1) O filme Narradores de Javé conta a história do povoado de Javé que corre o risco de desaparecer com a construção de uma barragem.
2) Os moradores precisam provar o valor histórico do povoado para impedir sua inundação e decidem escrever a história de Javé em um "Livro da Salvação".
3) O personagem Antônio Biá, o único alfabetizado, ajuda na escrita da história e mostra como o domínio da escrita pode conferir poder e
Narradores de Javé: memória, história oral e patrimônio cultural
1. Narradores de Javé
(Direção: Eliane Caffé, 2003)
Andréa Mangabeira
“E desde então essa é a história de Javé que se conta, mas que também pode ser lida e relida por essa
serra e por essas grota sem fim, tá assentada em livro correndo o mundo, pra nunca que ser
esquecida, é isso e num tem mais que isso, quem quiser que escreva diferente.” (Fala de Zaqueu,
personagem do filme).
“Uma coisa é o fato acontecido, outra coisa é o
fato escrito, o acontecido tem que ser melhorado no
escrito de forma melhor para que o povo creia no
acontecido (...) se o sujeito é manco, eu digo que ele
não tem uma perna, é das regras da escritura. Essas
palavras de Antônio Biá ganham importância quando
a cidade começa a enfrentar a difícil tarefa de
escrever sua história no “Livro da Salvação”,
reunindo em uma só versão escrita as muitas
versões orais contadas e recontadas através de
gerações. A razão para tamanho esforço é revelada
A fala em destaque retoma alguns dos pontos
pelo líder Zaqueu: “só não inunda se for patrimônio
mais interessantes no filme Narradores de Javé. O
(...) até hoje ninguém escreveu porque não precisou
longa nacional, dirigido por Eliane Caffé e lançado no
(...) temo que botar na escrita pra provar pra as
ano de 2003, conta a história do povoado de Javé, no
autoridade porque que Javé tem que ter
interior da Bahia, que se vê ameaçado pela
construção de uma barragem que provocará seu tombamento.”
desaparecimento.
O filme trata de uma maneira séria, ainda que
descontraída, questões muito complexas, mostrando
O que fazer, diante de tamanha ameaça? Como
provar o valor do povoado e impedir que toda a sua como discussões que muitas vezes se restringem ao
âmbito técnico e acadêmico podem ser abordadas
história grandiosa seja levada pelas águas? A solução
visando à interlocução com os mais diferentes
para essas perguntas é que constrói o enredo dessa
públicos. No cardápio dos debates que o filme
história narrada por Zaqueu, líder do povoado, e
levanta, podem ser destacados: memória, história
protagonizada por Antônio Biá, habitante
oral, patrimônio cultural, letramento, analfabetismo,
alfabetizado, cujo valor pessoal está em dominar a
escrita em um lugar onde praticamente todos são relações de valor entre escrita e oralidade e relações
analfabetos. de poder e prestígio mediadas pela escrita. Tudo isso
sem falar na questão central e polêmica que é a
Antônio Biá, funcionário de uma agência de inundação de cidades para a construção de usinas
correio, perde seu emprego quando a agência é hidrelétricas.
fechada, afinal “Pra quê um posto de correio num
lugar que ninguém sabe ler e escrever?”. Na Narradores de Javé é uma boa pedida para
tentativa de manter a agência em funcionamento, aqueles que querem dar boas risadas e se divertir
acaba caindo no ostracismo, rechaçado por toda a com o dia-a-dia de um povoado narrado por meio de
uma linguagem repleta de ditos populares regionais
cidade e condenado a exercitar a escrita apenas nas
paredes de sua casa. A situação do personagem e de muito bom humor. Além disso, para os
profissionais ligados à educação, o filme pode ser um
levanta a pergunta: afinal de contas, de que vale
saber escrever num lugar onde ninguém sabe ler? A ótimo aliado para levar para a sala de aula o debate
continuidade da trama mostra, no entanto, como o acerca de diversas questões relacionadas às áreas da
linguagem e das ciências humanas, especialmente as
domínio da escrita pode se tornar algo muito valioso,
que abordam o uso da linguagem e sua relação com
reconfigurando as relações de poder e prestígio de
a participação social e as demandas de uma
uma população ribeirinha e semianalfabeta.
sociedade letrada.