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Edição em 92 tópicos da versão preliminar integral do livro de Augusto de
Franco (2011), FLUZZ: Vida humana e convivência social nos novos mundos
altamente conectados do terceiro milênio




                             66
               (Corresponde ao quarto tópico do Capítulo 8,
               intitulado Os mantenedores do velho mundo)




                   Aprisionadores de corpos

O fundamental para os aprisionadores         de   corpos   é   manter   seus
trabalhadores fora do caos criativo

Aprisionadores de corpos são aqueles que, não contentes em usar, comprar
ou alugar, sua inteligência humana (que não tem preço), querem também
mantê-lo cativo, fisicamente, nos seus prédios ou cercados. São feitores:
antes usavam o chicote; hoje usam o relógio ou o livro de ponto, o crachá
magnético ou o banco de horas. Nas empresas ou organizações
hierárquicas, sejam privadas ou públicas, seqüestram seu corpo para
manter você por perto, para poder vigiá-lo, para terem certeza de que você
está de fato trabalhando para eles (que coisa, heim?). Não precisavam fazer
isso se o seu objetivo fosse o de articular um trabalho coletivo
compartilhado. Mas o objetivo deles não é, na verdade, compartilhar nada
com outros seres humanos e sim controlá-los-e-comandá-los, em certo
sentido desumanizá-los, embotando sua inteligência, castrando sua
criatividade, alquebrando sua vontade, para poder usá-los como objetos,
para terem-nos disponíveis, sempre à mão, tantas horas por dia: querem
um rebanho de servos de prontidão para lhes fazer as vontades. Se
quisessem que as pessoas trabalhassem com-eles e não para-eles não seria
necessário – na imensa maioria dos casos – aprisionar os seus corpos:
bastaria estabelecer uma agenda conjunta, com tarefas e prazos.

Mais de 90% dos empregadores são aprisionadores de corpos. Chefes de
repartições governamentais, administradores de empresas e “donos” de
ONGs costumam ser aprisionadores de corpos. Se as pessoas não tivessem
que dormir e as leis permitissem, gostariam que elas ficassem à sua
disposição o tempo todo: – 24 horas: tum, tum, tum...

Ainda quando dizem o contrário, eles não querem que você empreenda,
seja criativo, construa produtos ou processos inovadores e realize coisas
maravilhosas e sim que você trabalhe. Querem trabalho = repetição e
execução de ordens. Se quisessem criação, inovação, não lhe imporiam
agendas estranhas (que você não teve oportunidade de co-construir), não
lhe retalhariam o tempo em unidades controláveis, com horários rígidos de
entrada e saída em algum espaço murado. Dariam a seus colaboradores (a
todos) as melhores condições para inovar (alugariam, quem sabe, uma casa
em uma ilha paradisíaca, em uma chácara aprazível ou mesmo em um
bosque urbano, um horto, cultivariam jardins... em suma, não organizariam
e docorariam seus locais – de trabalho – de modo tão horrendo, sem cores,
sem arte, tudo cinza, quadrado, como uma prisão mesmo, ou um convento)
e, sobretudo, não reduziriam sua mobilidade: uma dimensão essencial da
sua liberdade para criar.

O fundamental para os aprisionadores de corpos é manter seus
trabalhadores fora do caos criativo, protegê-los do seu próprio espírito
empreendedor. Então, para esterilizá-lo, colocam você na pirâmide. Sim,
aprisionadores de corpos são também construtores de pirâmides.




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  • 2. isso se o seu objetivo fosse o de articular um trabalho coletivo compartilhado. Mas o objetivo deles não é, na verdade, compartilhar nada com outros seres humanos e sim controlá-los-e-comandá-los, em certo sentido desumanizá-los, embotando sua inteligência, castrando sua criatividade, alquebrando sua vontade, para poder usá-los como objetos, para terem-nos disponíveis, sempre à mão, tantas horas por dia: querem um rebanho de servos de prontidão para lhes fazer as vontades. Se quisessem que as pessoas trabalhassem com-eles e não para-eles não seria necessário – na imensa maioria dos casos – aprisionar os seus corpos: bastaria estabelecer uma agenda conjunta, com tarefas e prazos. Mais de 90% dos empregadores são aprisionadores de corpos. Chefes de repartições governamentais, administradores de empresas e “donos” de ONGs costumam ser aprisionadores de corpos. Se as pessoas não tivessem que dormir e as leis permitissem, gostariam que elas ficassem à sua disposição o tempo todo: – 24 horas: tum, tum, tum... Ainda quando dizem o contrário, eles não querem que você empreenda, seja criativo, construa produtos ou processos inovadores e realize coisas maravilhosas e sim que você trabalhe. Querem trabalho = repetição e execução de ordens. Se quisessem criação, inovação, não lhe imporiam agendas estranhas (que você não teve oportunidade de co-construir), não lhe retalhariam o tempo em unidades controláveis, com horários rígidos de entrada e saída em algum espaço murado. Dariam a seus colaboradores (a todos) as melhores condições para inovar (alugariam, quem sabe, uma casa em uma ilha paradisíaca, em uma chácara aprazível ou mesmo em um bosque urbano, um horto, cultivariam jardins... em suma, não organizariam e docorariam seus locais – de trabalho – de modo tão horrendo, sem cores, sem arte, tudo cinza, quadrado, como uma prisão mesmo, ou um convento) e, sobretudo, não reduziriam sua mobilidade: uma dimensão essencial da sua liberdade para criar. O fundamental para os aprisionadores de corpos é manter seus trabalhadores fora do caos criativo, protegê-los do seu próprio espírito empreendedor. Então, para esterilizá-lo, colocam você na pirâmide. Sim, aprisionadores de corpos são também construtores de pirâmides. 2