O texto descreve a história de um violino antigo que foi adquirido por uma família brasileira. Apesar de seu aspecto inicial deteriorado, o violino produzia um som elogiado. Ele viajou pelo Brasil, Estados Unidos e Europa, enfrentando dificuldades na alfândega portuguesa devido à falta de nota fiscal. Na Alemanha, um especialista desdenhou o instrumento por sua idade e qualidade, humilhando seu proprietário.
CELINA CÔRTE PINHEIRO – SOBRAMES CE – ANTOLOGIA 2012
1. CELINA CÔRTE PINHEIRO – SOBRAMES – CE – ANTOLOGIA 2012,
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O VIOLINO
Não havia entre nós a tradição do violino. Portanto, ele não
fazia parte do nosso arsenal doméstico. O desejo de executá-lo,
manifestado por um dos filhos, o Fabrício, despertou nosso interesse
pelo instrumento a fim de fazermos a melhor aquisição possível. O
preço era alto, mas, entre outras características, aprendemos que
bons violinos se tornam melhores quanto mais envelhecida a
madeira. Recorrei ao meu pai que se lembrou de um amigo violinista
da juventude. O violino nos aguardava todo desmontado, em sua
caixa original, jogado no fundo de uma garagem. Pertencera a uma
velha tia já falecida, responsável pelos partos de nossa mãe pelos
idos de 1940. Madeira seca, antigão! Meu pai pagou alguns trocados
pelo instrumento que nos chegou pelo correio. O aspecto não era
admirável. Em seu invólucro de madeira, revestido com uma flanela
cor-de-rosa desgastada pelo tempo, manchada e nauseabunda, o
violino se assemelhava a um corpo inerte em decomposição. Senti um
arrepio...Contudo, não desistimos por conta da má impressão.
Procuramos alguém que pudesse dar vida ao instrumento.
Conseguimos e valeu à pena. Passamos a ouvir elogios de pessoas
experientes em relação ao som emitido pelo instrumento. O violino
tornou-se objeto de cobiça, o que despertava em nós orgulho e um
cuidado extremo com ele. Entre pedras e espinhos, colhíamos flores,
graças à nossa perseverança.
O violino, de plebeu passou a elite. Iniciou sua nova vida na
Fortaleza nordestina, tocou em orquestra nos Estados Unidos e
voltou ao Brasil, viajando de norte ao sul. O violinista tornou-se
engenheiro, mas não abandonou o instrumento, inseparável nas
horas de lazer. Foram ambos para o Velho Mundo. Já no aeroporto,
em Portugal, inicia-se uma nova saga. Imaginem, exigiram nota fiscal
do instrumento! Não havia... O jovem e seu velho instrumento foram
levados para análise em uma sala reservada. Pânico do proprietário,
pela possibilidade de ficar detido em terras estranhas!
- Não tenho nota... Nunca tive! O violino é muito antigo...
- Antigo? Aí é que mora o perigo... Violinos antigos são
cobiçados. Este pode ter sido roubado, coisa e tal. Você pode
ser “mula”...
- Não senhor! Sou só um engenheiro que toca violino...
- Muito estranho, mas vamos lá... Comprove o que puder!
2. Fabrício falou com sentimento no avô que lhe enviara de longe
o instrumento, contou sobre a antiga dona do instrumento,
parteira da avó executou um ária, provocou lágrimas em uma
policial, mãe de um violinista falecido... que sorte! Acertou na
grande! Foi liberado. Prosseguiu viagem à Alemanha, local onde a
tradição de instrumentos de corda é muito maior do que entre
nós. Fabrício empunhava o instrumento orgulhosamente.
Presente do avô, restaurado com a ajuda dos pais, tornado
suspeito em Portugal e valorizado por todos merecia ser bem
guardado como um troféu.
Certo dia, aproveitando a estada germânica, decidiu levalo para avaliação de um “luthier”, especialista em instrumentos de
corda, na cidade de Bremen. O “Luthier” olhou o instrumento sem
qualquer admiração, até com certo asco. Avaliou a idade em torno
de 100 anos, velho para nós e jovem para os parâmetros
europeus. Citou um cortejo de defeitos: violino de principiante,
sem muita qualidade, não valia à pena pagar por uma análise mais
apurada. O homem foi um perito em matéria de humilhação.
Desprestigiou o instrumento, jogou-o no lixo em palavras. Aquele
que tivera tanto valor no Brasil e nos Estados Unidos, motivos de
conflito lisboense, terminava seus dias sob o dedo em riste do
especialista que fez questão de exibir instrumentos de alta
qualidade e de valor inestimável preservados em uma sala à prova
de tudo. Por pouco, o desvalido violino não foi jogado nos
monturos dos campos de concentração de instrumentos
considerados de má qualidade. Deve haver por lá!
Duramente destituído de seu orgulho, Fabrício
demonstrou interesse em adquirir um novo estojo para guardar o
instrumento. Pelo menos uma roupa decente ele iria oferecer ao
fiel companheiro de tantas alegrias. Qual ele recomendaria? Mais
uma vez o alemão não poupou azedume. “Para este violino? Leve
esta caixa fabricada na China. Está bom demais!”
Não nos demos por vencidos. Alemão invejoso! Desdenhou o
violino, empunhado por um simples brasileiro, pela
impossibilidade de compra-lo. Mas, por um motivo ou por outro,
sentimos que o violino perdeu seu prestígio e hoje permanece
adormecido por trás de um nobre piano digital importado...