ou curvar-me diante. Isto também não me agradou. Ele acenou cerimonioso e eu caí aos seus pés. ― Mas o quê aconteceu ao templo? Suspirou e vacilante prosseguiu. ― Foi destruído e sua construção segue conforme a sua vontade. ― Por quê? ― Ele balançou os ombros me achando divertido. Eu estava encabulado e, àquela altura, não adiantava me entender. Se eu queria respostas teria que as encontrar dentro de mim. E como já estava lá... ― Parece que se passou toda uma vida. ― Obrigado pela oportunidade de toda uma vida. ― senti os meus olhos se encherem de lágrimas. ― Por se fazer
  • 54. 54 visível todos os dias de minha vida. Mal sabia ele que este era o segundo advento ao nosso mundo. ― Por que você – ainda o consideraria um filho – diz que estou presente a cada segundo de sua vida? ― É o ar, as árvores e as águas. Os animais dos três elementos, os homens e o conhecimento. É o nosso deus. ― Juroo-sama deve ter percebido o meu espanto e não parecia decepcionado. ― Recorde-se, tudo é parte de quem você é. Este mundo é uma imagem de mim?! O tudo e o nada que constitui o meu ser, pensei rápido. ― Este vilarejo, assim como tudo que nós apreciamos pelos nossos sentidos, é sua mente despedaçada em frações inacessíveis às criaturas de seu mundo. As pessoas são expressões únicas de seus traços basilares e suas interações formam um todo que você chama de personalidade. ― Tossiu sem que eu me manifestasse. ― Se você nos observar e entender como somos, compreenderá a si. Se eu compreendesse aquelas sombras, estaria me conhecendo melhor, mas como? Passei um tempo observando
  • 55. 55 os vários personagens daquela terra e percebi que elas apresentavam certas peculiaridades que eu não considerava minhas. Eu já as tinha visto em outras pessoas da minha realidade, contudo as pequenas criaturas atarefadas em trabalhos cooperativos de erguer as imensas traves eram frações, partes, parcelas de mim. Devia tomar consciência desta realidade. ― Eles não se parecem em nada comigo. ― Eles são você. Existem fragmentos em nós que não queremos admitir e isto faz toda a diferença. ― e ele sabia que eu agora tinha a resposta, pois ele acabava de desvelar a sua. ― Existe dentro de si o bondoso, o socorrista e o caridoso. ― Assim como o malvado, o rabugento e o egoísta. ― tinha que o admitir. ― O carrasco, o ladrão e o assassino. O adúltero, o infame e o covarde. Juroo-sama arrematou com bastante ênfase ao último vocábulo. ― E o sublime, o corajoso e o iluminado. Nada havia me preparado para o que concluí com o auxílio do meu monge, ou de mim mesmo, do meu melhor
  • 56. 56 fragmento da minha personalidade. ― Creio que, como projeções que somos de sua mente, não somos tão perfeitos como me sugere a sua reação, mas para mim a perfeição é expressa pela oportunidade de compreender que, mesmo sendo um sopro, eu consiga divisar a sua realidade, a realidade de Deus e de tudo. A verdade não está escrita em palavras. Os meios para se alcançá-la, sim. Se eu podia apreciar as partes de mim, as suas conexões e relacionamentos, e ainda me espantar com o fato de elas criarem um mundo similar ao que julgava caótico. Em que nós, a expressão do egoísmo e do orgulho, sequer tínhamos consciência de que somos partes de Deus, assim como as sombras, o que aconteceria se alguém rompesse esta barreira. Eu percebi o que Juroo-sama queria me dizer. Tudo ganhava um novo senso. Eu sabia, só não sabia. Um livreto, que eu considerava um dos meus muitos oráculos de cabeceira, contou-me e somente agora eu ouvi. “A verdade para a qual deveis vós despertar primeiramente é o fato de que a essência do eu é unicamente
  • 57. 57 Deus. Sabeis vós que a infinidade de almas humanas são todas reflexos do Espírito Divino Único. [...] Deus é a fonte luminosa do homem e o homem é Luz emanada de Deus.” E eu que justamente não entendia estes escritos religiosos carregados de sutilezas, para descobrir que sempre foram claríssimos. Faltavam-lhes, aos seus escritores, palavras para descrever impressões indescritíveis. Somos partes de Deus. Estamos unidos a Ele, sem que nós precisemos de subterfúgios ou orações extrínsecas. Ele está em nós. Bem dentro de nós. Só nos basta experimentar. E todos nós estaríamos unidos aos outros fragmentos Dele. Eu estava conectado a todos. Éramos mais do que irmãos. Por falta de vocabulário, irmão seria o que mais se aproximaria de nossa ideia de comunhão ou relacionamento entre as partes. Deus era como uma vela em chama e nós, o reflexo de
  • 58. 58 infinitos espelhos, não seríamos desiguais, no entanto, ainda assim, reflexos. E como luz emanada, onde terminaria a minha e onde começaria as dos outros? Será que estávamos realmente separados. Ergui pensativo e andei a esmo.
  • 59. 59 7 “O sentimento é a linguagem da alma. Se quiser saber o que é verdade para você em relação a alguma coisa, veja como se sente em relação a ela. [...] O pensamento mais elevado é sempre o mais alegre. A palavra mais clara é sempre aquela que é verdadeira. O sentimento mais nobre é sempre aquele que chamam de amor”. Conversando com Deus I, Neale D. Walsch. Mateus 36:10-04 Eu acredito que as boas recordações são como programas que corrigem e reescrevem a nossa programação original que se constitui do emaranhado de funções sinápticas de nossos cérebros, das conexões extrassensoriais entre corpo e
  • 60. 60 alma, das implicações psicológicas do(s) ego(s) e dos problemas que consideramos insolúveis – pelo menos para nós. E uma dessas recordações se perde num passado tão distante que é constituído de fragmentos nebulosos. Um devaneio renovado por objetos que sobreviveram por um tempo suficientemente propício para que resistissem em minha memória de recordações mais firmes. E é possível que estas lembranças tenham criado novos contornos, sobretudo a sensação primordial e instintiva que sobrevive e se soma à personalidade. Nada é por acaso. E é esta memória que tenho de Cosme e Damião e outros santos. Mateus 05:10-04 Anoitecia bem rápido. Para chegar lá eu tinha que atravessar um túnel
  • 61. 61 enorme e escuro. Era molhado e manchado. Cheirava roupa velha. Quando terminava, sempre correndo para que ficasse o menos possível, via uma escada que não terminava nunca. Tinha dificuldade de respirar porque os degraus eram enormes. Molhados e manchados. Eu pegava na mão dos meus pais para não me encostar à parede enorme, molhada e manchada também. Antes de entrar, a porta já estava aberta e muitas pessoas se espremiam. Olhei em volta e lá estavam os vasos de plantas assustadas e outras fedidas num canto feito de cacos de azulejo vermelho. Não era enorme, nem tão molhado. Havia música. Esquisita e interessante. Mas eu não enxergava direito o quê estava acontecendo dentro. As pessoas estavam de pé e eu só queria ver um pouquinho. Apertei-me e empurrei pernas e bundas até chegar lá. E era maravilhoso. Um homem tocava um atabaque. Tinha aquelas
  • 62. 62 plantas assustadas e flores espalhadas. Duas estátuas grudadas com meninos de capas vermelhas e coroas ficavam num aparador cheios de pacotinhos que eu sabia que eram de doces. Nem dei importância para os meus avôs. Deixei que eles continuassem engatinhando de roupas brancas. Só quando começaram a falar como criança é que eu percebi que a vovó estava de chupeta. Estava tudo tão maravilhoso que eu queria bater palmas, mas estavam todos sérios e carrancudos. Na verdade estava ansioso para que tudo terminasse logo e pudesse ganhar o saquinho de doces. Aborrecido, e como toda a pressa é castigada, ainda tropecei num taco solto quando tentava receber o meu pacote. O chão machucava e olhei para uma bunda enorme... ― Talvez tenha sido uma das últimas vezes em que os vi assim, depois eles passariam a ser iguais aos outros avôs. E as recordações estranhas, que se tornaram tão prosaicas para
  • 63. 63 mim, também tinham origem na segunda avó. ― Vovó estava apressada. Trocava-se com pressa sem se descuidar dos pós e batons. Eu tinha medo daquele quarto que escondia um monstro dentro do armário. Ela o chamava de peruca e ficava numa cabeça de isopor sem olhos, nariz ou boca. E mesmo assim ela nos encarava. Corri para o outro quarto para pegar a camiseta, olhando demoradamente os santos e as velas postas sobre uma cômoda com tampo de mármore. Aqueles badulaques não deviam existir quando o quarto pertencia ao meu pai. Gostava da cama de molas e do cheiro do ramo seco de arruda na fronha. Ela me ajudava a vestir a camisa que tinha gola apertada e que quase me arrancou as orelhas. Partimos de carro. Eu lia as placas com o nariz colado no porta-luvas achando que ela não enxergava bem. Também era noite e eu estava ansioso porque sabia aonde íamos. Estava cheio de gente, sentados em bancos de
  • 64. 64 madeira. Como sempre nos sentamos onde eu não conseguia ver nada. O tempo era interminável. Vez ou outra eu me levantava e sentava, pois deitava no banco querendo dormir quando acontecia algo diferente. Uma mão flutuava no ar segurando uma rosa sobre as nossas cabeças. Cansei-me ansioso com o fim. Por fim houve palmas e música e então, o momento mais aguardado. Pipocas eram arremessadas sobre nós e caia ao chão. E eu tentava catar todas e enfiar na boca, inclusive as do chão. ― Com o tempo percebi que estas coisas não eram nada normais. Porém são exatamente estas – e muitas outras – lembranças que permitem que eu entenda o planejamento espiritual e o aceite com bastante passividade e amor. Lamentavelmente, como efeito colateral, tenho pavor dos rituais católicos, de gente com togas e túnicas e chapéus esdrúxulos. E até pouquíssimo tempo guardava as minhas roupas
  • 65. 65 no mesmo guarda-roupa em que a peruca ficava me afrontando. Não acho que a minha infância tenha sido preenchida de fatos bizarros e incongruentes, é uma questão de hábito. Quando crescemos, temos a tendência de julgar nossos atos de criança, e fico feliz em não achar falhas. – se bem que ainda não entendo a razão pelo qual derramei carrinhos de plástico para brincar em um açude na praia de pedra. E são estas memórias infantis que me suscitam a confiança de que todos nós passamos quase toda uma vida buscando esta sensação de liberdade, de ingenuidade e de uma profunda felicidade pelas coisas mais simples. Na simplicidade de perguntar e ter respostas claras. Amizades com disposição tola. Sem maldade e cheio de vitalidade. E Jesus ainda declamava para que lhe deixassem vir às criancinhas.
  • 66. 66
  • 67. 67 8 “Neste mundo há três errôneos pontos de vista: Diz-se que toda a experiência humana baseia-se no DESTINO; afirma-se que tudo é criado por DEUS e controlado por sua vontade e; que tudo acontece ao ACASO, sem ter uma causa ou condição.” A Doutrina de Buda. Mateus 36:10-07 Um sopro talhante dilatava os ruídos de artefatos sempre emudecidos, que são sempre suprimidos pelo turbilhão de almas acéfalas. Apreciava o skyline com impassibilidade mórbida, estava me escondendo dentro de mim. ― Hum! Lugar bastante interessante. ― ouvi-o por
  • 68. 68 detrás e muito mais perto do que sonharia, arregalei os olhos, surpreso. Girei a cabeça com cautelosa lentidão para demonstrar a minha indignação com a intromissão, e assim disfarçaria o medo de olhar quem era. O aspecto era indisfarçavelmente óbvio, ou seria outra projeção de minha mente fértil ou um anjo... ―... Da guarda. ― ele concluiu para o meu azar, e por este mesmo azar, também lia pensamentos. Agachou-se ao meu lado no largo dissimulado pelas sombras geométricas projetadas pelas pernas da torre Eiffel. ― Pensei que, pelo menos aqui, eu poderia ficar só. ― Muito interessante. Paris assim tão deserta, você aumenta a percepção de isolamento e solidão. ― E era primavera em Paris. ― Então, esse era o meu desejo até você aparecer. ― nem o conhecia e já estava despachando. Quem era ele? ― Sou só um amigo. Esperei trinta anos para que pudéssemos ter este bate-papo. E por que você escolheu este
  • 69. 69 lugar para se esconder? ― Deite-se! ― fui ríspido e direto. Não estava com ânimo para uma conversa franca. Precisava descansar a minha cabeça que queimava – literalmente – com as inflexíveis e infatigáveis impressões colhidas no Templo da Montanha e que suscitavam ininterruptas novas perguntas nos breves instantes que eu poderia chamar de tranquilos. Observando a torre por ângulo jamais cogitado, de pernas dobradas e mãos à nuca dei-lhe a solução. ― Nos mapas, um X sempre marca o local do tesouro. ― e eu acreditava que este seria só meu. ― Até mesmo deprimido, as suas ideias são inusitadas. Mas eu também estou vendo um pouco da sua arrogância e soberba. Precisava de um local para meditar que fosse do tamanho de uma cidade? E ainda assim fez questão de evacuá-la? Estava tão desanimado que aquela advertência não estava totalmente errada. Olhei mais uma vez para os edifícios mortos e aceitei a minha altivez. ― E por que você está aqui?
  • 70. 70 O rapaz, vestido como um anjo pós-moderno, com jeans alvíssimo e os tênis mais gastos da eternidade, sorriu com a deixa. ― Promessas devem ser cumpridas. E vou aproveitar para confirmar algumas de suas suspeitas e esclarecer outras questões já em ebulição. Ainda estava deprimido. ― E como vou saber que não estou em outra discussão acalorada com uma das minhas personalidades autônomas, correndo atrás de meu rabo? ― comparação horrível. ― Em duas ocasiões eu me mostrei de forma incontestável. Após a cirurgia eu afirmei, conforme as suas dúvidas sobre a abrangência de Deus, que toda a ação do mal passa pelo crivo da bondade dEle. ― Levei um tempo para entendê-la. ― e era bem a verdade. ― Após um tempo, eu te chamei de autocrata. ― ele queria gargalhar. Aborreci-me por causa do sentido em que a palavra foi articulada, em tom bastante espirituoso. E eu nem
  • 71. 71 sabia o que ela significava. No dicionário eu sou o governante cujo poder é absoluto e independente; que exerce seu poder sem partilhá-lo com outros, impondo-o de forma arbitrária e tiranicamente. E de uso pejorativo. Resumindo, pior que um presunçoso arrogante vivendo em seu mundo de fantasia. ― Foi só uma expressão de linguagem para reforçar os seus desejos. Decididamente ele tentava me confortar com respostas vazias. O que ele poderia me dizer que eu já não desconfiava? Assim eu acabei descobrindo o seu nome, um deles. ― Tiago, mesmo entendendo em parte o processo, aceitando as novas diretivas, eu não consigo repetir o evento. ― Me referindo ao Evento Pós-Cirúrgico que praticamente apagou os meus, já consolidados, modelos do meu ego sobre as interações que governavam a minha vida, uma nova matriz que ia contra as que eu tentava domar. Ele pôs a mão ao queixo. ― Aquelas respostas, sugeridas pelos textos que você elegeu, não foram
  • 72. 72 coincidências. Nada é por acaso. E o caminho não poderia ser direto, você ainda precisava amadurecer alguns conceitos... ― Foi o que pensei quando comecei a receber respostas absurdamente claras às dúvidas. ― e como elas provinham de várias fontes estranhas. ― E sempre serviam de ponte para questões mais complexas. ―... Completas. ― Tiago pediu que continuasse. ― E o quê tinha acontecido? ― Por onde começar? ― Se a vida fosse uma autoestrada de cinco pistas, – como todo bom mestre faria, uma parábola, uma fábula mecânica a La Fontaine – quais seriam as suas escolhas? Carros nas pistas da direita teriam vários desvios e paradas e sua viagem pela vida, compartimentada. Carros à esquerda teriam viagem mais veloz, com o risco de acessar um retorno. A viagem mais rápida, tranquila e eficiente seria o... ― Caminho do meio! ― Nem Buda teria imaginado que as suas lições se transformassem em tábuas asfálticas. ― E o que você quer me dizer com...?!
  • 73. 73 ― A vida é como esta estrada. Supus. ― Pré-definida?! Destino. ― “Se assim fosse, todos os planos e esforços para a melhora ou progresso seriam em vão e à humanidade não restariam esperanças. Tudo acontece ou se manifesta tendo por fonte uma série de causas e condições”. A vida não é o carro e nem o roteiro. Mesmo que siga pelo caminho do meio, o carro precisará de combustível – e até substituições. Seguir o caminho do meio exige muita disciplina para que os reabastecimentos sejam os menos prejudiciais para a viagem. E também implica que você conheça a estrada e seus desvios, retornos e paradas. ― Com qual objetivo? ― As árvores da esplanada farfalharam ensurdecedoras. ― Evitar acidentes é um deles. ― Tiago estava esquentando os motores. ― O caminho do meio não é como uma ideia do trajeto, descrita pelos que se consideram sábios. Nem Buda se atreveu a tanto, ele acreditava que somente conseguiria a Libertação após a morte, o Nirvana.
  • 74. 74 ― E quem sabe o caminho, pode me dizer? ― Aqueles que têm consciência de todas as suas qualidades e defeitos. Que conhecem cada pedaço da estrada e conseguem criar o caminho do meio, isto é, o melhor traçado considerando as ferramentas à sua disposição. Pedi tempo com as mãos em frenesi. ― Então não é a pista central? E de que ferramentas você está falando? ― Hum. Pensam que alcançar o melhor traçado depende de evitar todos os problemas e isto é impossível. Mas minimizar já é outra história. Centrar-se em evitar os defeitos e deficiências em prol das virtudes e qualidades, os tornam incompletos. O que lhe aconteceria se o sofrimento, o ódio, a cobiça e demais tolices jamais fossem experimentadas? Como saber se é salgado se nunca experimentou o doce? ― Precisava ser mais específico. ― O desejo do sábio é conhecer e experimentar tudo para que domine os excessos. ― E as ferramentas? ― Ainda estava pensando no controle dos excessos. ― Existem várias, lembre-se nada é por acaso. Nem o
  • 75. 75 tipo de asfalto, o pedágio, as placas. Estas últimas são as mais claras indicações de caminho. Quero dizer, nós as conhecemos por sonhos – e em casos extremos de presságio, premonição, cognição, vidência e etc. – e como eles não nos parecem tão óbvios como as placas de trânsito, costumamos ignorá-los. As sinalizações indicam as condições da estrada adiante. Preveem o futuro. ― Entretanto existem outras ferramentas... Tiago percebeu aonde eu queria chegar. ― Quando desejamos seguir o melhor traçado, muito planejamento reduz os riscos e prevê possíveis problemas de viagem. Este planejamento pode ser descrito pelo controle dos excessos, não é preciso correr para chegar a tempo no destino. Nesta viagem é certo que todos chegaremos ao final. Eu gosto de exemplificar que o planejamento é como um estudo do caminho que chega a ponto de antecipar as sinalizações. São sentimentos mais fortes do que um sonho poderia sugerir. É a matriz da mente inconsciente. O planejamento, quando bem executado, poderia fazer um cego dirigir. ― E como eu percebo isto? ― Sabia a resposta, porém
  • 76. 76 precisava saber como ela se encaixaria naquela fábula. ― Se já decorou o traçado e não quer sofrer interferências que lhe prejudique o raciocínio, que não lhe tire a concentração, – porque homem não pergunta mesmo – você deve resolver os problemas assim que eles apareçam. E como fica o destino? Pensei alto. ― Não há destino, o livre-arbítrio pode indicar os caminhos, mas o destino sempre será um. Portanto ele é irrelevante. Quanto mais excessos são subjugados pela sua vontade, maior será o seu esclarecimento. ― Hã.― acho que não entendi.― Existe ou não existe destino? ― Sim e não. Bem sabe que a ideia comum é que nos unamos a Deus, portanto este destino é imutável. Contudo temos objetivos, ou etapas, que são como um planejamento e se parecem muito com um destino. ― Tiago parou por uns instantes, e penso que ele percebeu que eu estava tentando dar outra designação à palavra destino. ― O destino que você compreende e aceita seria mais bem compreendido se fosse
  • 77. 77 nomeado de desígnios. E eles variam conforme as mudanças de trajeto... É impossível manter um plano original, por isso é impossível produzir um destino. ― Por quê? ― Causas e condições que dependem de muitas e muitas variáveis. Não está sozinho na estrada, os outros carros podem e interferem nos seus desígnios, obrigando-o a tomar outros caminhos. ― Como? ― como uma criança. ― Tudo afeta os seus desígnios. Seu planejamento depende de suas respostas aos eventos não previstos – que é uma ilusão – e quanto mais experiências, melhor será o seu retorno ao plano original. Você está desconsiderando o mais importante. ― O quê? ― A estrada, o planejamento, o carro, as placas, a sua interação com os outros usuários desta estrada, – e até os atalhos que eu ainda não mencionei – não são importantes
  • 78. 78 quando percebemos que eles são mecanismos que geram as experiências. ― Quer dizer, conhecimento? ― generalizando como o certo. ― Não, experiências. O conhecimento é intrínseco a todos os espíritos – ou almas. Oportunamente começaram a surgir pessoas na cidade das sombras. Nós precisamos nos levantar para não sermos pisoteados. A minha imaginação estava se esfacelando e eu já não conseguia impedir as suas tentativas de me afastar daquele diálogo. Tiago me olhou com compreensão. ― Teremos outras oportunidades. ― Sabendo que eu não queria permanecer no assunto por causa da minha intervenção subconscienciosa com a vinda de milhares de parisienses. Cheiros invadiam o ar com sabores de vendedores ambulantes e já não era possível ouvir os pássaros encobertos pelos ruídos dos carros nervosos.
  • 79. 79 ― E ainda tem mais, não é possível que em uma só vida você consiga percorrer toda a estrada. Porém eu estava curioso. ― E os atalhos?!
  • 80. 80 9 “A realidade é eterna, a realidade não adoece, a realidade não envelhece, a realidade não morre; ao fato de conhecer esta Verdade se diz conhecer o caminho”. Sutra chuva de Néctares da Verdade , Seicho-no-ie. Masaharu Taniguchi. Mateus 36:10-10 Joguei-me na cama com olhar inexpressivo nas imperfeições do quarto. A brisa de um inverno alongado de primaveras sufocantes dava a impressão que as meias-estações não existiam mais. Creio que descobri um bom local onde eu poderia estar completamente só – sobretudo com a porta às sete
  • 81. 81 chaves. Por vezes inda ouvia alguém tentando me levar à alienação. E como as conversas difíceis sempre me tiravam do ar, estagnei a mente em futilidades. As conversas, e ainda mais aquelas que me fazem pensar, dando nova formulação aos meus mais básicos, perfeitos e indiscutíveis conhecimentos, surpreendiam-me. Surpreendiam-me porque tudo muda sem que nada mude. É o mesmo que um copo meio vazio ser um copo meio cheio. Um ponto preto ser menos – ou mais – formidável que a folha de papel que o criou. Deus ser o Tudo e especialmente o Nada. É dificílimo não reagir aos acontecimentos. Quem eu estou enganando além de mim mesmo. E é quando eu penso que estou atingindo novas metas, e anjos ou projeções começam a me dar sermões na montanha, que desisto destas divagações. Por onde eu me desvencilho deste drama psicológico. ― Não tem mais volta.― uma voz na cabeça teimava
  • 82. 82 em continuar o diálogo. Por que eu não podia ficar só? Esta era a minha realidade e se Tiago for outra sombra, que se cale no meu subconsciente superativo. ― Eu nunca desisto. Não importa se você não consegue superar as intervenções do seu ego. A sua personalidade deve reagir, é a sua natureza. ― E como eu fico? Saltando de um estado emocional para outro? Exercendo a compaixão incondicional para, em seguida, reclamar, espernear e esbravejar? ― e já estava conversando com ele. ― Ninguém está pedindo que você aja diferente. Quem está se enganando é você. ― cheiro de baixa autoestima. ― Só tem que controlar os excessos e pensar e experimentar. Pois não existe um só dia de sua existência que não tenha sido admirável, ou ainda acredita que somos intenções da casualidade?! Eu afirmo que estou aqui. Suspirei aliviado, há ocasiões em que queremos estar sozinhos. Outras em que seria bom ter um ombro amigo. E eu
  • 83. 83 confiava nele. ― Assim mesmo eu suponho que você não passa de uma ilusão e estas conversas sem sentido. Acho que estou correndo em círculos, já te disse. ― Nem vou perder tempo discutindo! ― Tiago estava exasperado. ― E anjos têm raiva? ― Muita. Somos estúpidos e idiotas quando temos que guiar pessoas que não chegam a se decidir. Em outras situações somos obrigados a admitir que sempre seremos assim. ― respirou fundo, pelo que pude supor. ― Qual é a sua versão de mim? ― Que anjos têm raiva. E não gostam de quem não persiste. ― Mateus, você realmente está com medo? ― Sim. O silêncio perdurou por mais alguns minutos. Tinha que admitir, mesmo que ele fosse uma projeção, – uma fantasia
  • 84. 84 – possuía uma confiança que eu não tinha. Nuvens negras me assolavam. Uma tempestade de granizo começou a despencar. ― A satisfação pessoal deve começar pela superação, mediante rigorosa autoanálise das realidades reais com as aparentes. Não é possível extinguir o ego se quiser permanecer consciente diante das provas. ― Por que não confio em mim? Tiago complementou.― A preocupação é a porta de entrada para os medos... E mesmo ciente de tudo, deixava-me levar pelos acontecimentos prosaicos que sempre preencheriam e ocupariam tudo o que fosse presumível. Cada brecha de uma mentalidade entulhada por pensamentos ilusórios que seriam como combustível para o fogo das paixões humanas. Eu até conseguia ver além das aparências, mas mesmo assim, nada conseguia fazer para recriar o Evento. E eu sabia a fórmula para recriá-lo e dependia tão
  • 85. 85 somente de disciplina. Todas as religiões, seitas, filosofias, doutrinas e ciências também a conheciam, apesar de empregarem linguagens diferentes e não divergentes. De quantas maneiras diferentes é possível contar a mesma estória? Tantas quantas quisermos. E elas se adaptarão ao gosto do leitor. Tinha que recomeçar o mantra. Para cada vez que eu fosse atingido por uma perturbação, recorreria ao bordão. Advinha algo repentino ou perturbativo e eu estava pronto para esclarecer – a mim – que Deus era o princípio de tudo e a causa primária de todas as coisas. Com o tempo esta frase se sintetizaria em que Deus é perfeito. Um amálgama de julgamentos que dariam a entender que eu estaria desesperado ou, insanamente se agarrando a todos os santos, seitas, ervas, milagres e patuás. A verdade é muito mais pura, o caminho nem sempre seria revelado por fórmulas, métodos, evangelhos, ou tábuas da salvação, medicina experimental, rezas brabas, mantras, ou
  • 86. 86 benzedeiras, neurocientistas e outros enfermos incessantes em falar sem parar. O mais atraente é que todos estão certos, quando se conhece a verdade percebe-se que ela pode ter vários nomes e ser dita conforme a circunstância, contudo teimo em achar isso ou aquilo, estabelecer interpretações e empurrar a responsabilidade para alguém. E pensar que o Cristo confirmou que nós somos deuses e tudo que ele havia feito, nós poderíamos fazer e até mais. – não exatamente com estas palavras. E é por isso que eu acredito que vivo em profunda ilusão. Acho que não tenho preconceitos e, quando a essência do Tudo se torna a mais clara palavra unida ao mais alegre pensamento, eu apreendo que o caos, o sofrimento, provas e expiações não passam das partes mais formidáveis da minha aspiração. A essência de tudo sempre será a simplicidade. Friso que, são desejos d’alma. E tenho conhecimento do que a alma deseja? Para
  • 87. 87 qualquer das duas respostas teria que saber porque eu ajo supondo. Supondo que eu saiba ou não, quando o maior trunfo da alma é me esconder a verdade. Firmei os pés e tentei me levantar da cama. Foram apenas duas tentativas e já ziguezagueava como Frankenstein rumo ao armário, dois passos só. Um mal-estar provocado pela hebdomadária betainterferona interferia com o meu humor de opiniões trancadas a sete chaves, isso se eu não queria falar o que não devia. Com o tempo percebi que não passavam de admoestações provocadas pela sensibilidade ao som, à luz e aos cheiros.
  • 88. 88
  • 89. 89 10 “Ideias demoradamente recalcadas, que se negam a externar-se – tristezas, incertezas, medos, ciúmes, ansiedades – contribuem para estados nostálgicos e depressão, que somente podem ser resolvidos, à medida que sejam liberados, deixando a área psicológica em que se refugiam e libertando-as da carga emocional perturbadora”. Amor, Imbatível Amor. Divaldo Franco. Mateus 27:05-01 Eu estaria mentindo se eu dissesse que nunca quis me matar. E provavelmente me contradiria ao afirmar que jamais me suicidaria. Não estava procurando por métodos que
  • 90. 90 usassem cordas, facas, raticidas, trens ou pontes. Tão somente a boa e velha inexistência. Que Deus jamais tivesse me criado, e para Ele seria tão simples como um estalar de dedos – e Deus tem dedos? Enfim, por que eu teria que me arrastar por uma existência fracassada, ou pior, existências que se perdiam no passado e teriam que ser rastejadas no futuro? Acabava de abandonar o meu último resquício de perseverança e com isso afundava a esperança e a confiança em mim – e nos outros. Agir com compaixão e humildade já não seria possível, pois estava entregue às mãos do destino que me arrastava sem que eu me abstivesse. Uma morbidade se apossou de mim como um obsessor invisível que resgatasse os seus direitos de cativeiro. Não sabia a gravidade, no entanto possuía dois minúsculos atributos que me impediam de atingir o fundo do poço. O medo de morrer – não da morte – e ter plena convicção de que todos me amavam. Por que eu não conseguia alcançar os meus desejos
  • 91. 91 tão bem calculados? E as incoerências só me causavam mais estranheza e rancor. Parecia um plano bem executado para me manter sempre com a estima baixa. E quem era o meu carrasco! E com o fim de mim. Em um ato de ajuizado desespero me ofereci às circunstâncias antes que elas se complicassem. Deliberadamente abandonei o emprego que me daria autonomia, sentindo tanta raiva de mim, de minha ineptidão. De não entender de onde ela provinha. De não conseguir me conhecer. Que aceitei a minha derrota ao reconhecer a minha ignorância e inabilidade em tudo o que eu pretendesse. Um choque que atingiu o meu orgulho em cheio. Nos últimos anos eu era pressionado a pensar que nunca conseguiria ser proveitoso, enquanto todos me julgavam extraordinário. Todas as tentativas, mesmas a somente pensadas, se transformaram em tormentos. E também atingiam a todos que me cercavam, realimentando o medo, a preocupação sem justificativa. Por um tempo eu ainda me saía bem com a fascinação de estar no domínio de mim. Na faculdade o
  • 92. 92 processo se desmoronava a cada período. E eu começava a rever o que era realmente imutável em uma mente jovem e amadurecida. Não compreendia por que um projeto que era reprovado servia para uma exposição? Sugestões inconcebíveis estagnavam-me sem solução? Ideias contraditórias que me impediam de seguir. Um empate? Estágio repetitivo e rotineiro que era um desafio? Estava me desconstruindo e as antigas atribuições pareciam eternamente novas. Assomava-se o medo de não atingir as expectativas – as minhas. O medo de ter que realizar duas ações ao mesmo tempo, de esquecer algo. Estar sobrecarregado por nada. Ser repreendido. As desculpas pareciam outras. E enquanto pensava que era por causa do stress, das recriminações que nunca aprendi a descartar, por nunca dizer não e, aquelas incertezas que eu administrava tão bem por estar em meu território, foram esfaceladas quando fui exposto ao incontrolável. Não tive
  • 93. 93 outra escolha senão me expor. O ambiente foi cuidadosamente preparado para que eu não conseguisse superá-lo em segredo. Todas as opções foram vetadas e eu cedi. Aniquilado, fiz o que mais me doía, antes que eu machucasse alguém, reconheci a minha estupidez perante todos. E a crença de que era o bom, se mostrou como soberba. O elogio terminou em desprezo. A raiva se dissipou e só me restou o choro cruciante. Continuava perdido nas minhas divagações, mas eu não estava sozinho.
  • 94. 94
  • 95. 95 11 “A Dificuldade Inicial. O começo pode ser difícil, mas, depois de superada a dificuldade inicial, as perspectivas são favoráveis. Procure a ajuda ou o conselho de um amigo”. I Ching. Mateus 36:10-12 Caminhava a pé pela estrada sinuosa e estreita quando as brumas se afastaram orquestralmente, desvelando- me um lago azul profundo. Amanhecer aprazível de pulôver e ares frescos de pinheiros me propiciava uma caminhada em meio ao arvoredo inquiridor enquanto admirava os barcos e veleiros em suas manobras brandas de um vento moroso. O lago estava dentro de uma cratera dormente e assim, o
  • 96. 96 caminho, que cingia as águas e o sopé de montanhas sagradas, era a linha de equilibro entre os reinos. Por todo o caminho, não descuidava do trânsito dos pequenos compactos em mão inglesa e dos acessos rústicos para as casas de barcos e demais marinas com dezenas de embarcações de velas seladas. A Tōkaidō atravessava a cidade muito próxima das margens e, então, parei para admirar a circulação de passageiros de um terminal fluvial. Passei um lenço na testa suada e retirei a mochila para pegar alguns ienes que seriam engolidos por uma máquina de refrigerantes. O sol já despontava por entre os montes e encostei-me à amurada do estacionamento do terminal tomando avidamente a bebida gelada. O burburinho de turistas já se encaminhava às portas de meus ouvidos, tentando agrupar-se, quando ouvi um turista de minha terra se pronunciar em sussurros. Ele subiu no guarda-corpo para poder me encarar com lábios arqueados e risonhos. Fiz uma contração voluntária e não
  • 97. 97 escondi a minha decepção com um muxoxo e olhos virados. Os turistas já haviam entrado no ônibus que os levariam ao templo no topo do Monte Myoboku e seus cincos sapos sagrados. Havia um salutar odor lacustre que se somava aos fortes cheiros de comida de um restaurante de lámen. Que os excursionistas se aglomeravam entre as vitrines de um e da loja de omiyagi – souvenires – logo abaixo do monstruoso Torii. Cruzei os braços na amurada e bati com a testa diretamente sobre eles. Fechei os olhos por um instante e achei tudo muito estranho. Como um sonho dentro de um sonho. Girei para o meu observador, que estava sentado em uma das duas inusitadas poltronas marrom-avermelhadas estacionadas em uma vaga para kanjis incompreensíveis, e puxei os fones do player que tocava música de Motohiro. Tiago estava de óculos escuros e mãos entrelaçadas com os cotovelos apoiados nos braços da poltrona. ― Não preciso tomar a pílula azul ou vermelha, já me contento com as vacinas semanais. ― reconheci a cena. ― Só não queria me sentar no chão. ― ele ainda se
  • 98. 98 lembrava de Paris. Busquei sentar e nem me preocupei com os olhares enviesados dos residentes e nem se eu estava sentado num barril de pólvora como suponho que seja o vulcão abaixo do lago. Fiz menção para que ele desembuchasse. ― Eu queria saber por que tudo tem que ser perfeitamente idêntico à sua realidade física? Os cenários, as pessoas, as possibilidades... Iniciei. ― Não acho que seja assim. É somente uma experiência para recriar alguns elementos que reconheço. Nem imagino como seja um susuki no outono, mas eles estão por todos os cantos. ― estava contente com o resultado final. ― Os personagens, eles dão um toque especial. Preste atenção nas interações entre eles. ― O quê você está sugerindo? ― Achava que estes eram cenográficos. Tiago esperou que eu observasse alguns. ― Eles continuam sendo fragmentos de sua personalidade, os tais
  • 99. 99 subegos ou subpersonalidades ou projeções de seu subconsciente, e não estão isentos de criar algo totalmente novo neste mundo. ― Como eles podem ter uma vida completa se são frações? E o que você quer dizer com criar algo novo? ― Acabei com o refrigerante sem o oferecer. ― Todo o seu conhecimento é oferecido a eles, as suas frações psicológicas tomam-no para si como um computador que precisa de um sistema operacional. Estas frações podem se apropriar de outras estruturas psicológicas suas para, digamos assim, reconfigurar as suas disposições naturais. As combinações podem ser infinitas e mesmo assim você pode reconhecê-las. ― E reconhecendo estas individualizações minhas e suas personalidades, eu me conheceria? ― frisei com dúvidas. ― Não é só isso. ― aguardou teatralmente. ― Também somos parte de algo muito Maior, que criou um universo. Reconheça os seus subegos e se conhecerá na totalidade de si. E por que Deus não pode fazer o mesmo, em
  • 100. 100 escalas universais? Somos seus subegos, micropersonalidades autônomas que se relacionam das mais variadas formas. O nosso diálogo é uma destas criações. ― Hã. ― As suas personalidades fragmentadas podem e devem interagir e, este mundo subjetivo pode e deve se recriar sem a sua interferência. Colha as experiências. Um ônibus estacionava ao nosso lado, inteiramente lotado de dezenas de câmeras em flashes apontados para nós. Eles estavam agindo além das minhas expectativas, eu havia criado um monstro. Tiago percebeu. ― Espere um pouco. Você ainda não tem a capacidade de gerenciar tais criações, e este é só o primeiro passo. ― as luzes faiscantes o incomodava. ― Além destas montanhas não existe nada e as suas projeções não devem possuir uma alma. E tudo está subordinado à sua vontade e limites... ― E as pessoas que criam jogos, filmes? ― Elas determinam todas as variáveis. Sabem o
  • 101. 101 começo, os meios e os fins. É um pacote impermeável e imutável. Embora a sua origem provenha da realidade que conhecem, de fatos pré-definidos, o produto final tem como resultado aquilo pelo qual foi criado. Não há brechas, senão aquelas implantadas e que acabam não sendo. Gritei alarmado. ― Então eles – sobre as minhas projeções inconscientes – podem me superar, me surpreender com atitudes inimagináveis? ― Como dizem, você é peixe pequeno. As suas projeções ainda não podem reagir aos estímulos, como supõe. Elas estão atreladas ao seu conhecimento e as suas relações devem respondem ao que você já experimentou. Mas eu não vim para destruir os seus sonhos... Levantei-me e desta vez comprei duas latas. Acalmei o meu espírito que estava ansioso para seguir em frente. O ônibus partia com nova tripulação que acabava de sair do terminal em escandalosa conversação de balançar interminável de cabeças agradecidas. Concentrei-me nas sutilezas e ações que eu não precisava pensar. Eles se constituíam de autonomia e
  • 102. 102 imprevisibilidade. ― Livre-arbítrio. ― E pensar que ele existia. Dentro de um mundo tão contido e organizado. Reflexo das Leis Naturais que eu determinaria para eles. Estava absorto quando depositei o refrigerante junto à poltrona e estiquei a mão para entregar o outro. Rapidamente, sem pensar, dei um tapa na mão de Tiago que recuou rindo e reclamando da dor. ― Se estiver imaginando que anjos não devem tomar refrigerantes, eu te asseguro que isto não fará mal às asas. ― Agarrando a lata. ― No entanto essa não é a sua preocupação, não é? ― O quê acontece se eu mudar as regras deste mundo? ― com remorso de ter batido em um anjo. ― Diga-me você. Se, por exemplo, os barcos começassem a afundar neste lago. ― Ou poderiam achar tudo normal, porque eu assim determinei. Ou poderiam correr de um lado para o outro,
  • 103. 103 desesperados, achando que é magia. ― Tinha certeza que seria o outro ou... ― Ou eles mandariam os melhores cientistas para verificar alguma mudança na densidade da água ou de sua resistência hidrodinâmica. Enfim, descobririam uma resposta que seria fundamentada por suas Leis ou desvendariam novas que gerariam uma gama de novas interpretações. ― Mas é o que nós – da minha realidade – faríamos! ― Foi um susto tão grande que eu percebi o óbvio. ― Tudo é um infindável fractal. Queria acertar Tiago com um taco de beisebol, mas não seria prudente castigar um anjo. ― Por que você não me explicou desde o começo? Ele deu de ombros, achando graça do meu aborrecimento. Eu tinha que dar o troco. Pus a mochila e acenei, íamos subir até o Templo por um caminho íngreme e sufocante. Sem ônibus.
  • 104. 104 Suas ideias eram outras. Saltou no lago. ― Eu admito conhecer as premissas do mundo que criei. ― e Tiago andava sobre as águas. Pus-me a alcançá-lo. Nunca cogitei que fosse complicado andar sobre um lago que escorregava como gelo e balançava como gelatina. O desequilíbrio me forçou a mergulhar de cabeça. ― Existem coisas que só funcionam na teoria... ― Ou nos cartoons. ― e como ele conseguiu?
  • 105. 105 12 “O autoamor não pode se confundir com egoísmo, que é o orgulho de ter e ser mais do que é. De suplantar o outro pela submissão. O autoamor impõe o seu caráter humanitário à um estado superior de si. O ser ideal é aquele que caminha no meio, em equilíbrio entre o orgulho e a submissão, a arrogância e a humildade que nada mais é do que a sublimação”. Mateus 36:10-13 Após as chuvas de cinzas custeadas por um vulcão, entre espirros e alergias. Da suspensão de minhas intenções xintoístas em uma luta travada contra centenas de incansáveis formigas envenenadas que não queriam ser aspiradas ou
  • 106. 106 varridas. Teria o meu prêmio com as agradáveis agulhas do acupuntor. Com o tempo você acaba se acostumando. Essa expressão, tão condicionada pela consternação, nunca reflete a realidade das intenções mais nobres. Nós não nos acostumamos. Com o tempo tudo se transforma, as dores podem ser maximizadas ou superadas. Eu acreditava que pertencia ao bando de reclamadores e lamentadores que aceitavam que o mundo estava se acabando em enxofre e caldeirões de água queimante. No entanto fui pego me afeiçoando aos reclamantes com suas moléstias inquietas. Nunca armei ser um bom par de ouvidos, e o desfile de reclamações justificáveis – por causa de doenças terríveis – me acalmaria os ânimos. E assim eu quase me sentia saudável em meio aos flagelos pessoais, dos outros. As minhas incurabilidades não se mostravam tão imutáveis. Estava animado com as sessões de acupuntura que me devolviam as sensações desaparecidas de mãos e pernas.
  • 107. 107 Por mais que eu queira escolher aquilo que me trouxe avanços, tenho que admitir, sem provas materiais, que nada acontece por acaso. Existe uma perfeita simbiose entre todas as pseudocoincidências. A acupuntura é o caminho para consolidar os benefícios alcançados com as cirurgias espirituais. Sem se conhecerem, elas trabalham em sintonia tão magistral que colhi algumas surpresas. Acabei descobrindo, através destas pseudocoincidências, que um dos sintomas não era o que eu supunha. Obtinha uma nova doença autoimune para o meu currículo de incuráveis. Entretanto esta era, pelo menos, controlável desde que não me aproximasse de glúten. E eu achava que tinha descoberto tudo sozinho, me rejubilando pela minha sagacidade de ver as informações sendo esfregadas no meu nariz. Contudo, a maior conquista seria me afeiçoar aos outros pacientes lamentadores que aguardavam impacientemente as agulhas de um médico com pretensões sádicas. As pautas do dia sempre seriam as calúnias políticas, a indignação médica e, no meu caso, o clima.
  • 108. 108 Adorava notar as pequenas – ou grandes – manifestações destas personalidades com as suas particularidades que, às vezes, me cansava. E em alguns casos, bastava o relógio parar de funcionar, e o caos de suposições preenchia um ambiente heterogêneo, como aquela antessala de espera, com angustiosa e divertida exasperação. E o universo ainda brincava comigo.
  • 109. 109 13 “Não afeteis orar muito em vossas preces, como fazem os gentios, que pensam ser pela multidão de palavras que serão atendidos. Não vos torneis, pois, semelhantes a eles, porque vosso Pai sabe do que necessitais antes de o pedirdes”. São Mateus 5:5-8 Mateus 32:06-20 Sou suspeito para julgar. Sentado no posto de saúde onde seria interrogado pelo médico, escutava as narrativas dos outros pacientes que pareciam se deliciar com os trágicos e intrigantes enredos de suas doenças escabrosas. Em lamúrias perpétuas que não queriam soluções e sim um par de ouvidos.
  • 110. 110 Se eu tentasse embarcar na mesma repetição monótona e tediosa de queixas, – pois tinha conteúdo para o assunto – seria sumariamente interrompido. Eu não era senil o suficiente para reclamar e nem parecia estar tão adoentado assim. Eles até paravam por um instante, me avaliavam com olhares nada discretos e se davam por satisfeitos. Recomeçavam as reclamações. Logo estava me acostumando com a pouco ou nenhuma seriedade que uma doença sem feridas, pústulas, cirurgias agonizantes ou erros médicos poderia provocar. Tudo bem que era incurável e degenerativa. Daria novo sentido à palavra paciência. Estiquei as pernas e atravessei os braços para me aquecer enquanto o ambiente hospitalar se esvaziava e me perdia nas imagens de uma televisão muda. Não gostava de esperar por algo cujo resultado eu sabia. As lâmpadas fluorescentes falhavam. Estava escuro quando fui convocado. Bem sabia que a consulta seria mais uma interminável rotina para verificar o
  • 111. 111 meu quadro de saúde – ou de piora. Para ser sincero, ainda não me sentia enfermo. Entretanto havia recebido um título que poderia mudar a vida de um homem, para sempre. Ainda me lembro do diagnóstico depois de ressonâncias e exames de sangue, para o meu pavor de agulhas. Nestes episódios eu me aproveitava da falsa impressão de que tudo estava bem e me confiava ao medo com o subterfúgio de uma personalidade que eu só usava em casos extremos. Fechava bem fortes os olhos, dominava a minha admoestação e terminava com expressão de bon-vivant. Pois era esta que ainda me mantinha confortável perante as circunstâncias que eu mais detestava. Médicos, hospitais, doentes e impotência. Um dia desses, eu percebi um comentário que me abalou. Ninguém quer ficar doente. Nada mais lógico. Contudo, assim que eu soube que estava incuravelmente diagnosticado, experimentei um alívio. Muito alívio. Tanto alívio que o médico, que esperava alguma
  • 112. 112 reação nefasta ou confusa, ficou me encarando absorto. Tenho quase certeza que ele pensou que eu não havia entendido, ou estava em choque, ou mais doente do que cogitava. E daí se me sentia bem? Um doente só é feito de seus exames. E seus medicamentos, que no meu caso se compunham de vacinas dia sim e não. Se era para ser uma catarse com agulhas, eu teria que aplicá-las sozinho. E com o tempo se tornaria mais um hábito – doloroso. Porém a doença é no cérebro, e eu desconfio que afeta algumas das áreas mais inconvenientes para mim. Pois eu ainda tremo só de pensar em agulhas, mesmo as finas e pequenas subcutâneas de aplicadores violentos – que eu jamais pensei em usar. A doença pode ser um carma, um sofrimento sem fim, a doença deprime e corrói os sentimentos, destrói as fundações familiares, sociais e profissionais. A doença redefine atitudes e ações e atrai aqueles que te amam e afastam os falsos. Ou o contrário, afasta aqueles que diziam te amar e atrai o amor de
  • 113. 113 incógnitos. Conforme suas crenças, a doença pode ser uma prova ou expiação, um castigo, a punição de Deus. Dívidas contraídas de um passado, missão ou a bondade de Deus. Porque todo o mal passa inexoravelmente pelo crivo da bondade de Deus. Por convenção eu me enquadraria naqueles cuja enfermidade é a prova para aperfeiçoamento de algum débito nascido em vidas antigas o suficiente para não me recordar. Ou seja, fiz e agora tenho que pagar. Por sorte ainda consigo aceitar a resignação e possivelmente consiga me adaptar às dificuldades que venham a surgir. Menos para as mais óbvias. Porque tenho a incapacidade de perceber os meus erros, assim como a maioria das pessoas que apontam julgamentos de dedos firmes e não percebem que possuem as mesmíssimas qualidades ao qual se apressam em denegrir. As minhas aptidões neste campo incluem que todos sempre são mais admiráveis do que eu. E acabo passando a impressão errada de que eu estou melhor do que eu mesmo
  • 114. 114 suponho. Na primeira chance em que eu me confrontasse com o espelho, veria um idiota que não conseguia disfarçar a sua azucrinante arrogância adubada por tolice. Valendo-se de uma doença como pretexto para uma situação que chegava à sua fronteira. Por isso senti alívio quando algo justificou a minha fraqueza. Eu não era acusado pelas derrotas. Embora também o seja. Alguém assumia as minhas culpas – uma doença degenerativa incurável – enquanto eu ganhava tempo para respirar aliviado. Estava aborrecido. E doente.
  • 115. 115
  • 116. 116 14 “Se isso for ser esperto... Prefiro passar minha vida inteira como um idiota!”. Masashi Kishimoto. Mateus 36:10-15 Aonde quer que eu olhe, as árvores contraiam uma tonalidade ocre que prenunciava o outono tardio. As montanhas precipitavam estas nuanças na limpidez do lago azul. Estava a passos lentos, quando enlacei firme o lenço rubro como uma badana e sorvi toda uma garrafa de água em um só gole, observava Tiago logo atrás. Ele estava mudo, não se deixando levar pelo meu intuito de caminhar com sofrimento e molhado. E ele carregava
  • 117. 117 um rolo de pergaminho preso às suas costas, com bastante destreza, considerando as dimensões e considerações. Atravessamos a enseada e, após os primeiros lances, eu desmoronei aos pés de uma arvoreta como um bonsai titânico. Tiago se sentou nos degraus de um humilde templo, abaixo das grossas cordas que estavam repletas de guizos e ornamentos bizarros, deixando o pergaminho escorado. O templo ostentava um altar com oferendas de arroz e muito incenso com suas colunas ondulantes de fumaça aromática. Não havia inscrições, nem estátuas. E as lacunas na sombra teimavam em me cegar. Quando me acomodei, flexionei os braços sob a cabeça, descansando-a na ramificação, e dobrei as pernas com descaso. ― Quero me desculpar por tratá-lo com desrespeito, não foi a minha intenção. ― Tiago somente sorriu. Eu me envergonhei. ― Nós somos amigos. Eu te compreendo. Suponho que esteja aborrecido pelo meu atraso em... ― acenei arrependido. Era o meu melhor amigo e eu nem me recordava. Talvez ele me
  • 118. 118 respondesse. ― As pessoas costumam idolatrar os seus anjos, sabia? ― Dignou-se a confirmar se eu estava pronto. Frisei com um aceno duvidoso. ― O que você pensa de estar doente? Poderia falar tudo sobre a moléstia, inclusive das minhas teorias bastante sugestivas. Mas de como eu me sentia?! ― Tenso. ― Posso complementar? ― continuou sério. ― É por causa das divergências criadas entre ser o doente, atender a sua versão das expectativas de todos, as suas próprias e reescrever as impressões que davam corpo ao seu ego. Porque você ainda não consegue extingui-lo. ― E por que me mostraram como é ser sem ego? ― Quem lhe garante que não foi você mesmo? Pressente que tudo possui uma razão, desmerece as coincidências e, mesmo assim, precisa de uma autorização? Quem melhor para o trabalho do que você?! ― E qual seria o papel dos anjos da guarda, guias e outros arcanjos? Pensava enquanto eu era açoitado por mais perguntas. ― Eu não estou
  • 119. 119 com você em tempo absoluto. ― Eu quero acreditar que toda a minha vida tem algum sentido... ― ele interrompeu-me com voracidade. ― Cada segundo é meticulosamente calculado. Tudo que lhe soa errado pode ser precisamente o contrário. O plano sempre tem cumprido todos os passos. ― Os traumas, as incertezas, as inseguranças, os medos e os obstáculos são alguns destes planejamentos com gosto amargos? ― No seu caso, quase todos são amargos, azedos ou intragáveis. Mas nunca foram difíceis de engolir. ― abrindo o pergaminho abruptamente no ar que caiu suave sobre o gramado. ― Eram barreiras criadas para impedir que os acontecimentos do passado fossem recriados e você repetisse os mesmos erros. Fiquei surpreso porque estava inconscientemente ciente dos fatos que me levaram ao suicídio. ― Que em cada episódio detestável havia um fim? Pode imaginar os transtornos
  • 120. 120 pelo qual eu passei? ― E pode imaginar o trabalho que me foi assegurar a sua infalibilidade? ― escondendo-me que os fatos jamais saiam dos trilhos. Havia outros personagens no traçado. Fez-se um silêncio abrasador. Tiago apontou para o pergaminho que tinha algumas partes rasuradas para o meu constrangimento. Eram alguns registros desta minha biografia. ― Mas antes vamos rever alguns fatos. ― ele percebeu que eu estava nervoso com o que fosse dizer sobre mim. ― Como anda as coincidências? ― Agora elas são absurdamente recorrentes. Qual é o objetivo destes sinais? ― São reforços. Ou você ainda acredita que a sua vida é repleta de escolhas e oportunidades infinitas? Há um ciclo de eventos repetitivos que, se você perceber os sinais, o persegue infatigável. ― estava bem atento. ― No início parecem simples coincidências, porém se aceitar o fato de que elas são mais do
  • 121. 121 que parecem... Hum. ― o que eu poderia dizer?! ― Esta certeza pode aprimorar as suas convicções, e as coincidências passam a ser... ― ele não parecia saber o que dizer. Adiantei-me. ―... palavras-chaves?! ― Melhor, a matriz básica do plano desta vida. E que contem um projeto mais abrangente por detrás. ― Ele se iluminou com um pensamento oportuno. ― Tem um texto afixado ao seu armário que diz mais ou menos assim. “O seu potencial é ilimitado em tudo o que escolhe fazer. Não presuma que a alma que escolhe renascer em um corpo que você considera limitado não realiza todo o seu potencial, porque você não sabe o que a alma está tentando fazer”. Tive que concordar, entretanto a citação só me deixava mais abatido, não saber o que estamos fazendo e mesmo assim se entregar a desígnios imperceptíveis?! ― O universo conspira a seu favor. ― foi a minha vez
  • 122. 122 de ficar sem saber o que falar. ― Sabe o que significa a frase? ― Sim. ― Comecemos pelo início. O plano. O seu objetivo é extrair ou enfraquecer alguns excessos. Eu posso citar alguns: orgulho excessivo, intolerância e arrogância, egoísmo, desrespeito, medos sociais e mais algumas falhas. ― engoli em seco. ― As palavras são duras, mas nem todas são extremas. Todos precisam de uma dose de covardia para que a coragem não se torne temeridade. Não amenizou o impacto. ― Eu vou usar as suas palavras escritas no diário, com o cabeçalho horrível de Impositivos da Lei Divina. ― e só piorou. “Não sei ouvir as pessoas, trato-as com certo distanciamento. Procuro aconselhar evitando compreendê-las. O trato social é minimamente inclusivo. E por que todos gostam de mim?”. “Não sei lidar com os sentimentos, principalmente se forem ilógicos. A autopreservação gera frustração. Esperar que todos ajam logicamente implica que eu pouco conheço do ser
  • 123. 123 humano e suas fragilidades. A doença me obriga a enfrentar este dilema. Será que conseguirei ouvir?”. Chorava diante da verdade. ― E foi por causa desta autoafirmação que a semente da transformação nasceu. É difícil reconhecer as falhas de caráter, apesar disso é muito mais difícil assumi-las. Dominar-se a si próprio é uma vitória maior do que vencer a milhares em uma batalha. ― Não entendo a razão de tanto sofrimento. ― o efeito indesejado. ― O sofrimento não existe, a sua ideia de que é difícil abrir mão de seu ego – e suas distorções – lhe impõe este obstáculo irreal. Se ele parece intransponível é exclusivamente por sua causa. É a reação natural daquele que não quer se submeter. ― Submeter-me a quem? ― com medo da resposta. ― Às suas pseudocoincidências, os desígnios. Se submeter a este fatídico destino – desígnios – é colaborar consigo. Agir como se as pseudocoincidências fossem imposturas ou obstáculos indica que você ainda não quer abrir
  • 124. 124 mão de seu personagem ricamente titubeante com as pequeninas facetas que definem a sua realidade.― Ele me disse que precisava buscar outro termo, um mais adequado, para pseudocoincidência. Porque coincidências não existem. ― E assim, em cada obstáculo há mais de uma ação. ― What? Como assim? ― Quando muito novo você sofreu um breve acidente, certo? ― concordei levando as mãos para o acidente no meio das pernas. ― E pensou que ele serviria para conter alguns excessos futuros? ― E não era? ― Para que mais ele serviria. ― Esta era somente a ação perceptível, porém o motivo principal lhe escapou inteiramente à sua astúcia. ― Ele teatralmente esperou. ― Te livrar do seu inflexível fascínio por... Eu não estava entendendo, o que poderia me causar tamanho deslumbramento a ponto de ser impetuosamente arrancado dos meus hábitos de criança? ― O seu fascínio deveria se conter, seria apenas uma incursão, uma inserção de ideias e valores que deveriam brotar depois que estivesse
  • 125. 125 maduro. As fortes impressões colhidas neste novo mundo poderiam enlouquecê-lo se não fossem obliteradas a tempo. ― A que você se refere? ― o que me aconteceu quando garoto? ― A sua implicação com a cultura, outros olhares, outros costumes e que começava com os seus amigos. As crenças orientais que tanto o maravilhavam, não encontrariam terra fértil e avassaladoramente o engoliriam em repercussões não digeríveis. Precisávamos arrancá-lo de seus amigos e suas famílias. Não imaginava. ― Então é por isso que nunca mais tive contato com eles? Do acidente se seguiu a transferência de colégios e, logo mais, de cidade. ― E muitas outras coisas surgiram desde então. Que não seriam possíveis sem esta interrupção. ― Tiago estava sério e mantinha um olhar de perseverança e aquiescência. ― Como as ações que te levaram a tomar consciência das suas experiências da vida passada. Sem os deslumbramentos que nos causariam maiores atrasos.