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BOTECO

Ali seu mundo.
Chamam-no de João. Mas para ele tanto faz. Mal não faria
se o chamassem Raimundo, Beltrano, Sicrano ou até
mesmo José.
Pé de Boteco cravado em uma rodovia qualquer – fachada
velha, ares decadentes, risadas soltas, conversas
repetidas, lorotas cambaleantes, fígados rotos, famílias em
frangalhos – esse era o locos amoenos de meia centena de
trabalhadores a fugir da realidade familiar, do trabalho, da
crise social, da crise da comunicação, da crise mundial; ali
tudo se podia, tudo se fazia, tudo se resolvia.
“Desce mais uma!” e a conversa corre solta.
“Ele é bom!” dizia o moreno sentado ao canto solitário do
extenso balcão – elogiando, talvez seu distante amigo
imaginário de outrora.
Os causos que a todos faziam rir esgotam-se com a luz do
vaga-lume na sombria noite de lua nova.
As aventuras são as mesmas desde que à primeira vez
pisou naquela tortuosa casa de álcool e smoke.
Ao esvaziar-se o último copo, João paga sua dívida com a
palavra. E o bar o cospe passando por suas tortuosas
escadas movediças e voadoras.
O pé nas nuvens, ainda a escutar seus amigos imaginários.
Segue para sua segunda casa. Lá, mais do que nunca: rei.
Bate à mesa. Ruge. Cospe-se. Reclama-se. O lampião já
não lhe serve, pois seu líquido queima-lhe a garganta.
Os guris? A amada? Sem brincadeiras, sem poesia, sem o
quente beijo.
“Onde aprende essa língua?” – reclama a esposa.
“Como é engraçado o papai, mamãe. Sempre nos traz
doces. Como ele é bom!”
E o céu acende mais uma centelha de esperança. O dia
pula cedo da cama.
Acende-se o fogão velho. O café e o pão surrado na mesa.
O lombo surrado de um honesto trabalhador, na cadeira. O
velho beija sua rainha. E com um olhar arrependido clama a
Deus um golpe de misericórdia “despeja-me Senhor de
minha primeira casa!”
(Marcio J. de Lima – 02/12/2010).

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