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MULHERES E O ATIVISMO DIGITAL NA ÁFRICA: quatro retratos sociológicos
Serge Katembera Rhukuzage
Universidade Federal da Paraíba
Introdução
A União Internacional das Telecomunicações informa que o continente africano
apresenta o maior crescimento mundial de usuários de telefones mobiles (AFFAGNON,
2017) se for considerada a fratura digital existente até o início dos anos 2000 entre a África e
o primeiro mundo. Apesar deste quadro positivo, observa-se uma evidente desigualdade de
gênero na apropriação dos instrumentos e meios de tecnologias digitais. Paradoxalmente, as
mulheres, essencialmente jovens, têm desenvolvido estratégias de auto-inscrição (MBEMBE,
2001) num campo digital em grande medida masculinizado a ponto de se tornarem atrizes
relevantes do ativismo digital em diversos países.
Este artigo pretende promover a divulgação de alguns dos casos mais relevantes da
militância feminina através das Novas Tecnologias explicando sua trajetória, o impacto de
suas atividades bem como as diferentes formas de cidadania que elas reivindicam. É
importante lembrar que existe uma lacuna de trabalhos acadêmicos em língua portuguesa na
área da sociologia que se dediquem ao problema das novas mídias no continente africano,
sobretudo, na questão do ativismo digital. Portanto, este breve trabalho tem vocação de abrir
um caminho para outros pesquisadores interessados em observar as transformações recentes
ocorridos nessa área. Operou-se diversas entrevistas com atores do ativismo digital nos países
africanos francófonos com o enfoque em suas trajetórias, suas reivindicações e modos de
atuação no campo virtual. Recuperamos os casos de quatro mulheres que demonstram cada
dia sua importância nesse campo da militância; em formas de entrevistas biográficas
buscamos ter uma visão ampla das características desse universo.
Discussão dos procedimentos e das escolhas metodológicas
Entende-se que a partir dessas entrevistas, embora focalizadas em casos singulares,
possa-se alcançar um conhecimento de relevância universal (CORNEJO, 2006). Valoriza-se a
significação da experiência vivida pelos sujeitos. Contudo, nesse tipo de pesquisa que
combina diversas métodos da epistemologia das trajetórias de vida, o pesquisador efetua uma
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seleção, uma construção daquilo que lhe parece pertinente construir uma história de vida.
Supõe-se nesse tipo de pesquisa uma articulação entre o socio-histórico e o individual, o
objetivo sendo encontrar um sentido universal a partir de um relato de vida individual. Esse
tipo de pesquisa qualitativa implica na junção entre teoria e prática, “a produção do
conhecimento e as modalidades de ação ou de intervenção estão estritamente ligados”
(CORNEJO, idem).
No caso desta pesquisa, realizamos entrevistas relativamente longas com duração
média de uma hora, a maioria realizadas pelo Skype. É somente porque tanto as entrevistas
quanto a interpretação que fazemos delas são guiadas por um vasto campo teórico que
podemos conferir uma validade sociológica ao conhecimento resultante desse processo.
Cornejo observa que “a trajetória de vida é a enunciação que um sujeito faz de sua vida ou de
fragmentos desta” (idem, p. 7). Ademais, a autora nota que a trajetória de vida corresponde
perfeitamente ao tipo de proposta que envolve atividades emancipatórias e de militância como
é o caso especificamente das mulheres ativistas digitais na África. Para a autora, “a trajetória
de vida é usada para compreender problemáticas que interessam a biografia, história do
sujeito, história incerta numa história familiar e social” (idem, p. 7). A função do sociólogo é
dar forma a essas narrativas a partir de sua capacidade reflexiva.
Interessa, sobretudo, neste trabalho compreender como essas ativistas apreender sua
ação dentro de seus contextos sociais respectivos. Partindo desses quadros particulares é
possível formular ideias gerais, a partir de uma triagem de dados informativos que permitam
extrair elementos pertinentes que explicam, ou descrevam, minimamente o ativismo das
mulheres na África contemporânea. A importância de fazer uma pesquisa com base na
história oral se justifica pelo fato que em muitos casos, apenas as estatísticas não conseguem
dar conta de valores, emoções e comportamentos escondidos (GONÇALVES & LISBOA,
2007, p. 85). As trajetórias individuais, ocupacionais e a mobilidade social ganham uma
importância particular nesse caso. A história oral constitui uma “fonte de saber” propriamente
dita; ela se configura como “uma fonte e uma técnica que permite extrair a complexidade dos
fenômenos sociais” (GONÇALVES & LISBOA, idem, p. 86). Contudo, como sublinham as
autoras, “a história oral deve estar orientada por um conhecimento teórico prévio” (idem, p.
86). A função do pesquisador consiste, entretanto, em se emancipar desse discurso cada vez
que isso se faz necessário, isto é, revelar os momentos em que “os conteúdos dos fatos
extrapolam o significado e os sentidos que os sujeitos pretendem expressar conscientemente”
(idem, p. 87).
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De acordo com as autoras, a escolha dos entrevistados deve atentar que eles sejam
grandes conhecedores do campo que interessa a pesquisa. Quanto à amostra, embora seja
quase impossível determinar qual número corresponde realmente à realidade, é importância
que os critérios de diversificação e saturação sejam garantidos. Este segundo critério indica o
esgotamento da amostra pela incapacidade de acrescentar informações relevantes à pesquisa
(idem, p. 89). O que é relevante para a pesquisa é previamente ditado pelas escolhas teóricas
operadas pelo pesquisador, pelos objetivos da pesquisa, as delimitações bem como as
hipóteses de trabalho. O roteiro das entrevistas também deve ser previamente definido na
fundamentação teórica da pesquisa. De acordo com as autoras, essas observações
metodológicas permitem “identificar uma lógica do campo” nas respostas dos entrevistados
(idem, p. 90).
Tendo em vista que este trabalho aborda a importância das mulheres no universo
masculinizado do ativismo digital, é compreensível que nos interessemos não somente às
regularidades ou aos comportamentos repetitivos em diversos contextos, ou seja, que nos
preocupemos somente com os aspectos universais da pesquisa. Pelo contrário, este tema exige
que olhemos atentamente pelas incoerências, as contradições, pelo que nem sempre é
suscetível de ser generalizado (LAHIRE, 2004, p. 314). Na sua abordagem das múltiplas
disposições, Bernard Lahire lembra a necessidade de aplicar um olhar acima do singular
dentro de contextos completamente socializados. O objetivo é apontar “em que contexto as
disposições são atualizadas e em que contextos elas não são atualizadas” (idem, p. 313). Para
isso, o autor recomenda que se realize várias entrevistas1
, focalizando-se em detalhes e
pormenores tais como questões relativas à escolarização, família, trabalho, cotidiano, esses
constituindo temas gerais que podem orientar cada uma das fases das entrevistas. Embora não
tenhamos realizado esse número elevado de entrevistas com cada um dos sujeitos, são as
estratégias de pesquisa apontadas por Lahire que se mostram de grande valia para nosso
propósito.
Assim, nosso objetivo de descaracterizar o universo do ativismo digital africano como
masculino se adequa perfeitamente à estratégia indicada por Lahire que consiste em “atualizar
1
No livro Retratos sociológicos (2004), foram realizadas 6 entrevistas com cada um dos entrevistados com foco
em detalhes biográficos, números de irmãos, trabalho e diplomas dos membros da família, trajetórias dos pais,
detalhes da infância, etc.
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e interpretar as variações contextuais dos comportamentos e atitudes individuais singulares”
(idem, p. 20). Em outros termos, identificar como as ativistas agem de maneira autônoma em
seus respetivos contextos. Quais atitudes e comportamentos elas adotam? Como se adaptam e
manipulam os determinantes objetivos e culturais de seus contextos sociais?
Dito de outro modo, precisamente nos termos de Bourdieu, a proposta consiste em ver
de que maneira elas se subtraem das estruturas objetivas ou incorporadas – habitus – das
estruturas sociais.
Novas Tecnologias, novas mídias e a questão do gênero
Sabe-se que o gênero se formula essencialmente a partir de expectativas que se
atribuem a membros de uma sociedade, tentando-se atribuir características comportamentais e
psicológicas cristalizadas de acordo com o sexo (GIDDENS & SUTTON, 2016, p. 148).
Longe de ser algo “natural” ou biológico, o gênero remete a uma construção social dos papeis,
à socialização (idem, p. 149). Contudo, essa ideia preconcebida dos papeis sociais distribuídos
entre homens e das mulheres não devem supor que os sujeitos não sejam agentes capazes de
resistir e escapar a essas definições.
As formas de resistência pretendidas tanto por homens ou por mulheres se exercem
em diversos campos da vida social, e se aplicam a diversas esferas da cultura; como é caso,
por exemplo, das Novas Tecnologias. Por certo, Novas Tecnologias constituem uma
expressão cultural fundamental do mundo moderno contemporâneo e não escapam às disputas
que envolvem as questões de gênero. As relações desiguais já evidenciadas entre mulheres e
homens, principalmente reproduzidas a partir de atribuições de gênero se aplicam também na
área das Novas Tecnologias e das novas mídias. Assim como também as disputas que se
desenvolvem nesses outros campos da vida social. De modo algum os sujeitos se comportam
passivamente diante dos limites impostos pelas relações de gênero, homens e mulheres
resistem e tentam “ir além” desses limites. É nesse sentido que se observa que um campo
amplamente masculinizado2
como o das Novas Tecnologias produz cada vez mais figuras
femininas destacáveis por suas ações e importância em suas comunidades.
No campo do ativismo digital dos países da África francófona, figuras importantes de
mulheres ganham notoriedade e reconhecimento, algumas como pioneiras, graças à sua forte
2
Mulheres têm menos acesso às tecnologias em muitos países, sobretudo, os menos desenvolvidos; o que as
impede também de acessar a certos empregos que exigem tais competências (OIT, 2008, p. 2). As razões dessa
desigualdade de gênero são resumidas da seguinte forma: “e acordo com a OCDE, é mais uma questão de
incentivos, de distribuição de papeis em função do sexo e atitudes do que de competências” (p. 2).
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implicação no uso, educação, promoção das Novas Tecnologias como elementos
transformadores do social. Elas promovem as novas mídias bem como os novos usos
relacionados a estas em suas respectivas comunidades. Militam ativamente, às vezes
colocando-se em situação de extremo risco, pois afinal, muitas delas vivem em regiões não
democráticas. Suas reivindicações são territorializadas3
, articuladas e definidas localmente,
respondendo a contingências particulares embora exemplifiquem, de modo geral, práticas
reproduzidas no continente e, sobretudo, superando os limites do gênero.
As ativistas constituem uma “presença importante” das mulheres no campo do
ativismo digital na África, mas suas ações e reivindicações comtemplam o conjunto de
demandas sociais, políticos e ambientais que concernem a todos.
De acordo com Silva, “as tecnologias são ligadas à imagem da masculinidade. (...)
As indústrias das TICs também reproduzem as representações da masculinidade
correspondente ao uso de jogos vídeos4
” (2009, p. 115-116). Para a autora, a questão
fundamental é saber se a diferença de utilização das TIC compromete o acesso à informação
ou o desenvolvimento de competências. Porque nesse caso, se trataria de um grave problema
democrático.
Em sua dissertação de mestrado, Felizberto nos coloca diante de uma gama de
análises interessantes que permitem captar a perspectiva dos idealizadores das Novas
Tecnologias no que tange às representações de gênero.
A perspectiva do acto-rede considera como os usuários das tecnologias são
configurados por diferentes agentes no processo de desenvolvimento e
design, produção, comercialização, distribuição, venda e manutenção. Os
designers definem assim, os potenciais agentes ou utilizadores das
tecnologias e inscrevem essa visão do mundo no conteúdo técnico do
artefacto. (FELIZBERTO, 2012, p. 13).
Porém, a prudência invita a considerar que tantos os designers quanto os usuários são
objetos de prefigurações mútuas das representações sociais e do mercado sobre o gênero. A
citação acima encontra uma relativização quando Felizberto resgata uma ideia cara a Jean
Beaudrillard, a ideia do valor simbólico do objeto:
Surge assim o conceito de flexibilidade interpretativa apresentado por Bijker
e Pincher, que assenta no princípio de que as inovações não estão completas
até estarem em uso e que a tecnologia dos criadores pode encontrar-se
sujeita a diversas adaptações imprevistas. (FELIZBERTO, 2012, p. 13).
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Ver Smart (2015) de Frédéric Martel.
4
Popularmente conhecidos como vídeos games.
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O valor simbólico do objeto se refere à capacidade dos atores, mesmo os menos
empoderados a priori, de adaptar o uso das tecnologias às suas necessidades particulares.
Desta maneira, a mulher se torna um ator em completo uso de sua autonomia para adentrar
um universo masculinizado e, por que não, transformá-lo.
Retratos sociológicos: auto-inscrição e reflexividade das mulheres ativistas
Gostaríamos de evocar aqui o conceito de auto-inscrição definido pelo filósofo
camaronês Achille Mbembe para ilustrar como podem ser interpretados de modo geral o
ativismo digital hoje na África. Mbembe define a auto-inscrição como uma “forma de
escrever o próprio self” (2001, p. 173), uma espécie de autoconstrução do sujeito.
O autor começa seu texto seminal elencando o que são para ele, dentro da narrativo
moderna ocidental, tendências à impossibilidade da auto-inscrição dos africanos. Em primeiro
lugar, o economicismo que pretende colocar no discurso marxista, a partir de noções como
emancipação, autonomia e revolução a única forma de legitimidade da autenticidade de um
projeto político africano (idem, p. 174). Em segundo lugar, ele diagnostica a metafísica da
diferença como um problema fundador: a identidade africana como uma unidade homogênea
baseada na raça negra (idem, p. 174).
Mbembe afirma que essas duas estratégias bloqueiam a emergência de qualquer
discurso político realmente “autêntico” no sentido de auto-inscrito, ou seja, pensando a partir
dos sujeitos independentemente das prescrições modernistas da emancipação [marxista].
Além disso, fazem prosperar a ideia-feita de uma África única; baseada numa identidade que
cabe tão somente no olhar ocidental. Os sujeitos africanos, auto-inscritos têm a capacidade de
definir suas próprias singularidades culturais, nacionais – não no sentido da vitimização – ou
subjetivas.
O autor afirma que essa tradução errônea da história e imaginário africano se deve a
três fatores: a escravidão, a colonização e o apartheid (idem, p. 174). Esses fatos históricos
seriam responsáveis pelo desenraizamento do africano, de seu estranhamento consigo mesmo
e serviria como “fator de unificação do desejo do africano de se conhecer a si mesmo, de
reconquistar seu destino (soberania) e de se pertencer a si mesmo no mundo (autonomia) ”
(MBEMBE, idem, p. 174). Seguindo essa mesma linha argumentativa, Mbembe explica que
“a produção dos significados dominantes destes eventos foi a colonização por duas correntes
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ideológicas de pensamento: uma nativista, outra, instrumentalista, que afirmam falar “em
nome” da África como um todo” (Idem, p. 174).
Trata-se, portanto, de uma confiscação da real autonomia dos sujeitos em benefício de
forças maiores disfarçadas em termos como “soberania”, “independência” ou “razão do
Estado”. As reais aspirações dos sujeitos, absolutamente suscetíveis de se desmarcarem das
agendas nacionais/oficiais são relegadas no segundo plano. A ideia de auto-inscrição permite
imaginar atores que definem sozinhos suas aspirações e suas lutas, e às vezes, não as definem.
A experiência africana do mundo é determinada, a priori, por um conjunto
de forças – sempre as mesmas, embora aparecendo como diferentes formas –
cuja função é evitar o florescimento da singularidade africana, daquela parte
do eu histórico africano que é irredutível a qualquer outro. (MBEMBE,
2001, pp. 175-176).
É possível apreender toda a crítica de Mbembe nas seguintes linhas
(1) as narrativas marxistas e nacionalistas sobre o eu e o mundo têm sido
superficiais; (2) como consequência desta superficialidade, suas noções
de autogoverno e de autonomia têm pouca base filosófica, e (3) seu
privilegiamento da vitimização, em detrimento do sujeito, em última
instância resulta de uma compreensão da história como feitiçaria.
(MBEME, idem, p. 177).
(2)
Além disso, Mbembe também denuncia “uma outra forma de auto-inscrição baseada no
derramamento de sangue e que forma novas subjetividades africanas relativas a uma espécie
de ‘soberania da perda’” (idem, p. 196). Vale destacar o caráter absolutamente inovador dessa
última afirmação que se inscreve, como raramente visto na literatura afim no continente
africano. A violência instala os indivíduos em o que Mbembe denomina de “zonas de
indistinção”, onde a desumanização aparenta ser a própria realidade incontestável da condição
humana.
FATY5
Trata-se uma blogueira e ativista digital de nacionalidade malinesa que vive na cidade
de Timbuktu. Ela se destacou durante a rebelião tuaregue ao se tornar a mais importante voz
das mulheres que se destacava nas mídias e mídias sociais. Ela reivindica constantemente a
defesa de liberdade de ideias dos direitos fundamentais ou a alfabetização das meninas. Um
5
É por esse diminuitivo que a ativista é conhecida entre seus mais próximos amigos e colegas.
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dos seus cavalos de batalha é, sobretudo, o direito à internet com a promoção da hashtag6
#Mali100Méga, ou seja, o direito a uma conexão internet mais rápida.
Ela também se diz defensora da cultura de Timbuktu, cidade considerada património
da humanidade. Para Faty, sua atividade é indissociável da educação e divulgação das práticas
de empreendedorismo. A relação entre o ativismo digital e o empreendedorismo vem
aparecendo cada vez mais nas entrevistas realizadas. A escolha do termo empreendedorismo
talvez seja uma forma de autoengano. Poderíamos muito bem falar em algo menos glamoroso,
como o “self-employment” – o auto-emprego. Algo, portanto, que remete a uma forma de
precariedade e de demissão das instituições estatais. De forma geral, tanto o blogging quanto
o web-ativismo são vistos pelos atores como formas de empreendedorismo. Podemos nos
interrogar para saber se um leva sempre a outro. A priori, são ambos métiers ligados à internet
na própria fala da Faty, e a internet se propõe quase automaticamente à iniciativa individual
(inovação, bricolagem, criatividade, etc.). De qualquer forma, é um tema que merece o devido
tratamento num trabalho de maior fôlego.
Professora do ensino médio, Faty é filiada à atividade sindical e não separa o ativismo
virtual do ativismo no “mundo real” onde ela pode ter um impacto real e defender as
populações, sobretudo, no campo dos direitos humanos. Ela destaca as péssimas condições de
trabalho que caracterizam seu cotidiano de ativista digital:
Temos uma péssima conexão que impossibilita a produção dos conteúdos no
formato vídeo. Ser ativista digital aqui exige muitos esforços para “estar
online” e sou obrigada a enviar e-mails a alguns amigos7
para que acessem
meu blog e coloquem um artigo “no ar”. Amigos que vivem em países mais
desenvolvidos. É complicado, por exemplo, fazer uma formação em
cartografia ou sobre uso das redes sociais, como essa conexão que é
praticamente zero.
Não tenho muito apoio no Mali, mas tenho o apoio de uma associação de
cidadãos malineses que vivem nos Estados Unidos, eles me mandam um ou
dois computadores, pagam minha conexão internet ou um telefone celular.
Eles até financiam alguns dos meus projetos sociais como o Timbuktu
Project que prevê dar cursos de mediações às crianças e aos jovens que vão
passar exames nacionais no final do ano. É uma forma de contornar as
dificuldades e os atrasos dos calendários causados pelas greves ou pelas
manifestações sociais.
FATOUMATA
É uma ativista especializada nas questões ambientais, vive na Guiné-Conacri.
Fatoumata é a criadora da campanha virtual #SelfieDechets que consistia em fotografar-se
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Palavra-chave na rede social de micro-blogging Twitter.
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Já tivemos a oportunidade de auxiliar a ativista nessa tarefa.
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diante de um amontoado de lixo abandonado no espaço público para denunciar o descaso
tanto do Estado quando da sociedade. É uma cena comum nas grandes cidades africanas, mas
até então, nunca se havia organizado uma campanha de tal magnitude no continente, a tal
ponto que foi noticiada em sites de internet de jornais prestigiados como El Pais8
ou Le
Monde. A campanha visava sensibilizar sobre a responsabilidade tanto do Estado quando do
Estado com o meio ambiente. De fato, Fatoumata tem demonstrado o apreço para um conceito
de cidadania que coloca no centro de sua concepção a responsabilidade do cidadão com sua
comunidade, na esteira da tradicional noção de civismo francês. Essa noção que verificaremos
também para a próxima ativista encontra suas raízes na Roma Antiga, tal como descreve Paul
Veyne (2015) através de seu conceito de evergetismo cívico. Fatoumata nos relata um pouco
da sua trajetória:
Trabalho com o web-ativismo desde 2010, desde praticamente o boom das
redes sócias e a abertura da Guiné às redes de empresas de telefonia privada.
Muito cedo descobri a internet. Ela me permitia transmitir as ideias que tinha
sobre cidadania e participação.
Comecei no blogging com o Blogspot de Google e em 2014 participei do
concurso de Mondoblog9
e fui aceita e comecei a passar minhas ideias,
sobretudo, evitando as linhas editorias dos canais midiáticos tradicionais. O
web-ativismo é meu cotidiano. Sou uma ativista muito engajada e trabalho
além do meu país com ativistas de outros países africanos com os quais
debatemos dos assuntos nos grupos de Whatsapp, sobre a governança local e
regional.
Faço parte de um coletivo regional que milita a favor da educação e
divulgação das consequências das mudanças climáticas. É um fórum
regional onde trocamos ideias, preparamos planos de ações, organizamos
formações. É um fórum de trabalho e de discussão.
JULIE
Advogada camaronesa, co-fundadora e porta-voz da ONG Internet Sans Frontières,
residente em Paris. Muito conhecida do público africano e no mundo do jornalismo francês
pois é regularmente convidada em diversos programas de TV e de rádio da França para falar
das liberdades fundamentais na internet e das violações dessas liberdades na África. Este é o
olhar que Julie tem sobre sua própria atividade:
Eu me posiciono claramente. Não fico afastada dos debates e tenho atuado
ativamente. Internet Sem Fronteiras trabalha em diversos países, temos
também uma diretora para o Brasil em São Paulo; e em muitos países
8
O artigo no site internet do El Pais pode ser consultado aqui:
https://elpais.com/elpais/2017/05/31/planeta_futuro/1496240635_974877.html. O site da televisão cultural
Franco-alemã Arte noticiou através de uma reportagem o trabalho de militância para o meio-ambiente da ativista
Fatoumata. Assistir aqui: https://info.arte.tv/fr/des-selfies-pour-nettoyer-conakry
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Trata-se de uma plataforma de blogueiros da Radio France Internationale (RFI). Ler nosso artigo A informação
terceirizada: Identidade e trabalho não pago na era do jornalismo digital (2015).
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africanos, sobretudo, francófonos. Nosso objetivo é construir uma internet
verdadeiramente sem fronteiras com a liberdade de acessar a todos os
conteúdos disponíveis online, por um lado. E por outro, uma internet
acessível a todos. Nos interessamos pela questão da fratura digital,
notadamente do ponto de vista econômico e também do aspecto do gênero.
Julie também avalia o impacto de suas atividades ao longo
desses anos:
Tenho a impressão que o ativismo digital oferece resultado mais imediatos,
mais rápidos. Consegue-se comunicar diretamente com pessoas e instituições
que antes eram inacessíveis no ativismo tradicional. Quando comecei na
militância com a internet foi porque estava cansada, em 2010, as pessoas só
falavam do Quênia, da África do Sul, da Uganda quando se tratava de
internet na África e pensei comigo: “é como se nada acontece na África
francófona”. Era uma forma de dizer que nos países de língua francesa
também acontecem mudanças nas práticas ligadas à internet.
Internet Sans Frontières tem costume de organizar módulos de formação sobre a
segurança na internet:
Apoiamos muitos ativistas africanos oferecendo formações, ajudando nas
petições online. Em geral nosso público algo quando organizamos as
formações é composto essencialmente de jornalistas africanos, os ativistas
políticos, não no sentido de militância, mas política no sentido de “ação para
a cidade10
”; e para os defensores dos direitos humanos que estão nas
associações. Essas pessoas carregam e representam comunidades inteiras;
elas têm essa proximidade que nós não temos, então nos apoiamos em
pessoas que federam suas comunidades.
DIERETOU
Blogueira, jornalista e social mídia ninja tal como ela se define em suas redes sociais,
ativista digital guineense, residente entre Toulouse e Paris. Criadora da campanha virtual
#Guineennedu21eSiècle. Atua na comunicação da associação francesa de luta contra o
racismo e o antissemitismo SOS Racisme. É uma das pioneiras do ativismo digital do seu país
apesar de ser muito jovem ainda – menos de 25 anos. Entrevistamos Dieretou num dia muito
curioso pois foi exatamente no dia 20 de abril de 2017 quando um terrorista atacou e matou
um motorista m além de deixar dois policiais feridos na Avenida Champs-Elysées em Paris11
.
“DD”, como é chamada entre os mais próximos desenvolveu uma visão crítica e
bastante reflexiva a respeito do ativismo digital e não tem somente uma ideia romantizada da
mesma:
Sou uma ativista muito engajada. Com formação universitária em
jornalismo, mas não quero trabalhar nessa área. Participo em muitos
coletivos e ativistas, de blogueiros, mas ultimamente tenho me distanciado
10
De novo a ideia de cidadania como civismo tal como analisado por Paul Veyne (idem).
11
O atentado foi noticiado no Brasil: https://oglobo.globo.com/mundo/o-que-se-sabe-sobre-ataque-na-avenida-
champs-elysees-em-paris-21240611
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um pouco da militância. Estou com muitas reservas em relação a tudo isso,
estou questionando o ativismo digital.
O ativismo digital é uma atividade ingrata. Toma seu tempo, consume sua
energia. Claro que traz coisas boas também: traz uma rede, o
reconhecimento público, mas quando você coloca na balança, será que o
saldo é positivo?
Atuava muito na confrontação, no ataque online, sobretudo com as
autoridades da Guiné e as pessoas começaram a me descobrir, inclusive
vários ministros, mas isso tudo me cansou. Porque o reconhecimento acaba
limitando suas ações. Não podia mais “twitear” ou escrever livremente no
meu blog porque as pessoas estavam em cima. Agora quando devo “twitear”
preciso girar minha língua sete vezes senão sou atacada, organizam
campanhas em resposta aos meus tweets. Pesa muito esse reconhecimento do
ativismo digital. Me dei conta também que o que fazemos online, não diria
que é ineficaz, seria redutor, mas a verdadeira luta está no mundo “off-line”.
Por exemplo, meu coletivo que milita contra a excisão das mulheres, fui
recentemente na Guiné e há muito trabalho a ser feito no mundo real. Tenho
a impressão de perder meu tempo na internet, que se trata de um blábláblá
inútil.
Conclusão
É preciso antes de tudo considerar que o ativismo digital na África francófona
toca a diversas áreas do social como o meio ambiente, a questão dos direitos humanos,
a educação das meninas, a democratização da sociedade, o acesso a uma boa qualidade
de internet. O ativismo digital na África é variado e é territorializado, embora
estabeleça-se conexões entre ativistas de diversos países. Há cada vez mais mulheres
envolvidas nessas atividades e curiosamente, graças a sua força e resiliência são elas
as responsáveis das campanhas virtuais mais importantes dos últimos anos.
Deve-se atentar para a relação entre o ativismo digital e o empreendedorismo
porque é uma característica recorrente entre os diferentes atores. E por fim, devemos
analisar com mais atenções as novas formas de auto-inscrições na África, para usar um
termo de Mbembe, e entender como as mídias sociais se configuram como tal.
Referências
AFFAGNON, QUEMAL. Cyberciminalité au Bénin: Menaces, lacunes juridiques et
pouvoir. Geste et Voix, n. 24, p. 190-206.
CORNEJO, Marcela. El enfoque biográfico: Trayectorias, desarrollos teóricos y
perspectivas. Psykhe, vol. 15, n. 1, p. 95-106, 2006.
Anais do VI Seminário Nacional Gênero e Práticas Culturais
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FELIZBERTO. Patrícia A. S. Vieira. TIC e as desigualdades de gênero: Reprodução social
e mudança nos percursos profissionais. Dissertação de mestrado, Covilhão, 2012.
GIDDENS, Anthony & SUTTON, Philip. Conceitos essenciais da sociologia. Editora Unesp,
1a
ed. Trad. Claudia Freire, São Paulo, 2016.
GONÇAÇVES, Rita C. & LISBOA, Teresa K. Sobre o método da história oral em sua
modalidade trajetórias de vida. Revista Katál, v. 10, n. esp., p. 83-92, Florianópolis, 2007.
LAHIRE, Bernard. Retratos sociológicos: Disposições e variações individuais. Trad. Didier
Martin, Patrícia Chittoni Ramos Reuillard, Artmed, Porto Alegre, 2004.
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MARTEL, Frédéric. Smart: O que você não sabe sobre a internet. Civilização Brasileira, 1a
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Anais do VI Seminário Nacional Gênero e Práticas Culturais
João Pessoa – PB | 22 a 24 de novembro | 2017 | ISSN 2447-5416

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Mulheres e o ativismo digital

  • 1. MULHERES E O ATIVISMO DIGITAL NA ÁFRICA: quatro retratos sociológicos Serge Katembera Rhukuzage Universidade Federal da Paraíba Introdução A União Internacional das Telecomunicações informa que o continente africano apresenta o maior crescimento mundial de usuários de telefones mobiles (AFFAGNON, 2017) se for considerada a fratura digital existente até o início dos anos 2000 entre a África e o primeiro mundo. Apesar deste quadro positivo, observa-se uma evidente desigualdade de gênero na apropriação dos instrumentos e meios de tecnologias digitais. Paradoxalmente, as mulheres, essencialmente jovens, têm desenvolvido estratégias de auto-inscrição (MBEMBE, 2001) num campo digital em grande medida masculinizado a ponto de se tornarem atrizes relevantes do ativismo digital em diversos países. Este artigo pretende promover a divulgação de alguns dos casos mais relevantes da militância feminina através das Novas Tecnologias explicando sua trajetória, o impacto de suas atividades bem como as diferentes formas de cidadania que elas reivindicam. É importante lembrar que existe uma lacuna de trabalhos acadêmicos em língua portuguesa na área da sociologia que se dediquem ao problema das novas mídias no continente africano, sobretudo, na questão do ativismo digital. Portanto, este breve trabalho tem vocação de abrir um caminho para outros pesquisadores interessados em observar as transformações recentes ocorridos nessa área. Operou-se diversas entrevistas com atores do ativismo digital nos países africanos francófonos com o enfoque em suas trajetórias, suas reivindicações e modos de atuação no campo virtual. Recuperamos os casos de quatro mulheres que demonstram cada dia sua importância nesse campo da militância; em formas de entrevistas biográficas buscamos ter uma visão ampla das características desse universo. Discussão dos procedimentos e das escolhas metodológicas Entende-se que a partir dessas entrevistas, embora focalizadas em casos singulares, possa-se alcançar um conhecimento de relevância universal (CORNEJO, 2006). Valoriza-se a significação da experiência vivida pelos sujeitos. Contudo, nesse tipo de pesquisa que combina diversas métodos da epistemologia das trajetórias de vida, o pesquisador efetua uma Anais do VI Seminário Nacional Gênero e Práticas Culturais João Pessoa – PB | 22 a 24 de novembro | 2017 | ISSN 2447-5416
  • 2. 2 seleção, uma construção daquilo que lhe parece pertinente construir uma história de vida. Supõe-se nesse tipo de pesquisa uma articulação entre o socio-histórico e o individual, o objetivo sendo encontrar um sentido universal a partir de um relato de vida individual. Esse tipo de pesquisa qualitativa implica na junção entre teoria e prática, “a produção do conhecimento e as modalidades de ação ou de intervenção estão estritamente ligados” (CORNEJO, idem). No caso desta pesquisa, realizamos entrevistas relativamente longas com duração média de uma hora, a maioria realizadas pelo Skype. É somente porque tanto as entrevistas quanto a interpretação que fazemos delas são guiadas por um vasto campo teórico que podemos conferir uma validade sociológica ao conhecimento resultante desse processo. Cornejo observa que “a trajetória de vida é a enunciação que um sujeito faz de sua vida ou de fragmentos desta” (idem, p. 7). Ademais, a autora nota que a trajetória de vida corresponde perfeitamente ao tipo de proposta que envolve atividades emancipatórias e de militância como é o caso especificamente das mulheres ativistas digitais na África. Para a autora, “a trajetória de vida é usada para compreender problemáticas que interessam a biografia, história do sujeito, história incerta numa história familiar e social” (idem, p. 7). A função do sociólogo é dar forma a essas narrativas a partir de sua capacidade reflexiva. Interessa, sobretudo, neste trabalho compreender como essas ativistas apreender sua ação dentro de seus contextos sociais respectivos. Partindo desses quadros particulares é possível formular ideias gerais, a partir de uma triagem de dados informativos que permitam extrair elementos pertinentes que explicam, ou descrevam, minimamente o ativismo das mulheres na África contemporânea. A importância de fazer uma pesquisa com base na história oral se justifica pelo fato que em muitos casos, apenas as estatísticas não conseguem dar conta de valores, emoções e comportamentos escondidos (GONÇALVES & LISBOA, 2007, p. 85). As trajetórias individuais, ocupacionais e a mobilidade social ganham uma importância particular nesse caso. A história oral constitui uma “fonte de saber” propriamente dita; ela se configura como “uma fonte e uma técnica que permite extrair a complexidade dos fenômenos sociais” (GONÇALVES & LISBOA, idem, p. 86). Contudo, como sublinham as autoras, “a história oral deve estar orientada por um conhecimento teórico prévio” (idem, p. 86). A função do pesquisador consiste, entretanto, em se emancipar desse discurso cada vez que isso se faz necessário, isto é, revelar os momentos em que “os conteúdos dos fatos extrapolam o significado e os sentidos que os sujeitos pretendem expressar conscientemente” (idem, p. 87). Anais do VI Seminário Nacional Gênero e Práticas Culturais João Pessoa – PB | 22 a 24 de novembro | 2017 | ISSN 2447-5416
  • 3. 3 De acordo com as autoras, a escolha dos entrevistados deve atentar que eles sejam grandes conhecedores do campo que interessa a pesquisa. Quanto à amostra, embora seja quase impossível determinar qual número corresponde realmente à realidade, é importância que os critérios de diversificação e saturação sejam garantidos. Este segundo critério indica o esgotamento da amostra pela incapacidade de acrescentar informações relevantes à pesquisa (idem, p. 89). O que é relevante para a pesquisa é previamente ditado pelas escolhas teóricas operadas pelo pesquisador, pelos objetivos da pesquisa, as delimitações bem como as hipóteses de trabalho. O roteiro das entrevistas também deve ser previamente definido na fundamentação teórica da pesquisa. De acordo com as autoras, essas observações metodológicas permitem “identificar uma lógica do campo” nas respostas dos entrevistados (idem, p. 90). Tendo em vista que este trabalho aborda a importância das mulheres no universo masculinizado do ativismo digital, é compreensível que nos interessemos não somente às regularidades ou aos comportamentos repetitivos em diversos contextos, ou seja, que nos preocupemos somente com os aspectos universais da pesquisa. Pelo contrário, este tema exige que olhemos atentamente pelas incoerências, as contradições, pelo que nem sempre é suscetível de ser generalizado (LAHIRE, 2004, p. 314). Na sua abordagem das múltiplas disposições, Bernard Lahire lembra a necessidade de aplicar um olhar acima do singular dentro de contextos completamente socializados. O objetivo é apontar “em que contexto as disposições são atualizadas e em que contextos elas não são atualizadas” (idem, p. 313). Para isso, o autor recomenda que se realize várias entrevistas1 , focalizando-se em detalhes e pormenores tais como questões relativas à escolarização, família, trabalho, cotidiano, esses constituindo temas gerais que podem orientar cada uma das fases das entrevistas. Embora não tenhamos realizado esse número elevado de entrevistas com cada um dos sujeitos, são as estratégias de pesquisa apontadas por Lahire que se mostram de grande valia para nosso propósito. Assim, nosso objetivo de descaracterizar o universo do ativismo digital africano como masculino se adequa perfeitamente à estratégia indicada por Lahire que consiste em “atualizar 1 No livro Retratos sociológicos (2004), foram realizadas 6 entrevistas com cada um dos entrevistados com foco em detalhes biográficos, números de irmãos, trabalho e diplomas dos membros da família, trajetórias dos pais, detalhes da infância, etc. Anais do VI Seminário Nacional Gênero e Práticas Culturais João Pessoa – PB | 22 a 24 de novembro | 2017 | ISSN 2447-5416
  • 4. 4 e interpretar as variações contextuais dos comportamentos e atitudes individuais singulares” (idem, p. 20). Em outros termos, identificar como as ativistas agem de maneira autônoma em seus respetivos contextos. Quais atitudes e comportamentos elas adotam? Como se adaptam e manipulam os determinantes objetivos e culturais de seus contextos sociais? Dito de outro modo, precisamente nos termos de Bourdieu, a proposta consiste em ver de que maneira elas se subtraem das estruturas objetivas ou incorporadas – habitus – das estruturas sociais. Novas Tecnologias, novas mídias e a questão do gênero Sabe-se que o gênero se formula essencialmente a partir de expectativas que se atribuem a membros de uma sociedade, tentando-se atribuir características comportamentais e psicológicas cristalizadas de acordo com o sexo (GIDDENS & SUTTON, 2016, p. 148). Longe de ser algo “natural” ou biológico, o gênero remete a uma construção social dos papeis, à socialização (idem, p. 149). Contudo, essa ideia preconcebida dos papeis sociais distribuídos entre homens e das mulheres não devem supor que os sujeitos não sejam agentes capazes de resistir e escapar a essas definições. As formas de resistência pretendidas tanto por homens ou por mulheres se exercem em diversos campos da vida social, e se aplicam a diversas esferas da cultura; como é caso, por exemplo, das Novas Tecnologias. Por certo, Novas Tecnologias constituem uma expressão cultural fundamental do mundo moderno contemporâneo e não escapam às disputas que envolvem as questões de gênero. As relações desiguais já evidenciadas entre mulheres e homens, principalmente reproduzidas a partir de atribuições de gênero se aplicam também na área das Novas Tecnologias e das novas mídias. Assim como também as disputas que se desenvolvem nesses outros campos da vida social. De modo algum os sujeitos se comportam passivamente diante dos limites impostos pelas relações de gênero, homens e mulheres resistem e tentam “ir além” desses limites. É nesse sentido que se observa que um campo amplamente masculinizado2 como o das Novas Tecnologias produz cada vez mais figuras femininas destacáveis por suas ações e importância em suas comunidades. No campo do ativismo digital dos países da África francófona, figuras importantes de mulheres ganham notoriedade e reconhecimento, algumas como pioneiras, graças à sua forte 2 Mulheres têm menos acesso às tecnologias em muitos países, sobretudo, os menos desenvolvidos; o que as impede também de acessar a certos empregos que exigem tais competências (OIT, 2008, p. 2). As razões dessa desigualdade de gênero são resumidas da seguinte forma: “e acordo com a OCDE, é mais uma questão de incentivos, de distribuição de papeis em função do sexo e atitudes do que de competências” (p. 2). Anais do VI Seminário Nacional Gênero e Práticas Culturais João Pessoa – PB | 22 a 24 de novembro | 2017 | ISSN 2447-5416
  • 5. 5 implicação no uso, educação, promoção das Novas Tecnologias como elementos transformadores do social. Elas promovem as novas mídias bem como os novos usos relacionados a estas em suas respectivas comunidades. Militam ativamente, às vezes colocando-se em situação de extremo risco, pois afinal, muitas delas vivem em regiões não democráticas. Suas reivindicações são territorializadas3 , articuladas e definidas localmente, respondendo a contingências particulares embora exemplifiquem, de modo geral, práticas reproduzidas no continente e, sobretudo, superando os limites do gênero. As ativistas constituem uma “presença importante” das mulheres no campo do ativismo digital na África, mas suas ações e reivindicações comtemplam o conjunto de demandas sociais, políticos e ambientais que concernem a todos. De acordo com Silva, “as tecnologias são ligadas à imagem da masculinidade. (...) As indústrias das TICs também reproduzem as representações da masculinidade correspondente ao uso de jogos vídeos4 ” (2009, p. 115-116). Para a autora, a questão fundamental é saber se a diferença de utilização das TIC compromete o acesso à informação ou o desenvolvimento de competências. Porque nesse caso, se trataria de um grave problema democrático. Em sua dissertação de mestrado, Felizberto nos coloca diante de uma gama de análises interessantes que permitem captar a perspectiva dos idealizadores das Novas Tecnologias no que tange às representações de gênero. A perspectiva do acto-rede considera como os usuários das tecnologias são configurados por diferentes agentes no processo de desenvolvimento e design, produção, comercialização, distribuição, venda e manutenção. Os designers definem assim, os potenciais agentes ou utilizadores das tecnologias e inscrevem essa visão do mundo no conteúdo técnico do artefacto. (FELIZBERTO, 2012, p. 13). Porém, a prudência invita a considerar que tantos os designers quanto os usuários são objetos de prefigurações mútuas das representações sociais e do mercado sobre o gênero. A citação acima encontra uma relativização quando Felizberto resgata uma ideia cara a Jean Beaudrillard, a ideia do valor simbólico do objeto: Surge assim o conceito de flexibilidade interpretativa apresentado por Bijker e Pincher, que assenta no princípio de que as inovações não estão completas até estarem em uso e que a tecnologia dos criadores pode encontrar-se sujeita a diversas adaptações imprevistas. (FELIZBERTO, 2012, p. 13). 3 Ver Smart (2015) de Frédéric Martel. 4 Popularmente conhecidos como vídeos games. Anais do VI Seminário Nacional Gênero e Práticas Culturais João Pessoa – PB | 22 a 24 de novembro | 2017 | ISSN 2447-5416
  • 6. 6 O valor simbólico do objeto se refere à capacidade dos atores, mesmo os menos empoderados a priori, de adaptar o uso das tecnologias às suas necessidades particulares. Desta maneira, a mulher se torna um ator em completo uso de sua autonomia para adentrar um universo masculinizado e, por que não, transformá-lo. Retratos sociológicos: auto-inscrição e reflexividade das mulheres ativistas Gostaríamos de evocar aqui o conceito de auto-inscrição definido pelo filósofo camaronês Achille Mbembe para ilustrar como podem ser interpretados de modo geral o ativismo digital hoje na África. Mbembe define a auto-inscrição como uma “forma de escrever o próprio self” (2001, p. 173), uma espécie de autoconstrução do sujeito. O autor começa seu texto seminal elencando o que são para ele, dentro da narrativo moderna ocidental, tendências à impossibilidade da auto-inscrição dos africanos. Em primeiro lugar, o economicismo que pretende colocar no discurso marxista, a partir de noções como emancipação, autonomia e revolução a única forma de legitimidade da autenticidade de um projeto político africano (idem, p. 174). Em segundo lugar, ele diagnostica a metafísica da diferença como um problema fundador: a identidade africana como uma unidade homogênea baseada na raça negra (idem, p. 174). Mbembe afirma que essas duas estratégias bloqueiam a emergência de qualquer discurso político realmente “autêntico” no sentido de auto-inscrito, ou seja, pensando a partir dos sujeitos independentemente das prescrições modernistas da emancipação [marxista]. Além disso, fazem prosperar a ideia-feita de uma África única; baseada numa identidade que cabe tão somente no olhar ocidental. Os sujeitos africanos, auto-inscritos têm a capacidade de definir suas próprias singularidades culturais, nacionais – não no sentido da vitimização – ou subjetivas. O autor afirma que essa tradução errônea da história e imaginário africano se deve a três fatores: a escravidão, a colonização e o apartheid (idem, p. 174). Esses fatos históricos seriam responsáveis pelo desenraizamento do africano, de seu estranhamento consigo mesmo e serviria como “fator de unificação do desejo do africano de se conhecer a si mesmo, de reconquistar seu destino (soberania) e de se pertencer a si mesmo no mundo (autonomia) ” (MBEMBE, idem, p. 174). Seguindo essa mesma linha argumentativa, Mbembe explica que “a produção dos significados dominantes destes eventos foi a colonização por duas correntes Anais do VI Seminário Nacional Gênero e Práticas Culturais João Pessoa – PB | 22 a 24 de novembro | 2017 | ISSN 2447-5416
  • 7. 7 ideológicas de pensamento: uma nativista, outra, instrumentalista, que afirmam falar “em nome” da África como um todo” (Idem, p. 174). Trata-se, portanto, de uma confiscação da real autonomia dos sujeitos em benefício de forças maiores disfarçadas em termos como “soberania”, “independência” ou “razão do Estado”. As reais aspirações dos sujeitos, absolutamente suscetíveis de se desmarcarem das agendas nacionais/oficiais são relegadas no segundo plano. A ideia de auto-inscrição permite imaginar atores que definem sozinhos suas aspirações e suas lutas, e às vezes, não as definem. A experiência africana do mundo é determinada, a priori, por um conjunto de forças – sempre as mesmas, embora aparecendo como diferentes formas – cuja função é evitar o florescimento da singularidade africana, daquela parte do eu histórico africano que é irredutível a qualquer outro. (MBEMBE, 2001, pp. 175-176). É possível apreender toda a crítica de Mbembe nas seguintes linhas (1) as narrativas marxistas e nacionalistas sobre o eu e o mundo têm sido superficiais; (2) como consequência desta superficialidade, suas noções de autogoverno e de autonomia têm pouca base filosófica, e (3) seu privilegiamento da vitimização, em detrimento do sujeito, em última instância resulta de uma compreensão da história como feitiçaria. (MBEME, idem, p. 177). (2) Além disso, Mbembe também denuncia “uma outra forma de auto-inscrição baseada no derramamento de sangue e que forma novas subjetividades africanas relativas a uma espécie de ‘soberania da perda’” (idem, p. 196). Vale destacar o caráter absolutamente inovador dessa última afirmação que se inscreve, como raramente visto na literatura afim no continente africano. A violência instala os indivíduos em o que Mbembe denomina de “zonas de indistinção”, onde a desumanização aparenta ser a própria realidade incontestável da condição humana. FATY5 Trata-se uma blogueira e ativista digital de nacionalidade malinesa que vive na cidade de Timbuktu. Ela se destacou durante a rebelião tuaregue ao se tornar a mais importante voz das mulheres que se destacava nas mídias e mídias sociais. Ela reivindica constantemente a defesa de liberdade de ideias dos direitos fundamentais ou a alfabetização das meninas. Um 5 É por esse diminuitivo que a ativista é conhecida entre seus mais próximos amigos e colegas. Anais do VI Seminário Nacional Gênero e Práticas Culturais João Pessoa – PB | 22 a 24 de novembro | 2017 | ISSN 2447-5416
  • 8. 8 dos seus cavalos de batalha é, sobretudo, o direito à internet com a promoção da hashtag6 #Mali100Méga, ou seja, o direito a uma conexão internet mais rápida. Ela também se diz defensora da cultura de Timbuktu, cidade considerada património da humanidade. Para Faty, sua atividade é indissociável da educação e divulgação das práticas de empreendedorismo. A relação entre o ativismo digital e o empreendedorismo vem aparecendo cada vez mais nas entrevistas realizadas. A escolha do termo empreendedorismo talvez seja uma forma de autoengano. Poderíamos muito bem falar em algo menos glamoroso, como o “self-employment” – o auto-emprego. Algo, portanto, que remete a uma forma de precariedade e de demissão das instituições estatais. De forma geral, tanto o blogging quanto o web-ativismo são vistos pelos atores como formas de empreendedorismo. Podemos nos interrogar para saber se um leva sempre a outro. A priori, são ambos métiers ligados à internet na própria fala da Faty, e a internet se propõe quase automaticamente à iniciativa individual (inovação, bricolagem, criatividade, etc.). De qualquer forma, é um tema que merece o devido tratamento num trabalho de maior fôlego. Professora do ensino médio, Faty é filiada à atividade sindical e não separa o ativismo virtual do ativismo no “mundo real” onde ela pode ter um impacto real e defender as populações, sobretudo, no campo dos direitos humanos. Ela destaca as péssimas condições de trabalho que caracterizam seu cotidiano de ativista digital: Temos uma péssima conexão que impossibilita a produção dos conteúdos no formato vídeo. Ser ativista digital aqui exige muitos esforços para “estar online” e sou obrigada a enviar e-mails a alguns amigos7 para que acessem meu blog e coloquem um artigo “no ar”. Amigos que vivem em países mais desenvolvidos. É complicado, por exemplo, fazer uma formação em cartografia ou sobre uso das redes sociais, como essa conexão que é praticamente zero. Não tenho muito apoio no Mali, mas tenho o apoio de uma associação de cidadãos malineses que vivem nos Estados Unidos, eles me mandam um ou dois computadores, pagam minha conexão internet ou um telefone celular. Eles até financiam alguns dos meus projetos sociais como o Timbuktu Project que prevê dar cursos de mediações às crianças e aos jovens que vão passar exames nacionais no final do ano. É uma forma de contornar as dificuldades e os atrasos dos calendários causados pelas greves ou pelas manifestações sociais. FATOUMATA É uma ativista especializada nas questões ambientais, vive na Guiné-Conacri. Fatoumata é a criadora da campanha virtual #SelfieDechets que consistia em fotografar-se 6 Palavra-chave na rede social de micro-blogging Twitter. 7 Já tivemos a oportunidade de auxiliar a ativista nessa tarefa. Anais do VI Seminário Nacional Gênero e Práticas Culturais João Pessoa – PB | 22 a 24 de novembro | 2017 | ISSN 2447-5416
  • 9. 9 diante de um amontoado de lixo abandonado no espaço público para denunciar o descaso tanto do Estado quando da sociedade. É uma cena comum nas grandes cidades africanas, mas até então, nunca se havia organizado uma campanha de tal magnitude no continente, a tal ponto que foi noticiada em sites de internet de jornais prestigiados como El Pais8 ou Le Monde. A campanha visava sensibilizar sobre a responsabilidade tanto do Estado quando do Estado com o meio ambiente. De fato, Fatoumata tem demonstrado o apreço para um conceito de cidadania que coloca no centro de sua concepção a responsabilidade do cidadão com sua comunidade, na esteira da tradicional noção de civismo francês. Essa noção que verificaremos também para a próxima ativista encontra suas raízes na Roma Antiga, tal como descreve Paul Veyne (2015) através de seu conceito de evergetismo cívico. Fatoumata nos relata um pouco da sua trajetória: Trabalho com o web-ativismo desde 2010, desde praticamente o boom das redes sócias e a abertura da Guiné às redes de empresas de telefonia privada. Muito cedo descobri a internet. Ela me permitia transmitir as ideias que tinha sobre cidadania e participação. Comecei no blogging com o Blogspot de Google e em 2014 participei do concurso de Mondoblog9 e fui aceita e comecei a passar minhas ideias, sobretudo, evitando as linhas editorias dos canais midiáticos tradicionais. O web-ativismo é meu cotidiano. Sou uma ativista muito engajada e trabalho além do meu país com ativistas de outros países africanos com os quais debatemos dos assuntos nos grupos de Whatsapp, sobre a governança local e regional. Faço parte de um coletivo regional que milita a favor da educação e divulgação das consequências das mudanças climáticas. É um fórum regional onde trocamos ideias, preparamos planos de ações, organizamos formações. É um fórum de trabalho e de discussão. JULIE Advogada camaronesa, co-fundadora e porta-voz da ONG Internet Sans Frontières, residente em Paris. Muito conhecida do público africano e no mundo do jornalismo francês pois é regularmente convidada em diversos programas de TV e de rádio da França para falar das liberdades fundamentais na internet e das violações dessas liberdades na África. Este é o olhar que Julie tem sobre sua própria atividade: Eu me posiciono claramente. Não fico afastada dos debates e tenho atuado ativamente. Internet Sem Fronteiras trabalha em diversos países, temos também uma diretora para o Brasil em São Paulo; e em muitos países 8 O artigo no site internet do El Pais pode ser consultado aqui: https://elpais.com/elpais/2017/05/31/planeta_futuro/1496240635_974877.html. O site da televisão cultural Franco-alemã Arte noticiou através de uma reportagem o trabalho de militância para o meio-ambiente da ativista Fatoumata. Assistir aqui: https://info.arte.tv/fr/des-selfies-pour-nettoyer-conakry 9 Trata-se de uma plataforma de blogueiros da Radio France Internationale (RFI). Ler nosso artigo A informação terceirizada: Identidade e trabalho não pago na era do jornalismo digital (2015). Anais do VI Seminário Nacional Gênero e Práticas Culturais João Pessoa – PB | 22 a 24 de novembro | 2017 | ISSN 2447-5416
  • 10. 10 africanos, sobretudo, francófonos. Nosso objetivo é construir uma internet verdadeiramente sem fronteiras com a liberdade de acessar a todos os conteúdos disponíveis online, por um lado. E por outro, uma internet acessível a todos. Nos interessamos pela questão da fratura digital, notadamente do ponto de vista econômico e também do aspecto do gênero. Julie também avalia o impacto de suas atividades ao longo desses anos: Tenho a impressão que o ativismo digital oferece resultado mais imediatos, mais rápidos. Consegue-se comunicar diretamente com pessoas e instituições que antes eram inacessíveis no ativismo tradicional. Quando comecei na militância com a internet foi porque estava cansada, em 2010, as pessoas só falavam do Quênia, da África do Sul, da Uganda quando se tratava de internet na África e pensei comigo: “é como se nada acontece na África francófona”. Era uma forma de dizer que nos países de língua francesa também acontecem mudanças nas práticas ligadas à internet. Internet Sans Frontières tem costume de organizar módulos de formação sobre a segurança na internet: Apoiamos muitos ativistas africanos oferecendo formações, ajudando nas petições online. Em geral nosso público algo quando organizamos as formações é composto essencialmente de jornalistas africanos, os ativistas políticos, não no sentido de militância, mas política no sentido de “ação para a cidade10 ”; e para os defensores dos direitos humanos que estão nas associações. Essas pessoas carregam e representam comunidades inteiras; elas têm essa proximidade que nós não temos, então nos apoiamos em pessoas que federam suas comunidades. DIERETOU Blogueira, jornalista e social mídia ninja tal como ela se define em suas redes sociais, ativista digital guineense, residente entre Toulouse e Paris. Criadora da campanha virtual #Guineennedu21eSiècle. Atua na comunicação da associação francesa de luta contra o racismo e o antissemitismo SOS Racisme. É uma das pioneiras do ativismo digital do seu país apesar de ser muito jovem ainda – menos de 25 anos. Entrevistamos Dieretou num dia muito curioso pois foi exatamente no dia 20 de abril de 2017 quando um terrorista atacou e matou um motorista m além de deixar dois policiais feridos na Avenida Champs-Elysées em Paris11 . “DD”, como é chamada entre os mais próximos desenvolveu uma visão crítica e bastante reflexiva a respeito do ativismo digital e não tem somente uma ideia romantizada da mesma: Sou uma ativista muito engajada. Com formação universitária em jornalismo, mas não quero trabalhar nessa área. Participo em muitos coletivos e ativistas, de blogueiros, mas ultimamente tenho me distanciado 10 De novo a ideia de cidadania como civismo tal como analisado por Paul Veyne (idem). 11 O atentado foi noticiado no Brasil: https://oglobo.globo.com/mundo/o-que-se-sabe-sobre-ataque-na-avenida- champs-elysees-em-paris-21240611 Anais do VI Seminário Nacional Gênero e Práticas Culturais João Pessoa – PB | 22 a 24 de novembro | 2017 | ISSN 2447-5416
  • 11. 11 um pouco da militância. Estou com muitas reservas em relação a tudo isso, estou questionando o ativismo digital. O ativismo digital é uma atividade ingrata. Toma seu tempo, consume sua energia. Claro que traz coisas boas também: traz uma rede, o reconhecimento público, mas quando você coloca na balança, será que o saldo é positivo? Atuava muito na confrontação, no ataque online, sobretudo com as autoridades da Guiné e as pessoas começaram a me descobrir, inclusive vários ministros, mas isso tudo me cansou. Porque o reconhecimento acaba limitando suas ações. Não podia mais “twitear” ou escrever livremente no meu blog porque as pessoas estavam em cima. Agora quando devo “twitear” preciso girar minha língua sete vezes senão sou atacada, organizam campanhas em resposta aos meus tweets. Pesa muito esse reconhecimento do ativismo digital. Me dei conta também que o que fazemos online, não diria que é ineficaz, seria redutor, mas a verdadeira luta está no mundo “off-line”. Por exemplo, meu coletivo que milita contra a excisão das mulheres, fui recentemente na Guiné e há muito trabalho a ser feito no mundo real. Tenho a impressão de perder meu tempo na internet, que se trata de um blábláblá inútil. Conclusão É preciso antes de tudo considerar que o ativismo digital na África francófona toca a diversas áreas do social como o meio ambiente, a questão dos direitos humanos, a educação das meninas, a democratização da sociedade, o acesso a uma boa qualidade de internet. O ativismo digital na África é variado e é territorializado, embora estabeleça-se conexões entre ativistas de diversos países. Há cada vez mais mulheres envolvidas nessas atividades e curiosamente, graças a sua força e resiliência são elas as responsáveis das campanhas virtuais mais importantes dos últimos anos. Deve-se atentar para a relação entre o ativismo digital e o empreendedorismo porque é uma característica recorrente entre os diferentes atores. E por fim, devemos analisar com mais atenções as novas formas de auto-inscrições na África, para usar um termo de Mbembe, e entender como as mídias sociais se configuram como tal. Referências AFFAGNON, QUEMAL. Cyberciminalité au Bénin: Menaces, lacunes juridiques et pouvoir. Geste et Voix, n. 24, p. 190-206. CORNEJO, Marcela. El enfoque biográfico: Trayectorias, desarrollos teóricos y perspectivas. Psykhe, vol. 15, n. 1, p. 95-106, 2006. Anais do VI Seminário Nacional Gênero e Práticas Culturais João Pessoa – PB | 22 a 24 de novembro | 2017 | ISSN 2447-5416
  • 12. 12 FELIZBERTO. Patrícia A. S. Vieira. TIC e as desigualdades de gênero: Reprodução social e mudança nos percursos profissionais. Dissertação de mestrado, Covilhão, 2012. GIDDENS, Anthony & SUTTON, Philip. Conceitos essenciais da sociologia. Editora Unesp, 1a ed. Trad. Claudia Freire, São Paulo, 2016. GONÇAÇVES, Rita C. & LISBOA, Teresa K. Sobre o método da história oral em sua modalidade trajetórias de vida. Revista Katál, v. 10, n. esp., p. 83-92, Florianópolis, 2007. LAHIRE, Bernard. Retratos sociológicos: Disposições e variações individuais. Trad. Didier Martin, Patrícia Chittoni Ramos Reuillard, Artmed, Porto Alegre, 2004. LIMA, Paulo, Jr & Massi, Luciana. Retratos sociológicos: Uma metodologia de investigação para a pesquisa em educação. Cienc. Educ. Bauru, v. 21, n. 3, p. 559-574, 2015. MARTEL, Frédéric. Smart: O que você não sabe sobre a internet. Civilização Brasileira, 1a ed., Trad. Clóvis Marques, Rio de Janeiro, 2015. MATOS, Teresa Cristina F. & KATEMBERA, Serge. A informação terceirizada: Identidade e trabalho não pago na era do jornalismo digital. Comunicação e Sociedade, vol. 28, pp. 339-358, 2015. MBEMBE, Achille. As formas africanas de auto-inscrição. Revista Estudos Afro-Asiáticos, ano 23, n. 1, pp. 171-209, 2001. O.I.T. Trabalho digno, competências e empreendedorismo: Reduzir o fosso tecnológico e a desigualdade de gênero, 2008. SILVA, Maria J. Duarte. Gênero e Tecnologias da Informação e Comunicação, CIG, Lisboa, 2009. VEYNE, Paul. Pão e Circo: Sociologia histórica de um pluralismo político. Unesp, 1a ed., Trad. Lineimar Perreira Martins, São Paulo, 2015. Anais do VI Seminário Nacional Gênero e Práticas Culturais João Pessoa – PB | 22 a 24 de novembro | 2017 | ISSN 2447-5416