O documento discute a regulamentação da ética em pesquisa no Brasil, que historicamente esteve ligada às ciências da vida e da saúde. Isso criou dilemas para as ciências humanas e sociais, cujas pesquisas raramente oferecem riscos aos participantes. Muitos métodos aprovados nas humanidades são questionados por órgãos como a Conep. O dossiê defende princípios éticos construídos pelas próprias áreas, em vez da imposição de regras biomédicas, inadequadas para as investigações em
Considerações sobre a tar e o problema da objetivação na pesquisa em cincias ...
Ética em pesquisa nas ciências humanas
1. Revista Brasileira de Sociologia
Sociedade Brasileira de Sociologia – SBS
Vol 03, No. 05 | Jan/Jun/2015
2. RBS – REVISTA BRASILEIRA DE SOCIOLOGIA
ISSN 2317-8507
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Diretoria (Gestão 2013-2015)
Publicação Semestral da SOCIEDADE BRASILEIRA DE SOCIOLOGIA – SBS
Secretária de Editoria: Deborah Dorenski
Revisão: Raquel Meister Ko Freitag
Diagramação: Adilma Menezes
Capa: Allan Veiga Rafael
RSB: Revista Brasileira de Sociologia / Sociedade Brasileira
de Sociologia - SBS. – Vol. 03, n. 05 (jan./jun. 2015)- .
– Sergipe: SBS, 2013-
Semestral
ISSN 2317-8507 (impresso)
ISSN 2318-0544 (Eletrônico)
1. Sociologia – Periódicos. I. Sociedade Brasileira de
Sociologia
CDU 316(051)
Ficha Catalográfica elaborada pela UFS
3. 05
Editorial
Soraya Vargas Côrtes
11
Apresentação
Luiz Antonio de Castro Santos
Leila Jeolás
31
A ética em pesquisa nas ciências humanas e o imperialismo bioético no Brasil
Luiz Fernando Dias Duarte
53
Regulamentação, ética e controle social na pesquisa em ciências humanas
Emil A. Sobottka
79
A ética em pesquisa transfigurada em campo de poder: notas sobre o sistema CEP/
Conep
Cynthia Sarti
97
A húbris Bioética: rumo a uma polícia epistemológica?
Flavio Edler
115
Ética e regramento em pesquisa nas ciências humanas e sociais
Maria Luisa Sandoval Schmidt
133 Ética na pesquisa social: novos impasses burocráticos e paroquiais
Alba Zaluar
159
A ética em pesquisa com seres humanos: desafios e novas questões
Márcia Grisotti
177
Ciências sociais, ética e bioética: o caso do trabalho sexual
Manuel Carlos Silva
Fernando Bessa Ribeiro
203
A ética em pesquisa e a estética do conhecimento
Túlio Batista Franco
215
Ética da pesquisa e ética profissional em Sociologia: um começo de conversa
Jacob Carlos Lima
241
Uma Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, as ciências biomédicas e as ciências
humanas: Trespassing à Brasileira
Luiz Antonio de Castro Santos
Leila Jeolás
261 Resumo, Abstract e Résumé
Sumário
4.
5. Durante a maior parte da história da ciência, as questões re-
lativas à ética em pesquisa foram pouco reguladas. A situação
veio a se alterar somente a partir dos últimos 20 anos do século
passado, quando grupos de pesquisadores passaram a denunciar
de forma sistemática o uso de seres humanos em investigações
que colocavam vidas em risco, sem que os participantes ao me-
nos fossem informados sobre os perigos a que eram submetidos.
A institucionalização de órgãos e regras normatizadoras de
pesquisas com seres humanos assumiu trajetórias diversas em
diferentes países, mas, assim como no Brasil, ela esteve fre-
quentemente ligada à área de ciências da vida e, particular-
mente, às ciências da saúde. No Brasil, a Comissão Nacional de
Ética em Pesquisa (Conep) foi criada em 1996. Sua localização
institucional, junto ao Conselho Nacional de Saúde, fez com
que o regramento construído fosse direcionado principalmente
para as questões éticas envolvidas em pesquisas da área médi-
ca. Isso criou dilemas importantes para os estudiosos da área de
humanidades. Pesquisamos sobre seres humanos, mas nossos
estudos, à exceção daqueles poucos que utilizam certos tipos
de métodos experimentais, não oferecem qualquer risco aos
pesquisados. No entanto, o regramento criado pela Conep e ins-
tâncias de regulação constituídas para torná-lo efetivo são hoje
EDITORIAL
Soraya Vargas Côrtes
PRESIDENTE DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE SOCIOLOGIA
Sociedade Brasileira de Sociologia – SBS
6. EDITORIAL | Soraya Vargas Côrtes
REVISTA BRASILEIRA DE SOCIOLOGIA | Vol 03, No. 05 | Jan./Jun./2015
6
um obstáculo desnecessário à pesquisa social. Em muitos casos in-
vestigações em nossas áreas são submetidas à avaliação de estudiosos
das áreas de ciências da vida, que questionam até mesmos métodos
aprovados nos órgãos acadêmicos do campo das humanidades.
O presente dossiê reafirma o compromisso da Sociedade Brasileira
de Sociologia (SBS) com as boas práticas de pesquisa e, portanto, com
a promoção e difusão da ideia de que a pesquisa na área de ciências
sociais e, de forma mais ampla, nas humanidades deve ser realizada
em conformidade com princípios éticos construídos mediante um es-
forço reflexivo através do qual estabelecemos como se deve proceder
durante as investigações e como devem ser apresentados os resulta-
dos das pesquisas. Sabemos que tais princípios derivam de conven-
ções e de padrões morais de nosso tempo. Assim, o que concebemos
hoje como aceitável pode ser inapropriado no futuro, ou o que con-
sideramos hoje como totalmente reprovável era visto como ‘natural-
mente’ adequado no passado. As variações também dependem das
histórias das comunidades de pesquisadores nacionais e regionais,
que podem ser contrastantes, embora na contemporaneidade as con-
vergências tenham crescido de modo expressivo. Princípios éticos,
portanto, não são imutáveis, e os valores sobre os quais são constru-
ídos estão em constante transformação. No entanto, isso não reduz
a sua importância. Ao contrário, uma das características marcantes
do campo das ciências sociais e das humanidades na atualidade é a
preocupação com a construção de consensos aceitáveis sobre ética
em pesquisa e a explicitação desse consenso por meio de regras que
orientem o pesquisador sobre como melhor proceder. Porém, embora
existam consensos mínimos, há controvérsias em torno da definição
de quais seriam essas regras e sobre o melhor modo de fazer com que
sejam seguidas. A SBS quer participar dessa discussão, e este dossiê
é parte deste esforço.
Para estabelecer a clara diferença entre as investigações experi-
mentais e clínicas que lidam com seres humanos e aquelas de nossas
áreas, as organizações de representação acadêmica e profissional do
campo das humanidades argumentam que nossas pesquisas são com
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REVISTA BRASILEIRA DE SOCIOLOGIA | Vol 03, No. 05 | Jan./Jun./2015
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seres humanos e não em seres humanos. Mesmo que nossos estudos
sejam com seres humanos, não há como negar que qualquer relação
intersubjetiva tem consequências sobre a subjetividade daqueles com
que se relacionam. O impacto, porém, é sobre modos de ver o mundo,
crenças, valores, sobre como se conhece e aprende. Não há intenção
de agir sobre os corpos dos indivíduos analisados ou a possibilidade
de colocá-los em situações de risco.
Outro argumento sobre a especificidade das pesquisas na área de
humanidades é que a maioria delas visa a observação de fenômenos,
de processos sociais, de indivíduos ou de coletividades, e não a inter-
venção sobre eles. No entanto, há controvérsias sobre se pesquisas na
área de humanidades não devem ter por objetivo intervir, transformar
a realidade (BURAWOY, 2005). Independentemente da posição que
cada um venha assumir frente à questão, esse é um debate típico da
área de humanidades. As respostas ao problema orientarão a constru-
ção de regras éticas de condução dos processos de investigação.
Os pesquisadores em ciências humanas concordam que na maior
parte dos casos, o pesquisado deve ser informado sobre os objetivos
da investigação, consentir em dela participar e com o tipo de utiliza-
ção que será dada às informações que oferecer. Entretanto, se objeto
de estudo for o comportamento de multidões ou de torcidas em cam-
po de futebol, deve-se obter o consentimento livre e esclarecido de to-
dos os indivíduos que integram a multidão ou as torcidas? Isso invia-
bilizaria a pesquisa. Se o estudo aborda aspectos de uma determinada
organização – empresa, sindicato, partido, ministério, por exemplo –,
quem deve oferecer o consentimento? Se os dirigentes da organiza-
ção negarem permissão para a realização da pesquisa, ela não deve
ser feita? O exercício do poder daqueles que desejam esconder o que
acontece sob a sua direção deve ser considerado como uma adequada
negação de consentimento que protege o pesquisado? Analisar cole-
tividades, o que ocorre frequentemente nas pesquisas sociais, remete
a problemas que não estão no horizonte das discussões da bioética.
Outra questão que preocupa os cientistas sociais são as relações
assimétricas que se estabelecem entre pesquisadores e pesquisados.
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REVISTA BRASILEIRA DE SOCIOLOGIA | Vol 03, No. 05 | Jan./Jun./2015
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O investigador tem conhecimentos que não são acessíveis aos pesqui-
sados, por mais detalhado que seja o termo de consentimento livre e
esclarecido. No caso de investigações sobre elites empresarias e polí-
ticas são os pesquisadores que estão na parte de baixo da relação. As
diferenças de classe e escolaridade, entre outras, formatam o encon-
tro de pesquisa como um relacionamento entre desiguais. É correto
utilizar de artifícios para disfarçar as desigualdades de modo a tornar
o encontro de pesquisa mais frutífero para a obtenção das informa-
ções desejadas? É possível não utilizá-los? Esse é apenas mais um
exemplo de como questões éticas devem emergir de problemáticas de
fato relevantes para pesquisadores sociais e da área de humanidades,
e não de outras fontes que propõem normas para resolver problemas
que não temos. A leitura da Resolução nº 466, do Conselho Nacional
de Saúde, proposta pela Conep, que estabelece as diretrizes e normas
regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos, oferece o
principal exemplo dessa situação: boa parte do que é tratado não faz
sentido em pesquisas sociais ou da área de humanidades.
Argumenta-se aqui sobre a evidente inadequação do regramento
ético da pesquisa médica para as investigações de nossas áreas. Não
há razão para a Conep se autoatribuir o direito de decidir sobre como
devemos pesquisar. Sua recusa, em janeiro de 2015, em aceitar as
propostas de modificação das 10 associações da área de humanida-
des que compunham uma comissão especial1
, nomeada pela própria
Conep, torna claro que é preciso encontrar um caminho próprio, dis-
tante da imposição das regras biomédicas e bioéticas.
A SBS, ao lado de outras entidades de representação acadêmica
e profissional da área de humanidades, apoia a desvinculação desse
modelo de regulação institucional da ética em pesquisa. Isso porque o
mesmo é dominado pelos padrões construídos no âmbito da pesquisa
biomédica e praticamente desconsidera as diferenças entre os dois
tipos de investigação. Nunca é demais lembrar que não defendemos
a ausência de parâmetros morais e éticos em pesquisas na área de
1 ABA; Abepss; Abrapso; Anped; Anpocs; Anpuh; Conpedi; Esocite-BR; SBHC; SBS.
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REVISTA BRASILEIRA DE SOCIOLOGIA | Vol 03, No. 05 | Jan./Jun./2015
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humanidades. Pelo contrário, advogamos que se tornem mais claros
e rígidos, mas em acordo com a natureza de nossas pesquisas, a par-
tir da reflexão que vem sendo realizada por nossas disciplinas. Um
regramento estabelecido por nossos pares sobre questões éticas per-
tinentes para nós.
Essas e outras questões correlatas são abordadas nos artigos reuni-
dos nesse dossiê. Espero que aproveitem a leitura e venham partici-
par desse instigante campo de debates.
Referências bibliográficas
BURAWOY, Michael (2005). For Public Sociology, American Socio-
logical Review, v. 70, February, pp. 4–28.
CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE (2012), Resolução nº 466, de 12
de dezembro de 2012. Acesso em: 01/06/2015. Disponível em: http://
conselho.saude.gov.br/resolucoes/2012/Reso466.pdf.
10.
11. “O fato é que vimos, num caso determinado, a sociedade e suas
ideias essenciais se tornarem, diretamente e sem transfiguração de
nenhuma espécie, objeto de um verdadeiro culto”
Émile Durkheim, 1912
“É a noite absoluta”
Lúcio Cardoso, 1957
As aspirações à ética não brotaram da modernidade cien-
tífica, seja da bioética, das práticas de clínica médica, ou da
biomedicina. A ética é filha da história dos homens. Lá onde a
cidade e a terra “carecem de fechos”, diria o grande Rosa, o ho-
mem busca o fecho necessário para cercá-las, mas mete os pés
pelas mãos. Por um lado, o fecho é o outro nome da ética, cuja
busca se impõe à vida das sociedades humanas desde sempre;
por outro lado, a Norma pode ser sua contrafação. Instituídas
pela força, ou pelo poder dos homens, as normas podem vir a
retirar da ética as dimensões da liberdade e do livre-exame, em
vez de preservá-las; da cidade, poderão cercear-lhe a vitalida-
de, restringir-lhe a sociabilidade aberta e plural. A ética na pes-
quisa social sai de cena. Não diretamente, mas transfigurada,
desdobra-se em cultos de “avaliação”, em rituais e cerimônias
APRESENTAÇÃO: A PESQUISA E SUA ÉTICA, O
PODER E SUA NORMA
Luiz Antonio de Castro Santos
Leila Jeolás
Sociedade Brasileira de Sociologia – SBS
12. APRESENTAÇÃO | Luiz Antonio de Castro Santos; Leila Jeolás
REVISTA BRASILEIRA DE SOCIOLOGIA | Vol 03, No. 05 | Jan./Jun./2015
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vazias. Brasil afora, instituições de pesquisa até então autônomas e
respeitáveis, apresentam-se diante dos altares de uma comissão fe-
deral com seus dogmas e símbolos. Tantas vezes, e por tantos meios
legais, a norma poderá instituir o cerco perigoso, a noite absoluta so-
bre a cidade.
A formação ética do trabalho de cientistas sociais e das humani-
dades, no Brasil, seguiu padrões próprios de método crítico e conduta
– sem a interferência de controles ou protocolos válidos para o campo
da biomedicina, como hoje em dia se advoga. Gerações se formaram
em trabalho de campo em antropologia e sociologia, sob a direção
intelectual de mestres como Maria Isaura Pereira de Queiroz, Flores-
tan Fernandes e Roberto Cardoso de Oliveira, para citar três maiorais
(permitam-nos) nascidos entre 1918 e 1928. Em suas universidades,
como em outras instituições de ensino superior, nomes de referên-
cia no mundo das ciências sociais se firmaram de modo inatacável,
sob os princípios de respeito às populações, aos grupos sociais e aos
indivíduos que buscávamos estudar e compreender. Diríamos, pois,
que a ética do respeito, no trabalho de campo, foi o padrão balizador
da formação profissional no Brasil para pesquisadores nas Ciências
Humanas e Sociais (CHS). O respeito à pessoa humana se difundiu e
se refletiu no pensamento de pesquisadores brasileiros, desde os seus
primórdios. Em trabalhos até hoje clássicos, tornam sem razão os sen-
timentos de “proteção ética” dos comitês inquisitoriais atualmente
dispersos por todo o país.
A presente coletânea, enriquecida por inúmeros recortes e ângulos
de análise, é uma crítica de pesquisadores brasileiros ao poder da
Norma, ditada pelo discurso recente da bioética. Nem mesmo nos
Estados Unidos, país em que a bioética tem grande número de segui-
dores em outros campos da ciência, a pretensão por vezes imperial
desse campo do saber se iguala ao que ocorre no Brasil. Neste país, e
só aqui, as decisões e resoluções normativas baixadas pela bioética,
sobre o que “deve ser” a ética em pesquisa “em e com” seres huma-
nos, assumiram um caráter de inaceitável transgressão e imposição
sobre as CHS. Tal processo se desenvolveu, a partir de 1996, com as
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REVISTA BRASILEIRA DE SOCIOLOGIA | Vol 03, No. 05 | Jan./Jun./2015
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regulamentações formuladas pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS)
e com o funcionamento dos Comitês de Ética em Pesquisa (CEP) no
país, integrados à Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep).
As formulações, bem como todo o sistema de avaliação, tiveram iní-
cio na área da saúde, inspirados pela bioética com a pretensão de
serem aplicados a todas as pesquisas “envolvendo seres humanos”
nas diversas áreas do conhecimento. O CNS se outorgou o direito de
normatizar e regular “toda” pesquisa, e não apenas as clínicas e mé-
dicas, sem ter exercitado a escuta necessária para construir, conjun-
tamente, um fórum comum de discussão e de regulação diferenciada.
O objetivo deste dossiê foi, justamente, o de promover um debate
no espaço da Revista Brasileira de Sociologia sobre os aspectos teóri-
co-metodológicos da Ética da Pesquisa, buscando a reflexão sobre tal
conjunto de normas vigentes, aplicadas por entidades vinculadas ao
Ministério da Saúde com amparo legal e poder de veto sobre estudos
nas áreas de CHS. Este foi o ponto de partida para convidar os/as
autores/as aqui presentes a uma reflexão de caráter mais substantivo,
dado que as normas em vigor revelam o desconhecimento ou descon-
sideração das condições e condutas, tanto do ponto de vista episte-
mológico como metodológico, inerentes à pesquisa em CHS. Fomos
guiados, em última análise, pela necessidade de discutir a conduta
nas pesquisas das CHS e o modo como se afastam, em termos episte-
mológicos, das ciências experimentais, exigindo, portanto, postula-
dos e parâmetros que lhes são próprios.
Os autores convidados representam, não de forma exaustiva,
evidentemente, posições de diferentes áreas das CHS, tais como a
Sociologia, a Antropologia, a História e a Psicologia. Vários deles
estiverem presentes e atuantes nesse campo de discussão que se
acumula há quase duas décadas no país. Já houve avanços ponde-
ráveis no debate e pesquisadores das CHS não se furtaram de parti-
cipar do sistema CEP/Conep ao longo desses anos, discutindo suas
evidentes limitações ao campo da biomedicina, formulando críticas
propositivas e propondo modificações. Inúmeras publicações foram
realizadas, conforme se poderá verificar nas referências bibliográ-
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REVISTA BRASILEIRA DE SOCIOLOGIA | Vol 03, No. 05 | Jan./Jun./2015
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ficas dos artigos aqui apresentados, bem como grupos de trabalhos
em congressos, mesas-redondas, coletâneas temáticas em revistas
nacionais, moções, manifestações em comitês universitários, dentre
outras iniciativas.
Um esforço de definição dos aspectos legais e éticos dos “mun-
dos da pesquisa” em CHS e nas ciências biomédicas, com ênfase nos
aspectos da produção e publicação, foi realizado pelos membros da
Comissão de Integridade de Pesquisa designada pelo CNPq em maio
de 2011. A discussão ética, em particular, foi suscitada pela oportuna
Moção apresentada pelo Conselho Diretor da Associação Brasileira de
Antropologia (ABA) à Assembleia Geral da Associação Nacional de
Pós-Graduação em Ciências Sociais (Anpocs), em outubro de 2011.
Esta moção problematizava e questionava a avaliação das pesquisas
em CHS a partir de postulados ético-políticos próprios ao campo
biomédico. Os aspectos metodológicos são, desde logo, incomensu-
ravelmente distantes da área do social. Neste campo do saber, pesqui-
sas podem ser iniciadas, em fase piloto ou em seus primeiros ensaios
de campo, com a aprovação de mérito por orientadores de projetos
de pesquisa ou por agências de fomento. Isto se torna inviável com
a adoção de medidas protocolares rígidas, ou de salvaguardas con-
sideradas imprescindíveis em protocolos de pesquisa com material
biológico humano.
Apesar dessas manifestações e da participação em várias outras
instâncias, “nossas” vozes, das CHS, não encontra(ra)m ressonân-
cia. Nos Conselhos de Ética em Pesquisa (CEP) não foram poucos os
pesquisadores a participar e a tentar discutir suas limitações (atual-
mente bem conhecidas) sem conseguir, entretanto, alargar o espaço
de reflexão em meio à contínua reiteração de tarefas burocráticas,
nomeações e participações temporárias e rotativas. Mas os avanços
são mínimos, lentos e devem ser reafirmados e defendidos o tempo
todo, caso do TCLE ainda exigido formal e mecanicamente. Os limi-
tes do diálogo mostram-se (quase) intransponíveis e se traduzem em
cansaço diante do descaso e da arrogância com que as especificidades
metodológicas e os procedimentos éticos de nossas pesquisas são tra-
15. APRESENTAÇÃO | Luiz Antonio de Castro Santos; Leila Jeolás
REVISTA BRASILEIRA DE SOCIOLOGIA | Vol 03, No. 05 | Jan./Jun./2015
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tados, sob a “suspeita” – indefensável – de um menor “rigor científi-
co” e de uma menor “preocupação ética”.
O momento para o lançamento deste dossiê não poderia ser mais
oportuno. Depois de um ano de discussão, o Grupo de Trabalho (GT)
organizado para discutir a Resolução sobre Ética em Pesquisa nas
Ciências Humanas e Sociais (CHS), que elaborou minuta específica
para a área, recebeu resposta negativa da Conep, recentemente, em
janeiro de 2015, a todos os pontos apresentados. Momento oportuno
que reúne pesquisadores de várias áreas das ciências humanas para
expressar as tensões e dificuldades desse processo.
Para nós, organizadores do dossiê, teria sido impossível chegar ao
final dessa empreitada sem a colaboração dos/as autores/as, aos/às
quais agradecemos por responderam ao convite para participar, mais
uma vez (e quantas ainda não serão necessárias!), dessa discussão
sobre ética em pesquisa nas CHS e o sistema CEP/Conep. Nossos agra-
decimentos vão, igualmente, a Soraya Vargas Côrtes, presidente da
Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS), pelo estímulo ao debate,
incentivado no seio da entidade, e pelo aceite para apresentar esse
dossiê. Agradecemos a Rogério Proença Leite, editor da Revista Brasi-
leira de Sociologia (RBS), pelo apoio competente e sempre pronto, na
difícil tarefa de editar uma revista.
O foco dos artigos foram os embates, as limitações e a (in)comuni-
cabilidade nas tentativas de diálogo entre as áreas da biomedicina e
das ciências humanas, no âmbito da regulação da ética em pesquisa,
embora os/as autores/as partam de pontos de vista, ênfases, referen-
ciais teórico-metodológicos e experiências de pesquisa distintos.
Os cinco artigos iniciais abordam as relações de poder do sistema
CEP/Conep e as tentativas de imposição do saber biomédico nesse
processo. Os primeiros três foram escritos por representantes de en-
tidades científicas no GT-CHS, grupo que elaborou minuta específi-
ca para a área das ciências humanas. O antropólogo Luiz Fernando
Dias Duarte, representante da Associação Brasileira de Antropolo-
gia (ABA) e da Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências
Sociais (Anpocs) no GT-CHS, abre o dossiê com o artigo A ética em
16. APRESENTAÇÃO | Luiz Antonio de Castro Santos; Leila Jeolás
REVISTA BRASILEIRA DE SOCIOLOGIA | Vol 03, No. 05 | Jan./Jun./2015
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pesquisa nas ciências humanas e o imperialismo bioético no Brasil.
Com uma análise contundente sobre a relação de poder da biomedi-
cina em sua tentativa de controlar a ética em pesquisa também nas
ciências humanas e sociais, o autor fala do imperialismo da bioética
que inspira as regulamentações do sistema CEP/Conep de avaliação
das pesquisas “envolvendo seres humanos”, cuja lógica pretende ser
estendida a todas as outras áreas do conhecimento. A tensão desen-
cadeada pela Conep, desde a regulamentação de 1996, demonstra o
embate entre esses dois conjuntos de saberes que, segundo o autor,
se opõem desde o surgimento das primeiras ciências “morais” ou “do
espírito”, no século XIX, e os saberes herdeiros do fisicalismo ilu-
minista. O autor traz uma contribuição inestimável com o olhar de
quem sempre foi um ator fundamental nos diversos fóruns e instân-
cias desse debate no país.
Com o mesmo vigor crítico, o sociólogo Emil Sobottka, represen-
tante da Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS) no GT-CHS, discu-
te em seu artigo Regulamentação, ética e controle social na pesquisa
em ciências humanas a “expansão colonizadora” sobre as ciências
humanas, da regulamentação da ética em pesquisa nas ciências bio-
médicas no Brasil. O texto, inicialmente um subsídio para o debate
interno na PUC-RS, analisa com profundidade a questão do controle
externo e da diferença entre as pesquisas experimentais e interpreta-
tivas, ressaltando que “a responsabilidade ético-profissional do pes-
quisador não pode ser substituída por procedimentos burocratizados
e voluntaristas de controle externo”. O fato é que tal controle externo
da pesquisa em nosso país, centrado, desde o início, na área da saúde
e no Conselho Nacional de Saúde (CNS), impõe uma racionalidade
da área biomédica às CHS que não leva em consideração os diferen-
tes métodos das pesquisas sociais e a diversidade de perspectivas de
análise, anulando, desta forma, seu “potencial crítico” e sua “mais
genuína contribuição para a sociedade”.
O artigo A ética em pesquisa configurada em campo de poder:
notas sobre o sistema CEP/Conep, da antropóloga Cynthia Sarti, re-
presentante da ABA e da Anpocs no GT-CHS, traz um registro teste-
17. APRESENTAÇÃO | Luiz Antonio de Castro Santos; Leila Jeolás
REVISTA BRASILEIRA DE SOCIOLOGIA | Vol 03, No. 05 | Jan./Jun./2015
17
munhal valioso sobre a atuação crítica de pesquisadores e entidades
científicas das CHS com relação à regulamentação da ética em pes-
quisa conduzida pelo sistema CEP/Conep. A autora retraça as tensões
e os entraves do processo, bem como as tentativas de diálogo entre as
ciências biomédicas e as humanas e sociais com relação às especifi-
cidades entre as pesquisas em e com seres humanos. O artigo relata o
processo no qual várias associações aceitaram (mesmo com reserva)
o convite da Conep para discutir em um GT uma regulamentação
específica para as CHS. O resultado foi a recusa da Conep em aceitar
os pontos da minuta elaborada pelo GT, além do descumprimento do
prazo para apresentar tal minuta à consulta pública em janeiro de
2015. Diálogo difícil, pois nega o reconhecimento do outro (as CHS),
recusa a escuta e tenta impor e estender a lógica própria de um campo
do conhecimento, o biomédico, a todos os outros, tornando a ética,
nas palavras da autora, um campo de poder. Segundo ela, é necessá-
rio resistir (e sua contribuição a esse dossiê vai neste sentido) e evitar
que o sistema não estenda, de forma irreversível e definitiva, sua ló-
gica e normatizações aos outros campos do conhecimento; como bem
analisa a autora, assim teremos apenas uma prática de “vigilância”
externa, no contexto atual de uma “sociedade da desconfiança”.
O processo conflituoso entre o sistema CEP/Conep e os pesquisa-
dores das CHS é igualmente analisado pelo historiador Flavio Edler
no artigo A húbris bioética: rumo a uma polícia epistemológica? O
autor mostra como os conflitos gerados pela imposição desse con-
trole externo têm prejudicado o avanço das pesquisas em nossas
áreas. O enfoque é precioso: parte de uma avaliação sobre a organi-
zação do trabalho intelectual e a emergência dos instrumentos de
regulação profissional no mundo contemporâneo para, em seguida,
articulá-las às fronteiras do mundo acadêmico. Tal abordagem põe
em perspectiva os desafios políticos, econômicos e culturais que
animam o debate e aponta a guinada interpretativa nas CHS para a
ação e para os atores (agentes), o caráter reflexivo do conhecimento
nessas áreas e a contribuição de seus estudos para a explicitação
das fontes de produção das vulnerabilidades, estigmas e discrimina-
18. APRESENTAÇÃO | Luiz Antonio de Castro Santos; Leila Jeolás
REVISTA BRASILEIRA DE SOCIOLOGIA | Vol 03, No. 05 | Jan./Jun./2015
18
ções sofridas por grupos humanos em diferentes tempos e lugares.
Ciências sem fronteiras supõem a superação da hubris bioética no
cenário contemporâneo.
O texto A ética em pesquisa com seres humanos: desafios e no-
vas questões, da psicóloga Maria Luisa Sandoval Schmidt, analisa
também as concepções que sustentam as propostas de regulamen-
tação da ética em pesquisa a partir da perspectiva biomédica e os
desdobramentos e conflitos no campo das CHS. A autora denuncia a
hegemonia biomédica na condução das ações reguladoras e destaca
os principais elementos no campo de debates e disputas instaurado
pelas resoluções. O texto indica a centralidade do conceito de risco
nos marcos regulatórios e faz alguns apontamentos sobre os limites
da minuta ou da regulamentação específica para as CHS. Introduz,
igualmente, a discussão sobre o “princípio de precaução”, cada vez
mais presente nas discussões sobre risco. Diante da possibilidade do
alcance despropositado do “princípio de precaução” sobre estilos e
modos de vida, deve-se sugerir cautela às autoridades da saúde – ou,
aqui sim, precaução.
Os próximos cinco artigos são contribuições que articulam a aná-
lise da ética em pesquisa nas CHS com as experiências acadêmico-
-profissionais e de pesquisa dos/das autores/as. A antropóloga Alba
Zaluar, mestre em sua contribuição ao debate sobre metodologias de
pesquisa nas ciências sociais, nas coletâneas que organiza e em suas
publicações sobre o tema, acumulou, igualmente, reflexões sobre éti-
ca em pesquisa a partir de sua larga experiência de estudos de po-
pulações envolvidas na violência do tráfico nas favelas do Rio de Ja-
neiro. Seu artigo, intitulado Ética na pesquisa social: novos impasses
burocráticos e paroquiais, ressalta a distância existente entre pesqui-
sas em e com seres humanos, entre a intervenção médica nos corpos/
mentes dos sujeitos e o caráter interacional da pesquisa social, entre
a “filosofia individualista da intimidade” e uma “filosofia relacional
e coletiva”. Ao destacar o compromisso ético-político do pesquisa-
dor, de respeito ao outro, a autora nos remete a Lévi-Strauss e reafir-
ma a interação entre os participantes da pesquisa como “encontro de
19. APRESENTAÇÃO | Luiz Antonio de Castro Santos; Leila Jeolás
REVISTA BRASILEIRA DE SOCIOLOGIA | Vol 03, No. 05 | Jan./Jun./2015
19
subjetividades”. Para a autora, a não observância das especificidades
dessa relação fez com que os efeitos do conflito de interesses entre a
Conep e o GT-CHS se transformassem em interesses paroquiais, dis-
tantes do interesse público.
A socióloga Márcia Grisotti, em seu texto A ética em pesquisa com
seres humanos: desafios e novas questões, problematiza a universali-
dade do termo ‘ética’, os limites de sua utilização e as consequências
para a pesquisa, contextualizando o debate sobre a construção dos
objetos do conhecimento e os “fatores internos e externos envolvidos
na produção dos fatos científicos”, seja no momento de sua descober-
ta, seja no de sua justificação. A autora faz uma análise competente
de autores de referência para a filosofia e as ciências do conhecimen-
to, ressaltando que a tarefa do sociólogo é mostrar, justamente, como
o processo de conhecimento da realidade não é estanque e, por isso,
todas as etapas de construção desse conhecimento devem ser consi-
deradas, o que acaba por ser inviabilizado pelo protocolo concebido
pela Conep, que estabelece uma separação rígida das etapas de pes-
quisa. Os limites e impasses para seguir o protocolo são apresentados
no artigo por meio de um relato de três experiências com pesquisa
qualitativa, no campo das ciências sociais.
O dossiê traz também uma contribuição de colegas sociólogos por-
tugueses, Manuel Carlos Silva e Fernando Bessa Ribeiro, com o artigo
Ciências sociais, ética e bioética: o caso do trabalho sexual, uma rica
experiência de pesquisa sobre prostituição feminina em regiões de
fronteira no Norte de Portugal, tratando, pois, de “populações vul-
neráveis” como pano de fundo para reflexões críticas e pertinentes
ao debate no campo científico contemporâneo sobre a relação entre
as CHS e a ética. Além de uma sólida contribuição para a discussão
teórica em sociologia, os autores expõem os procedimentos metodo-
lógicos e éticos do trabalho de campo e demonstram como a pesquisa
em ciências sociais possui características próprias e modos e meios
particulares, que exigem quadros de regulação ética específicos não
compatíveis com os que se aplicam às “ciências naturais e da vida”.
Uma vez que o pesquisador social não se coloca de forma externa aos
20. APRESENTAÇÃO | Luiz Antonio de Castro Santos; Leila Jeolás
REVISTA BRASILEIRA DE SOCIOLOGIA | Vol 03, No. 05 | Jan./Jun./2015
20
contextos e indivíduos com/nos quais desenvolve suas pesquisas, as
questões metodológicas e teórico-políticas daí advindas suscitam de-
bate e divergências no campo das ciências sociais e exigem, nas pala-
vras dos autores, “códigos éticos que possam acomodar as abordagens
críticas e emancipatórias”.
O artigo A ética em pesquisa e a estética do conhecimento, do psi-
cólogo e doutor em saúde coletiva Túlio Batista Franco, parte igual-
mente de exemplos de pesquisa para levantar os problemas enfrenta-
dos pelos pesquisadores das CHS. Através de uma discussão teórico-
-metodológica sobre “ciência intuitiva” proposta por Spinoza, para
quem pesquisar é um ato criativo de produção do mundo e de si, o
autor busca apontar os limites dos protocolos para as ciências biomé-
dicas quando aplicados às CHS. Para o autor, a natureza do próprio
ato de conhecer inclui um gênero de conhecimento, o das “afecções”,
ou seja, dos afetos que se produzem no corpo e na relação com os ou-
tros, que não pode ser ignorado no processo de pesquisa e de conhe-
cimento. O autor sugere que caberia aos Comitês de Ética regular os
projetos no campo da saúde coletiva em circunstâncias precisas, com
relação exclusivamente aos possíveis e tangíveis riscos, reservando,
às questões de método, “graus máximos de liberdade, de tal modo a
refletir a própria diversidade do conhecimento”.
Nova e densa contribuição à discussão teórica em sociologia cabe
ao capítulo assinado pelo sociólogo Jacob Carlos Lima, Ética da
pesquisa e ética profissional em Sociologia: um começo de conversa.
Muito além de uma “conversa”, o autor exemplifica com precisão os
dilemas éticos e morais enfrentados pelo profissional da sociologia
em sua atividade e desde a formação da disciplina. Ele o faz atra-
vés de um relato pessoal estimulante, cotejado com uma explanação
de questões metodológicas que remetem aos clássicos da sociologia.
Além das atividades do sociólogo no meio acadêmico, o artigo faz re-
ferência aos dilemas éticos na atuação profissional, como ocorre, de
maneira diversificada, em instituições e ONG. O texto focaliza ainda
questões paralelas à ética em pesquisa, tais como o problema “endê-
mico” do plágio em nossa área e em todos os campos do conhecimen-
21. APRESENTAÇÃO | Luiz Antonio de Castro Santos; Leila Jeolás
REVISTA BRASILEIRA DE SOCIOLOGIA | Vol 03, No. 05 | Jan./Jun./2015
21
to, incluídas as ciências biomédicas e naturais, em experimentos com
humanos e no desenvolvimento de novas drogas e fármacos, como
relata a mídia especializada.
Os organizadores do presente dossiê, Luiz Antonio de Castro San-
tos, sociólogo, e Leila Jeolás, antropóloga, encerram os capítulos com
o texto Uma Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, as ciências
biomédicas e as ciências humanas: “trespassing” à brasileira. O artigo
busca ressaltar a preocupação dos cientistas sociais brasileiros com
os procedimentos burocratizados de controle externo, implantados,
desde 1996, pelas resoluções do CNS e da Conep. Tais procedimen-
tos são analisados como um caso de “trespassing” na história da co-
munidade científica brasileira, não no sentido positivo do termo que
remete à desejável transdisciplinaridade das ciências, ao diálogo e
à intersubjetividade, mas no sentido negativo, quando o necessário
diálogo entre os diversos campos do conhecimento cedeu lugar à im-
posição de normas e condutas pela bioética. O que se observa nesse
processo é a equivocada transposição “oficial” para as ciências huma-
nas e sociais de um código de ética aplicável à pesquisa clínica e aos
experimentos em humanos.
***
Um fecho ainda será oportuno, para nossos leitores pouco fami-
liarizados com o debate. Se era imperioso e previsível (como fomos
ingênuos!) que as correntes da bioética nacional aprendessem com a
comunidade científica “do lado de cá”, algumas lições sobre a con-
duta ética de respeito, nos experimentos em humanos – suponhamos,
no uso de células-tronco embrionárias para a cura de doenças –, tal
não se deu. Na esteira do necessário cuidado em rechaçar e denunciar
os desdobramentos da “eugenia médica” durante o nazismo, o concei-
to de risco à vida humana tornou-se, a partir do pós-guerra, um meio
considerado mais rigoroso de avaliação ética das pesquisas médicas.
É chegado o momento histórico de revermos tal conceito, mesmo para
o campo da biomedicina.
22. APRESENTAÇÃO | Luiz Antonio de Castro Santos; Leila Jeolás
REVISTA BRASILEIRA DE SOCIOLOGIA | Vol 03, No. 05 | Jan./Jun./2015
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Diante do brutal uso de prisioneiros, barbaramente torturados em
experimentos em nome da evolução da “raça ariana”, a noção de res-
peito, o padrão de respeito ou “reverência” à humanidade, defendido
desde Immanuel Kant, teria aplicabilidade moral em situações con-
cretas de agravo ou perigo para um indivíduo ou grupo social. Como
avaliar situações de “risco” em contextos que não envolvam proces-
sos críticos de saúde/doença, ou de vida e morte, mas que ainda as-
sim se traduzam em sofrimento para grupos discriminados – étnicos,
religiosos etc., senão referindo-os à sua condição humana? É esse, por
certo, o caso das pesquisas em CHS.
Não se trata apenas de indicar às correntes bioéticas seu “arris-
cado” apelo à noção de risco, em situações de saúde complexas e
multifatoriais, que a “epidemiologia do risco” não pode dar conta,
pela falta da necessária base experimental. Toda a discussão recente
sobre “obesos” há muito deixou de ser científica para tornar-se de
fato expressão de estigma, discriminação e desrespeito a seres huma-
nos. O que permanece oculto, na “tradução” ou vulgarização, para a
mídia, do jargão esotérico sobre o risco? Do mesmo modo, o que se
passa nessa patética “tradução” da retórica do risco, que nos impõe
a bioética, sobre as salvaguardas dos “seres humanos” no campo da
pesquisa social?
A rigor, a retórica da “certeza” na avaliação de riscos recobre e
tenta ocultar, para o grande público e para os cientistas sociais, a
dificuldade ou impossibilidade da pesquisa médica e da bioética de
conduzirem experimentos em humanos – justamente em razão da
ética do respeito à pessoa! – que pudessem, ou possam, trazer graus
de certeza sobre o efeito independente de “fatores de risco” sobre a
saúde. O exemplo da literatura médica que originou o “cerco” aos
obesos é esclarecedor. Pessoas com excesso de peso em relação à
suposta normalidade também bebem, são sedentários, trabalham,
viram “turnos” como cães de guarda, alimentam-se diariamente com
o veneno nosso de cada dia posto na mesa pelo agronegócio, envol-
vem-se na violência doméstica, no estresse diário do trânsito em
nossas cidades “sociopáticas”. (Saudades de Luiz Pereira). Curiosa-
23. APRESENTAÇÃO | Luiz Antonio de Castro Santos; Leila Jeolás
REVISTA BRASILEIRA DE SOCIOLOGIA | Vol 03, No. 05 | Jan./Jun./2015
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mente, a retórica da “precaução”, naqueles casos – como em tantas
outras experiências desastrosas com normas que regulam estilos de
vida e sociabilidades –, se transfigura em culto à prevenção obses-
siva, em desrespeito às mais elementares regras do bom senso. (A
tal ponto, no tocante ao proibicionismo da Lei Seca no Brasil, que
indivíduos que ingiram bombons de licor ou meia taça de vinho
sujeitam-se a punições severas numa blitz que irá igualar bêbedos
desatinados e cidadãos de boa conduta).
Agora somos nós, as vítimas do flagrante desrespeito. Diante da
impossibilidade de eliminar-se o acaso, a (a)ventura nas pesquisas
sociais, o artesanato que é nosso métier, órgãos ministeriais da área
da Saúde procuram infundir-nos graus de certeza e de uma impossí-
vel previsibilidade. O que buscam os Comitês de “ética” na pesquisa,
ritual e burocraticamente? Se tudo envolve risco, vamos submeter
projetos no campo social e das humanas ao escrutínio da bioética e
da epidemiologia do risco? Diante de impasses epistemológicos na
própria definição de Risco, a saída mais fácil, e indefensável, para a
bioética, foi a afirmação categórica, simples e ao mesmo tempo risível
– como os capítulos do presente dossiê reiteram e recusam: “toda a
pesquisa envolvendo seres humanos tem risco”. Portanto, são eles os
juízes nesses e em qualquer outro campo da pesquisa “em” e “com”
seres humanos. Assim, é fácil.
Audir Blanc acenou em tempos ainda mais sombrios, com a espe-
rança equilibrista. O presente dossiê é a manifestação de uma comu-
nidade de pesquisadores brasileiros, uma entre tantas!, em defesa do
bom senso e da prudência que se exige em uma ética do respeito. A no-
ção de respeito ainda se mantém de pé, heuristicamente a melhor for-
ma de trabalharmos e rejeitarmos a própria noção de risco na pesquisa
com humanos, de pormos fim a políticas públicas discriminadoras e a
suas prateleiras e tabuleiros de punições e penalidades inquisitoriais.
24.
25. REVISTA BRASILEIRA DE SOCIOLOGIA | Vol 03, No. 05 | Jan./Jun./2015
25
Sociedade Brasileira de Sociologia – SBS
Alba Zaluar
Iniciou a Pós Graduação na Universidade de Manchester (Ingla-
terra), concluiu o mestrado em Antropologia Social no Museu
Nacional, UFRJ (1974) e o doutorado em Antropologia na USP
(1984). Profa. Livre Docente da Unicamp e Titular em Antro-
pologia Social da UERJ. É professora Visitante do IESP/UERJ,
pesquisadora 1A do CNPq e coordenadora do Núcleo de Pes-
quisa em Violências NUPEVI/ IESP/UERJ desde 1997. Tem ex-
periência na área de Antropologia, com ênfase em Antropologia
Urbana e da Religião, atuando principalmente nos seguintes te-
mas: pobreza urbana, violências, tráfico de drogas, cidadania,
juventude, gênero, religiosidade e políticas públicas.
Cynthia Sarti
Doutora em Antropologia pela USP e Livre docente em Ciên-
cias Humanas em Saúde pelo Departamento de Medicina Pre-
ventiva da Unifesp/SP. É professora titular em Antropologia da
Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Campus Guarulhos,
onde foi Diretora Acadêmica (2006-2009) e Coordenadora do
PPG em Ciências Sociais, desde sua criação, em 2010, até abril
de 2015. Compôs a diretoria da Associação Brasileira de Antro-
pologia (ABA), gestão 2011-2012, como tesoureira. É pesquisa-
dora do CNPq e atua nos seguintes temas: sofrimento, vítima e
violência, corpo, saúde e doença, moralidade, família e gênero.
Emil A. Sobottka
Mestre em Sociologia pela UFRGS (1992) e em Ciencias de la
Religión pela Univ. Autónoma de Heredia/Una-SBL (1986). Dou-
Autores
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REVISTA BRASILEIRA DE SOCIOLOGIA | Vol 03, No. 05 | Jan./Jun./2015
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tor em Sociologia e Ciência Política pela Universidade de Münster
(Alemanha) e estágios de pós-doutorado realizados na Univ. Humbol-
dt (2004-2005), Univ. Flensburg (2007-2009) e Univ. Frankfurt (2012).
Professor dos PPGs em Ciências Sociais e Ciências Criminais na Puc-
-RS. Pesquisador do CNPq, editor do periódico Civitas: Rev. de Ciên-
cias Sociais e Secretário Geral da Sociedade Brasileira de Sociologia
(SBS). Representa a SBS no GT-CHS da Conep que elaborou minuta
de resolução específica para a supervisão ética nas humanidades. Te-
mas de pesquisa: direitos de cidadania, movimentos sociais, demo-
cracia, políticas públicas, participação política e organizações e tem
interesse em teoria social.
Fernando Bessa Ribeiro
Professor no Departamento de Economia, Sociologia e Gestão da Uni-
versidade de Trás-os-Montes e Alto Douro e investigador integrado
no Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais da Universidade Nova
de Lisboa – Polo da Universidade do Minho. As dinâmicas do capi-
talismo e os processos de modernização na África subsariana, prin-
cipalmente na GuinéBissau e em Moçambique, onde fez trabalho de
campo para doutoramento, constituem uma das suas principais áreas
de investigação. Trabalha também sobre prostituição feminina e tu-
rismo em Portugal e no Brasil e sobre redes sociais em Portugal. No
campo da saúde e da doença estudou a problemática da infeção pelo
VIH/sida no distrito de Bragança.
Flavio Edler
Graduação em História pela UFRJ (1987), mestrado em História So-
cial pela USP (1992), doutorado em Saúde Coletiva pela UERJ (1999)
e doutorado (sanduíche) no INSERM: U-152 Paris-Necker (1998). Foi
presidente da Sociedade Brasileira de História da Ciência (SBHC).
Atualmente é presidente da ANPUH-RJ. Professor do PPGHCS da
COC-Fiocruz. Tem experiência na área de História das Ciências, com
ênfase em História da Medicina no Brasil, atuando principalmente
nos seguintes temas: história da pesquisa clínica e experimental,
27. Sociedade Brasileira de Sociologia – SBS
REVISTA BRASILEIRA DE SOCIOLOGIA | Vol 03, No. 05 | Jan./Jun./2015
27
doenças e identidades sociais, história dos saberes e práticas médico-
-psicológicos, história do Brasil - séc XIX e XX
Jacob Carlos Lima
Doutor em Sociologia pela USP (1992), com pós-doutorado no De-
partment of Urban Studies and Development do Massachusetts Ins-
titute of Technology (EUA-2001). Professor Titular no Departamento
de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e Pes-
quisador do CNPq. Foi Coordenador da Área de Sociologia na CAPES
(2011-2014). Atua em pesquisas nas áreas de Sociologia do Trabalho
e Sociologia Econômica, destacando-se as seguintes temáticas: rees-
truturação produtiva, reespacialização da produção, trabalho flexí-
vel, trabalho informal, empreendedorismo, redes sociais e mercados
de trabalho urbanos, trabalho informacional, cooperativas de traba-
lho e economia solidária, culturas do trabalho e mobilidades.
Leila Jeolás
Graduação e mestrado em Antropologia Social pela Unicamp (1988),
doutorado em Ciências Sociais pela PUC-SP (1999) e pós-doutorado
pela Université de Strasbourg-França (2009-2010). Professora associa-
da da Universidade Estadual de Londrina (UEL) e atua no PPG em
Ciências Sociais/UEL desde 2000. Membro do corpo editorial da Re-
vue des Sciences Sociales (Université de Strasbourg, desde 2010. Tem
experiência nas áreas de Antropologia e Saúde, Antropologia e Ju-
ventudes, nos seguintes temas: Juventudes, HIV/Aids, Saúde Sexual
e Reprodutiva; Juventudes e Serviços de Saúde; Risco; Velocidade e
Corridas Ilegais de Carros/Motos; (R)existências Juvenis.
Luiz Antonio de Castro Santos
Sociólogo, com mestrado em estudos populacionais (Harvard School
of Public Health) e doutorado em Sociologia pela Universidade de
Harvard. É professor associado, aposentado, do Instituto de Medicina
Social da Uerj. Atualmente é professor visitante sênior da Universi-
dade Federal do Sul da Bahia (UFSB/Porto Seguro). É pesquisador do
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REVISTA BRASILEIRA DE SOCIOLOGIA | Vol 03, No. 05 | Jan./Jun./2015
28
CNPq. Membro do CA do CNPq, na área de Ciências Ambientais e
Engenharia (2011-2014) e membro do Comitê Julgador do Programa
Editorial CNPq/Capes (09/2012). Consultor da Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado do Amazonas. Recebeu a medalha do Centenário
da Fundação Oswaldo Cruz, em 2000, por contribuição à pesquisa
histórica e sociológica em saúde pública. Membro do Comitê de Ética
de Pesquisa (IMS/Uerj, 2011-2012), do qual se afastou por discordar
das normas da Conep/CNS para a pesquisa social.
Luiz Fernando Dias Duarte
Doutor em Ciências Humanas (1985) e professor titular do PPGAS/Mu-
seu Nacional/ UFRJ. Pesquisador 1A do CNPq. Desde o livro Da Vida
Nervosa (nas classes trabalhadoras urbanas), publicou e organizou tre-
ze outros, além de mais de uma centena de artigos científicos. Fez pós-
-doutorado na EHESS/Paris. Foi Professor Visitante nas Universidades
Federal do Rio Grande do Norte, de Brasília, de Paris X, de Buenos Aires
e de Liège. Foi Vice-Diretor e Diretor do Museu Nacional/RJ e membro
do Conselho Consultivo do IPHAN/MINC. É Comendador da Ordem
Nacional do Mérito Científico. Representante da Associação Brasileira
de Antropologia (ABA) e da Associação Nacional de Pós-Graduação em
Ciências Sociais (Anpocs) no GT-CHS que elaborou minuta específica
sobre ética em pesquisa para a área das ciências humanas e sociais.
Manuel Carlos Silva
Licenciado e doutorado cum laude pela Universidade de Amsterdam
em Ciências Sociais, Culturais e Políticas. Recebeu o Prêmio Sedas
Nunes pela obra “Resistir e Adaptar-se” (1998, Afrontamento) sobre o
campesinato do Norte de Portugal. É professor catedrático na Univer-
sidade do Minho (UM), diretor do Centro de Investigação em Ciências
Sociais e da Revista Configurações (2002-2014). Coordenou vários
projetos sobre etnicidade e racismo, prostituição e desigualdades de
gênero. Foi presidente da Associação Portuguesa de Sociologia (APS)
em 2010-2012. Áreas de investigação: teoria e metodologia, rural-ur-
bano, desenvolvimento, desigualdades de classe, étnicas e de gênero.
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Márcia Grisotti
Graduação em Ciências Sociais pela UFSC (1987), mestrado em So-
ciologia Política pela UFSC (1992), doutorado em Sociologia pela
USP (2003) e pós-doutorado em Políticas Ambientais na Universida-
de de Wageningen/Holanda (2007). Atualmente exerce a função da
coordenação científica do Programa Erasmus Fellow Mundus e está
realizando estágio de Pós-doutorado na École des Hautes Études en
Sciences Sociales. Tem experiência de pesquisa na área de Sociologia
da Saúde, com ênfase nos seguintes temas: abordagem ecossistêmica
em saúde, políticas de saúde e de meio ambiente, epistemologia e
história do conhecimento médico, representações sociais em saúde,
doenças emergentes. É coordenadora do Núcleo de Pesquisa: Ecologia
Humana e Sociologia da Saúde/PPG em Sociologia Política da UFSC.
Maria Luisa Sandoval Schmidt
Graduação em Psicologia pela Universidade de São Paulo (1975),
mestrado em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela
Universidade de São Paulo (1984), doutorado em Psicologia Escolar e
do Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo (1990)
e livre docência pelo Instituto de Psicologia da USP. Professora Titu-
lar junto ao Instituto de Psicologia da USP. Tem experiência na área
de Psicologia, atuando principalmente nos seguintes temas: pesquisa
qualitativa (participante e interventiva), políticas públicas de saúde,
metodologia com relatos orais e memória coletiva e institucional.
Túlio Batista Franco
Psicólogo, professor Associado da Universidade Federal Fluminense
(UFF) e atualmente Pró-Reitor de Gestão de Pessoas. Doutorado em
Saúde Coletiva pela Unicamp, pós-doutorado em ciências da saú-
de pela Universidade de Bolonha-Itália. Orientador de Mestrado e
Doutorado: Programas de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (MA);
Bioética, Ética Aplicada e Saúde Coletiva (MA/D). Líder do Grupo
de Pesquisa Laboratório de Estudos do Trabalho e Subjetividade em
Saúde-LETRASS/CNPq-UFF. Colabora com o Centro Studi e Ricer-
30. Sociedade Brasileira de Sociologia – SBS
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30
che in Salute Internazionale e Interculturale - CSI na Universidade
de Bolonha-Itália. Editor da Diversitates International Journal, revista
de saúde coletiva e bioética. Temas de pesquisa: Sistema Único de
Saúde, Produção do Cuidado, Tecnologias em Saúde, Acolhimento,
Micropolítica e Subjetividade.
31. Sociedade Brasileira de Sociologia – SBS
A ÉTICA EM PESQUISA NAS CIÊNCIAS HUMANAS E O
IMPERIALISMO BIOÉTICO NO BRASIL
Luiz Fernando Dias Duarte
A entrada em vigor da Resolução 196, de 10 de outubro de
1996, de autoria do Conselho Nacional de Saúde (CNS), marcou
o início da regulamentação formal da ética em pesquisa no Brasil.
Sua disposição humanista, de controle dos possíveis danos
individuais decorrentes da prática da pesquisa biomédica, advi-
nha de um amplo movimento internacional, desencadeado após
a II Grande Guerra, como reação, entre outros graves desastres, à
adesão maciça da classe médica alemã à ideologia nazista, com
os terríveis efeitos da política de purificação racial e dos campos
de extermínio dos indivíduos e populações “degeneradas”.
Parte desse movimento se consolidou na criação de uma
“bioética”, um saber destinado à discussão das implicações
éticas da prática biomédica, organizado crescentemente sob a
forma de um campo internacional de informação e controle. As
considerações críticas da bioética já pulsavam sob as grandes
modificações da política pública de saúde ocorridas no Brasil a
partir da década de 1970 (cf. DUARTE, 2014, p. 23). A regula-
mentação surgida em 1996 deve assim ser compreendida como
resultado de uma consolidada influência da bioética dentro do
campo biomédico nacional e seus problemas decorrem da am-
biguidade que é própria desse novo campo de saber, distendido
entre a filosofia e a biomedicina.
Sociedade Brasileira de Sociologia – SBS
32. Sociedade Brasileira de Sociologia – SBS
REVISTA BRASILEIRA DE SOCIOLOGIA | Vol 03, No. 05 | Jan./Jun./2015
32
A resolução 196/96 foi aprovada para cobrir toda pesquisa
“envolvendo seres humanos”, embora seu espírito e sua forma
se referissem claramente às pesquisas clínicas e experimentais
concebidas no âmbito da biomedicina. O uso do sistema CEP/Conep
(Comissões de Ética em Pesquisa/Conselho Nacional de Ética em
Pesquisa), criado para garantir a aplicação da Resolução (inclusive
por meio de sua base digital, a Plataforma Brasil), passou a ser
compulsório também para a avaliação ética das pesquisas das ciências
humanas e sociais (CHS).
A avaliação ética nas ciências biomédicas e nas CHS
A comunidade das CHS, em sua grande maioria, ignorou a
regulamentação do CNS, por desconhecimento ou por princípio.
Todososquesevirammotivadosoucompelidosafazê-loenfrentaram
uma longa provação, devido à alta burocratização do sistema, mas
sobretudo devido à total incompreensão do sentido dos projetos de
CHS pelos avaliadores biomédicos. Foi particularmente deletéria
a aplicação mecânica do princípio bioético de que a dimensão
epistemológica e metodológica dos projetos deveria ser inseparável
da avaliação ética. As enormes diferenças nas concepções de
como deve ser feita uma pesquisa entre os dois grandes grupos
de ciências sempre eram sistematicamente desconsideradas por
meio de uma projeção linear das concepções biomédicas sobre as
humanas e sociais.
Todo o sistema da avaliação bioética repousa sobre a pressuposição
de um risco a ameaçar todos os “seres humanos” que participam de
uma pesquisa; o que é perfeitamente razoável no caso das pesquisas
biomédicas, envolvendo, como envolvem, a intervenção comissiva
ou omissiva nas condições corporais dos sujeitos; podendo resultar
em agravos da mais diversa ordem, e inclusive em sua inabilitação ou
morte. Os possíveis riscos das pesquisas de CHS são de muito outra
qualidade, raramente se distinguindo do chamado “risco mínimo”,
ou seja, aquele que é passível de ocorrência na vida cotidiana entre
33. A ÉTICA EM PESQUISA NAS CIÊNCIAS HUMANAS E O IMPERIALISMO BIOÉTICO NO BRASIL | Luiz Fernando Dias Duarte
REVISTA BRASILEIRA DE SOCIOLOGIA | Vol 03, No. 05 | Jan/Jun/2015
33
quaisquer pessoas comuns1
. Como os pesquisadores de CHS não dis-
põem normalmente de recursos materiais de persuasão, como os que
são associados aos pesquisadores biomédicos, os seus interlocutores
no campo de pesquisa sempre dispõem de plena liberdade de recusar
ou interromper uma entrevista ou observação, como o fariam com
qualquer outro agente social desprovido de poder de intimidação.
Outro ponto de grande mal-estar para as CHS sempre foi a pres-
suposição de aplicabilidade universal dos Termos de Esclarecimento
Livre e Esclarecido (TCLE) complexamente elaborados, escritos, as-
sinados, lavrados em três vias etc. Se o princípio da autonomia dos
participantes de pesquisa é norma comum entre as diversas ciências
que deles dependem, muito diversa é a forma de garanti-la na condu-
ção dos projetos dos dois grandes grupos.
As pesquisas biomédicas são realizadas em circunstâncias insepa-
ráveis da alta legitimidade dos saberes e práticas que as autorizam,
dependendo frequentemente os participantes das pesquisas dos ine-
vitáveis serviços e medicamentos atinentes à sua sempre ameaçada
saúde. Mas não se trata apenas de um interesse pragmático, e sim
de uma continuada submissão ideológica a uma instituição de que
se espera a salvação de todos e de cada um. As CHS quase nunca se
encontram cercadas nem de expectativas práticas, nem de esperanças
salvacionistas. Na melhor das hipóteses, podem esperar os partici-
pantes que os pesquisadores estejam do seu lado na amplificação de
alguma demanda política ou de alguma solução de problemas práti-
cos – mas na condição de concidadãos letrados e não na de profissio-
nais pesquisadores de uma tecnociência hegemônica.
A capacidade de resistência dos participantes nas pesquisas nas
CHS é assim imensamente mais ampla; sendo praticamente impossí-
vel conceber-se alguma pesquisa nessa área que se imponha leonina-
mente a seus interlocutores. As comunidades indígenas, frequente-
1 A definição de “risco mínimo” surgiu originalmente no âmbito da biomedicina,
como se vê no Code of Federal Regulations (Basic Health and Human Services
Policy for Protection of Human Research Subjects) dos EUA (U.S.D.H.H.S, 2014)
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mente consideradas como os mais frágeis elos da sociedade nacional,
o são certamente em relação aos poderes políticos e econômicos que
as cercam, mas não em relação aos pesquisadores que as frequentam
– sempre submetidos às decisões e juízos nativos2
.
Não é apenas por força de sua menor força institucional e política
que as CHS se apresentam de modo negociado e dialogal a seus inter-
locutores de pesquisa. Trata-se de uma exigência da própria produ-
ção de conhecimento nessa área: a compreensão das formas de expe-
riência social, cultural, histórica e psicológica passa por um delicado
controle da relação entre pesquisador e pesquisado; a produção de
conhecimento só se materializa no fluxo entre o sistema de signifi-
cação de um e de outro dos dois lados da interação investigativa. As
condições do trabalho não podem deixar de ser assim “éticas”, no
sentido de levar em conta as circunstâncias da relação e o respeito
ao interlocutor. Para as pesquisas biomédicas, o interesse se encontra
focado em partes da corporalidade dos “seres humanos” (sistemas,
funções, órgãos, tecidos, células, moléculas etc.); nas CHS o interesse
passa pela totalidade vivencial de pessoas relacionalmente articula-
das (inclusive com os pesquisadores) em seus diferentes contextos.
O advento da reflexão bioética (e o desenvolvimento consequente
de regulações formais da ética em pesquisa) foi um evento de máxi-
ma importância para a história da biomedicina, sujeitando-a a uma
“humanização” que há muito se exigia; contra a fragmentação e a vul-
nerabilidade dos seres humanos cujos corpos eram objeto de seu inte-
resse. Nas CHS não se impôs, compreensivelmente, a mesma forma-
lização dos “procedimentos éticos”, por ser intrínseca à sua prática a
reflexividade sobre a condução das pesquisas. Diversas associações
científicas e conselhos profissionais já dispunham ao final dos anos
1990 de códigos deontológicos e de comissões de ética (ou vieram a
tê-los desde então), mas sua abrangência e destinação costumam ser
2 A proposta de “seguir o nativo” foi um dos motes e lições do criador do método
etnográfico na antropologia, Bronislaw Malinowski: “to grasp the native’s point
of view, his relation to life, to realize his vision of his world” (Malinowski, 1961
[1922], p. 25).
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amplas, envolvendo todas as dimensões da experiência acadêmica e
profissional de cada disciplina – e não apenas a ética “em pesquisa”.
O caráter negociado e dialogal do contato de pesquisa nas CHS
tem outra consequência fundamental: trata-se de um processo so-
cial e não de um contrato jurídico. Com isso se quer sublinhar que a
preocupação ética tem que acompanhar todo o percurso da pesquisa
e não apenas se concentrar num acordo formal inicial; assim como
tem que se processar de modo informal, micropolítica, mesmo que
alguma formalização ocorra em algum momento do processo. Desse
ponto de vista relacional, as etapas que se sucedem ao contato ime-
diato entre os interlocutores são tão importantes quanto as anterio-
res, pois a experiência dos participantes continua pulsante por sob
as interpretações materializadas dos pesquisadores em publicações
ou elaborações audiovisuais. Em oposição a isso, e na medida em que
as pesquisas independerão na maior parte das vezes da consciência
racional e do envolvimento afetivo dos participantes, mas terão im-
plicações sobre os seus corpos, as pesquisas biomédicas devem exi-
gir um contrato inicial perfeitamente explícito das condições em que
estes serão investidos e manipulados. Donde o sentido perfeitamente
razoável – naqueles casos – de minuciosos TCLE.
As circunstâncias dialogais e processuais das pesquisas de CHS são
inseparáveis da especificidade da forma pela qual os projetos de pes-
quisa são aí formulados – em flagrante contraste com os biomédicos.
Já de início, raramente é possível elaborar um projeto nessas áreas
sem algum tipo de contato prévio, de sondagem, com os possíveis
futuros interlocutores. Não se trata aí apenas de averiguar se as con-
dições locais das relações ou das práticas sociais em jogo são as mais
adequadas para o esclarecimento de algum determinado objeto de
conhecimento – embora isso esteja em jogo certamente; junto com a
inevitável revisão de bibliografia –; trata-se também de perceber as
condições de diálogo possível com os interlocutores, sua disposição
em entrar em uma relação de confiança e troca, em abordar deter-
minados assuntos ou em esclarecer determinados aspectos de suas
vidas pessoais ou de suas práticas públicas.
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O próprio projeto é concebido na forma da aproximação a alguma
problemática a ser melhor compreendida à luz de material empírico;
mas não se espera que sejam formuladas para tal fim hipóteses for-
mais fechadas ou que se pré-determine as condições precisas em que
a experiência de pesquisa se dará. Por se tratar de ciências interpreta-
tivas, o rumo do trabalho será ditado em boa parte pelo meandro de
informações e balizamentos que se for desenhando no contato e diá-
logo com os participantes. Define-se um rumo e os contornos teóricos
e metodológicos da pesquisa, mas não se espera que esse desenho
inicial se mantenha intacto até o fim do processo. Muito ao contrário,
em boa parte das CHS a mais alta expectativa é a de que o pesqui-
sador seja surpreendido por circunstâncias e dados completamente
inesperados – sendo esse o sinal de uma boa pesquisa, aquela que não
reduziu a proliferação virtual de significados nativos a um esquema
pré-determinado. Nada do que se obtiver nesse processo fará qual-
quer sentido se não estiver cercado de intensa reflexividade sobre as
condições de emergência desses dados, sobre o jogo identitário que se
processa entre cada pesquisador (e suas circunstâncias) e cada um de
seus interlocutores (e, também, as suas circunstâncias).
As decisões éticas mais cruciais se apresentam no tocante ao regis-
tro das informações, do modo informal inicial até a sua publicização
mais plena, sob a forma sublimada das interpretações finais. A preo-
cupação com a anonimização das informações é a regra principal,
excetuadas as situações – comuns na História, por exemplo – em que
é impossível separar os dados da identidade de seus portadores origi-
nais (com o seu consentimento) ou em que é exigida pelos interlocu-
tores a divulgação da autoria de seus depoimentos.
A avaliação da ética em pesquisa tal como ela se apresenta retra-
tada em um “projeto” de pesquisa não é certamente a melhor manei-
ra de fazê-la – nas CHS. Dadas as características de processualidade
e dialogicidade referidas, qualquer afirmação preliminar, ex ante, só
poderá consistir em frágil pressuposição, em declaração de boas in-
tenções, mais do que de antevisão dos efetivos procedimentos. As
intervenções biomédicas na corporalidade humana exigem evidente-
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mente protocolos minuciosos, no resguardo dos direitos dos seres que
a portam. As intervenções das CHS na experiência vivida, pensada e
sentida dos sujeitos sociais se dão diretamente com os seus portado-
res, explicitamente – e eles, não querendo falar ou agir, calam-se, con-
têm-se, mentem ou se retiram. A avaliação ética dos procedimentos
nessa área só poderá se dar na consciência vigilante do pesquisador
ou no controle a posteriori de seus pares e de seus interlocutores (nos
casos em que esses quiserem e puderem compreender a apresentação
formal das interpretações).
A regulamentação da ética em pesquisa no Brasil
Com a entrada em vigor da Resolução 196/96 e a subsequente cria-
ção do sistema CEP/Conep, viu-se parte da comunidade das CHS na
contingência de se submeter – sempre que necessário – a um tipo de
avaliação completamente despropositado para as suas características,
procedimentos e fins. A lista de problemas, já delineada antes, não
cessou de crescer, mesmo com o surgimento, a partir de 2007, dos
primeiros Comitês de Ética em Pesquisa específicos das CHS3
.
Diversas associações científicas começaram a se pronunciar for-
malmente contra os abusos da aplicação da Resolução às CHS e se ha-
bilitaram a eloquentes pronunciamentos críticos no momento em que
a Conep abriu uma consulta pública para avaliação do funcionamen-
to do seu sistema. Isso ocorreu no final de 2012, tendo as associações
da antropologia, da psicologia e do serviço social participado ativa-
mente do processo. A Conep acabou aprovando uma nova resolução
(a 466/2012), ainda mais focada nas ciências biomédicas – guarnecida
porém por um singelo artigo final de previsão da elaboração de uma
“resolução complementar” relativa às CHS.
3 O primeiro a se constituir, em 2007, foi o da UNB (http://www.cepih.org.br/
biblioteca.htm). Há certamente outro na UFRJ; mas não há informações claras
sobre quais e quantos outros estejam atualmente em funcionamento, entre os
mais de 600 do sistema – talvez quatro, talvez seis.
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Em agosto de 2013 começou a funcionar um Grupo de Trabalho
convocado pela Conep para a elaboração dessa outra resolução, com
a participação de membros daquela Comissão e de representantes de
diversas associações de CHS. Seu trabalho se estendeu até o fim de
2014, com a apresentação de uma minuta de resolução e o delinea-
mento de um formulário específico para o registro dos projetos de
CHS na Plataforma Brasil.
Ainda em 2013, no mês de junho, tinha sido constituído o Fórum
de Associações de Ciências Humanas, Sociais e Sociais Aplicadas
para compor, inicialmente, uma frente comum e ampla das CHS no
trato da ética em pesquisa e no confronto, a esse respeito, com o es-
tablishment biomédico e bioético. Como já haviam afirmado diversas
associações e passou a reiterar sucessivamente o Fórum, o interesse
último dessa comunidade é o de constituir uma regulamentação da
ética em pesquisa adequada a seu espírito e prática, o mais distante
possível das resoluções e sistemas biomédicos, aos quais esteve ile-
gitimamente subordinada por quase vinte anos. A intenção inicial
era a de empreender a constituição de um outro sistema de avaliação
sob a égide do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI)
– e, para tanto, foram realizados os necessários contatos. O Ministro
da ocasião, simpático à causa, teve um contato com o Ministério da
Saúde e foi dissuadido de retirar as CHS, por razões de prestígio do
Ministério, do domínio da Conep e do Conselho Nacional de Saúde.
Em face das alternativas de um movimento de desobediência civil
ou de um recurso judiciário (em nome da liberdade de opinião e da
igualdade de direitos civis), ambas de rumos imprevisíveis, a decisão
foi a de aceitar a participação no GT convocado pela Conep, onde
também vieram a se encontrar outras sociedades não filiadas ao Fó-
rum, como a Sociedade Brasileira de Bioética (SBE) – sem renunciar
no entanto ao projeto de uma regulamentação autônoma, adequada-
mente externa ao Ministério da Saúde.
Em 30 de outubro de 2014 a referida minuta da resolução específi-
ca para as CHS foi pela primeira vez submetida à plenária da Conep,
tendo recebido – como se previa – as mais fortes críticas. O GT voltará
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a se encontrar ao longo de 2015 para examinar as críticas e defender
suas opções, tão longamente discutidas e sopesadas.
O imbróglio envolvendo as ciências biomédicas e as CHS a respeito
da ética em pesquisa não é exclusivamente brasileiro. Pelo contrário,
acomete todas as comunidades científicas contemporâneas, com va-
riações devidas às características nacionais dos campos acadêmicos
em geral e à sua cultura política. Por toda parte, o desafio foi lançado
pela emergência de regulamentações de cunho bioético, que, voltadas
inicialmente para a seara biomédica, sempre acabaram se imiscuindo
na prática das CHS. A existência de numerosos saberes de frontei-
ra entre esses campos (epidemiologia, medicina coletiva, medicina
social, etnobiologia, etnopsiquiatria, algumas das psicologias etc.)
sempre suscita as primeiras inquietações sobre a aplicabilidade das
normas, mas – de um modo geral – o próprio fato de haver essa franja
híbrida acaba por facilitar que a ambição bioética venha a melhor se
insinuar e espraiar sobre todas as CHS4
.
Biomedicina e Bioética
Embora a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos,
de 2005, seja bastante clara quanto à sua aplicação às “questões de
ética suscitadas pela medicina, pelas ciências da vida e pelas tecno-
logias que lhes estão associadas, aplicadas aos seres humanos”5
, uma
disposição universalista vem caracterizando alguns dos desenvolvi-
mentos da bioética, na ambição de estabelecimento de uma consciên-
cia absoluta das implicações e riscos da ação humana.
A bioética herda duas vocações ambiciosas (ainda que antípodas),
características da cultura erudita ocidental: a biomedicina e a filoso-
4 A bibliografia sobre a ética em pesquisa e, especificamente, sobre a tensão
entre a biomedicina / bioética e as CHS não cessa de crescer, assim como os
encontros, conferências e documentos programáticos. Proponho, como exemplos
mais recentes e abrangentes, um volume temático da American Ethnologist de
2006 (número 33:4); Fleischer e Schuch (2010); Schrag (2010); Van den Hoonard,
(201)1; Sarti e Duarte (2013); e Minayo e Guerriero (2014).
5 Art. 1º. da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, 2005.
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fia. Sua formulação original antepunha as inquietações mais abran-
gentes da ética humanista moderna às ambições da biomedicina, em
um período em que esta se apresentava particularmente triunfante
contra a doença e o sofrimento (no contexto pós-pasteuriano) e em
que ela ainda se nutria da autorização de árbitro moral da sociedade
que as teorias da degeneração lhe haviam conferido entre o século
XIX e meados do XX.
A filosofia ocidental, fosse pela via da tradição racionalista, ilu-
minista; fosse pela via da tradição romântica, hermenêutica, se pro-
punha ainda constituir um foro de reflexão universalista, abrangen-
te, no domínio específico da ética, alijada como fora da posição de
mentora do pensamento científico e da reflexão estética e artística
(cf. GUSDORF, 1974, p. 343-363). Essa ambição ética crescera, na
verdade, na primeira metade do século XX, em função do confronto
entre as ideologias liberais e as ideologias autoritárias e racialistas6
.
Numerosas propostas de uma nova ordem moral na humanidade
proliferaram naquele contexto e puderam inspirar os movimentos
de recuperação econômica internacional e de afirmação de uma
nova e generosa ordem mundial, ao término da II Grande Guerra.
A criação da ONU e de seus diversos órgãos constitutivos, com a
consequente promulgação de numerosas declarações de princípios7
,
amparava a ação de criação ou recomposição de outros organismos
e associações, dispostos a universalizar os postulados de uma con-
córdia humanista que viria a irmanar os povos, as culturas e os sis-
temas tecnocientíficos.
A bioética que começou a se institucionalizar com a Declaração
de Helsinque (18ª Assembleia Médica Mundial, Helsinki, Finlân-
6 Esse confronto teve uma contrapartida filosófica importante nas diferentes formas
de crítica à tecnociência moderna retomadas do Romantismo pela fenomenologia,
nesse período. Hans Jonas, discípulo de Heidegger, influenciou diretamente o
ideário da bioética por meio do seu “princípio responsabilidade”.
7 Além da Declaração dos Direitos do Homem, aprovada pela ONU em 1948, os
considerandos iniciais da Declaração Universal sobre Bioética, de 2005, invocam
cerca de vinte outras declarações, convenções e cartas de princípios internacionais
supervenientes, patrocinadas pela ONU, pela Unesco ou pela OIT. HoH
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dia,1964), é um braço humanista, reflexivo, da própria biomedicina8
,
buscando afirmar o compromisso com a saúde dos indivíduos sobre
os quais se volta e com a redenção da humanidade. Buscava, nesse
sentido, afastar-se dos aspectos mais autoritários da prática médica e,
particularmente, da pesquisa clínica, associados aos grandes crimes
dos médicos nazistas e japoneses durante a II Grande Guerra e de
diversos experimentos realizados no próprio mundo liberal, como o
famoso caso de Tuskegee, nos EUA.
Se, por um lado, a bioética se apresenta fundamentalmente como
uma força moderadora da ambição e arrogância da prática da biome-
dicina, herda dela a concepção positivista de uma ciência reveladora
da realidade e promotora de uma melhoria técnica infinita das con-
dições da humanidade sobre a Terra, na melhor tradição iluminis-
ta. Essa disposição positivista e melhorista apoia-se numa nova base
retórica, muito mais abrangente do que a da mera “ciência a serviço
do progresso”, incorporando a ética humanista do respeito aos seme-
lhantes e aos princípios da ordem liberal, e projetando esse programa
como o mote de sua singularidade.
As CHS, por outro lado, que se constituíram justamente ao longo
de um processo de revisão e nuançamento progressivo da tradição
iluminista, pela influência das diversas correntes românticas, vitalis-
tas, historicistas, hermenêuticas, fenomenológicas e interpretativistas
de que se nutriram desde meados do século XIX, sempre estiveram
associadas a uma ética humanista, crítica das representações fisica-
listas e reducionistas, e atenta à contextualidade e relacionalidade
estruturantes dos fenômenos humanos.
É assim com considerável surpresa que as CHS se vêm dando pouco
a pouco conta (e ainda mal o fizeram, na verdade) de que a emergência
da bioética, ao invés de lhes permitir usufruir de uma oportuna alia-
da na luta contra os essencialismos e reducionismos da biomedicina
8 Uma parte de seus princípios já constara da Declaração de Genebra, aprovada na
2ª. Reunião da Associação Médica Mundial, em 1948 (com a sua nova versão do
tradicional Juramento de Hipócrates) e do Código Internacional de Ética Médica,
da mesma Associação, datado de 1949.
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(entre outros tantos com os quais se tem de haver), as ameaçava com
uma agressiva competidora, reivindicando para sua seara o monopólio
da reflexão e intervenção política sobre a ética em pesquisa (inclusive,
mas não só, da que envolve “seres humanos”). E que podia fazê-lo sem
abdicar dos pressupostos epistemológicos de sua configuração de ori-
gem – os essencialismos e reducionismos biomédicos.
O campo da bioética já é suficientemente vasto e complexo para
permitir uma sucessão de diferentes “escolas” e o contraponto de di-
versas ênfases diferenciais – desde o “principialismo” ético que teria
caracterizado os seus momentos pioneiros (cf. ARÁN, PEIXOTO JR.,
2007). Uma das múltiplas posições críticas internas hoje disponíveis
chega a falar de um “imperialismo ético” (cf. SCHRAG, 2010), referin-
do-se ao modo como a reflexão e as normas da bioética incorporam
uma visão etnocêntrica, autoritária, sobre as condições da experiên-
cia sociocultural em contextos não ocidentais. Aproprio-me dessa ca-
tegoria para deslocar a denúncia do etnocentrismo intercultural na
direção do etnocentrismo interdisciplinar: as CHS são tratadas como
áreas de colonização, onde qualquer resistência à nova ordem bioé-
tica parece dar apenas testemunho de uma suposta ignorância e in-
consciência – ou seja, um “imperialismo bioético”.
As tensões cosmológicas da cultura ocidental e a biopolítica
O trajeto da biomedicina, como a medicina vitoriosa da cultura oci-
dental, é exatamente o trajeto do projeto iluminista de esclarecimento
das condições humanas sobre a Terra, baseado em uma visão desen-
cantada e empirista de sua corporalidade. A forma como o projeto se
materializou nas ciências médicas e biológicas acompanhou os fun-
damentos epistemológicos propostos pelos grandes pioneiros do século
XVII, assumindo uma disposição universalista fundada no pressuposto
de uma realidade natural externa à razão humana (em parte autorizada
pela separação cartesiana entre o mundo e o pensamento), na organiza-
ção de um sistema de conhecimento baseado em evidências empíricas
observáveis e testáveis, no controle sistemático da experiência subje-
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tiva como ameaça à produção do conhecimento, e na especialização e
fragmentação dos domínios da natureza e dos saberes a eles associados.
Esse trajeto sofreu numerosas perturbações, em função dos desa-
fios específicos de sua relação com os demais domínios científicos
(como o da química pós-Lavoisier) e em função das correções de rumo
impostas pela especificidade dos fenômenos vitais, com a passagem
do mecanicismo inicial para um organicismo (em parte sugerido pelo
vitalismo prestigioso de Claude Bernard). Essas correções de rumo
foram lhe garantindo um crescente sucesso no conhecimento e no
controle da morbidade, com implicações fundamentais na ampliação
das expectativas de vida e na gestão das populações modernas9
. A
perspectiva organicista não eliminou o mecanicismo original da nova
medicina ocidental, ressurgindo automaticamente nos mais diversos
terrenos. A própria fragmentação e especialização crescente dos do-
mínios de saber só podem ser compreendidas à luz dessa represen-
tação de uma máquina corporal humana e de seus mecanismos es-
pecíficos, permitindo um funcionamento da prática clínica baseado
na materialidade de sintomas isolados e de informações laboratoriais
discretas, que acabou por ensejar as críticas que se avolumaram ao
longo do século XX sobre a desumanização da atenção médica e a
inconsciência sobre a integralidade da experiência vital.
A psiquiatria que se veio a constituir no final do século XIX, por
exemplo, opôs-se aos saberes relacionais do sofrimento mental cria-
dos pelos assim chamados alienistas (cujo “tratamento moral” tinha
vindo em parte a redundar na psicanálise de Freud), e continuou a
resistir sistematicamente às teorias psicogênicas, mentalistas ou in-
terioristas (cf. RUSSO, VENANCIO, 2006). As psicologias, original-
mente concebidas num registro filosófico, adaptaram-se, também em
9 As noções de biopoder e biopolítica, primeiro formuladas por M. Foucault, no
contexto de sua discussão da governamentalidade moderna, foram retomadas
por diversos autores, que as enriqueceram com as perspectivas de um crescente
envolvimento da biomedicina nas dinâmicas políticas e sociais (cidadania
biológica, biovalor, bioidentidade, biosocialidade etc.) (cf. RABINOW, 1999;
RABINOW, ROSE, 2006; ROSE, 2013; e.g.).
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parte, às tendências fisicalistas oitocentistas e se multiplicaram em
correntes mais empiricistas de um lado e mais interioristas, de outro
(cf. VIDAL, 1994).
Esse processo cultural de longo curso foi acompanhado pelo cul-
tivo de um contra discurso extremamente crítico para o destino da
cultura ocidental moderna. Chamo de “romantismo”, englobando di-
versas rubricas habituais na história das ideias ocidentais, a essa rea-
ção, desenvolvida a partir de meados do século XVIII em oposição ao
materialismo, mecanicismo e objetivismo da emergente ciência (cf.
DUARTE, 2004, 2012)10
. O vitalismo foi, dentre as suas correntes, a
que mais diretamente interpelou a biomedicina em formação; ense-
jando inclusive o desenvolvimento de outras teorias médicas e tera-
pêuticas, como a homeopatia.
À tendência monista materialista da ciência iluminista opôs-se
assim o monismo espiritualista da ciência romântica, desenvolvido
sobretudo no mundo germânico da primeira metade do século XIX,
sob a rubrica da Naturphilosophie. A partir de meados do século, po-
rém, uma fórmula de acomodação passou a prevalecer: a do dualismo
das “ciências naturais” e das “ciências morais” (ou “do espírito”). É
esta solução formal a que ainda preside grosso modo à organização do
campo científico contemporâneo, mesmo que se especifiquem subdi-
visões infinitas de cada lado da dicotomia.
Isso não significa que tenham desaparecido as ambições monistas,
sobretudo do lado das ciências naturais (ou experimentais, ou hard,
ou naturalistas11
). Periodicamente, as ciências biomédicas reavivam
seu projeto original de dar conta de toda a condição humana, me-
nosprezando os desenvolvimentos das CHS. A teoria da degeneração,
10 A reação ao pensamento de Descartes foi o primeiro ponto de articulação do que
se viria a poder chamar mais tarde de filosofia romântica, pelas mãos pioneiras
de Leibniz, de Vico e de Herder.
11 A categoria “naturalista” tem sido empregada na antropologia contemporânea, na
forma sugerida por Philippe Descola (DESCOLA, PÁLSSON, 1996), para designar
uma cosmologia ou representação do universo específica da cultura ocidental
moderna, que, diferentemente da imensa maioria das culturas, acredita numa
natureza una, pré-existente e externa ao humano.
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que se desenvolveu na segunda metade do século XIX e penetrou nos
mais variados níveis da vida intelectual e política das sociedades mo-
dernas até a II Grande Guerra, foi uma dessas propostas ambiciosas
de redução do humano à sua condição física, corporal12
, com seus no-
tórios e catastróficos resultados eugenistas e racistas. A sociobiologia
foi outra dessas investidas; seguida pelas atuais neurociências e por
algumas tendências da genética e da endocrinologia (cf. SAHLINS,
1997; RUSSO, PONCIANO, 2002; LUNA, 2005). Do lado das CHS,
algumas correntes subordinadas aderiram a pressupostos reducionis-
tas, como a antropologia e a psicologia evolucionárias; assim como,
do lado naturalista, alguns nomes audaciosos e heréticos ousaram
retomar o vitalismo ao longo do século XX13
.
A existência desse grande divisor não é o aspecto mais relevante
da conformação do campo científico moderno; o que mais se impõe
– sobretudo para a compreensão do fenômeno específico de que me
ocupo aqui – é o da clara hierarquia de valor e de poder entre os
dois conjuntos. Inseparável como é da tecnologia, a ciência natura-
lista pode oferecer às sociedades modernas condições insuperáveis
de desenvolvimento econômico (no sentido estrito) e de domínio das
forças e resistências da natureza. As CHS nunca dispuseram de nada
de semelhante, e apenas em alguns momentos muito peculiares aspi-
raram a interferir projetivamente, enquanto saberes organizados, na
organização do mundo sociocultural14
.
12 Na verdade, a teoria da degeneração presumia a existência de uma vida moral,
mas sempre subordinada às determinações da vida física, através da herança dos
caracteres adquiridos (no caso, das “taras” físico-morais) pela via individual ou
coletiva.
13 Um cientista renomado que enveredou pela via vitalista ao final do século XX é Rupert
Sheldrake (1988), mas outros nomes poderiam ser citados, como o de Fritjof Capra.
14 Não trato aqui da intervenção dos cientistas sociais, enquanto cidadãos, em
questões políticas que atravessam seus campos de trabalho ou suas sociedades.
As chamadas “ciências sociais aplicadas” constituem, por outro lado, sistemas de
mediação entre as ciências sociais propriamente ditas e os mecanismos regulares
da reprodução social (como é o caso do direito, da educação, da economia e do
serviço social). E, finalmente, tampouco se pode confundir a pesquisa em CHS
com eventuais propostas de intervenção ou salvação pública inspiradas por
correntes da filosofia social, em seu sentido lato.
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Dessa forma, a legitimidade pública da biomedicina não tem fei-
to senão crescer nos últimos dois séculos, mesmo que enfrentando
crises localizadas e aquelas resistências críticas mais recentes que
acabaram por se consolidar na bioética. O conceito foucaultiano de
biopoder bem oportunamente descreveu o papel central da biomedi-
cina na configuração moderna – e a inspiração dessa proposta vem
suscitando uma continuada reflexão sobre a articulação entre o Esta-
do moderno, a sociedade civil e a biomedicina.
A aliança com o Estado e a continuada hegemonia ideológica sobre
a sociedade garantem uma ainda mais alta preeminência da biome-
dicina no campo científico moderno, já por si só caracterizado pela
preponderância das ciências naturalistas sobre as CHS. Poderosos
interesses econômicos se concentram em torno da pesquisa dirigida
para a produção de medicamentos e propiciação de tratamentos; as-
sim como poderosos interesses sociais exigem o financiamento esta-
tal da pesquisa dirigida para a preservação da saúde e a extensão da
vida das populações.
Parte das CHS debruça seus esforços interpretativos sobre o pró-
prio domínio da medicina, da doença e da saúde – constituindo
campos de especialização que costumam dialogar com os saberes
limítrofes a que já fiz menção aqui. Seu trabalho é, porém, com-
pletamente diverso do que se realiza no interior da biomedicina,
pois visa a compreensão e interpretação da experiência social des-
ses fenômenos e não o conhecimento de sua materialidade física. A
força ideológica e a amplitude empírica do continente da biomedi-
cina são, porém, tão intensas que correntes inteiras das CHS podem
eventualmente se aproximar das premissas naturalistas das ciências
biomédicas ao tratarem de seus fenômenos (ou do que é considerado
como “seus” fenômenos). Esse foi o caso da “antropologia médica”
norte-americana, frequentemente mais médica do que antropológica
(cf. DUARTE, 1993).
A competição entre os dois grandes conjuntos na busca de conhe-
cimento e compreensão do humano é também desigual por força das
características intrínsecas das concepções de verdade aí presidentes.
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A visão iluminista, objetivista, das ciências biomédicas opera num re-
gime de presunção de verdade de seus achados e postulados, até que
algum testemunho empírico bem conduzido pelo processo de pesquisa
desminta ou desloque a verdade para outro patamar15
. Na visão rela-
tivista das CHS a verdade é apenas uma suposição de que se descon-
fia: há uma permanente presunção de dúvida em relação aos modelos
e constructos apresentados. Dessa forma, aos olhos do senso comum
científico moderno e, particularmente, dos colegas das ciências natu-
ralistas (dos poucos que se interessam em geral pelas CHS; ou daqueles
que, autorizados pela bioética, participam dos CEPs como avaliadores
universais), a pesquisa é incompreensivelmente frouxa e imprecisa –
não oferecendo nem respostas claras para os problemas presentes, nem
previsões seguras para os desafios futuros. As condições históricas, so-
ciais, culturais e psicológicas da humanidade dependem dos modos de
agenciamento da função simbólica humana (inseparável da linguagem)
e das formas pelas quais a ação no mundo se faz possível na interação
entre os sujeitos de cada comunidade significativa e operacional. Trata-
-se de uma atividade intencional, volitiva, que só se pode desencadear,
como comunicação e ação, em contextos socioculturais específicos.
Nesse sentido, a atividade de pesquisa não se distingue da trama ativa
e significativa da vida humana em geral – e não pode prescindir da
consciência e atenção ao modo pelo qual se processa entre “pessoas”
socialmente localizadas; e não entre “seres humanos” genéricos.
Na antropologia, esse estado de dúvida não cessa de crescer, na
permanente luta pelo acesso a novos patamares de estranhamento dos
pressupostos cosmológicos desta cultura em que a ciência foi inventa-
15 O avanço do conhecimento positivo implica um sistema de substituição permanente
dos paradigmas, com o exílio das teorias peremptas e a modificação do próprio
texto de obras de referência, por exemplo. Nas ciências interpretativas, em que há
permanente convivência e diálogo entre os paradigmas, é essencial preservar as
versões anteriores do saber, sempre revisitadas. A resolução 466/2012 exige, em seu
item III.2.a, que as pesquisas, “em qualquer área do conhecimento envolvendo seres
humanos”, deverão ter “possibilidades concretas de responder a incertezas”. Nada
mais esclarecedor sobre a discrepância entre os pressupostos dos saberes naturalistas
e dos interpretativos: como estes últimos se propõem produzir incertezas, mais do
que resolvê-las, tal preceito lhes é perfeitamente despropositado.
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da, envolvendo a revisão das fronteiras entre natureza e cultura, razão
e emoção, mente e corpo, humano e animal. Nesse processo, um dos
poucos pontos permanentes, que irmanam as múltiplas correntes con-
temporâneas, é justamente o do mais completo e escrupuloso respeito
à experiência de nossos interlocutores, sejam banqueiros ou indígenas,
cientistas ou camponeses, drag-queens ou pastores pentecostais16
.
O imperialismo bioético e o destino das CHS
É nesse contexto abissal de diferença entre as ciências biomédicas
e as CHS que a presente polêmica sobre o controle da ética em pes-
quisa se desenvolve. E é nesse contexto que o poder diferencial da
biomedicina pesa na balança, tornando incomodamente penosas as
condições de “diálogo” das CHS.
Eu não teria me dado provavelmente conta do caráter crítico da
bioética nesse contexto se não tivesse participado ativamente do pro-
cesso de discussão e formulação da minuta da resolução específica
para a ética em pesquisa nas CHS. Em dado momento dos trabalhos,
a representação da SBB propôs a incorporação da Declaração Univer-
sal sobre Bioética e Direitos Humanos aos documentos legais inter-
nacionais a que se filiaria a resolução. Houve oposição à proposta,
remetendo aos termos bem explícitos da própria Declaração, que se
destina à medicina e às ciências da vida. Porque se deveria invocar
um documento com tais fins na sumária abertura de uma resolução
dedicada às CHS?
Seria preciso esmiuçar a história da bioética e sua configuração
atual (tão complexa quanto recente) para poder especificar se essa
disposição imperialista é característica de alguma corrente específica
ou de todo o seu campo internacional. Pela experiência vivida, parece
16 Este é um dos pontos em que se revela mais claramente a herança do Romantismo
nas CHS, o da abertura para a diferença (histórica, cultural, psicológica,
comportamental) e para os temas obscuros, desafiadores da racionalidade
ocidental, cf. DUARTE: 2004, 2012. Sem respeitá-los – aos temas e às pessoas que
os tornam efetivos – não se pode conhecê-los.
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ser tendência hegemônica no campo brasileiro – o que provavelmente
decorre do papel importante que tiveram os participantes brasilei-
ros nos debates que levaram à aprovação, em 2005, da Declaração
Universal sobre Bioética e Direitos Humanos. Como relata Barbosa
(2009), a posição brasileira, que se uniu à de muitos outros países em
desenvolvimento, foi a de defender uma visão mais abrangente da
bioética, que não se restringisse a lidar com as questões e fenômenos
biomédicos, mas que levasse em conta as dimensões sociais e am-
bientais mais amplas (cf. BARBOSA, 2009, p. 36).
Essa disposição generosa e lúcida de compreensão das dimensões
socialmente entranhadas da saúde e da vida, mormente nas situações
carentes da sociedade brasileira, pode ter levado a passar da necessá-
ria consideração das condições sociais em que se desenvolve a ação e
a pesquisa biomédica para a esdrúxula incorporação de todas as pes-
quisas sobre a vida social, cultural e política no âmbito das responsa-
bilidades do Ministério da Saúde e do Conselho Nacional de Saúde.
Do modo como pude descrever a implantação e a progressão do
sistema de controle e avaliação da ética em pesquisa neste país, bem
se pode depreender o quanto se tornou estratégica a ação propositiva
da bioética e o quanto pode ser nociva às atividades e competências
próprias das CHS. Tudo faz crer que o núcleo dinâmico da biomedi-
cina digeriu cordatamente as críticas que justificaram a emergência
do novo saber, pelo menos desde que o Estado brasileiro o incorporou
enquanto braço ideológico da nova gestão da saúde e da medicina.
Como disse antes, esse foi um enorme avanço na moderação da arro-
gância da biomedicina – e, como tal, é saudado pelos pesquisadores
de CHS enquanto cidadãos e enquanto “usuários” do sistema.
Muito outras são as implicações que essa disposição de controle
universal do modo como interagem os pesquisadores de CHS com seus
interlocutores pode acarretar. Nossa comunidade não se dispõe, po-
rém, em se deixar manietar por essa via até que se completem vinte
anos de cativeiro. A insensível reação negativa do plenário da Conep
à apresentação da minuta da resolução específica é um sinal de que
esta fase da luta pode redundar em fracasso. Como advertimos, porém,