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Falar de contribuh;ao das raQas humal1as para a clvilizaQao mun-
dial poderia surpreender, numa coleQao de brochuras destll1adas a lutar
contra 0 preconceito racista. Seria em vao tel' consagrado tanto talento
e esforQos para mostrar que nada, no atual estado da ciencia, permlte
aflrmar a superloridade ou lnferlorldade intelectual de uma raQa em
relaQao a outra, se 0 lntento fosse somente restitulr sUb-reptlclamente
sua consistencia a nOQao de raQa, parecendo demonstrar que os grandes
grupos etnicos que comp6em a humanidade trouxeram, -enquanto tais,
eontribuiQ6es especificas ao patrlm6nio eomum.
Mas nada esta mais afastado de nosso designio do que Isto, que
levaria somente a formular a doutrlna racista ao inverso. Quando pro-
euramos caraeterlzar as raQas biol6gicas atraves de proprledades pslco-
16gicas partieulares, afastamo-nos da verdade cientifica, quer definin-
do-as positivamente, quer negativamente. E preclso nao esquecer que
Gobineau, de quem a hist6ria fez 0 pai das teorias racistas, nao conce-
Colecao La question raciale devant la science mor/erne. UNESCO, Pa-
ris, 1952. RepubJicado com a autorizaQao da UNESCO. 0 texto fol
revisto e corrigido em alguns lug-ares.
bia a "deslgualdade das raQas humanas" de manelra quantitntivll, mas
qualitativa: para ele, as grandes raQas que contribulram ram a form::t- -
~ao da humanldade atual, sem que se possa dize-Ias primltivas - branca,
amarela, negra ~, nao eram tao desiguais em valor absoluto como em
suas aptld6es particulares. Para ele, a tara da degenerescencla se llgava
mais ao fenomeno da mestiQagem que a posiQao de cada ra<;a numa
escala de valores comum a todas; contudo, ela estava destinada a atln-
gir toda a humanidade, condel1ada, sem distlnQao de ra<;a, a uma mes-
tl<;agem cada ve21maioI'. Mas 0 pecado original da Antropologia eonsiste
na eonfusao entre a n09ao puramente biol6giea de raga (supondo, alias,
que, mesmo neste terreno limitado, esta no<;ao pudesse pretender a
objetividade, 0 que a Genetica moderna contesta) e as produ<;6es soclo-
l6gleas e psleol6glcas das culturas humanas. Bastou a Gobineau te-Io
felto, para que 5e encontrasse eneerrado no eireulo infernal que eonduz
de urn erro intelectual '(nao excluindo a boa fe) it legitimacao involun-
tlhia de todas as tentativas de discriminaQiio e opressao.
POI' isso, quando falamos, n~te estudo, de contribui<;iio das ra<;as'
humanas a civiiiza<;iio, nao queremos dizer que as contribui<;6es cultu-
rais da Asia ou da Europa, da Africa ou da America, retirem uma o:i-
glnaiidade qualquer do fa to de que estes eontlnentes sao, grosso modo,
povoados POl' Ilabitantes de troncos raciais diferentes. Se esta originali-
dade existe - e nao se deve duvldar dela - deve-se a clrcunstanclas
geograflcas, hist6rlcas e sociol6glcas, e nao a aptld6es distintas, Jigadas
a constltui<;ao anatamlca ou fislol6glca dos negros, amarelos ou brancos.
Mas pareceu-nos que, na medlda mesmo em que esta serle de brochuras
se esforQou POI' fazer justl<;a a este ponto de vista negatlvo, arrlscava-se
ao mesmo tempo a relegar a urn: plano secundarlo urn aspecto 19ual-
mente importante da vida da humanidade: a saber, que esta nao se
desenvolve sob 0 regime de uma monotonia uniforme, mas oatraves de
modos extraordinariamente diversificados de socledades e clvilizac6es;
esta diversidade intelectual, estetlca e sociol6glca nao esta unlda POl'
nenhuma rela<;ao de causa e efeito a que existe, no plano blol6gico, entre
certos aspectos observavels dos agrupamentos humanos: ela Ihe e ape-
nas paralela em outro terreno. Mas, ao mesmo tempo, dlstingue-se desta
POl' dois caracteres Importantes. Primeiro, situa-se numa outra ordem
de grandeza. Ha. muito mais culturas humanas que ra<;as human as, ja
que umas se contam pOl' milhares e as outras pOl' unidades: duas cultu-
ras elaboradas pOl' horn ens pertencentes a mesma raQa podem diferir
tanto, ou mais, que dURS culturas provenlentes de grupos raclalmente
afastados. Em segundo lugar, ao contnhlo da dlvcrsldadf! entre as ral;M
(que apresenta como principal inten'.sse a de sua origem hist6rica e d.e
sua distribuil;ao no eSpal;o) a diversidade entre as culturas supoe in11-
meras problemas, pais se pode perguntar se ela constitul uma vantagem
au um lnconvenlente para a humanldade, questao de conjunto que s,e
subdivide. bem entendldo, em muitas outras.
Enflm e sobretudo, deve-se perguntar em que conslste esta dlversi-
dade, sob 0 risco de ver as preconceitos raeistas, ainda mal desenralza-
dos de 'seu fundo blol6glco. 5e reconstituirem em novo terreno. Pais 5erla
vao tet 'obtldo do homem comum a renuncia a atl'ibuir uma significac;ao
lntelec'tual au moral ao fato de ter a pele preta ou branca, 0 cabelo liso
ou crespo, para ficar sllencloso dlante de uma outra questao, a qual
a expel~lencia prova que ele adere lmedlatamente: se nao existem apti-
does raclals inatas, como expllcar que a clvlllzal;ao desenvolvlda pelo
homem branco tenha feito os imensas progressos que conhecemcs, en-
quanta as dos povos de cor f!caram atrasadas. umas a meio-caminho,'
outras atin i or m atraso ue se mede por mllhares au dezenas de
mllhares de anos? Nao se podeni pretender tel' resolvido pela negatlva
o problema da desigualdade das rar;as humanas, se nao nos atlvermos
tambem ao da deslgualdade - ou da diversldade - das cultUTaS huma-
nas, que de fato, senao de dlreito. estao estreltamente I1gados no eso!-
rlto do povo.
Para compreender como, e em que medida. as culturas humanas
dlferem entre 51. 5e essas dlferenl;as se anulam ou se contradizem, ou
5e concorrem para formar urn conjunto harmonloso, e preclso prlmelra.-
mente, ten tar esbol;ar seu inventario. Mas e aqui que comel;am as difl-
culdades, pois devemos conscientlzar-nos de que as culturas humanas
nao dl.ferem entre si do mesmo modo, nem no mesmo plano. Estamos
in!cl.almente em presenc;a de socledades justapostas no espar;o, umM
pr6xlmas, outras afastadas, mas. em resumo, contempor~neas. Em se-
gU:da, devemos contar com formas da vida social que se sucederam no
tempo, e que estamos impedidos de conhecer pela experiencla dii eta.
Qualquer homem pode transformar-se em etn6grafo e ir partilhar, no
local, da existencia de uma sociedade que 0 interessa; ao contrarlo,
mesmo que ele se torne historiador ou arque610go, jamals entrara em
contato direto com uma eivilizal;ao desaparecida, mas somente atra yes
de documentos escrltos ou de monumentos figuraclos que esta socledade
- ou outras - tiverem deixado a seu respeito. Enfim, e preeiso nao
esquecer que as sociedades contemporaneas alnda ignorantes da escrlta.
como as que chamamos de "selvagens" au "pl'imltivas", foram tambem
precedldas pOI' outras formas, cujo conhecimento e praticamente impas-
slvel, mesmo de manelra lndlreta; urn lnventarlo consclencloso deve-Ihes
reservar compartlmentos em branco, em n11mero indlscutlvelmente mals
elevado que 0 dos compartlmentos em que nos sentimos capazes de
registrar alguma coisa. Impoe-se uma primeira constatal;ao: a diversl-
dade das culturas humana.s e. de fato no presente. de fato e tambem
de dlreito no passado. multo malor e mals rica do que tudo aqullo que
dela.s pudermos chegar a conhecer.
Mas, mesmo tomados por um sentlmento de humildade e c~nsclas
desta I1mitar;ao, encontramos outros problema.s. 2 que se deve en~
I' culturas dlferentes? Certas culturas parecem se-Io, mas se por urn
lade partem de urn tronco comum. POl' outro. nao dlferem como dua.s
50cledades que nunc a tlvessem mantido relal;oes no decorrer de seu· de-
senvolvimento. Asslm, 0 antigo imperio dos Incas no Peru e 0 do Da-
homey na Africa dlferem entre sl de modo alnda mals absoluto do que,
dlgamos. a Inglaterra e as Estados Unldos contemponineos; se bem que
estas duas socledades devam tamhem ser tratadas como socledades dls-
tinta.s. Inversamente, socledades que entraram recentemente em contato
bem intimo parecem of ere eel' a Imagem da mesma clvlllzal;ao,. alnda que
tenham a! chega,do POl' camlnhos dlferentl~s, que nao temos 0 dlrelto
de negllgenclar.!Exlstem nas socledades humanas. slmultaneamente em
elaborar;ao, forr;as trabalhando em dlrel;oes opostas: umas tend em a
manutenl;1io, e mesmo a acentual;ao dos partlcularlsmos; as outras agem
no sentldo da convergencla e da aflnldade. 0 estudo da I1nguagem ofe-
rece exemplos notavels destes fenomenos: asslm, ao mesmo tempo que
Hngua.s de mesma origem tendem a se dlferenclar umas em relar;ao as
outra.s (como 0 russo, 0 frances e 0 Ingles) linguas de orlgens varladas,
'roa.s faladas em terrlt6rlos contlguos. desenvolvem caracteres comuns:
/pfJtj; ,1
/. t7il flV
j(J/ 5 1')'
,J p1V 4"
1j;iI v
5
/ f~/P(dl ,LPC5}
{1 51l
?t1
V
I ~ol'fII por exemplo, 0 russo, sob certos aspectos, diferenciou-se de outras Jinguas
~ fI'i f)1 eslavas, para se aproximar, 0.0 menos por certos tracos foneticos das
. {griO lInguas fino-ugrlcas e turcas faladas em sua ViZinlJanr;~ geOgrafica'ime-
,fJ diata.
Quando se estudam tais fatos - e outros dominios do. civilizaeao,
como as institulr;6es socials, a arte, a religHio forneceriam facilmente
exemplos similares -, chega-se a perguntar se as sociedades humanas
nao se definem, levando-se em con to. suas relar;6es mutuas, por um
certo optimum de diversidade para alem do qual elas nao poderlam ir,
mas abaixo do qual tambem nao poderiam descer sem perigo. Este
optimum variaria em fmeao do numero das sociedades, de sua impor-
tfmcia numerica, de seu afastamento geogr:ifico e dos meios de comu-
nicar;ao (materiais e intelectuals) de que se servem. Com efeito, 0 pro-
blema do. diversidade nao Ii levantado apenas a prop6sito de culturas
encaradas em suas relar;6es reciprocas; ele existe tambem no seio de
cada sociedade, em todos os grupos que a constituem: castas, classes,
melos profissionais ou confesslonais etc desenvolvem certas diferencas
as quais cad a grupo atribui uma importancia extrema. Pode-se pergun-
tar se esta diversijicaciio interna nao tende a aumentar quando a so-
cledade se torna, sob outros aspectos, mais volumosa e mais homogenea;
este fol talvez 0 caso do. 1ndia antigo., com seu sistema de castas, tal
como se desenvolveu em conseqUencia do estabelecimenLo da Ilegemonia
ariana.
Ve-se, portanto, que a diversidade das culLuras humanas nfw deve
ser concebida de uma maneira estatica. Esta diversidade nao e a de
uma amostragem inerte ou a de um catalogo frio. E inclubitavel que os
homens elaboraram culturas diferentes por causa do afastamento geo-
grafico, das propriedades particulares do meta e da Ignorancia que tl-
nllam do resto do. humanidade; mas Isto s6 seria rigorosamente verda-
deiro se cada cultura ou cada sociedade tivesse nascido e se desenvolvido
isoladamente de todas as outras. Ora, este nao e nunc a 0 caso, a exce-
r;ao talvez de exemplos raros, como 0 dos tasmanlanos (e la, tambem,
POl' U11 periodo limiLado). Jamais as sociedades humanas estao s6s:
quando parecem mals separadas, alnda 0 e sob forma de gntpOS ou
feixes. Assim, nao Ii exagerado supor que as culturas norte-americanas
e sul-amerlcanas tiveram seu contato rom pido com 0 resto do mundo
clurante muitas dezenas de milhares de nnos. Mas este grande fragmen-
to da humanidade clestacada, consistia numa multidao de sociedades,
glandes e pequenas, que tinham entre si contatos muito estreitos. ·E, 0.0
lade das diferenr;as devidas ao Isolamento, existem aquelas, tambem
multo Importantes, devidas it. proximidade: desejo de se oporem, de se
distinguirem, de serem elas mesmas. Muitos costumes nasceram, nao de
alguma necessidade inLerna ou acidente favoravel, mas apenas do. von-
tade de nao permanecer atrasado em relaCao a' um grupo vlzlnho, que
submeLia 'a normas precisas um dominio de perisamento ou de atlvidade,
cujas regras ainda nao se havia pensado em ediLar. .por conseguinte, a '
diversiclade das culturas humanas nao nos deve leval' a uma observa<;ao
fragmentadora ou fragmentada. Ela e menos fun<;ao do isolamento das
grupos que das relac6es que os unem. .
(' .  . .' . , <.- ,-~~.,.-J.I.' J'_! ,_.V' iJ,_-__"'),A. .••.)-
,--- __ .:,..." ..~. 't,'.,t... b~ .. . [.,

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'-'0 t~"KI'V),-,~~'.l~~:' VJI'3~I·I;-t '.J..,,} ~', Ci_'~J:~-.f..¥"t0
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tAl.vCA':'" .:~ l"i)"t{:V-~-f..V----'t~l .j..
"':J -';,.,1~ (:. ' ('j,f" ,')-.J_,
. a E.I{NOCENTRISMO '~Y'-' ,..,
"
E contudo, parece que raramente a diverslda_d~_ d.as ~~I~.uras mos-
trou-se aos homens tal como ela e: um fen6meno natural, resultantp.
das rela~6es. diretas .0L1ndtr..~t.a~u~ntre..:-as"-;oCiedide~;. ~hi-'se niSto'sem-
p~;;:;a ..es~ecie de monstruosidade ou escandalo. Nesses assuntcs, 0
progresso do conhecimento conslstiu menos em disslpar esta ilusao em
beneficio de uma visao mais exata do que em aceitar ou encontrar 0
melo do resignar-se a cIa,
A atitude mais antigo., e que se basela Indiscutlvelmente em fund 0.-
mentos pslcol6glcos s611dos (ja que tende a reaparecer em cada urn de
nos quando nos situamos numa situaeao inesperada), consiste em reI:'U-
dial' pum e simplesmente as formas culturals: morals, rellgiosas, socials,
estetlcas, que sac as mals afastadas daquelas com as quals nos identl-
ficamos. "Habitos de selvagens", "na minha terra Ii dlferente", "nao se
deverla permltlr isto" etc, tantas reae6es grosselras que traduzem esse
mesmo calafrlo, essa mesma repulsa dlante de manelras de vlver, crer
ou pensar que nos sac estranhas. Asslm, a Antlguldade confundla tudo
o que nao participava do. cultura grega (depois greco-romana) sob a
mesma denomlnacao de barbaro; a civlllzaeao ocldental utillzou em se-
gulda 0 termo selvagem com 0 mesmo sentldo. Ora, subjacente a €sses
epltetos dlssimula-se urn mesmo julgamento: e provavel que a palavra
barbaro se refira etlmologlcamente a confusao e a Inartlculaeao do can-
~ --_.------_._--_. .'". _ .. -. ..- ..... - -.- .._._-.~
to d~ opostas ao valor signiflcante do. Ilnguagem humana:''e
~ -_.~----._------_._---- .._---._-.._---------_._-
selvagem, que quer dlzer "da selva", evoca tambem urn genero de vida
a~~ por oposl<;1io a cuit"iir'illiUmana::- Em ambos os casos, recusambS-
admltlr 0 pr6prlo fate da dlversldade cultural; preferlmos lan<;ar fora
da cUltura, na natureza, tudo 0 que nao se conform a a norma sob a
qual se vlve.
Este ponto de vista In~enuo, mas profundamente enralzado entre a
malorla dos homens, nao preclsa ser d~cutldo, pols esta brochura _
bem como as outras desta c?le<;flOl - procUl'a justamente refuta-lo, Ba's-
tara observar aqul que ele contem urn paradoxo bastante slgnlficatlvo.
Esta atltude de pensamento, em nome do, qual os "selvagens" (au todos
aqueles que se convencionou' conslderar como tals) sac excluldos da
)lUmanldade, e justamente a atltude mals marcante e dlstlntiva destes
pr'6prlos selvagens. Com efelto, sabe-se que a ~gsaQ __
de_,hllmanlc!ade, en-
g~~bando, sem dlstln<;ao de ra<;a ou clvlllza<;ao, todas as formas da-e~--
,peele humana, ~'mUlto Jecente ,e.d.e -expansiio iimitada. Mesmo ondeela
parece terJlt1ngido s~.!!
__
desenvolvhn~~toII1als elevado, nao e certo, de
modo algum - como a hlSt6riai-ec~nte 0 mostra - que n[o estejasu::~
---1fltlnC~qmvoCOSI:m· regressoe!:.Miis para. V:i.:stas frac;oes da especle liu- ,r',
mrorlt-lfCiUrIl.nt-e--"tl~nlIS·de 'mllenlos, esta no<;ao parece estar totalmente
ausente. A humanldade cessa nas frontelras da tribo, do grupo I1ngiiis-
tleo, as vezes mesmo do, aldela; a tal ponto, que urn grande mlmero de
popula<;6es dltaS prlmltlvas se autodeslgnam com urn nome que signl-
fica "os homens" (ou as vezes - dlgamo-lo com mals dlscrl<;fio? - os
"bons", os "excelentes", os "completes"), ImplirAnrlo A~~im Que A<;outras
trlbos, grupos ou aldela's nao partlclpam das vlrtudes 011 mesmo da na-
tureza humana, mas sao, quando multo, compostos de "maus", de "mal-
vados", "de macacos da terra" ou de "ovos de plolho". Chega-se freqUen-
temente a prlvar 0 estrangelro deste ultimo grau de realldade, fazendo
'dele urn "fantasm a" ou uma "aparl<;1lo"., Asslm se realizam sltuac;6es
curlosas, onde dois Interlocutores se repIlcam cruelmente. Nas grandes
Antllhas, alguns anos ap6s a descoberta da America, enquanto os espa-
nh61s envlavam comlss6es de Investlga<;1io para pesqulsar se os Indlgenas
t1nham ou nao uma alma, estes ultlmos dedlcavam-se a Imerglr brancos
prlslonelros, a flm de verlflcar, ap6s uma vlglJla prolongada, se seu ca-
, daver estava ou nao sujelto a putrefac;ao.·
Esta anedota, ao mesmo tempo barroca e traglca,
radoxo do relatlvlsmo cultural (que encontraremos em
-------.c.. '":":. -- ----.
1 Refere-se a cole<;ao citada na nota da p. 328, (N, TJ.
lJustra bem 0 pa,-
outros lugares sob
olltras formas): e na medida mesmo em que se pretende estabpl~cer
u~ISCl'1mlnaQaoen tre -as--c~it u-~~ e- os~o;t~es;-qu e nos -Iden tlflca-
mosmalS completamentecom-osqiie se-preteiidenegar:Ao~eOllBB.r·a
~ctadeaosqueparecemOS::-;-najs--;ts~Yige~~barba~e seus
1-eprese!1!!:Ilt_e§,.l:!-I1enasse tomaJmprestadO-UIna---de-sull.8-Qtltudes-ilP1Sts~
o barbaro e Inicialmente 0 homel!!-queJlcredita~U_arb.atl.~2 ..
----rnaiSctitivelmente, os grandes sistemas fIIos6flcos e reUglosos da hu-
manidade - trate-se do Budlsmo, Crlstlanlsmo ou do Islao, das dou-
trinas est61ca, kantlana ou marxlsta - se colocaram constantemente
,contra esta aberra<;ao. Mas a simples pl:oclama<;ao da igualdadc natural
entre todos os homens, e da fraternldade que deve uni-Ios sem distin<;ao
de, ra<;a ou cultura, tern algo de decepclonante para 0 esplrlto, pols ne-
gllgencia uma dlversidade de fato que se itnp6e a observa<;ao, e da qual
nao basta dlzer que 'nao afeta 0 fundo do problema para que sejamos
te6rlca e pratlcamente autorlzados a nos comportarmos como se ela nao
exlstlsse. Asslm, 0 preambulo da segunda declara~ao da UNESCO sobre (J
problema das ra<;as observa, judiclosamente, que 0 que convence 0 ho-'
IIlem comum que as ra<;as exlstem e "a evldencla ImedliiUniesmIsSeill[-
d~uando percebe slmultaneamenlL~_~f_~lca.!1ol _.~' ·e~!Cl.p'_e~,~~in
asiatlco e urn ind_i.?..J!l1~E~an~~
AS grandes declara<;6es dos dlreltos do homem tern tamMm elas
esta for<;a e esta fraqueza: enunclar urn, Ideal que raramente atenta
para 0 fato de que 0 homem nao reallza sUa natureza numa humanl-
dade abstrata, mas ~turas tradicf0riii]5.-eujas muaaii~iis- iismals
,r~vofticlOllifrI9.s-Qelxafu siibs1SHr --aspectos .Int:i6fos e se'expii6am a sl
mesmas em fuii~fio de-Uiii~-situa;!ib estriiamente: definida no tempo e
....--- " "~-._-- .." - . ,.,'" .. .... - _ ~.
np espa<;o,TC016cAtlb' entre a dupla tenta<;ao de condenar experlenCias.
que 0 ferem afetlvamente e de negar dlferen<;as que nao compreende in-
telectualmente, 0 nQmem modernO--entreKQ_U::~~_!!,,~entenas _d!l, especula- 
t;oes Jl1~~~f1c~~~~..'?cl.91()glca:;,-p~x:!J._.chegar:. ~_acordos Inl1teis e~tr~' est~s (
p61QLcon~rl;qlt6:~os, e eXI;llic,ar_a, _diversldade das cUlturas, procurando
supr!mlr 0 que ehL,tem para ele de escandaloso e chocante" , •
Mas-:PQr'mals dife-;e~tes - e is vezes biza'i-i-as que passaro ser, todas
essas especula<;6es se reduzem de fa to a uma unlca recelta, que se pode
melhor caracterlzar com 0 termo )~ismo. Em que conslste?
Mals preclsamente, trata-se de 'uma tentatlva ae-s@rJrnir_ R. dlversl-
.-------~-._-P_.----_.- --..-
2 Ver a Interessante dlscussiio desta passagem por Raymond Aron: "Le
Paradoxe du meme et de I'autre" em Jean Poumon e Pierre Maranda,
eds" tclIanges et communications, vol. II, p. 943-952.
clacle das culturas, fingindo I econhcce-la plenamente. Poi:; flO tratar os
dlferentes -estados em que se encontnun as sociedacles humanas, tanto
antigas quanto longinquas, como estagios ou elapas de Ulll clesenvolvi-
mento unico que, pm'lindo do'mesmo ponto, deve faze-Ius convergir para
a mesma meta, ve-se bem que a diversidade e apenas nparente. A hu-
manidade se toma unica e identica a si mesma; s6 que esta unidade
e identidade se pod em realizar progressivamente, e a variedade das cul-
turas ilustra os momentos de urn processo que dissimula uma realidade
mais profunda ou atrasa sua manifestal;ao,
Esta definil;ao pode parecer sumaria quando recorclamos as imensas
conquistas do Darwinismo. Mas este nao esta. em causa, po is 0 evolu-
cionismo biol6gico e 0 pseudo-e~olucionismo que consicleramos aqui sao
cloutrinas bem dlferentes. A primeira nasceu cOmo uma vasta hip6tese
de trabalho, fund ad a em observal;oes onde a parte deixada a interpre-
tal;Ro e muito pequena. Assim, os diferentes tipos que constituem a ge-
nealogia do cavalo podem ser dispostos numa serie evolutiva por duas
razoes: a prime Ira, e que e preclso urn cavalo para gerar um cavalo; a.
segunda, que camadas de terreno sllperpostas, pOItanto hlstorlcamente
cada vez mals antigas, contem esqueletos que varlam de modo gradual
desde a forma mais recente ate a mals antlga. Toma-se asslm alta-
mente provavel que 0 Hipparion seja 0 verdadelro ancer.tral do Eqll1ts
caballus. 0 mesmo raclocinio se aplica Indtsclltivelmente it. especle hu-
mana e as ral;as. Mas quando se paSsa dos fatos blol6glcos aos fatos de
cultura, as colsas se complicam slngularmente. POOem:Se-recolher obje-·.
tos mateIlais no-solo;, e· c(m~tatar qUe, de acordo cOm a profundidlicle
elliScamadas geoi6g1cas;& f6rma"oU-a tecnica de fabrldi~ad de uni certiJ
tipoae_~,~J..2!L~rla' "Pr-'og;;;~iv~~eiIt~.E, contudo, um inacf1ado ri~o
-.-- --"_' .__"__0_..'
gem fisicamente urn machado, como o'ffiz um animal. Dlzer, neste ulti-
mo caso, que urn machado evolulu a partir de um outro. consLitui
p2,!:tanto ~J6rmula.....metaf6rica ',e'!i.'iiroximatlva,-aegproVlda 'do rigor
clen,tifico q~e,~e. vincula a expressao slmiiar apilcada. aDs f'enomerios
biol6glcos. 0 que e verda de para objetos materials cUja present;a flslca
~a no solo, em epocas determlnavets, 0 e, alnda mals, para as
instltull;oes, as crent;as, os gostos, cujo passado nos e geralmente des-
-, conhecido. A Jl.OCaa.Jl.e.-.eYQlur;ao biol6glca corresponde a uma hlp6tese
dotada de urn dos mats altos coeflclente;- ci; 'p;~ba:billdadi-qu~ se pod~m
en~6ntrar no-dominlodas'Cl~ncias nahirals; ao passu que a nor;ao de
~~ao social Q.U....Cuitur~I1
..~.Q_lr,g~,
..n(),maxlmo, urn procedlmento sedu-
tor, mas perigosamente camodo, de apresental;a~ dos fatos .
.. -------------._--- -.- - -
De outro modo, esta dlferenc;a, multo freqilentemente negllgenciada.
entre 0 verdadeiro e 0 falso evoluclonismo, expllca-se por suas respec-
tivas datas de aparecimento. 8em duvlda, 0 evolucionlsmo sociol6gico
devia receber um impulso vlgoroso do evolucionlsmo biol6gico; mas ele
Ihe e anterior no tempo. 8em remontar ate as concepl;oes antlgas, reto-
madas por Pascal, assimllando a humanldade a- urn ser vivo que passa
por estaglos sucessivos da infancla, adolesce'ncia e maturidade, e ~o
seculo XVIII que se veem florescer os esquemas fundamentats que se: ao,
logo em segulda, objeto de tanta:; manipulac;oes: as "esplrals" de Vico,
suas "tres idades", anunclando os "tres estados" de Comte, a "escada"
de Condorcet. O~_dgl&--funQadores._do, evoluclonlsIIlo .socl.ll:l,__
~penc~,r_ e
,- Tylor, elaboram e 'publlca~ sua doutrina antes de A origem da: especies,
( ou'semter lido esta 'obra. Anterior ao evolucionlsmo biol6glco, teor1a
den1mc~:"0~_ucio!!i~m9=::SOClaUrmuitoJr~q~:nt=~en~~~_~~as.!'_ ma~
quilagem falsamente ci~tif~~::l...d,f:l_
UlIl."vf:ll!?-()
proble~a _~1!OS~t.l~?,
.~ra .0
(juaInao exlSte-qualquer certeza de que a observal;ao e a mdut;ao pos-
sam algtun<:TIa-fOrnece-r--a-· chave." - - .- - ._~-
I -----------.--.- ..... -
/
8ugerlmos que cad a socieda,ge. pode,. s~~undo ..
~~u-E~t.? __
~~_:,..!.s~a
pr6-
prio, r§l..artil:.~i~m tr~s categorias: asq~e sac su~, ~onte~-
P.9r:.~p'~:g;,
jll.3.S..sltuarl.l!.Lfm.._QUtr!UJ.a.!}e'~ .glo~)Q; as que s~ ml1~~festa-
ram ap~~xlml;l~,~~t~ no mesmo espal;o, mas qUe g; precederam no
te~po; enflm, as que exlstiram slmultaneamente num terppo anterior
ao seu e num'esp~~o difei'efitedaquele onde_s_e~~1!~:
Vi~~~~. q~~-~stes--tres" gnlPos' ~§.o multo deslgualniente cognoscivets.
Para 0 casu do ultimo, e quando se trata de culturas sem e,scrlta, sem
arqultetura e com tecnlcas rudlmentares (como e 0 casu para a metade
da terra habltada e para 90 a 99%, segundo as regloes, do lapso de tem-
]:0 deconldo desde 0 comet;o ela clvlIlza~ao) pode-se dlzer que nada
podemos saber delas. e tudo 0 que se tenta imaginar a seu respeito se
reduz a~p6t~ses gratultaii)
Em compensat;ao, e extremamente tentador procurar estabelecer, en-
tre cUlturas-do primeiro grupo:relat;oes equlvalentes a uma '(jrdeiii de
suce.~~~_':IllPO, Como e que so ' d d .'
da eletJicidade ~ oa maquin cle a. es contcmporaneas, ignorantes
a a vapor, nao evocariam f
dente do descnvolvimento da c' 'I' .., a ase correspon_
IVIIza~ao oCldental? C -
tribos Ind!genas sem escrl't ' , . omo nao comparar
, a e sem metalurgia t' , ,
paredes rochosas e fabricanclo Ilteno'I' d ,mas la~ando flguras mill,
• .,1 !Os e pedla com f'
calcas desta mesma c1vlliza~ao cujos vest! . ' as 01 mas aT-
da Fran~a e da Ese.anha atest' '. ~IOS, encontrados nas grutas
. , am a S1JmJandade? F' ,
o. falso ev.olucionismo se descnvolvl'u livre t' __
~~.~~retudo, que
(j'----_ . men e, E, contuGo:---es~
seGuwr; ao--qullLnoS_ahandonamos 'qu- . ,. ., ' ~~ Jugo
temos ocasiao (0 viajante ocidental as.
e
nreslstlvehnente cada vez que
"idade m'd' ". nao se compraz em encontrar a.
e la no Onente, 0 "seculo de Lufs X " .
da prime Ira guerra mundial "a 'd d d IV na PeqUlm de antes
Austnilia ou da Nova Gui "?) I, a I' a P?dra." entre os indigenas da
nhece ne, , e extraord1l1anamente pernicioso. Co-
sao ta:~: :~::s ncertos aspectos das civillzac;6es desaparecldas, e estes
derada, pois os as~:~:~s::n~ueac~~~ m~ls antiga for a c1vil1za~ao consi-
sob reviver it destrUi~ao do t s sac apenas aqueles que PUderam
tllma,r--.!1 parte r;elo todo empo. Portanto, o-precedimento «0!1_~!,~!e
em
---- =-R_.cOnr:lulr, pelo. fato de que cert -"t-
de dua!>
.. civiIiza~6es (uma atual ~--, ' . " . . os aspecLos
1h ' .. , '-: ., ..()!!,tra ,desapareclda) oferecem s
. .an~as R..~tencia de analogia de tod -, ' .. L, , _. eme-
este modo d '---;-, ---;.- . os os aspectos, Ol'a. nao arenas
;; d- ,,~, ra_cI.ocma_~
e. loglcamente insustentavel, mas em born mime-
,e casos e __
~~~!llentldo pelos fatos.
---.__.. - .. _----- --
"Ate uma epoca recente, os tasmanlano _
trtJmentos de pedra talh d . s e os patagoes possufam ins-
alnda as fabrlcam Ma a a, e certas tnbos australlanas e americanas
pouco p . s 0 estUdo desses instrumentos nos ajuda multo
,ara compreender 0 uso dos utensfllos da epoca paleolitlca C
::r~~:I~~:IS~a~U:a::s~~r:S:C:dt~I;;::~ ~~j;a;~~~~~~a~e:;~~~c:~:~:
mesmas durante cern Ou duzentos mil
estendia da I It. anos, e num territ6rio que se
s' ng a erra ,a ~fnca do -SuI, oa Frani;a a China? Para' ue
d
ervlam as extraordinarias pec;as levalloisianas, triangUlares' e aChaia-
as, que se encontram . st.
co~segue ex r ? a cen en as nas jazldas e que nenhuma hipQtese
pIcaI'. Que eram os pretensos "bast- 0
osso de rena?' .oes e comando" em
sianas que d' . Que pooena tel' sloo a tecnologla das clllturas tardenoi-
, elxaram urn mime . ,
talhaoa d 1'0 mcnvel de pequenos peda~os de pedra
" ,I' formas geometrlcas infinitamente diverslficadas mas .t
poucos utensillos na medlda da _ I ,mUl 0
mostram que exlste sem duvld mao 1Umana? Todas estas Incertezas
. . a uma semelhanc;a entre as socledades
r
a
leolrtlc3S_e --~~ta.s-socie.9~ndfgenas contemporaneas: elas 's€'~s~;-~'
_________ __
.. . 0.--_-

,y~~~mentas de pedra talhada. Mas, mesmo no plano da tecno~
ldgia, e dificil ir altm: a elabora~ao do material, os tipos de instrumen- ;
tos" sua destina~a.o, portanto, eram diferentes, e uns nos ensinam pouco
sobre os outros a este respeito. Como, portanto, poderiam Instruir.nos;
SOble a linguagem, as institui~6es sociais ou as crenC;as religiosas?
" Uma das interpreta~6es'nals populares, entre as que se inspiraram
no evolucionismo cultlfral, trata as pinturas rupestres - deixadas pelas
sociedades do paleolitico medio - como figura~6es maglcas ligadas a.
ritos de ca<;a. A marcha do raclccinlo e a seguinte: as popula~6es pri~
mltivas atuais tern ritos de ca~a, que nos parecem freqiienteinente desl-
providos de vaior utilltario'; as pinturas rupestres pre-hist6rlcas, tanto
pelo seu numero como pOl' sua situa<;ao no mals profundo das grutas~ I
parecem-nos sem ;valor utilitario; seus autores eram ca~adores: portan1 
to, servjam a ritos de ca~a. Basta enunciar esta argumenta~ao impllCitrt
para apreciar-Ihe a inconseqiiencia. Ademais, ela e mais comum 'entre oS
nao especialistas, pois os etn6grafos, que tern a experiencla dessas p02
pula~6es primitivas que suportam as mais variadas interpreta~6es pot
parte de urn canibalismo pseudo-cientiflco, pouco respeitoso da integri~ /
dade das culturas humanas, estao de acordo para aflrmar que nada 'no~
fatos observados permlte formular uma hip6tese qualquer sobre os' do:'
cumentos em questao. E porque falamos aqui das pinturas rupestre~,
assinalaremos que, it exce~ao das pinturas rupestres sUl-africanas (qu~
alg uns consideram como obra de indigenas recentes), as artes' "primi'~
tivas" estao tao afastadas da arte magdalenlana e aurlgnaciana quanto
da arte europeia contemporanea;2pois essas artes se caracterizam par
urn grau muito alto de estiliza<;ao, indo ate as mals extremas defor .•.
ma~6es, enquanto a arte p.re-hist6rica oferece um realismo surpreen~
dente. Podemos ficar tentll:dos a vel' neste liltlmo tra~o a origem da arte
europeia; mas mesmo isto serla inexato, ja que, no mesmo territ6riQ,
a arte paleolitica foi seguida pOI' outras formas que nao tinham (J mes~
mo carateI'; a contlnuldade da localiza~ao geograflca nao alter a em nada
o fate de que, no mesmo solo, se tenham sucedido populac;6es diferen-
tes, Ignorantes ou descuidadas das obras de seus antecessores, e tra-
zen do, cad a urn a, cren<;as, tecnicas e estilos opostos.
,felo estad2...~ suas civiliza~6es, a America pr~-colombiana, na ves-
•••• --.~ .•• ~.-~ __ •• ~~~_ ._ ••• ••• "_ - "._. o.
pera de sua descoberta, evoca 0 periodo neolitlco europeu. Mas tamberil
esra--assimiIa~ao naoresiste-a-;~ -~;~;;~: -~~-E~r~pa, aagricultura e a
domestlca~ao dos animals san concomitantes, ao passe que na America
urn desenvolvimento extraordinario da prlmeira se acompanha de uma
Ignorancia quase comp"leta (ou, em todo caso, de uma extrema limlta-
c;ao) da ultima. Na Ameiica, a ferramenta litica se perpetua numa eco-
homia agricola que, na Europa, esta associada aos prim6rdios da me-
talurgia.
E inutil multi plical' os exeIiplos. pois}is tentati~as feitas para co-
9,hecer a riqueza e a originalidade das"'cuILuras humanas"e" para fe:lu-
zl.ias ..ao-esta"!l9_d,L~..Pl~~:djSlguaimei:ite :itrasactas da civilizac;ao
c1ciciental,-.se .chOCaBL.C9.m_OtltX.lL~i!!;~idade, iniiito mals profunda: em
geral (com excec;ao da America, sob~~ j;.·-q~~i
voit~re;;os) todas. as 150-
. - _._--------- . ------
cledades humanas tem par fias de 151 um passado que e aproximadamente
da mesma ordem de gr~ndeza:. Para·tratar certas sociedad~s- como "eta-
pas" do desenvolvimenU;cte-outras," serla preciso admitir que, lIn"quanto
para estas ultimas acontecia alguma coL~a, para asoutras nada aconte-
cIa - ou pout~s .coisas. E, com efelto, fala-se facilmente dos "povos sem
hlst6ria" (para ·"dizer. as vezes que sap os maL~ felizes). Esta f61mula
eliptica significa apenas que sua hlst6ria e e permanecera desccnhecida,
oao que ela nao exista. Durante dezenas e mesmo centenas de mllhares
de anos, )a tambem, houve homens que amaram, odlaram, sofreram,
inventaram, combateram. Na verdade, nao exlstem povos infantes; todos
sao adultos, mesmo os que nao mantlveram um diario de sua inffll1cia
e adolescencia.
Poder-se-ia, sem duvida, dizer que as soclcdades humanas utiliza-
" ---..:...-." ,.-' ""
ra~l~~,:sig~almente um tempo pass ado que, para algumas, terla sldo,
m~mD,-.tempo_pe}~la6;-qtie~ljmas·a.Qertavam 0 passo, enquanto outras
gaz_ete_~,.Yam.
pclocaminho, c'hegar.se.i~,·~issim, a distingui~ ·-~~t~e dUM
especies _de_Jli~t6ria: uma hi~t6ria - p-rogre~slva, aqulsitiva, que acumula
os achados e invenc;6es para construlr glandes civili;lRc;oes, e uma outra
hist6Iia, ta!,ez igualmente ativa e utilizan,lo nao men or talento, mas a
qual faltaria 0 dom slntetlco, que e prlvllegio da primeira. Cad!!. inova-=-"
<;10, ao in~~~ de vir j ~~~;'--;e.. i~.
inovac;oes antcriurcs. oricntaam;-no
--mesmo sentidci:·se-cH:SsOlveria numa especie de fluxo onciulante, que nao
5he~"::~!.~~::::i1~E:.~~~~e
..~I~:6tar duravelmente da dire<;ao primitiva.
Esta concepc;ao nos parece mais fle:dvel e matizada que as vis6es sim-
pllstas que expusemos nos panigrafos anteriores. Podemos atribuir-lhe
urn lugar na nossa tentativa de interpretac;ao da diversidade das cui-
turas, e isto, sern ser injusto com nenhuma. Mas, antes, e preciso exa-
minar inumeras quest6es.
Devemos considerar Inicialmente as eulturas pertencentes ao s~-
gundo grupo que distinguimos: as que precederam historicainente a cul-
tura _ qualquer que seja - sob cujo ponto de vista nos colOllamos. s~a
situa~ao e muito mals complicada que nos casos ant:ri~rmente exa~ru-
nados. Pois ?o hip6tese de uma eVOIUl;;aO,
que parece tao ll1serta e fragll
quando se utilizam, para hierarquizar, sociedades contemporaneas afas-
tadas no espac;o, parece aqui dlficilmente contestavel e ate diretamen~e
atestada pelos fatos. Sabemos, pelo testeniunho concordante da Arqueo-
logia, Pre-hist6ria e Paleontologia, que a Europa atual foi Inieialmente
habitada pOl' especies varladas'do genera homo, que se serviam de utcn-
silios de silex grosseiramente talhados; que a estas primelras culturas se
sucederam outras em que se rennou 0 talhe da pedra e depois e acom-
panhou do pollmento e do trabalho em osso e marfim; que a~are~eram
em seguida a ceramica, a teceJ::',gem, a agricultura e a domestr2a<;ao de
animais, progre'ssivamente ~"sociadas a metalurgla, da qual tambem po-
demos distinguir as etapas. portanto, essas formas sucessivas se orde-
nam no sentido de uma "evoluc;ao e de um progresso; umas sap superio-
res, outras, Inferiores. Mas, se tudo isto e vercladeiro, como nao aglrlam
estas dlstin<;oes, inevitavelmente, sabre 0 modo pelo qual tratamos forma'!'
contemporaneas, mas que apresentam entre si afastamentos an6.logos?
Nossas eonclusoes anterlores poderlam, entao, ser questionadas par este
" ,
novo angulo. ;
Os progressos rea1indcs pela 11l1manidade de,de suas orjg~ns sao
Uio manifestos e brilhantes. que qualquer tentativa para dlscutr-Ics se
re::luziria a um exercicio de ret6rica. E contudo, nao e tao facll como se
cre ordena-Ios numa serie regular e continua. Ha uns cinquenta an as 03
cie~tistas utilizavam, para representa-los, esquema"s de uma simplicida-
de admiravel: idade do. pedra lascada, idacle da pedra polida, idade do
cobre, do bronze, do ferro. Tudo isto e muito comodo. Smpeitamos atu~l-
mente que 0 polimento e a talha do. pedi'a existiram as vezes ao mesmO
tempo, quando a segunda tecnica eclipsa completamente a primeira, naO
e como resultado de urn progresso tecnico que tivesse brotado esponta-
neamente da etapa anterior, mas como uma tentativa para. coplar, em
pedra, as armas e os utensilios de metal das civilizac;oes, sem duvlda
mais "a vanc;adas", POI'em de fate contemporaneas de suas imitadoras.
Inversamente, a cerfllnica, que se acreditava soliclaria da "idade da pe-
dra polida", esla assoclada com a talha da pedra em certas regi6es do
norte da Europa.
Restringindo-nos ao periodo da pectra lascada, chamado paleolitlco.
·lembremo-nos que, ha apenas alguns an os atras, pensava-se que as dl-
f~rehtes formas desta tecnica - caracterizancto respectivamente as in-
f· .
dlistrias "de laminulas", as indtistrias "de lascas" e as indllstrias "de
"laminas" - correspondiam a um progresso hist6rico em tr es eta pas, que
·se denominavam paleolitico inferior, paleolitico medio e paleolitico su-
,peilor. Admite-se atualmente que essas tres formas coexistiram, consti-
· tuindo-se, nao como etapas de um progresso de sentido unico, e sim
· como aspectos ou, como se diz, "facies" de uma realidade nao-estatica,
submetida a variac;6es e transformac;6es muito complexas. De fato, 0
·Levalloisiano, que ja citamos e cujo florescimento se situa entre 250 e
70 milenios antes da era crista, atinge uma perfeic;iio na tecnica da ta-
'lha que s6 se pade reencontrar no fim do neolitico, duzentos e quarenta
f
e cinco a sessenta e cinco mil anos apos, e que nos seria bastante dificil
reproduzi,' ntualmente.
Tudo 0 que e valido para as culturas, 0 e tambem no plano das
ra~as, sem que se possa estabelecer (POl' causa das ordens de glandeza
diferenLes) nenhuma cOll'elac;iio entre os dois processos: na EUlopa, 0
homem de Neanderthal nao precedeu as formas mais antigas do Homo
sapiens; estas foram suas contempor [lneas, talvez meslllo antecedentes.
· E nao se exclui que os mais diversos tipos de hominideos tenham coe-
xistido no tempo: "pigmeus" da Africa do Sui, "gigantes" da China e
da Indonesia; e ate no espac;o, enl certos lugares da Africa.
Uma vez mai~, tudo isto nao visa a riegar a r('a1ida~le de um pro-
gressS' da humanidade, mas nos convida a concelJe-lo com mais pru-
dencia. '0 desenvolvimento dos conhecimentos pre-hist6ricos e arqueo-
16gicos tende a desdobrar no espac;o fomms de civilizac;ao que erames
levados a imaginar como 'escalonadas no tempo. Isto significa duas
coisas: inicialmente, que 0 "progresso" (sc e que cstc termo ainda con-
vem para designai' lumi. realidade bem diferente daquela a qual nOs
dedlcarainos inicialmente) nao e nem necessario, nem continuo; procede
pOl' saltos, pulos, ou, como diriam os bi610gos, por mutac;ues. Esses saltos
.e pulos nao 'consistem em ir sempre alem na mesma direc;iio; acompa-
' nham-se de mudanc;as de orientac;ao, um pouco a moda do eavalo do
xa:irez, que tem sempre divelsas progress6es a sua disposic;ao, mas nunc a
no mesmo sentido. A humanidade em progresso em nada se parece com
urn persona~em subindo uma esc:!<da,acrescentando por cada urn de s~us
movimentos urn novo degrau a todos os outros que ja tivesse conqms-
tado; evoca antes 0 jogador, cuja chance esta dividlda em mUitos dados
e que, cada vez que as lanc;a, os ve se espalharem no pano, ocasionando
contas bem difercntes. 0 que se ganha num lance se arrisca a perder
no outro, e e apenas de urn tempo a outro que a historla e rumulativa,
isto e, que as contas se somam para formar uma combina!;ao favoravel.
o exemplo da America mostra de manelra convincente que esta his-
toria cumulativa nao e privilegio de uma civilizac;ao ou de um periodo
da hist6ria. Este imenso continente ve a chegada do homem, sem dll-
vida em pequenos grupos de namades, que passavam pelo estreito de
Behring grac;as its llitimas glaciac;6es, situadas pelos conhecimentos ar ..
queol6gicos atuais provisoriamente ao redor do 209 milenlo. Durante este
periodo, esses homens realizaram uma das mais surpreendentes demons-
trac;6es de his tori a cumulativa acontecidas: explorando lnteiramente as
recursos naturais de um meio natural novo, domesticando ai (ao lado
de certas especies animais) as mais variadas especies vegetais para
sua alimentac;ao, seus remedios e setis venenos, e - fato inedito em ou-
tras regi6es _ promovendo substancias venenosas como a mandioca a
condic;ao de alimento de base, au outras a de estimUlante ou anestesico;
colecionando certos venenosou estupefacientes em func;ao de especies
animais sobre as quais cada um deles exerce uma ac;ao eletiva; final-
mente, levando certas indllstrias como a tecelagem, a ceramica e a tra-
balho dos metals preciosos ao mais alto grau de perfeic;ao. Para ap':e-
ciar esta imensa obra, basta medir a contribuic;ao da America as civill-
za<;oes do Velho Mundo. Em primeiro lugar, a batata, a borracha, a ta-
baco e a coca (base da anestesia moderna) que, par motivos diversOS,
sem duvida, constituem quatro pilares da cultura ocidental; a milho e
a amendoim, que deveriam revolucionar a economia africatla talvez an-
tes de se generalizar no regime alimentar da Europa; depois, a cacau, a
baunilha, 0 tom.ate, a abacaxi, a pimenta, diversas especies de feij6es,
de algot16es e de cucurbitaceos. Enfirn, a zero, base da Aritmetica e, in-
diretamente, das matematicas modernas, era conhecido e utilizado pelos
Maias pelo menos rneio-milenio antes de sua descoberta pelos sabios
hindus, de quem a Europa a recebeu atraves dos arabes. Talvez por est a
razao, seu calendario era, na mesm? epoca, mais exato que a do Velho
Mnndo. A questao de saber se a regime politico dos Incas era sccialista
au totalitario .ia fez correr muita tinta. De qualquer modo, provinha daS
formulas mais modernas, e esta va :tlais adlantado diversos seculos que
()S fenamenos europeus do mesmo tipo. A atengao renovada recentemente
sabre a curare, relembrarla, se fosse p:-eciso. que os conhecimentos ci:on-
tlficos dos indigenas amerlcanos, que se dedlcam a tantas substanclas
vegetais nao empregadas no resto cIa muncIo, ainda podem fornecer im-
portantes contribuigoes a este.
6
HISTaRIA ESTACIONARIA E HISTORIA CUMULATIVA
A discussao anterior sabre a exemplo americano deve-nos incitar a.
levar alem nossa reflexao SQbre a diferenga entre "historia estaciona-
ria" e "historia cumulativa". Se atribuimos a America 0 privilegio da
historia cumulativa, nao e, com efeito, apen8.s porque the reconhecemos
a paternidade de um certo nfunero de contribuigoes que the emprestamos,
au que se parecem com as nossas? Mas qual seria nossa posigao na pre-
senga de uma civilizagao que se tivesse dedicado a desenvolver valores
proprios, onde nenhum fosse suscetivel cIe interessar a civilizagao do
abservador? Este nao seria leva do a qualificar esta civiliza<;ao como es-
tacionaria? Em outras palavras, a distin<;ao entre as duas formas de
historia depende da natureza intrinseca das culturas as quais se aplica,
ou resulta da perspectiva etnocentrica na qual sempre nos colocamos
pam avaliar uma cultura diferente? Considerariamos, assim, como cumu-
lativa toda cultura que se desenvolvesse num senticlo an~l1ogo ao nosso,
isto e, cujo desenvolvimento fosse dotado para n6s de significac;:iio. Ao
]:'8.'SO que 8S outlas culturas nos pareceriam esLaclon{l!.ia~. n:1J necessa-
riamente porque 0 sao, mas porque sua linha de desenvolvimento nada
nos significa, nao e mensuravel nos termos do sistema de referencia que
utilizamos.
Que seja este 0 caso, isto resulta de um exame, mesmo sumario,
das condi<;6es nas quais aplicamos a distin<;ao entre as duas hist6rias,
nao para caracterizar sociedades diferentes da nossa, mas no pr6prio
Intel ior desta. Esta aplica<;ao e mais freqiiente do que se acredita. As
pessoas idosas consideram geralmente como estacionaria a historia que
decorre na sua velhice, em opcsigao a hist6ria cumulativa que os anos
mais jovens testemunharam. Uma epoca na qual nao estao mais aliva-
mente empenhadas, onde nao tern mais papel ativo, nao tern mais Een-
tido: nada se passa ai, ou 0 que se pasoa so Ihes ararece com caracte-
ri.sticas negativas; ao passe que seus netos vivem este peliodo com todo
a fervor que perderafn seus antepassados. Os adversarios de um regl~
politico nao reconhecem de bom grado que este evolui; c.ondenam-no em
bloco repelinda-o para fora da historia, como uma especle de intervalo
mons~ruoso somente no fim do qual a vida recome<;ani. Completamen-
te distinta' e a concep<;ao dos partidarios, e se-lo-a tanto mais, e bom
observar, quanta mais intimamentlc participarem e num grau .elevado,
do funclonamento do aparelho. A historicidade ou, para ser mars exato,
a riqueza em acontecimentos de uma cultura ou de urn proces.so cultural,
sac fun<;ao, nao de suas propriedades intrinsecas, mas da srtu~gao em
que nos encontramos em relagao a elas, do mlmero e da diversrdade de
nossos inter esses, que nelas empenhamos.
A oposi<;ao entre culturas progresslvas e culturas inertes parece,
assim, resultar, inicialmente, de uma diferenga de focaliza<;ao. Para
quem observa ao microscopio, que se "colacou" numa certa distancia
m'eclida a partir do objetivo, os corpos situ ados aquem ou alem, mesma
que 0 afastamento seja de centesimos de milimetros, aparecerao. con-
fusos ou embagados, ou ate nao aparecerao: estao fora do campo de
visao. Uma outra compara<;ao permitira revelar a mesma ilusao: a que
se emprega para expllcar os primeiros' rudimentos da teoria da relati-
vidade. Para mostral' que a dimensao e a velocidade de deslocamento
dos corpos nao sac valores absolutos, mas fun<;6es da posi<;ao do obser-
vador, lembra-se que, para um viajante sentado junto a janela de urn
trem a velocldade e 0 comprimento dos outros trens variam .segundo
esse; se desloquem no mesmo sentido ou num senti do contrario. Ora,
to do membro de uma cultura e dela tao estritamente solidario como esse
viajante ideal 0 e de seu trem. Desde nosso nascimento, nasso meio faz
penetrar em n6s, atraves de mil prflcessos conscient:s e inconEcientes, .urn
sistema complexo de referencias, consistindo em jUlzOS de valor, motlva-
c;6es, centros de Interesse, compreendendo ai a visao reflexiv~ que a educa-
c;ao nos Impoe do devil' historico de nossa civiliza<;ao, sem a qual esta ~e
tornaria impensavel ou apareceria em contradi<;ao com as condutas reals.
Deslocamo-nos literalmente com esse sistema de referencias, e as reall-
dacles culturais cIe fOIIt s6 sac observaveis atraves das deforma<;6es que
ele Ihes imp6e, chegando mesmo a colocar-nos na Impossibilidade de per-
ceber 0 que quer que seja.
Numa ampla medida, a distin<;ao entre as "culturas que se mexem"
e as "culturas que nao se mexem" se explica pel a mesma diferen<;a de
posi<;ao que faz com que, para nosso viajante, urn trem em mcvimento
se mexa ou nao. Com uma diferen<;a, e verda de, cuja importancia apa-
recent plenamente no dia longinquo, mas que ccrtnlllcnte Vlra, em que
se procural a formular uma teoria da relatividacle, generalizada num sen-
tido distinto clo cle Einstein, isto e, aplicando-se ao mesmo tempo as
ciencins fisicas e as ciencias sociais: em ambas, tuclo parece se passar de
modo simetrico, mas inverso. Pam 0 observador do mundo fisico (como
mnstra 0 exemplo clo viajante), sac os sistemas evoluindo no mesmo sen-
tbo quP 0 seu que parecem im6veis, ao passe que os mais r:'tpiclos sac
os que evoluem em sentidos diferentes. 'Da-se 0 contr:'trio com as cul-
turas, ja que nos parecpm tanto mals ativas quanto mais se d£slocam
no scntido da nossa, e estacionarias quanclo sua orienta,fio clive!ge. Mas
no caso das ciencias do homem, 0 fator velocidadc s6 tem um valor me-
taf6rico. Para tornar a compara<;ao valida deve-se substitul-lo pelos de
injormar;6.o e signijicar;6.o. Ora, sabemos que e possivel acumular multo
mais informa<;oes sobre urn trem que se move paralelamente ao nosso
e com velocldade parecida (pOl' exemplo, exal~lnar 0 rosto dos viajantes,
conta-los etc) que sobre um trem que nos ultrapassa ou que ultrapas-
samos com grande velociclade, ou que nos parece tanto mais curto se
c1rcula numa outra dire<;ao. No f1m das contas, passa tao depre~sa que
s6 guardamos dele uma impressao c:mfusa. de omle os pr6prios sign03
de velocldade estao ausentes; reduz-se a um turvamento momentaneo
do campo visual; nao e mais um trem, nao signijica mais nada. Parece
que ha, pOl·tanto, uma rela<;ao entre a no<;ao fisica de movimento apa-
rente e uma outra no<;ao que provem igualmente da Fislca, da Psicologla
e da Sociologia: a de qnantidade da injormar;6.o suscetivel de "passar"
entre dois indlviduos ou grupos, em fun<;ao da major ou menor diversl-
dade de suas respectivas cultmas.
Carla vez que somos levados a qualificar uma cultum humana de
inerte ou estacionnria, devemos. pOitanto, nos pcrguntar se est~ imobi-
lisl1lo aparente nao re~;ulta da Ignorancia que temos de seus interesses
verdaclciros, conscipntes ou inconscientes, e se, ten~lo criterios diferentes
dos nossos, esta cultura nao e, a nosso resj:·elto, vitima da mesma lIusao.
Ou soja, apareceriamos um ao outro como desproviclos de int.ere~se, mul-
to simj:lesmcntc POI que nao nos parecemos.
A civiliza<;ao ocidental se dedicou inteiramente, dpsde ht'l dois ou
tres seculos, a colocar a disposi<;ao do homem meios mecanicos cada vez
mais possantes. Se adotarmos este criterio, far-se-{L tla quantidade de
energia disponivel per capita a expressao do malor ou menor grau de
desenvolvimento das sociedades humanas. A civili,a,iio o-iclental sob SU3.
forma norte-amerlcana ocuparii. 0 prlmeiro lugar, seguida pelas socle-
dades europeias, sovietica e japonesa, vinclo a reboque uma massa de
sociedades asiaticas e africanas, que logo se tomarao Indlstlntas. Ora,
essas centenas ou mesmo milhares ae socledades que se chamam "Insu~
f1cientemente desenvolvidas" e "primitivas", que se fundem num con~
junto confuso quando encaradas sob a rela<;ao que acabamos de c1tar (6
que nao e absolutamente pr6pria para qualificii.-las, porque lhes falta
esta linha de desenvolvimento ou seu lugar entre elas e bem secul1'"lariol,
nao sao Identieas. Sob outras rela,oes, elas se situam como antipodas
Ulnas das outras; segundo 0 ponto de vista escolhido, chegar-se-Ia, por-
tanto, a c1asslficai;oes diferentes.
Se 0 criterio usaclo tivesse sldo 0 grau de aptidao em triunfar sobre
os meios geograficos mais hostis, nao hii. a menor duvida de que os es~
quimos, pOI' um laclo, e os beduinos, de outro, ganhariam. A india soube,
melhor que nenhull1a outra civiliza<;ao, elaborar um sistema filosofico-
religioso, e a China um genero de vicla, ambos capazes de reduzir as
conseqlienclas psicol6gicas de. um desequilibrio demografico. Hi treze
seculos atras a Islao formuloh
7
'uma teoria da soJidariedacle de todas as
form as da vida humana: tecnica, econ6mica, social, esplritual, que 0
Ocidente s6 encontrou muito recentemente, com certos aspectos do pen~
samento marxista e com 0 nascimento da Etnologla moderna. Esta visao
profetica permitiu aos arabes ocuparem um lugar proeminente na vida
intelectual da Idade Media. 0 Ocldente, mestre das maquinas, tem co-
nhecimentos muito elementares sobre a utiliza<;ao e os recursos desta
maquina suprema que e 0 corpo humano. Neste dominio, ao contrarlo,
bem como naquele outro conexo das rela<;oes entre 0 fisico e 0 moral, 0
Oriente e 0 Extremo-Oriente estao algun's milenios a sua frente; produ-
zlram estas vastas sumas te6ricas e pnttlcas que sao a loga ,da india,
as tecnicas de respirac;ao chinesas OU a ginastlca visceral dos antigos
MaorI. A agrlcultura sem terra, ha pouco na ordem do dla, fol praticada
durante muitos seculos pOI' certos povos polinesios, que tambem teriam
podido ensinar ao mundo a arte da navegat;ao, mundo este que subver-
teram profundamente no seculo XVIII, revelando-Ihe um tlpo de vicla.
social e mnr~l mals livre e generoso do que tudo 0 que se podia f;US-
peitar:
Para tudo 0 que diz respeito 1l.organiza<;ao da familia e a harmoni-
za<;ao das rela<;oes entre grupo familiar e social, os australian os, atra-
sados no plano econ6mico, ocupam um lugar tao avan<;aclo em rela<;ao
ao resto da humanidade, que e necessarlo, para compreender os sistemas
de regras por eles elabolados de modo consciente e refJetldo, apelar para
certas formas clas matematlcas modernas. Foram eles que verdacIelrll.-
mente descobriram que as elos do casamento formam a talagan;a sobre
a qual as outras insLitui~6es nao sao senao as borcIados; pais, mesmo nas
sociedades modernas onde a paJ:;el da familia tencIe a se restrlnglr, a
intensidacIe dos elos de famlJla nao e menor: ela se afrcuxa apenas num
circulo mais estreito, em cujos limites outros elos, interessando outras
famUias, vem logo substitui-la. A articula~ao das familia;> pOl' meio de
inter-casamentos pode conduzir it forma~ao de amplas clJameiras entre
alguns conjuntas, ou de pequenas charneiIas entre conjuntos muilo nu-
merosos; mas, pequenas ou grandes, sao estas clJarneiras que mantem
todo 0 edificio social e que Ihe cUio sua flexibilidade. De mocIo freqUen-
temente muito lucido, os australianos fizeram a teoria deste mecanismo
e inventariaram as principais metodos q·ue permitiriam reaIiZll-lJ, com
as vantagens e as inconvenientes que se ligam a cacla urn. Ultrapassaram
tambem 0 plano da observai;ao empirica para se elevarem ao conheci-
mento de algumas leis que regem 0 sistema. Assim, nao e de modo ne-
llhum exageracIo saudar neles, nao apenas os precursores de toda 60-
cioJogia familial, mas ainda as verclacleiros introdutor es do rigor e~pe-
culativo aplicado ao estudo dos fatos sociais.
A riqueza e a audacia cIa inven~fro estetica dos melanesios, seu ta-
lento para integral' nil. vida social os produtos mais obscuros da ativi-
dade inconsciente do esplrito, contituem um clos mais altos cimos
que os homens ji atingiIam nO~Eas clire<;6es. A contribui~ao da Africa e
mais complexa mas tambem mais obscura, pais foi apenas recentemente
que se come~ou a suspeitar de seu papel como melting pot cultural do
Velho Mundo: lugar onde toqls as influencias vieram fundir-se para
retomar sua march a ou se manter em reserva, mas sempre transforma-
das em novos sentidos. A civiliza~ao egipcia, cuja importancia para Il.
humanidade e conhecida, s6 e inteligivel como uma obra comum da
Asia e da Africa; e as grandes sistemas politicos da Africa; e os gran-
des sistemas politicos da Africa antiga, suas constru~6es juridicas, suas
cloutr inas filos6ficas POI' muito tempo escondiclas dos ociclentais, sU80s
ar tes pillsticas e sua mUsica, que exploram metadicamcnte todas as pos-
sibilidades ofereciclas POI' cada meio cle expressao, sao outros tantos in-
dices de um pasEado extraordinariamente fer til. Alias, este e diretamente
alestado pela perfei~ao das antigas tecnicas cIo bronze e do marfim, que
SU!ledtm de longe tudo a que 0 Ocidente praticava ncstes dominios nil.
mesma epoca. Ja lembramos a contribui~ao amel icana, e e inutil in-
sistir sobr 0 isto.
Alias, naa sao espeeialmente est as contribul~6es parcel ares que de-
vem reter a nossa aten~ao, pais corriamos a risco de ficar com a liit~la,
duplamente falsa, de uma civi1iza~ao mundial composta como um roupa
de Arlequlm. Cogltou-se demaslado acerca de todas as prioridades: fen[-
cia para a escrita; chlnesa para 0 papel, a p6lvora -de canhao, a bUssola;
hindu para a vldro e 0 a~o ... elementos sao menOs importantes que 0
modo pelo qual cada culture. as agrupa, retem ou exclui. E a que faz a
origlnalidade de cada uma delas esta antes nil. sua manelra particular
de resolver problemas, de perspectivar valores, que sao aproximadamente
os mesmo para tad os os homens: pais todos as homens, sem exce<;ao,
possl1em uma Jinguagem, tecnlcas, uma arte, conhecimentos positivos,
cren~as reJigio"sas, uma organiza~ao social, economlca e poUtlea. Ora,
essa dosagem nunca e exatamente a mesma para cad a cultura, e, cada
vez mais, a Etnologla moderna dedica-se menos a erlglr urn inventario
de tra~os separados, do que a descobrir as orlgens secretas dessas op~6es.
Talvez se formulern obje~6es contra uma tal argumenta<;ao, par caU-
sa de seu carateI' te6rico. };: possivel, dir-se-a, no plano de uma 16glca
abstrata, que cada cultura seja cap·az de tel' jUlgamento verdadeiro so-
bre outra, ja que uma cultura nao pode fugir de si mesma e que sua
apr,cia~ao, fica, por conseguinte, prisioneira de urn relativlsmo sem recur~
so/M.as olhem ao seu redor; sejam atentos ao que se passa no mundo ha
urn seculo, e todas as s'uas especula.~6p.s desmoronarao. Longe Cie f1carem
encerradas em si mesmas, todas as civl1lza~6es reconhecem, uma apos
outra, a Sl1periorldade de uma dE)las, que e a civl1lza~ao acid ental. Nao
vemos todo 0 mundo tomar-lhe emprestado progresslvamente as tecnl-
Fas, seu genero de vida, suas distra~6es e ate .suas rou~as? D~ mesmo
modo que DI6genes provava 0 movimento cammhando, e 0 proprio ca-
minhar das culturas humanas que, desde as vastas massas da Asia ate
as tribos perdidas na· selva brasilelra ou africana, prova, pOl' uma ade-
sao unanlme sem precedentes nil. hist6ria, que uma das form8os da civi-
lIza~ao humana e superior a todas as outras: 0 que as paises "insufi-
cientemente desenvolvidos" censure.m aos Qutros nas assemblelas inter-
nacionais, nao e que os estejam ocidentalizando, mas de flao lhes da-
rem, com bast ante I apidez, os meios de se ociden(alizarem.
','Tocamos aqui no ponto mais sensivel de nosso debate: de nada
adiantaria querer defender a originalidade das culturas humanas con-
tra elas mesmas. Ademais, e extl emamente dificil para 0 etn61ogo fazel'
lima justa aprecial;ao cle um fenomeno como a univelsalizal;ao da cul-
t '.Ita ocidental, e isto POl' inumeras razoes. Inicialmente, a existencia de
llma civilizal;ao mundial e urn fato provalvelmente (mica na hist61ia, ou
cujos precedentes cleveliam ser procurados numa pre-hist6l'ia longlnqua,
rla qual pouco sabemos. Em ~-eguida, reina lima grande incerteza sobre
a consistencia do fenameno em quesUio. Na veldade desde hit um se~ulo
e meio, a civilizal;aO ociclental tencle, quer na sua totalid'aCle, quer POl'
alguns de seus elementos-chaves como' a industrializal;ao, a se expandil'
no mundo; e, na medida em que as outra:> culturas procuram presel val'
alguma coisa de sua heranl;a tradicional, esta tentativa se reduz geral-
mente as superestruturas, isto e, aos 'aspectos mais fritgeis e que, po-
demos supor, serao vanidos peJas profundas transformal;oes que se rea-
lizam. Mas 0 feno!lleno eshi em andamentn, naa conlleccmos ainda seu
J'C'sultado. Acabar-se-it com uma ocidenlalizal;ao integral do planeta,
r.om variantes russ 0.1 americana? Aparecerao formas fncreticas, cuja
possibilidade' entrevemos ja nO mundo islfunico, na 1n la e na China?
Ou entao, 0 movimento de fluxo ja es~ganclO ao fim, estando 0
mundo ocidental prestes a sucumbir, como os monstros pre-hist6ricos,
a uma expansao fisica incompativel com os mecanismos internos que
asseguram sua existencia? :E levando-se em conta todas essas reservas
que tentaremos avalial" 0 processo que se desenrola diante de n6s e d~
qU; somos, consciente ou inconscientemente, os agentes, os auxillares ou
a:' vitimas.
Comel;aremos POl' observar que esta adesao ao genero de vida oei-
dental, ou a alguns de seus a,spectos, esta lorige de ser tao espontiinea
quanto os ocidentais gostariam de acreditar. Resulta menos de uma
decisao livre que de uma ausencia de escolha. A civilizadio ccidental
eslabcleceu seus soldados, suas feitorias, suas plRntar;oes e' missionarios
pOl' todo 0 mundo; interveio clireta ou indiretamente na vida das po-
jJu]al;oes de cor; sUbverteu profundamente seu modo tradicicnal de
exist.encia, quer impondo 0 seu, quer Instaurando cOilcli<;oesque provo-
cavam 0 dcsmoronamento dos quadros existentes, ~em substitui-Ios pOl'
outra coisa. as povos subjugados ou desorganizados s6 podiam, portan-
to, aceitar as solul;6es de sUbstituil;ao que se Ihes ofercciam, ou, se nao
estavam dispostos a isto, esperar aproxlmarem-se delas 0 suficlente para
estarem aptos a combate-Ias no mesmo terreno. Sem esta desigualdade
na relal;aO das forl;as, as sociedades nao se entregam com tanta facl-
Jidade; sua Weltanschauung (cosmovisao) se aproxima mais daquela d3S
pobres tribos do Brasil oriental onde 0 etn6grafo Curt Nimuendaju, ado-
tado pOl' eles como um clos seus, cada vez que voltava a selva depois de
uma estada nos centros civilizados, provocava soIUl;OSde pesar entre os
incligenas que imaginavam os sofrimentos que ele clevia tel' sofrido lon-
ge do unico lugar - a alcleia deles - onde acreditavam que a vida valla
a pen?, ser vivida.
Todavia, ao fonnular esta reserva, s6 fizemos cleslocar a questao. Se
nao e 0 consentimento que funda a superioridade ocidental, nao seria
esta entii.o a maior energia de que ela dispoe, e que fol precisamente 0
que Ihe pe,mitiu forl;ar 0 consentimento? Tocamos aqui 0 cerne da
questao. Pois esta desigualdade de forl;a nao depende da subjetividade
coletiva, como os fatos de adesao que evocamos ha pouco. E um fcname-
no objetivo, que somente 0 apelo a causas objetivas pode explicar.
Nao se trata de empreender aqui um estudo de mosofia das civi-
Jiza<;oes; pode-se discutir atraves de volumes e volumes a natureza dos
valores professados pela civiliza~ao ocldental. S6 reall;aremos os mais
manifestos, os que estao menos sUjeitos a controversia. Reduzem-se. pa-
rece, a dois: a civilizal;ao ocidental procura pOl' um lado segunclo a ex-
pressao cle Leslie White, aumentar c('ntinuamente a quantidade de ener-
gia disponivel per capita; pOl' outro lado, procura proteger e prolongal'
a vida humana, e se queremos resumir, considerar-se-a que 0 segundo
aspecto e uma modalidade do primeiro, porque a quantidade de energia
disponivel aumenta, em valor absoluto, com a dural;ao e a integi'idade
oa existencia individual. Para afastar qualquer discussao, admitir~se-a.
tambem de said a, que essas caracterlsticas podem-se acomJ!lanhar de fe-
namenos compenmt6lios, servindo-Ihes de algum modo de freio: pJr
exemplo, os grandes massacres que constituem as guerras mundiais, e
a desigualdade que preside a. repartil;8.o da energia disponivel entl e cs
individuos e as classes.
Isto posto, constaLa-se imediatamente que, se a civiliza<;ao ocidental
se dedicou efetivamente a essas tarefas, com um exclusivismo onde re-
side talvez sua fIaqueza, ela nao e certamente a (mica. Toclas as socie-
dades humanas, descle os tempos mais remotos agiram no mesmo sen-
tido; e fOlam sociedades muito longinquas e arcaicas, que igualariamos
de bom grado aos povos "selvagens" atuais, que realizaram nosse doml-
nlo os progressos mals declslvos. Atualmente, elas constituem sempre a
'maior parte do que denominamos civilizac;ao. Ainda dependemos das
imensas descobertas que marcaram 0 que se denomina, sem nenllum exa-
gero, a revoluc;ao neolitica: a agricultura, a criac;ao de animais, a cera-
mIca, a tecelagem... A todas estas "artes da civilizac;ao" so trouxernos,
ha oit u dez mil !:~s, aperfeic;~tos.
,-- E verdade que certos espirltos tem uma desagral!(lvcl tendencia para
reservar 0 privllegio do esforc;o, da Inteligencia e da imaginac;ao as des-
cobertas recentes, ao passu que as que foram realizadas pela humanidade
no seu periodo "barbaro" sedam obra do aeaso, - havendo ai, em suma,
apenas um pequeno merlto. Esta aberrar;:ao nos pareee tao grave e dl-
vulgada, e se presta tao profundamente a impedir uma vlsao exata da
relac;ao entre as eulturas, que aereditamos ser IndLspensavel dissipa-Ia
comPletame~ - - --
--- -
U-se nos tratados de Etnologia - e nao nos menos considerados-
que 0 homem deve 0 conhecimento do fogo ao aeaso do raio ou a um
ineendio da mata; que 0 achado de uma ear;:a acid ental mente assada
nestas condic;6es Ihe revelou a cocc;ao dos alimentos; que a invenr;:ao da
ceramica resulta do esquecimento de uma bola de argila pelto de um
forno. Dir-se-ia que 0 homem teria vivido primeiramente numa especie
de idade de DurO tecnologica, onde as invenc;6es eram colhldas com B
mesma facilidade que os frutos e as f1ores. Ao homem moderno cstariam
reservadas as fadigas do trabalho e as Iluminar;:oes do genio.
Esta visao Ingenua e resultado de uma total ignorfmcia da comple-
xidade e da diversidade das operac;6es implicadas nus tecnicas mals ele-
mentares. Para fabricar um utensilio de pecha luscatla eficr!z, n[o basta
bater num calhau ate que ele se estilhace: percebeu-se isLo lJem, no dia
em que se tentou reproduzir os princ.ipais tipus de utensiJios pre-histo-
rieos. Entao - e observando tambem a mesma tecnica nos povos que
ainda a possuem - descobriu-se a ccmplexidade dos procedimentos in-
dispensavels, e que vao, algumas vezes, ate a fabricac;ao preliminar de
verdadeiros "aparelhos de talhar": martelos com contrapesos, para con-
tralar 0 Impacto e sua dlrer;:ao; dispositivos amortecedores para evltar
que a vibrar;:ao nao rompa 0 estllhar;:o. E preciso tambem um vasto con-
junto de nor;:6es sobre a orIgem local, os procedimentos de extrar;:ao, a
reslstencia e a estrutura dos materlais utillzados, um trelno muscular
aproprlado, 0 conhecimento dos "jeitinhos" etc; numa palavra, uma ver-
dadelra "liturgla", correspondente, mutatis mutandis, aos diversos ea-
pltulos da metalurgla.
Do mesmo modo, os Incendios naturais pod em as vezes tostar ou
assaI'; mas e dlficllmente concebivel (salvo no caso dos fen6menos vul-
eanicos, cuja distribuir;:ao geografica e restrlta) que fac;am ferver ou co-
zlnhar no vapor. Ora, estes metodos de cocc;ao nao sao menos universals
que os outros, Portanto, nao ha razao de exclulr 0 ato Inventlvo, que
fol certamente requerldo para esses ultimos metodos, quando se quer
expllcar os primelros.
A ceramica ofereee um exemplo excelente, pols uma erenr;:a multo
divulgada afirma que nao ha nada mais simples que dar forma a um
torrao de arglla e endurece-Io no fogo. Que se far;:a a experlencia. E pre-
clso primeiramente descobrir argllas pr6prlas a cocr;:ao; ora, se urn gran-
de numero de condir;:6es naturals e necessarlo para Isto, nenhuma e su-
ficiente, pois arglla alguma nao mesclada a um corpo Inerte, escolhlda
em funr;:ao de suas caarcterlstlcas partlculares, resultarla, apos a cocr;:ao,
num reciplente utllizavel. E preclso elaborar as tecnlcas da modelagem
que permltem realizar esta proeza de guardar em equllibrlo durante um
tempo apreciti.vel, e de modificar ao mesmo tempo, um corpo plastlco
que nao tem "flrmeza"; flnalmente, e preciso descobrlr 0 combustivel par-
ticular, a forma do forno, 0 tipa de calor e a durar;:ao da cocr;:ao que
permitirao torna-Io solido e Impermeavel, atraves de todos os ol:stiiculos
da~ rachaduras, esfarelamentos· e deformac;6es. Poder-se-Iam multlpliear
os exemplos.
Todas estas operar;:6es sao· demaslado numerosas e complexas para
que 0 acaso pudesse explica-Ias. Cada uma delas, tomada Isoladamente,
nada slgnifica, e 0 que permite seu sucesso e sua comblnar;:ao lmaglna-
da, desejada, pesqulsada e experlmentada. E claro que exlste 0 acaso,
mas nao da nenhum resultado' de per si. Durante dols mll e qulnhentos
anos aproximadamente, 0 mundo ocidental conheceu a exlstencia da ele-
tricidade - descoberta, sem duvida, pOI' acaso - mas 0 acaso permaneceu
esteril ate os esforr;:os Intencionals e dirigidos pelas hlp6teses dos Ampere
e Faraday. a aeaso nao teve um papel malar na invenr;:ao do arco, do bu-
merangue ou da zarabatana, no nascmento da agricultura e da crlar;:ii.o
cle .animais, da qUE' na descoberta cia penicilinn. _ donde se sabe, ade-
mals, qU~ e_le nao faltou. Deve-se, portanto, distinguir cUidadosamente
a t:'~nsnllssao de uma tecnlca de uma gera<;fto it outra, semprc com uma
fa.Clll:lade relatlva gra<;as a observa<;fto e ao exercicio quotidiano, e a
cr!a<;ao ou melhoria das tecnicas no interior de cada gera<;ao. Estas BU-
roen
: sempre a mesma potencia imaginativa e os mesmos esfor<;os en-
carn.l<;ados por parte de certos indlviduos, qualquer que seja a tecnica
p~r.tlcular_ que se tenha em mente. As sociedades que denomlnamos pri-
lmtlvas nna sao menos ricas ('m homens como Pasteur e palissy que as
outras 3.
Em breve encontral'emos 0 acaso e a probabilidade, mas em outro
Jugar e com um outro papel. Niio os utlllzaremos para expllcar pregui-
<;osame~te 0 nascimento de inven<;6es ja fcitas, mas para intelpretar
um fenomeno que se situa em outro nivel de realiclade: isto e, apesar
cle ~m.a close de imagina<;ao, de inven<;ao e de esfor<;o criador, que temos
o dlrelto e1e Supor que permane<;am de modo mais ou menDs constanta
na his tori a cia humanidade, esta cO,mbina<;ao nao determina muta<;6es
culturais importantes senao em certos period os e lugares. Pois, para
chegar a este resultado, nao bastam os fatores puramente psicol6gicos:
devem, inlcialmente, encontrar-se presentes, Com uma orienta<;ao simi-
lar, num mimer~ s.uficiente de indivfduos, para que 0 criador esteja logo
segura de um publlco; e esta condi<;ao depende da reuniao de um mime-
1"0 considenivel de outros fatores, de natureza hlstorica, econ6mica e so-
ciologica. Chegar-se-ia, portanto, para expllcar as diferen<;as nos cursos
d~s civiliza<;6es, a invocar conjuntos de causas tao complexas e descon-
tmuas ~ue seriam incongnosciveis, quer por raz6es pniticas, quer ate
pOl' razoes teoricas, tais como 0 aparecimento, impossivel de ser evltado
~e perturba<;6es Iigadas as tecnicas de observa<;ao. Com efeito, para de~
s~nrolar uma meacla formada de flos tao nUmerosos e tenues, selia pre-
CISOsubmeter a sociedade considerada (e tambem 0 mundo que a cerca)
a um estudo etnognifico global e de todos os instantes. Mesmo sem
evocar a enormidade da empresa, sabe-se que os etnografos, que traba-
lham, contudo, numa escala infinitamente mais rerluzlda, estao freqUen-
teme~te lhnltados em suas observa<;6es pel as ll1udan<;as sutis as quais
sua SImples prese~<;a basta para introduzir no grupo humano, objeto de
seu estudo. Ao mvel das sociedades modernas, sabe-se tambem que as
sondagens de opiniao publica modificam a orienta<;ao desta opiniao, pelo
proprio fato de seu emprego, despertando na popula<;ao urn fator de re-
f1exao sobre sl, que nao existia anteriormente.
Esta situa<;ao justifica que se introduza, nas clencias socials, a no-
<;ao de probabilidade, ja ha muito tempo presente em certos ramos da
Fislca, como a Termodinamlca, por exemplo. voltaremos a isto; por
agora bastara lembrar-se que a complexldade das descobertas modernas
nao resulta de uma malor freqUencia ou de uma melhor disponlbllidade
de genlo em nossos contemporaneos. Muito pelo contrario, pOIque reco-
nhecemos, atraves dos seculos, que cada gera<;ao, para progredir, s6 terla
necessldade de acrescentar uma poupan<;a constante ao capital legado
pela gera<;6es anteriores. Devemos-Ihes nove decimos de nossa riqueza;
e talvez mais, se, como jii. fol feito, avallarmos a data do apareclmento
das principals descobertas em rela<;1io a data, aproxlmada, do come<;o
da civiliza<;ao. Constata-se entao que a agricultura nasce DO decorrer
de uma fase recente, correspondendo a 2% desta dura<;ao; a metalurgia
a 0,7%, 0 alfabeto a 0,35%. Ii. fisica galilaica a 0,0357'0 e 0 darwlnismo a
0,009% 4. A revolu<;8.o cientifi'ca e industrial do Ocidente se inscreve in-
teiramente num periodo igual a cerca de meio milesimo da vida da hu-
manidade. Podemos, portanto, mostrar-nos prudentes antes de aflrmar-
mos que ela esta destinada a mudar-Ihe totalmente a significa<;ao.
Nao e menos verdadeiro - e cremos ser a formulagao deflnitlva que
podemos dar de nosso problema - que, sob a rela<;ao das inven<;6es tec-
nicas (e da reflexao clentffica que as toma possiveis). a civlllza<;ao ocl-
dental se mostrou mais cumulativa que as outras; que ap6s ter disposto
do mesmo capital neolitico inicial, soube acrescentar-lhe melhorias (es-
crita alfabetica, aritmetica e geometria). das quais, alias, esqueceu al-
gumas rapidamente; mas que, ap6s uma estagna<;1io que, groS80 modo,
se desenrola durante dois ou dois mil e quinhentos anos (do primeiro
milenio antes da era crista ate 0 seculo XVIII aproximaclamente), ela
se revelou subitamente como 0 foco de uma revolu<;ao industrial de que
- por sua amplitude, sua unlversalidade e a importancia de seus re-
sultados - somente a revolu<;1io neolltlca pudera oferecer outrom urn
equivalente.
Por conseguinte, duas vezes em sua hist6ria e com urn tntervalo
aproximado de dez mil anos, soube a humanidade acumular uma· multi-
plicidade de inven<;6es orientadas no mesmo sentido; e este mimero por
um lado e esta continuiQade, POI' outro, concentraram-se num lapso de
tempo suficlentemente curto para Que se operassem aHas sinteses tecnl-
cas; sfnteses que acarretaram mudan~as slgnlflcatlvas nas rela~oes Que
o homem mantem com a natureza e Que, pOl' sua vez, tornaram possi-
vels outras muclan~as. A Imagem de uma rea~ao em cadela, desencadea-
da IXlr corpos catalisadores, permite Ilustrar este processo que, ate agora,
se repetlu duas vezes, e duas vezes apenas, no, his tori a da humanl~lade.
Como Isto se produzlu?
Inlclalmente, nao devemos eSQuecer Que outras revolu~oes, apresen-
tando as mesmas caracteristicas cumulativas, puderam desenrclar-se
alhures e em outros momentos, mas em dominios diferentes da ativi-
dade humana. Expllcamos anterlormente porque a nossa propria revo-
lu~ii.o industrial e a revolu~iio neolitica (que a precedeu no tempo, mas
Que provem das mesmas preocupa~oes) saD as (micas que nos podem
aparecer como tais, porque nosso sistema de referencias permlte men-
sura-Ias. Todas as outras mudan~as, Que certamente se procluziram, 56
se revelam sob forma de fragmentos, ou profundamente deformadas.
Nflo podem ter urn sentido para 0 hOmem ocldental moderno (pelo me-
nos todo seu sentido); podem ate ser para ele como se nao existissem.
Em segundo lugar, 0 exemplo da revolu~ao neolitica (a (mica Que
o homem ocidental moderno chega a reconhecer bem claramente) de-
ve-Ihe Insplrar alguma modestia Quanto a preemlnencla Que ele pudes-
se ser tentado a reivindlcar em proveito de alguma ra~a, de uma reglao
ou de Urn pais. A revolu~ao industrial nasceu na Europa ocidental; de-
pols, apareceu nos Estados Unidos. e em seguida no Japao; desde 1917
ela se acelera na Uniflo Sovietica, amanha, sem duvida, surglni em ou-
tra parte; de meio em meio seculo, brllha com uma chama mais ou me-
nos intensa em centros distintos. Em que se transformaram na escala
dos mllenios, as questoes de priori dade, de que nos orgulhamos tanto?
Ha aproximadamente mll ou dols m] anos, a rev01uGao neolftica se de-
sencadeou slmultaneamente no, bacia do mar Egeu, no Eglto, no Oriente
iPr6xlmo, no vale do Indo e na China; e. desde 0 emprego do carbona
radloativo para a determlnaGflo dos periodos arqueologlcos, suspeitamos
que 0 neolitico america no, mais antigo do que se acreditava outrora.
nao deve tel' come~ado muito mais tarde que no Velho Mundo. E pro-
vavel que tres ou quatro pequenos vales pUdessem, neste concurso, re-
elamar uma prloridade de alguns seculos. a que sabemos disto atual-
mente? 11.0contrario, estamos certos de que a questao da priorldade nao
tem importancia, precisamente porquc 0 aparecimrnto simult.aneo das
mesmas perturba~oes tecnologicas (seguidas de perto pOI' perturba~oes
socials), em territ6rlos tao vastos e em regloes tao afastadas, mostra
bem que ela nao dependeu do genio de uma ra~a ou de uma cultura,
mas de condiGoes tao gerais, que elas se situ am fora da consclencb dos
homens. Estejamos certos, portanto, que. se a revolu~ii.o industrial nll-O
tivesse aparecldo Inlclalmente na Europa ocldental e setentrlonal, ela
se teria manifestado algum dia numa outra parte do globo. Ese, como
e verossimll, deve-se estender ao conjunto da terra habitada, cad a cul-
tura introduziI a ai tantas contribui~oes particulares, que 0 hlstorlador
dos futuros mllenlos legitimamente conslderara futi! a qUestao de saber
quem pode, pOI' urn ou dois seculos, reclamar a prioridade.
Isto posto. e preciso introduzlr uma nova Iimita~ao, senao a vaUdade,
ao menos ao rigor da distin~ao entre hist6ria estacionaria e hist6r1a cumu-
lativa. Nao apenas esta distln<;ao ~ relatlva aos nossos Interesses, como
ja most-ramos, mas ela nunca consegue ser clara. No caw das Inven<;oes
tecnicas, e bem certo que nenhum periodo, nenhUma cultura, e abs.olu-
tamente estacionario. Todos os povos possuem e transformam, melhoram
e esquecem tecnicas suficientemente complexus para permltir-lhes dornl-
nul' seu meio; sem 0 que ja teriam desaparecldo ha multo tempo. por-
tanto, a dlferen~a nunco. e entre hlst6r1a cumulativa e hist6rlo. nao
cumulativa; toda hist6rla e cumulo.tlva, com difcren~as ele grau. Sabe-
se, POI' exemplo, que os antlgos chineses e os esqulm6s tin ham desenvol-
vido suas artes mecanicas; e faltou muito pouco para que chegassem
ao ponto onde se da a "rea~ao em cadeia", determlnando a passagem de
um tipo de c1viliza~ao a urn otltro. Conhece-se 0 exemplo do. p6lvora de
canhiio: os chineses tinham resolvido, tecnicamente falando, todos os
problemas que elo. colocava, menos 0 de sua utillza~ao com resultados
macl~os. as antigos mexico.nos nao Ignoravam a roda, como se diz fre-
qUentemente; conheclam-na 0 bastante para fabrlcar animals com 1'0-
dlnhas vara suas crian~as; ter-Ihes-ia bastado urn passo suplementar para
possuirem a carro~a.
Nestas condl~oes, 0 problema do, rarldade relativa (para cad a sis-
tema de referencias) de cnlturas "m;!.ls cumulativas" em rela~ao as cul-
turas "menos cumulativas" se reduz a um problema conhecldo, que de-
pende do calculo das probabllldnc1es. E 0 mesmo problema qUf! conslste
em determinar a probabilidade relativa de uma comblna~ao complexa
em rela<;ao a outras combinaGoes do mesmo tipo, mas de menor comple-
xidade. POI' exemplo, e bastante freqiiente, na roleta, uma seqUencia de
dois numej'os consecutivos (7 e 8, 12 e 13. 30 e 31, pOI' exemplo); uma
de tres numeros ja e rara, lUna de quatro, muito mals. E ~ somente urns
vez num nllinero muito elevado de lances que se rcaliza:a, talvcz, llma se-
rle de sels, sete ou oito ntimeros conforme a ordem natural dos mime-
ros. Se Dossa aten~ao se fixar exelusivamente nas series longas (por ex em-
plo, se apostamos nas series de cinco ntimeros consecutivos), as series
mals curtas se tornarao para nos equivalentes a serle nao-ordenadas. ll:
esquecer que elas so se distinguem das nossas pelo valor de uma fra~ao,
e que, encaradas sob outro angulo, talvez apresentem grandes regularl-
dades. Levemos mals avante nossas comparat;6es. Um jogador, que trans-
ferlsse todos os seus ganhos para series cada vez mals long as, poderla
se desencorajar, apOs mllhares ou mllh6es de lances, por Dunea ver apa-
recer a serle de nove numeros consecutlvos, e pensar que teria sido me-
lhor parar mals cedo. Contudo, nao se 'exclul que urn outro jogador, se-
gulndo a mesma formula de aposta, mas sobre series de urn outro tipo
(por exemplo, urn certo rltmo de alternancia entre vermelho e pre to,
ou entre par e impar), aclamarla como combinat;6es slgniflcativas aque-
las que 0 primelro jogador percebe co~mo desordem. A humanidade nao
evolul num sentldo unieo. E se num certo plano ela parece estaclonarla,
ou ate regressiva, isto nao slgnlfica que, de urn outro pOnto de vista, ela
nao seja a sede de traDsformat;6es Importantes.
o grande flJOsofo Ingles do seculo~XVIII, Rume, dedlcou-se urn dla
a resolver 0 falso problema que se colocam multas pessoas, quando se
Inquletam em saber porque todas as mulhcres nao sac bonitas, mas ape-
nas uma pequena minorla. Mostra facllmente que a questao DaO tern
nenhum senti do. Se todas as mulheres fossem ao menos tao bonltas
quanto a mals bela, nOs as acharlarnos banals, e reservarlamos DOSSO
quallflcatlvo para a pequena mlnorla que ultrapassarla 0 modelo com urn.
Tambem quando estamos Interessados Dum certo t1po de progresso, re-
servamos-Ihe 0 merlto para as culturas que 0 realizam em seu mals
alto grau, e f!camos Indiferentes diante das outras. Assim, 0 progresso
s6 e 0 maximo de progresso Dum sentldo pre-determinado pelo gosto
de cada urn.
Flnalmente, e precise encarar nosso problema sob UIl1 ultimo angulo.
Urn jogador como 0 dos panigrafos anteriores, que so apostaria nas se-
ries mals longas (qualquer que seja 0 modo como ele as conccba), teria
toda chance de se arruinar. Mas nao seria 0 mesmo para uma collgat;ao
de apostadores jcgando as mesmas series em valor absoluto, mas em
muitas roletas e se atrlbuindo 0 prlvilegio de reunir os resultados favo-
ravels as comblnat;6es de cad a um. Pols se, tendo acertado sozlnho 0 21
e 0 22, tenho necessidade do 23 para contlnuar mlnha serie, ha evlden-
temente multo mals chances de que ele sala em dez mesas que Duma
unica.
Ora, e'sta sltua~ao se pareee bastante cOm a das culturas que che-
garam a realizar as formas mais cumulativas de hist6ria. Essas formas
extremas jamals foram obra de culturas Isoladas, mas slm de culturas
combinando voluntarla ou involuntariamente seus jogos respectivos, e
realizando, atrnves de melos variados (mlgrat;6es, emprestimos, troeas
comerciais, guerras), essas coligar;6es cujo modelo acabamos de imagi-
nar. E e aqui que compreendemos clara mente 0 absurdo que existe em
se declarar uma cultura superior a outra. Pois, na medida em que es-
tlvesse sozinha uma cUltura nunca poderia ser "superior"; como 0 jog-a-
dor isolado, ela s6 conseguiria realizar pequenas series de alguns elemen-
tos, e a probabilidade de que uma serie longa "saisse" em sua hlst6rla
(sem estar teorlcamente excluidr» serla tao fragll que se preelsarla
dispor de um tempo inflnltamente mals longo do que aquele no qual se
inscreve 0 desenvolvimento total da humanldade, para ser possivel ve-la
realizar-se. Mas - ja 0 dissemos anterlormente - nenhuma cultura esta
s6; ela e semp·re dada em coligat;ao com outras culturas, e e Isto que
Ihe permite ectificar series cumulativas. A probabllldade de que, entre
essas series, aparet;a uma longa, depende naturalmente da extensao, da
durat;ao e da varlabllidade do regime de collgat;ao.
Destas observat;6es decorrem duas conseqiiencias.
Durante este estudo, perguntamo-nos repetidas vezes como fora pos-
slvel a humanidade ter permanecido estacionaria durante Iove declmos
de sua hist6ria, ou ate mals: as primelras civillzat;6es tern de duzentos
mil a quinhentos mil anos, as condit;6es de vida se transform am apenas
no decorrer dos ultimos dez mil anos. Se nossa. alllllise e exata, nao fol
lporque 0 homem paleolitlco tivesse side menOs Intellgente, menos
dotado que seu sucessor neolitico, mas slmplesmente porque, na his tori a
humana, uma combina~ao de grau n levou urn tempo de dura~ao t para
sair; esta poderia ter-se produzido muito mais cedo ou muito mals
tarde. 0 fato nao tem maior significat;ao que 0 numero de lances que
urn jogador deve esperar para ver produzir-se uma combinat;ao dada:
esta combina~ao po de acontecer no primeiro lance, no mileslmo, no mi-
Jlonesimo ou nunca. Mas, durante este tempo todo, a humanldade, do
mesmo modo que 0 jogador, nao deixou de especular. Nem sempre que-
rendo-o, e sem Jamais compreende-Io exatamente, ela "faz neg6clos~
culturais, lanca-se em "operacoes-clvilizacao", nem todas as vezes coroa-
das de exito. Ora beira 0 sucesso, ora compromete as aquisicoes ante-
rlores. As grandes simpllflcac6es, autorlzadas por nos~a Ignorancia da
maloria dos aspectos das socledades pre-llist6ricas, pennitem i1ustrar
esta marcha Incerta e ramlflcada, pois nada e mais surpreendente do
que esses arrependimentos que conduzem do apogeu levallolsiano i1. me-
diocridade mousterlana, dos esplendores aurlgnaciano e solutreano a as-
pereza do magdalenlano, depols aos contrastes extremos oferecldos pelos
diversos aspectos do mesolitico.
o que e verdadelro no tempo nao 0 e menor. no espaco, mas deve
ser expresso de outro modo. A chance que uma cultura tem de totalizar
este conjunto complexo de Invencoes de todas as ordens, que denomi-
namos uma c1vllizaCao, e funcao do nfunero e do. diversidade das cultu-
ras com as quais participa no. elaboracao - a maior parte das vezes invo-
luntaria - de uma estrategia comum. Ntimero e diversidade, dizemos.
A comparacao entre 0 Velho Mundo e 0 Novo na vespera do. descoberta
llustra. b'em esta dupla necessidade.
A Europa dos prlm6rdios do Renasc!mento era 0 lugar do encontro
e fusao das mais diversas influencias: as tradicoes grega, romana, ger-
manica e anglo-sax6nica; as influencias at abe e chinesa. A America
pre-colombiana nao gozava, quantitativamente falando, de menos can-
tatas, ja que as culturas americanas mantinham relaCues, e as duas
Americas formavam conjuntamente um imcnso continente. Mas, 0.0
passo que as culturas que se fecund am mutua mente no solo europeu sac
o produto de uma velha diferenclacao de muttas dezenas de mil€mlos,
as da America, cuja povoaCao e mais recente, tiveratl1, men os tempo de
divergir; ofere cern urn quadro mais homogeneo. Por i~so, se bem que
nao se possa dizer que 0 nivel cultural do Mexico ou do Peru tivesse
sido, no momento da descoberta, Inferior 0.0 da Europa (vlmos ate que
sob certos aspectos ele Ihe era superior), os divcrsos aspe:tos do. cultura
eram ai, talvez, menos bem articulados. Ao lado de sucessos acimini-veis,
as civilizacoes pre-colombianas estao cheias de lacl'nas; elas tem, se se
pode dizer, "buracos". Ofere cern tambem 0 espetaCLllo, menos contradi-
t6rio do que parece, do. coexistencia de formas precoces e formas abor-
ti vas. Sua organizacao pouco flexivel e fIacamente diversificada exp!ica
de modo verossimil sell desmoronamento diante de UIl1 plil1l1ado (Ie con-
qUistadores. E a causa profunda pode ser procurada no fato de Que a
"collgacao" cultural amerlcana era estabeleclda entre parceiros menos
diferentes entre si do que 0 eram os do Velho Mundo.
Portanto, nao ha socledade cumulativa em si e por sl. A hist6rla
cumulatlva nao e propriedade de certas racas ou de certas culturas que
se dlstlnguirlam, asslm, das outras. Eia resulta de sua conduta mais do
que de sua natureza. Exprlme uma certa modalldade de existencla das
culturas que e apenas sua manetra de ser conjunta. Neste senti do, pode-
se dlzer que a hlst6rla cumulativa i. a forma de hist6rla caracterlstica
desses super-organismos socials que constituem os grupos de s6c1edades,
0.0 passo que a hlst6ria estacionarla - se e que ela existe verdadeira-
mente - serio. a marca desse genero de vida inferior, que e 0 das so-
cledades soHtarlas.
A fatalidade exclusiva e a tinica tara que podem afliglr urn grupo
humano Impedl-Io de realizar plenamente sua natureza, e a de ser s6.
Ve-se assim 0 que ha de inepto e pouco satisfat6r10 para 0 espirito
nas tentatlvas com as quais nos contentamos geralmente para justifi-
car a contribu!<;ao das racas e culturas humanas para a civllizacao.
Enumeram-se tracos, esquadrinham-se quest6es de origem, atrlbuem-se
prloridades. Por melhor intencioriados que sejam, estes esfol'Cos sac fu-
tels, porque falham triplamente no. sua finalidade. Prlmeiro, 0 me:lto
de uma invencao atribuido a uma determ inado. cultura nunca e seguro.
Em segundo lugar, as contribulC6es culturals podem sempre repartlr-se
em dois grupos. De urn lado, temos traC(os, aquisic6es isoladas, cuja im-
portaneia e faeil de avaliar e que oferecem tambem urn carater limitado.
Que 0 tabaco tenha vindo do. America, e um fa~o, mas, aflnal de contas.
e apesar de toda a boa vontade manifestada para esta flnaHdade pelas
Illstitulc6es illternacionais, nao nos podemos sentiI' invadldos de grati-
dao para com os indlgenas americanos toda vez que fumaplos urn c1-
garro. 0 tabaco e uma aquls!<;ao requintada que se incorporou a arte
de viver, assim como outras sao l1tels (por exemplo, a borracha); deve-
mos-1l1es prazeres e comodldades suplementares, mas se nao exlstlssem,
nao se abalarlam as ralzes de nossa clvlllzacao; e, em caso de serlo.
necessidade, terlamos sabido encontra-Ios, ou substitul-Ios por outros.
No p610 oposto (e claro, com toda uma serle de formas intermedia-
rias) , existem contrlbulcoes que oferecem urn canUer de sistema, Isto e,
correspondente 0.0 modo pr6prio que cad a socledade escolheu para ex-
prlmlr e satisfazer 0 conjunto das aspirac6es humanas. A origlnalidade
e a natureza insubstitulvel desses estllos de vida, ou, como dizem cs
.anglo-saxoes, desses patterns, sac inegavels, mas representam outras
tanlas escolhas excusivas; e mal compreendemos como uma civillzac;ao
poderia esperar aproveitar-se do estilo de vida de uma outra, a nao ser
renunciando a ser ela mesma. Com efelto, as tentatlvas de acomoda-
C;ao s6 podem chegar a dols resultados: ou uma desorganlzaC;ao e urn
desmoronamento do sistema de urn dos grupos; ou uma sintese original,
mas que, entao, consiste na emergencla de urn terceiro sistema, 0 qual
se torna irredutfvel em relac;ao aos outros dols. Alias, 0 problema nao
e saber se uma socledade pode ou nao lucrar com 0 estllo de vida de
seus vizinhos, mas se pode chegar a compreende-Ios e ate a conhece-Ios
e em que medida. Vimos que esta questao nao comporta nenhuma res-
posta categ6rica.
Enfim, nao existe contribulC;ao sem beneflciirio. Mas se exlstem
culturas concretas, que se podem situar no tempo e no espac;o, e dns
'quais se pode dizer que "contribuiram" e que continuam a faze-Io, 0 que
e esta "civllizac;ao mundial", supostamente beneficiaria de todas essas
'contribuic;oes? Nao e uma cvillza<;ao distlnta de todas as outras, go-
zando de urn mesmo coeficiente de realidade. Quando falamos de civi-
lIzac;ao mundial, nao designamos uma epoca da hlst6r1a, ou urn grupo
'de homens: evocamos uma noc;ao abstrata, a qual atribuimos urn valor,
quer moral, quer 16gico: moral, se se trata de uma finalidade que pro-
pomos as sociedades existentes; logico, se agrupamos sob urn mesmo
vocabulo os elementos comuns que a analise permite dlstingulr entre as
dlferentes culturas. Em ambos os casos, nao se deve disslmular que a
noc;ao de civlIlzaC;ao e muito pobre, esquematlca, e que seu conteudo
i!ltclectual e afetivo nao oferece uma grande densidade. Querer avaliar
contribulc;oes culturais prenhes de uma hist6ria milenar, e de todo a
. peso dos pensamentos, dos sOfrimentos, dos desejos e do labor dos ho-
mens que as levaram a existencia, relaclonando-as exclusivamente aO
padrao de uma clvlIlzac;ao mundial que ainda e uma forma vazia, serta
empobrece-Ias singularmente, esvazia-Ias de sua substancla e delas con-
servar apenas urn corpo descarnado.
Ao contrario, procuramos mostrar que a verdadeira cont.ribuic;ao das
culturas nao consiste na lista de suas invenc;oes particulares, maS no
ajastamenio dijerencial que of ere cern entre si. 0 senlimento de gratl-
dao e humildade, que cad a membro de uma detenninada cultura pode
e deve experimental' pOI' todos os OUtlOs, s6 podelia fundar-se numa
unica convicc;iio: que as outras culturas sac dlferentes dn sua, das mals
variadas maneiras, e isto, mesmo que a natureza profunda dessas dUe-
renc;as the escape, ou que, apesar de todos os seus esforc;os, s6 consiga.
penetrar nela imp·erfeitamente.
POI' outro lado, consideramos a nOC;ao de civillzac;lio mundlal coma
uma especie de conceito limite, ou como manelra abrevlada de deslg-
nar urn processo complexo. Pois se nossa demonstrac;ao e valida, nlio
ha, nao pode haver uma civiliza<;ao mundial no sentido absoluto que
geralmente se atribui a este termo, porque a civlIlzac;lio impllca a coe-
existencia de culturas oferecendo entre si 0 maximo de diversidade, e
consiste mesmo nesta coexistencia. A civiJIzac;lio mundial s6 poderia ser
a coliga<;iio, em escala mundial, de culturas, preservando cada qual sua
originalic1ade.
Nao nos encontramos, entao, dlante de um estranho paradoxo?
Tomando os termos no senti do que lhes atribuimos, viu-se que to do
progresso cultural e func;ao de uma coligac;ao entre as culturas. Esta
collga<;ao consiste na partllha (consclente au inconsciente, voluntaria ou'
Involuntaria, intenclonal au acidental, desejada ou imposta) das chances
que cada cultura encontra. em seu desenvolvimento hist6rico; enfim,
admitimos que esta coliga<;ao e bem mais fecunda quando ela se esta-
belece entre culturas mals diversificadas. Isto posto, parece que nos
encontramos diante de condi<;oes contradit6rias. iPois este jogo em
comum, do qual resulta todo progresso, deve acarretar, como ,conseqtien-
cia, a mais longo ou mais curto prazo, uma homogeneizac;ao dos recursos
de cad a jogador. E se a diversidade e uma condic;ao inicial, e precise
. reconhecer que as chances de ganhar se tornam tanto mais fracas quanto
mais a partida for prolongada.
Parece que s6 existem dois remedios para essa consequencia inelu-
tavel. Urn deles consiste, para cada jogador, em provocar ajaslamentos
dijerenciais em seu jogo; a coisa e passivel, parque cada sociec1ade (a
"jogador" de nosso modelo te6rico) se campoe de uma caligac;ao de
grupas: confessionais, profissionais e econ6mlcos, e 0 capital social arris-
cado e constituido pelas apostas de todos estes participantes. As desigl1al-
dades socials sao 0 exemplo mais evidente desta solu<;iio. As granc1es
revohH;oes que eseolhemos como ilustra<;ao: neolltlca e Industrlnl, se
aeompanharam, nao apenas da dive1'sifiea,ao do eo1'po social, eOll1u
muito bem 0 observara Spence" mas tambe!l1 da inslau!"u<;fto de stat1ls
diferenciais entre os grupos, sobretudo do ponto de vi~tl1 cconomir·o. Hfi
muito tempo observou-se que as descobertas neoliticas acarretaram 1'a-
pidamente uma diferencia,flO social, com 0 nascimcnto, no Oriente an-
tigo, das grandes concentra<;6es urbanas, a apari<;ao dos Estados, das
castas e classes. Aplica-se a mesma observa<;ao a revolu<;ao Industrial,
condicionada pelo apareclmento de um proletariado e condUzindo a for-
mas novas e mais extremadas de explora<;ao do trabalho humano. Ate
agora, tendia-se a tratar essas transforma<;6es como sendo a conseqlit~n-
cia das transforma<;6es tecnicas, cstabelecendo entre estas e aquelas
uma rela<;ao de causa e ef~ito. Se nossa Interpreta<;ao e exata, a rela-
<;ao de causalidade (com a sucessao temporal que ela implica) deve seT
abandonada _ como, alias, a ciencia moderna tcnde geralmente a fuzer
_ em beneficlo de uma correla<;ao funcional entre os dols fenomen0s.
Notemos, de passagem, que 0 reconhecimento do fato de que 0 progre~so
tecnico tenha tido como correlativo historlco 0 desenvolvlmento da ex-
plora<;ao do homem pelo homem, pode incitnr-nos a uma certa diserl<;ao
nas manifesta<;6es de orgulho que nos Insplra Hio facllmente 0 primelro
destes dois fenomenos.
o segundo remedio e, numa larga medlda, eondiclonado pelo prlmel-
ro: consiste em Introduzir, de bom grado ou It for<;a, novos parcelros na
coliga,ao, desta vez extern os, e cujas "apostas" sejam bem diferentes
das que caracterizam a associa<;ao inicial. Tambem esta solu<;ao fol ten-
tada, e se 0 termo capitalismo pennlte, grosse modo, Identlfiear a p1'l-
meifa, as te1'mos imperialismo e (;olonialismo ajudarao a llustrar a se-
gunda. A expansao colonial do seculo XIX pennitlu a Europa Industrial
renovar (e nao certamente em seu beneficio exclusivo) um Impulso que,
sem a introdu<;ao de povos subjugados no circuIto, conerio. 0 risco de
esgotar-se muito mais rapidal11ente.
Ve-sc que, nos dois casos, 0 remedio e alaI gar a coliga<;ao, quer
por diversificn,ao In terna, quer pela admissfto de novos parcelros; afinal
de contas, trata-se sempre de aumentar 0 numero dos jogadores, Isto e,
de voltar a complexldade e a diversidade da situn<;fto inicial. Mas ve-se
tambem que estas solu<;6es so podem reta1'dar provisoriamente 0 pro-
cesso. So pode haver explora<;ao, no seio de uma collga<;ao: entre os
dois grupos, dominante e dominado, existem contatos e se fazem trocas.
POI' sua vez, e apesar da rela<;flO unilateral que aparentemente os une,
devem, consclente ou inconsclcntemente, juntar suas apostas e, progrc."l_
slvamente, as dlferen<;as que os op6em tendem a dlminulr. Por outro lado,
as melhorias socials, por outro, 0 acesso gradual, dos povos colonlzados.
a. independencla fazem-nos asslstlr ao desenrolar deste fenomeno; S6
bem que haja ainda muita estrada a percorrer nestas dUllS dlrer;6es,
sabemos que as coisas irao inevitavelmente neste sentldo. Na verdade,
talvez seja preciso interpretar 0 apareclmento, no mundo, de regimes
politicos e socials antagonleos como uma terceira solu<;iio; pode-se con-
ceber que uma diversifica<;ao, renovando-se cada vez em outro plano,
permlta manter Indefinldamente, atraves de form as variavels e que
nunca deixarao de surpreender os horn ens, esse estado de desequlllbrio
de que depende a sobrevivencia biologlca e cultural da humanidade.
De qualquer modo, e difiell imaginal', senao sob forma contradlt6-
ria, um proeesso que se pode resumlr asslm: para progredlr, ~ preclso
que os homens colaborem; e, no deconer desta eolabora<;fto, eles. veem
Identlficar-se gradualmente as contrlbul<;6es, cuja dlferen<;a iniclal era
precisamente 0 que tornava sua colabora<;ao fecunda e necessaria.
Mas, mesmo que esta eontradi<;ao seja insoluvel, 0 dever sagrado
da humanldade e conservar em mente seus dois termos, Igualmente pre-
sentes; nunca perder de vista tim, em beneficio excluslvo do outro; evltar,
sem duvlda, urn partlcularismo cego, que tenderla a reservar 0 privlle-
gio da humanldade a uma ra<;a, uma cultura oU' uma sociedade; mas
tambem jamais esqueeer que nenhuma fra<;ao da humanldade dlsp6e
de formulas apllcaveis ao eonjunto, e que uma humanldade confundida
num genero de vida unlco e inconcebivel, pois seria uma humanidade
petrificada.
A esse respeito, as instituI<;6es Internacionais tem dlante de sl uma
imensa tarefa, e pesadas responsabllidades. Ambas sao mals complexas
do que se imagina. Pois a mlssao das institui<;6es internaclonais e dupla:
consiste, por um lado, numa Iiquida<;ao, e por outro, num alerta. Devem,
Inlcialmente, assistlr a humanldade, e tornar tao pouco dolorosa e pc-
rlgosa quanto possivel a reabsor<;iio destas diversldades mortas, resi-
duos sem valor de modos de colabora<;fto, cuja presen<;a em estado de
vestiglos putrefatos constitul um •isco permanente de Infec<;fto para 0
corpo internaclonal. Devem podar, amputar se preciso, e facilitar 0 nas-
clmento de outras formas de adapta<;ao.
Mas, ao mesmo tempo, devem estar apalxonadamente atentas ao
fato de que, para possuir 0 mesmo valor funcional que os precedcntes,
estes novas modos nao podem reproduzi-Ios ou serem concebldos se-
guinda 0 mesmo padrao, sem se reduzirem a soluc;6es cada vez mals
insipidas e finalmente inefieazes. f: precise que saibam, ao cantnirlo,
que a humanidade e rica de possiblJidades imprevistas, que, ao apare-
cerem, sempre delxarao os homens estupefatos; que 0 progresso nao e
feito a imagem confortuvel desta "similitude melhorada" onele nos pro-
cur am os um repouso preguic;oso, mas que e repleto de aventuras, rup-
turas e escandalos. A humanidade esta constantemente as voltas com
dois 'processos contraelitorios, dos quais um tenele a instaurar a unifica-
c;ao, ao passo que 0 outro visa a manter ou restabelecer a diversificac;ao.
A posic;ao de cad a epoca ou de cada cultura no sistema, a orientac;ao
segundo a qual ela se encontra ai engajada, sao tals que apenas um
destes processos the parece tel' urn sentido, parecendo 0 outro ser a
negac;ao do primeiro. Mas dizer, como poderiamos estar Inclinados, que
a humanidade se desfaz, ao "mesmo tempo que se faz, ainela se originarla
de uma visao Incompleta. Pois, nos dols pianos e em dols nivels opostos.
trata-se bem de duas manelras de se fazeI'.
A necessldade de preservar a diversidade das culturas, num mundo
ameac;ado pela monotonia e uniformidade, nao escapou certamente as
instltuic;6es intemacionais. Elas devem compreender tambem que niio
bas tara, para atingir esta finalielade, acalentar tradic;6es locais e con-
ceder uma tregua aos tempos passados. E 0 fa to da diversidade que deve
ser salvo, nao 0 conteudo hlstorleo que cada epoca the deu, e que ne-
nhmna saberia perpetual' pan alem de sl mesma. E preclso, pOltanto,
atentar para a forc;a nascente, encorajar as potencialidades seeretas,
despertar todas as vocac;6es para conviver que a his tori a tem em reser-
va; e preciso tambem estar pronto para considerar sem surpresa, sem
r.epugnancia e sem revolta, 0 que todas essas novas formas sociais de
expressao nao poderao deixar de ofere eel' de inusitado. A tolerancia nao
e uma posic;ao contemplativa, dispensando as Indulgencias ao que foi
ou que e. E uma atitude dinamica, que consiste em preyer, com preen-
del' e promover 0 que quer ser. A divcrsidade das culturas humanas est:.
atras de nos, a nossa volta e a nossa frente. A unica relvindicac;ao que
podemos fazer a este respeito, (exigencia que cria para cada individuo
deveres correspondentes) e que ela se realize de modo que cada forma
seja uma contribuic;ao para a maior generosidade das outras.

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  • 1. Falar de contribuh;ao das raQas humal1as para a clvilizaQao mun- dial poderia surpreender, numa coleQao de brochuras destll1adas a lutar contra 0 preconceito racista. Seria em vao tel' consagrado tanto talento e esforQos para mostrar que nada, no atual estado da ciencia, permlte aflrmar a superloridade ou lnferlorldade intelectual de uma raQa em relaQao a outra, se 0 lntento fosse somente restitulr sUb-reptlclamente sua consistencia a nOQao de raQa, parecendo demonstrar que os grandes grupos etnicos que comp6em a humanidade trouxeram, -enquanto tais, eontribuiQ6es especificas ao patrlm6nio eomum. Mas nada esta mais afastado de nosso designio do que Isto, que levaria somente a formular a doutrlna racista ao inverso. Quando pro- euramos caraeterlzar as raQas biol6gicas atraves de proprledades pslco- 16gicas partieulares, afastamo-nos da verdade cientifica, quer definin- do-as positivamente, quer negativamente. E preclso nao esquecer que Gobineau, de quem a hist6ria fez 0 pai das teorias racistas, nao conce- Colecao La question raciale devant la science mor/erne. UNESCO, Pa- ris, 1952. RepubJicado com a autorizaQao da UNESCO. 0 texto fol revisto e corrigido em alguns lug-ares. bia a "deslgualdade das raQas humanas" de manelra quantitntivll, mas qualitativa: para ele, as grandes raQas que contribulram ram a form::t- - ~ao da humanldade atual, sem que se possa dize-Ias primltivas - branca, amarela, negra ~, nao eram tao desiguais em valor absoluto como em suas aptld6es particulares. Para ele, a tara da degenerescencla se llgava mais ao fenomeno da mestiQagem que a posiQao de cada ra<;a numa escala de valores comum a todas; contudo, ela estava destinada a atln- gir toda a humanidade, condel1ada, sem distlnQao de ra<;a, a uma mes- tl<;agem cada ve21maioI'. Mas 0 pecado original da Antropologia eonsiste na eonfusao entre a n09ao puramente biol6giea de raga (supondo, alias, que, mesmo neste terreno limitado, esta no<;ao pudesse pretender a objetividade, 0 que a Genetica moderna contesta) e as produ<;6es soclo- l6gleas e psleol6glcas das culturas humanas. Bastou a Gobineau te-Io felto, para que 5e encontrasse eneerrado no eireulo infernal que eonduz de urn erro intelectual '(nao excluindo a boa fe) it legitimacao involun- tlhia de todas as tentativas de discriminaQiio e opressao. POI' isso, quando falamos, n~te estudo, de contribui<;iio das ra<;as' humanas a civiiiza<;iio, nao queremos dizer que as contribui<;6es cultu- rais da Asia ou da Europa, da Africa ou da America, retirem uma o:i- glnaiidade qualquer do fa to de que estes eontlnentes sao, grosso modo, povoados POl' Ilabitantes de troncos raciais diferentes. Se esta originali- dade existe - e nao se deve duvldar dela - deve-se a clrcunstanclas geograflcas, hist6rlcas e sociol6glcas, e nao a aptld6es distintas, Jigadas a constltui<;ao anatamlca ou fislol6glca dos negros, amarelos ou brancos. Mas pareceu-nos que, na medlda mesmo em que esta serle de brochuras se esforQou POI' fazer justl<;a a este ponto de vista negatlvo, arrlscava-se ao mesmo tempo a relegar a urn: plano secundarlo urn aspecto 19ual- mente importante da vida da humanidade: a saber, que esta nao se desenvolve sob 0 regime de uma monotonia uniforme, mas oatraves de modos extraordinariamente diversificados de socledades e clvilizac6es; esta diversidade intelectual, estetlca e sociol6glca nao esta unlda POl' nenhuma rela<;ao de causa e efeito a que existe, no plano blol6gico, entre certos aspectos observavels dos agrupamentos humanos: ela Ihe e ape- nas paralela em outro terreno. Mas, ao mesmo tempo, dlstingue-se desta POl' dois caracteres Importantes. Primeiro, situa-se numa outra ordem de grandeza. Ha. muito mais culturas humanas que ra<;as human as, ja que umas se contam pOl' milhares e as outras pOl' unidades: duas cultu- ras elaboradas pOl' horn ens pertencentes a mesma raQa podem diferir tanto, ou mais, que dURS culturas provenlentes de grupos raclalmente
  • 2. afastados. Em segundo lugar, ao contnhlo da dlvcrsldadf! entre as ral;M (que apresenta como principal inten'.sse a de sua origem hist6rica e d.e sua distribuil;ao no eSpal;o) a diversidade entre as culturas supoe in11- meras problemas, pais se pode perguntar se ela constitul uma vantagem au um lnconvenlente para a humanldade, questao de conjunto que s,e subdivide. bem entendldo, em muitas outras. Enflm e sobretudo, deve-se perguntar em que conslste esta dlversi- dade, sob 0 risco de ver as preconceitos raeistas, ainda mal desenralza- dos de 'seu fundo blol6glco. 5e reconstituirem em novo terreno. Pais 5erla vao tet 'obtldo do homem comum a renuncia a atl'ibuir uma significac;ao lntelec'tual au moral ao fato de ter a pele preta ou branca, 0 cabelo liso ou crespo, para ficar sllencloso dlante de uma outra questao, a qual a expel~lencia prova que ele adere lmedlatamente: se nao existem apti- does raclals inatas, como expllcar que a clvlllzal;ao desenvolvlda pelo homem branco tenha feito os imensas progressos que conhecemcs, en- quanta as dos povos de cor f!caram atrasadas. umas a meio-caminho,' outras atin i or m atraso ue se mede por mllhares au dezenas de mllhares de anos? Nao se podeni pretender tel' resolvido pela negatlva o problema da desigualdade das rar;as humanas, se nao nos atlvermos tambem ao da deslgualdade - ou da diversldade - das cultUTaS huma- nas, que de fato, senao de dlreito. estao estreltamente I1gados no eso!- rlto do povo. Para compreender como, e em que medida. as culturas humanas dlferem entre 51. 5e essas dlferenl;as se anulam ou se contradizem, ou 5e concorrem para formar urn conjunto harmonloso, e preclso prlmelra.- mente, ten tar esbol;ar seu inventario. Mas e aqui que comel;am as difl- culdades, pois devemos conscientlzar-nos de que as culturas humanas nao dl.ferem entre si do mesmo modo, nem no mesmo plano. Estamos in!cl.almente em presenc;a de socledades justapostas no espar;o, umM pr6xlmas, outras afastadas, mas. em resumo, contempor~neas. Em se- gU:da, devemos contar com formas da vida social que se sucederam no tempo, e que estamos impedidos de conhecer pela experiencla dii eta. Qualquer homem pode transformar-se em etn6grafo e ir partilhar, no local, da existencia de uma sociedade que 0 interessa; ao contrarlo, mesmo que ele se torne historiador ou arque610go, jamals entrara em contato direto com uma eivilizal;ao desaparecida, mas somente atra yes de documentos escrltos ou de monumentos figuraclos que esta socledade - ou outras - tiverem deixado a seu respeito. Enfim, e preeiso nao esquecer que as sociedades contemporaneas alnda ignorantes da escrlta. como as que chamamos de "selvagens" au "pl'imltivas", foram tambem precedldas pOI' outras formas, cujo conhecimento e praticamente impas- slvel, mesmo de manelra lndlreta; urn lnventarlo consclencloso deve-Ihes reservar compartlmentos em branco, em n11mero indlscutlvelmente mals elevado que 0 dos compartlmentos em que nos sentimos capazes de registrar alguma coisa. Impoe-se uma primeira constatal;ao: a diversl- dade das culturas humana.s e. de fato no presente. de fato e tambem de dlreito no passado. multo malor e mals rica do que tudo aqullo que dela.s pudermos chegar a conhecer. Mas, mesmo tomados por um sentlmento de humildade e c~nsclas desta I1mitar;ao, encontramos outros problema.s. 2 que se deve en~ I' culturas dlferentes? Certas culturas parecem se-Io, mas se por urn lade partem de urn tronco comum. POl' outro. nao dlferem como dua.s 50cledades que nunc a tlvessem mantido relal;oes no decorrer de seu· de- senvolvimento. Asslm, 0 antigo imperio dos Incas no Peru e 0 do Da- homey na Africa dlferem entre sl de modo alnda mals absoluto do que, dlgamos. a Inglaterra e as Estados Unldos contemponineos; se bem que estas duas socledades devam tamhem ser tratadas como socledades dls- tinta.s. Inversamente, socledades que entraram recentemente em contato bem intimo parecem of ere eel' a Imagem da mesma clvlllzal;ao,. alnda que tenham a! chega,do POl' camlnhos dlferentl~s, que nao temos 0 dlrelto de negllgenclar.!Exlstem nas socledades humanas. slmultaneamente em elaborar;ao, forr;as trabalhando em dlrel;oes opostas: umas tend em a manutenl;1io, e mesmo a acentual;ao dos partlcularlsmos; as outras agem no sentldo da convergencla e da aflnldade. 0 estudo da I1nguagem ofe- rece exemplos notavels destes fenomenos: asslm, ao mesmo tempo que Hngua.s de mesma origem tendem a se dlferenclar umas em relar;ao as outra.s (como 0 russo, 0 frances e 0 Ingles) linguas de orlgens varladas, 'roa.s faladas em terrlt6rlos contlguos. desenvolvem caracteres comuns:
  • 3. /pfJtj; ,1 /. t7il flV j(J/ 5 1')' ,J p1V 4" 1j;iI v 5 / f~/P(dl ,LPC5} {1 51l ?t1 V I ~ol'fII por exemplo, 0 russo, sob certos aspectos, diferenciou-se de outras Jinguas ~ fI'i f)1 eslavas, para se aproximar, 0.0 menos por certos tracos foneticos das . {griO lInguas fino-ugrlcas e turcas faladas em sua ViZinlJanr;~ geOgrafica'ime- ,fJ diata. Quando se estudam tais fatos - e outros dominios do. civilizaeao, como as institulr;6es socials, a arte, a religHio forneceriam facilmente exemplos similares -, chega-se a perguntar se as sociedades humanas nao se definem, levando-se em con to. suas relar;6es mutuas, por um certo optimum de diversidade para alem do qual elas nao poderlam ir, mas abaixo do qual tambem nao poderiam descer sem perigo. Este optimum variaria em fmeao do numero das sociedades, de sua impor- tfmcia numerica, de seu afastamento geogr:ifico e dos meios de comu- nicar;ao (materiais e intelectuals) de que se servem. Com efeito, 0 pro- blema do. diversidade nao Ii levantado apenas a prop6sito de culturas encaradas em suas relar;6es reciprocas; ele existe tambem no seio de cada sociedade, em todos os grupos que a constituem: castas, classes, melos profissionais ou confesslonais etc desenvolvem certas diferencas as quais cad a grupo atribui uma importancia extrema. Pode-se pergun- tar se esta diversijicaciio interna nao tende a aumentar quando a so- cledade se torna, sob outros aspectos, mais volumosa e mais homogenea; este fol talvez 0 caso do. 1ndia antigo., com seu sistema de castas, tal como se desenvolveu em conseqUencia do estabelecimenLo da Ilegemonia ariana. Ve-se, portanto, que a diversidade das culLuras humanas nfw deve ser concebida de uma maneira estatica. Esta diversidade nao e a de uma amostragem inerte ou a de um catalogo frio. E inclubitavel que os homens elaboraram culturas diferentes por causa do afastamento geo- grafico, das propriedades particulares do meta e da Ignorancia que tl- nllam do resto do. humanidade; mas Isto s6 seria rigorosamente verda- deiro se cada cultura ou cada sociedade tivesse nascido e se desenvolvido isoladamente de todas as outras. Ora, este nao e nunc a 0 caso, a exce- r;ao talvez de exemplos raros, como 0 dos tasmanlanos (e la, tambem, POl' U11 periodo limiLado). Jamais as sociedades humanas estao s6s: quando parecem mals separadas, alnda 0 e sob forma de gntpOS ou feixes. Assim, nao Ii exagerado supor que as culturas norte-americanas e sul-amerlcanas tiveram seu contato rom pido com 0 resto do mundo clurante muitas dezenas de milhares de nnos. Mas este grande fragmen- to da humanidade clestacada, consistia numa multidao de sociedades, glandes e pequenas, que tinham entre si contatos muito estreitos. ·E, 0.0 lade das diferenr;as devidas ao Isolamento, existem aquelas, tambem multo Importantes, devidas it. proximidade: desejo de se oporem, de se distinguirem, de serem elas mesmas. Muitos costumes nasceram, nao de alguma necessidade inLerna ou acidente favoravel, mas apenas do. von- tade de nao permanecer atrasado em relaCao a' um grupo vlzlnho, que submeLia 'a normas precisas um dominio de perisamento ou de atlvidade, cujas regras ainda nao se havia pensado em ediLar. .por conseguinte, a ' diversiclade das culturas humanas nao nos deve leval' a uma observa<;ao fragmentadora ou fragmentada. Ela e menos fun<;ao do isolamento das grupos que das relac6es que os unem. . (' . . .' . , <.- ,-~~.,.-J.I.' J'_! ,_.V' iJ,_-__"'),A. .••.)- ,--- __ .:,..." ..~. 't,'.,t... b~ .. . [., J j.--- 0 ' . I -'. . '-'0 t~"KI'V),-,~~'.l~~:' VJI'3~I·I;-t '.J..,,} ~', Ci_'~J:~-.f..¥"t0 l.v" f~ ,''''., {" I)l c , ,~/' -) . l~ ; v. -" ~." • ',-y_ AJ ('. •.•. ',I.•.;r<, ,:)'Vv..<.:>- ~ , ~ } f I I .. tAl.vCA':'" .:~ l"i)"t{:V-~-f..V----'t~l .j.. "':J -';,.,1~ (:. ' ('j,f" ,')-.J_, . a E.I{NOCENTRISMO '~Y'-' ,.., " E contudo, parece que raramente a diverslda_d~_ d.as ~~I~.uras mos- trou-se aos homens tal como ela e: um fen6meno natural, resultantp. das rela~6es. diretas .0L1ndtr..~t.a~u~ntre..:-as"-;oCiedide~;. ~hi-'se niSto'sem- p~;;:;a ..es~ecie de monstruosidade ou escandalo. Nesses assuntcs, 0 progresso do conhecimento conslstiu menos em disslpar esta ilusao em beneficio de uma visao mais exata do que em aceitar ou encontrar 0 melo do resignar-se a cIa, A atitude mais antigo., e que se basela Indiscutlvelmente em fund 0.- mentos pslcol6glcos s611dos (ja que tende a reaparecer em cada urn de nos quando nos situamos numa situaeao inesperada), consiste em reI:'U- dial' pum e simplesmente as formas culturals: morals, rellgiosas, socials, estetlcas, que sac as mals afastadas daquelas com as quals nos identl- ficamos. "Habitos de selvagens", "na minha terra Ii dlferente", "nao se deverla permltlr isto" etc, tantas reae6es grosselras que traduzem esse mesmo calafrlo, essa mesma repulsa dlante de manelras de vlver, crer ou pensar que nos sac estranhas. Asslm, a Antlguldade confundla tudo o que nao participava do. cultura grega (depois greco-romana) sob a mesma denomlnacao de barbaro; a civlllzaeao ocldental utillzou em se- gulda 0 termo selvagem com 0 mesmo sentldo. Ora, subjacente a €sses epltetos dlssimula-se urn mesmo julgamento: e provavel que a palavra barbaro se refira etlmologlcamente a confusao e a Inartlculaeao do can- ~ --_.------_._--_. .'". _ .. -. ..- ..... - -.- .._._-.~ to d~ opostas ao valor signiflcante do. Ilnguagem humana:''e ~ -_.~----._------_._---- .._---._-.._---------_._-
  • 4. selvagem, que quer dlzer "da selva", evoca tambem urn genero de vida a~~ por oposl<;1io a cuit"iir'illiUmana::- Em ambos os casos, recusambS- admltlr 0 pr6prlo fate da dlversldade cultural; preferlmos lan<;ar fora da cUltura, na natureza, tudo 0 que nao se conform a a norma sob a qual se vlve. Este ponto de vista In~enuo, mas profundamente enralzado entre a malorla dos homens, nao preclsa ser d~cutldo, pols esta brochura _ bem como as outras desta c?le<;flOl - procUl'a justamente refuta-lo, Ba's- tara observar aqul que ele contem urn paradoxo bastante slgnlficatlvo. Esta atltude de pensamento, em nome do, qual os "selvagens" (au todos aqueles que se convencionou' conslderar como tals) sac excluldos da )lUmanldade, e justamente a atltude mals marcante e dlstlntiva destes pr'6prlos selvagens. Com efelto, sabe-se que a ~gsaQ __ de_,hllmanlc!ade, en- g~~bando, sem dlstln<;ao de ra<;a ou clvlllza<;ao, todas as formas da-e~-- ,peele humana, ~'mUlto Jecente ,e.d.e -expansiio iimitada. Mesmo ondeela parece terJlt1ngido s~.!! __ desenvolvhn~~toII1als elevado, nao e certo, de modo algum - como a hlSt6riai-ec~nte 0 mostra - que n[o estejasu::~ ---1fltlnC~qmvoCOSI:m· regressoe!:.Miis para. V:i.:stas frac;oes da especle liu- ,r', mrorlt-lfCiUrIl.nt-e--"tl~nlIS·de 'mllenlos, esta no<;ao parece estar totalmente ausente. A humanldade cessa nas frontelras da tribo, do grupo I1ngiiis- tleo, as vezes mesmo do, aldela; a tal ponto, que urn grande mlmero de popula<;6es dltaS prlmltlvas se autodeslgnam com urn nome que signl- fica "os homens" (ou as vezes - dlgamo-lo com mals dlscrl<;fio? - os "bons", os "excelentes", os "completes"), ImplirAnrlo A~~im Que A<;outras trlbos, grupos ou aldela's nao partlclpam das vlrtudes 011 mesmo da na- tureza humana, mas sao, quando multo, compostos de "maus", de "mal- vados", "de macacos da terra" ou de "ovos de plolho". Chega-se freqUen- temente a prlvar 0 estrangelro deste ultimo grau de realldade, fazendo 'dele urn "fantasm a" ou uma "aparl<;1lo"., Asslm se realizam sltuac;6es curlosas, onde dois Interlocutores se repIlcam cruelmente. Nas grandes Antllhas, alguns anos ap6s a descoberta da America, enquanto os espa- nh61s envlavam comlss6es de Investlga<;1io para pesqulsar se os Indlgenas t1nham ou nao uma alma, estes ultlmos dedlcavam-se a Imerglr brancos prlslonelros, a flm de verlflcar, ap6s uma vlglJla prolongada, se seu ca- , daver estava ou nao sujelto a putrefac;ao.· Esta anedota, ao mesmo tempo barroca e traglca, radoxo do relatlvlsmo cultural (que encontraremos em -------.c.. '":":. -- ----. 1 Refere-se a cole<;ao citada na nota da p. 328, (N, TJ. lJustra bem 0 pa,- outros lugares sob olltras formas): e na medida mesmo em que se pretende estabpl~cer u~ISCl'1mlnaQaoen tre -as--c~it u-~~ e- os~o;t~es;-qu e nos -Iden tlflca- mosmalS completamentecom-osqiie se-preteiidenegar:Ao~eOllBB.r·a ~ctadeaosqueparecemOS::-;-najs--;ts~Yige~~barba~e seus 1-eprese!1!!:Ilt_e§,.l:!-I1enasse tomaJmprestadO-UIna---de-sull.8-Qtltudes-ilP1Sts~ o barbaro e Inicialmente 0 homel!!-queJlcredita~U_arb.atl.~2 .. ----rnaiSctitivelmente, os grandes sistemas fIIos6flcos e reUglosos da hu- manidade - trate-se do Budlsmo, Crlstlanlsmo ou do Islao, das dou- trinas est61ca, kantlana ou marxlsta - se colocaram constantemente ,contra esta aberra<;ao. Mas a simples pl:oclama<;ao da igualdadc natural entre todos os homens, e da fraternldade que deve uni-Ios sem distin<;ao de, ra<;a ou cultura, tern algo de decepclonante para 0 esplrlto, pols ne- gllgencia uma dlversidade de fato que se itnp6e a observa<;ao, e da qual nao basta dlzer que 'nao afeta 0 fundo do problema para que sejamos te6rlca e pratlcamente autorlzados a nos comportarmos como se ela nao exlstlsse. Asslm, 0 preambulo da segunda declara~ao da UNESCO sobre (J problema das ra<;as observa, judiclosamente, que 0 que convence 0 ho-' IIlem comum que as ra<;as exlstem e "a evldencla ImedliiUniesmIsSeill[- d~uando percebe slmultaneamenlL~_~f_~lca.!1ol _.~' ·e~!Cl.p'_e~,~~in asiatlco e urn ind_i.?..J!l1~E~an~~ AS grandes declara<;6es dos dlreltos do homem tern tamMm elas esta for<;a e esta fraqueza: enunclar urn, Ideal que raramente atenta para 0 fato de que 0 homem nao reallza sUa natureza numa humanl- dade abstrata, mas ~turas tradicf0riii]5.-eujas muaaii~iis- iismals ,r~vofticlOllifrI9.s-Qelxafu siibs1SHr --aspectos .Int:i6fos e se'expii6am a sl mesmas em fuii~fio de-Uiii~-situa;!ib estriiamente: definida no tempo e ....--- " "~-._-- .." - . ,.,'" .. .... - _ ~. np espa<;o,TC016cAtlb' entre a dupla tenta<;ao de condenar experlenCias. que 0 ferem afetlvamente e de negar dlferen<;as que nao compreende in- telectualmente, 0 nQmem modernO--entreKQ_U::~~_!!,,~entenas _d!l, especula- t;oes Jl1~~~f1c~~~~..'?cl.91()glca:;,-p~x:!J._.chegar:. ~_acordos Inl1teis e~tr~' est~s ( p61QLcon~rl;qlt6:~os, e eXI;llic,ar_a, _diversldade das cUlturas, procurando supr!mlr 0 que ehL,tem para ele de escandaloso e chocante" , • Mas-:PQr'mals dife-;e~tes - e is vezes biza'i-i-as que passaro ser, todas essas especula<;6es se reduzem de fa to a uma unlca recelta, que se pode melhor caracterlzar com 0 termo )~ismo. Em que conslste? Mals preclsamente, trata-se de 'uma tentatlva ae-s@rJrnir_ R. dlversl- .-------~-._-P_.----_.- --..- 2 Ver a Interessante dlscussiio desta passagem por Raymond Aron: "Le Paradoxe du meme et de I'autre" em Jean Poumon e Pierre Maranda, eds" tclIanges et communications, vol. II, p. 943-952.
  • 5. clacle das culturas, fingindo I econhcce-la plenamente. Poi:; flO tratar os dlferentes -estados em que se encontnun as sociedacles humanas, tanto antigas quanto longinquas, como estagios ou elapas de Ulll clesenvolvi- mento unico que, pm'lindo do'mesmo ponto, deve faze-Ius convergir para a mesma meta, ve-se bem que a diversidade e apenas nparente. A hu- manidade se toma unica e identica a si mesma; s6 que esta unidade e identidade se pod em realizar progressivamente, e a variedade das cul- turas ilustra os momentos de urn processo que dissimula uma realidade mais profunda ou atrasa sua manifestal;ao, Esta definil;ao pode parecer sumaria quando recorclamos as imensas conquistas do Darwinismo. Mas este nao esta. em causa, po is 0 evolu- cionismo biol6gico e 0 pseudo-e~olucionismo que consicleramos aqui sao cloutrinas bem dlferentes. A primeira nasceu cOmo uma vasta hip6tese de trabalho, fund ad a em observal;oes onde a parte deixada a interpre- tal;Ro e muito pequena. Assim, os diferentes tipos que constituem a ge- nealogia do cavalo podem ser dispostos numa serie evolutiva por duas razoes: a prime Ira, e que e preclso urn cavalo para gerar um cavalo; a. segunda, que camadas de terreno sllperpostas, pOItanto hlstorlcamente cada vez mals antigas, contem esqueletos que varlam de modo gradual desde a forma mais recente ate a mals antlga. Toma-se asslm alta- mente provavel que 0 Hipparion seja 0 verdadelro ancer.tral do Eqll1ts caballus. 0 mesmo raclocinio se aplica Indtsclltivelmente it. especle hu- mana e as ral;as. Mas quando se paSsa dos fatos blol6glcos aos fatos de cultura, as colsas se complicam slngularmente. POOem:Se-recolher obje-·. tos mateIlais no-solo;, e· c(m~tatar qUe, de acordo cOm a profundidlicle elliScamadas geoi6g1cas;& f6rma"oU-a tecnica de fabrldi~ad de uni certiJ tipoae_~,~J..2!L~rla' "Pr-'og;;;~iv~~eiIt~.E, contudo, um inacf1ado ri~o -.-- --"_' .__"__0_..' gem fisicamente urn machado, como o'ffiz um animal. Dlzer, neste ulti- mo caso, que urn machado evolulu a partir de um outro. consLitui p2,!:tanto ~J6rmula.....metaf6rica ',e'!i.'iiroximatlva,-aegproVlda 'do rigor clen,tifico q~e,~e. vincula a expressao slmiiar apilcada. aDs f'enomerios biol6glcos. 0 que e verda de para objetos materials cUja present;a flslca ~a no solo, em epocas determlnavets, 0 e, alnda mals, para as instltull;oes, as crent;as, os gostos, cujo passado nos e geralmente des- -, conhecido. A Jl.OCaa.Jl.e.-.eYQlur;ao biol6glca corresponde a uma hlp6tese dotada de urn dos mats altos coeflclente;- ci; 'p;~ba:billdadi-qu~ se pod~m en~6ntrar no-dominlodas'Cl~ncias nahirals; ao passu que a nor;ao de ~~ao social Q.U....Cuitur~I1 ..~.Q_lr,g~, ..n(),maxlmo, urn procedlmento sedu- tor, mas perigosamente camodo, de apresental;a~ dos fatos . .. -------------._--- -.- - - De outro modo, esta dlferenc;a, multo freqilentemente negllgenciada. entre 0 verdadeiro e 0 falso evoluclonismo, expllca-se por suas respec- tivas datas de aparecimento. 8em duvlda, 0 evolucionlsmo sociol6gico devia receber um impulso vlgoroso do evolucionlsmo biol6gico; mas ele Ihe e anterior no tempo. 8em remontar ate as concepl;oes antlgas, reto- madas por Pascal, assimllando a humanldade a- urn ser vivo que passa por estaglos sucessivos da infancla, adolesce'ncia e maturidade, e ~o seculo XVIII que se veem florescer os esquemas fundamentats que se: ao, logo em segulda, objeto de tanta:; manipulac;oes: as "esplrals" de Vico, suas "tres idades", anunclando os "tres estados" de Comte, a "escada" de Condorcet. O~_dgl&--funQadores._do, evoluclonlsIIlo .socl.ll:l,__ ~penc~,r_ e ,- Tylor, elaboram e 'publlca~ sua doutrina antes de A origem da: especies, ( ou'semter lido esta 'obra. Anterior ao evolucionlsmo biol6glco, teor1a den1mc~:"0~_ucio!!i~m9=::SOClaUrmuitoJr~q~:nt=~en~~~_~~as.!'_ ma~ quilagem falsamente ci~tif~~::l...d,f:l_ UlIl."vf:ll!?-() proble~a _~1!OS~t.l~?, .~ra .0 (juaInao exlSte-qualquer certeza de que a observal;ao e a mdut;ao pos- sam algtun<:TIa-fOrnece-r--a-· chave." - - .- - ._~- I -----------.--.- ..... - / 8ugerlmos que cad a socieda,ge. pode,. s~~undo .. ~~u-E~t.? __ ~~_:,..!.s~a pr6- prio, r§l..artil:.~i~m tr~s categorias: asq~e sac su~, ~onte~- P.9r:.~p'~:g;, jll.3.S..sltuarl.l!.Lfm.._QUtr!UJ.a.!}e'~ .glo~)Q; as que s~ ml1~~festa- ram ap~~xlml;l~,~~t~ no mesmo espal;o, mas qUe g; precederam no te~po; enflm, as que exlstiram slmultaneamente num terppo anterior ao seu e num'esp~~o difei'efitedaquele onde_s_e~~1!~: Vi~~~~. q~~-~stes--tres" gnlPos' ~§.o multo deslgualniente cognoscivets. Para 0 casu do ultimo, e quando se trata de culturas sem e,scrlta, sem arqultetura e com tecnlcas rudlmentares (como e 0 casu para a metade da terra habltada e para 90 a 99%, segundo as regloes, do lapso de tem- ]:0 deconldo desde 0 comet;o ela clvlIlza~ao) pode-se dlzer que nada podemos saber delas. e tudo 0 que se tenta imaginar a seu respeito se reduz a~p6t~ses gratultaii) Em compensat;ao, e extremamente tentador procurar estabelecer, en- tre cUlturas-do primeiro grupo:relat;oes equlvalentes a uma '(jrdeiii de
  • 6. suce.~~~_':IllPO, Como e que so ' d d .' da eletJicidade ~ oa maquin cle a. es contcmporaneas, ignorantes a a vapor, nao evocariam f dente do descnvolvimento da c' 'I' .., a ase correspon_ IVIIza~ao oCldental? C - tribos Ind!genas sem escrl't ' , . omo nao comparar , a e sem metalurgia t' , , paredes rochosas e fabricanclo Ilteno'I' d ,mas la~ando flguras mill, • .,1 !Os e pedla com f' calcas desta mesma c1vlliza~ao cujos vest! . ' as 01 mas aT- da Fran~a e da Ese.anha atest' '. ~IOS, encontrados nas grutas . , am a S1JmJandade? F' , o. falso ev.olucionismo se descnvolvl'u livre t' __ ~~.~~retudo, que (j'----_ . men e, E, contuGo:---es~ seGuwr; ao--qullLnoS_ahandonamos 'qu- . ,. ., ' ~~ Jugo temos ocasiao (0 viajante ocidental as. e nreslstlvehnente cada vez que "idade m'd' ". nao se compraz em encontrar a. e la no Onente, 0 "seculo de Lufs X " . da prime Ira guerra mundial "a 'd d d IV na PeqUlm de antes Austnilia ou da Nova Gui "?) I, a I' a P?dra." entre os indigenas da nhece ne, , e extraord1l1anamente pernicioso. Co- sao ta:~: :~::s ncertos aspectos das civillzac;6es desaparecldas, e estes derada, pois os as~:~:~s::n~ueac~~~ m~ls antiga for a c1vil1za~ao consi- sob reviver it destrUi~ao do t s sac apenas aqueles que PUderam tllma,r--.!1 parte r;elo todo empo. Portanto, o-precedimento «0!1_~!,~!e em ---- =-R_.cOnr:lulr, pelo. fato de que cert -"t- de dua!> .. civiIiza~6es (uma atual ~--, ' . " . . os aspecLos 1h ' .. , '-: ., ..()!!,tra ,desapareclda) oferecem s . .an~as R..~tencia de analogia de tod -, ' .. L, , _. eme- este modo d '---;-, ---;.- . os os aspectos, Ol'a. nao arenas ;; d- ,,~, ra_cI.ocma_~ e. loglcamente insustentavel, mas em born mime- ,e casos e __ ~~~!llentldo pelos fatos. ---.__.. - .. _----- -- "Ate uma epoca recente, os tasmanlano _ trtJmentos de pedra talh d . s e os patagoes possufam ins- alnda as fabrlcam Ma a a, e certas tnbos australlanas e americanas pouco p . s 0 estUdo desses instrumentos nos ajuda multo ,ara compreender 0 uso dos utensfllos da epoca paleolitlca C ::r~~:I~~:IS~a~U:a::s~~r:S:C:dt~I;;::~ ~~j;a;~~~~~~a~e:;~~~c:~:~: mesmas durante cern Ou duzentos mil estendia da I It. anos, e num territ6rio que se s' ng a erra ,a ~fnca do -SuI, oa Frani;a a China? Para' ue d ervlam as extraordinarias pec;as levalloisianas, triangUlares' e aChaia- as, que se encontram . st. co~segue ex r ? a cen en as nas jazldas e que nenhuma hipQtese pIcaI'. Que eram os pretensos "bast- 0 osso de rena?' .oes e comando" em sianas que d' . Que pooena tel' sloo a tecnologla das clllturas tardenoi- , elxaram urn mime . , talhaoa d 1'0 mcnvel de pequenos peda~os de pedra " ,I' formas geometrlcas infinitamente diverslficadas mas .t poucos utensillos na medlda da _ I ,mUl 0 mostram que exlste sem duvld mao 1Umana? Todas estas Incertezas . . a uma semelhanc;a entre as socledades r a leolrtlc3S_e --~~ta.s-socie.9~ndfgenas contemporaneas: elas 's€'~s~;-~' _________ __ .. . 0.--_- ,y~~~mentas de pedra talhada. Mas, mesmo no plano da tecno~ ldgia, e dificil ir altm: a elabora~ao do material, os tipos de instrumen- ; tos" sua destina~a.o, portanto, eram diferentes, e uns nos ensinam pouco sobre os outros a este respeito. Como, portanto, poderiam Instruir.nos; SOble a linguagem, as institui~6es sociais ou as crenC;as religiosas? " Uma das interpreta~6es'nals populares, entre as que se inspiraram no evolucionismo cultlfral, trata as pinturas rupestres - deixadas pelas sociedades do paleolitico medio - como figura~6es maglcas ligadas a. ritos de ca<;a. A marcha do raclccinlo e a seguinte: as popula~6es pri~ mltivas atuais tern ritos de ca~a, que nos parecem freqiienteinente desl- providos de vaior utilltario'; as pinturas rupestres pre-hist6rlcas, tanto pelo seu numero como pOl' sua situa<;ao no mals profundo das grutas~ I parecem-nos sem ;valor utilitario; seus autores eram ca~adores: portan1 to, servjam a ritos de ca~a. Basta enunciar esta argumenta~ao impllCitrt para apreciar-Ihe a inconseqiiencia. Ademais, ela e mais comum 'entre oS nao especialistas, pois os etn6grafos, que tern a experiencla dessas p02 pula~6es primitivas que suportam as mais variadas interpreta~6es pot parte de urn canibalismo pseudo-cientiflco, pouco respeitoso da integri~ / dade das culturas humanas, estao de acordo para aflrmar que nada 'no~ fatos observados permlte formular uma hip6tese qualquer sobre os' do:' cumentos em questao. E porque falamos aqui das pinturas rupestre~, assinalaremos que, it exce~ao das pinturas rupestres sUl-africanas (qu~ alg uns consideram como obra de indigenas recentes), as artes' "primi'~ tivas" estao tao afastadas da arte magdalenlana e aurlgnaciana quanto da arte europeia contemporanea;2pois essas artes se caracterizam par urn grau muito alto de estiliza<;ao, indo ate as mals extremas defor .•. ma~6es, enquanto a arte p.re-hist6rica oferece um realismo surpreen~ dente. Podemos ficar tentll:dos a vel' neste liltlmo tra~o a origem da arte europeia; mas mesmo isto serla inexato, ja que, no mesmo territ6riQ, a arte paleolitica foi seguida pOI' outras formas que nao tinham (J mes~ mo carateI'; a contlnuldade da localiza~ao geograflca nao alter a em nada o fate de que, no mesmo solo, se tenham sucedido populac;6es diferen- tes, Ignorantes ou descuidadas das obras de seus antecessores, e tra- zen do, cad a urn a, cren<;as, tecnicas e estilos opostos. ,felo estad2...~ suas civiliza~6es, a America pr~-colombiana, na ves- •••• --.~ .•• ~.-~ __ •• ~~~_ ._ ••• ••• "_ - "._. o. pera de sua descoberta, evoca 0 periodo neolitlco europeu. Mas tamberil esra--assimiIa~ao naoresiste-a-;~ -~;~;;~: -~~-E~r~pa, aagricultura e a domestlca~ao dos animals san concomitantes, ao passe que na America
  • 7. urn desenvolvimento extraordinario da prlmeira se acompanha de uma Ignorancia quase comp"leta (ou, em todo caso, de uma extrema limlta- c;ao) da ultima. Na Ameiica, a ferramenta litica se perpetua numa eco- homia agricola que, na Europa, esta associada aos prim6rdios da me- talurgia. E inutil multi plical' os exeIiplos. pois}is tentati~as feitas para co- 9,hecer a riqueza e a originalidade das"'cuILuras humanas"e" para fe:lu- zl.ias ..ao-esta"!l9_d,L~..Pl~~:djSlguaimei:ite :itrasactas da civilizac;ao c1ciciental,-.se .chOCaBL.C9.m_OtltX.lL~i!!;~idade, iniiito mals profunda: em geral (com excec;ao da America, sob~~ j;.·-q~~i voit~re;;os) todas. as 150- . - _._--------- . ------ cledades humanas tem par fias de 151 um passado que e aproximadamente da mesma ordem de gr~ndeza:. Para·tratar certas sociedad~s- como "eta- pas" do desenvolvimenU;cte-outras," serla preciso admitir que, lIn"quanto para estas ultimas acontecia alguma coL~a, para asoutras nada aconte- cIa - ou pout~s .coisas. E, com efelto, fala-se facilmente dos "povos sem hlst6ria" (para ·"dizer. as vezes que sap os maL~ felizes). Esta f61mula eliptica significa apenas que sua hlst6ria e e permanecera desccnhecida, oao que ela nao exista. Durante dezenas e mesmo centenas de mllhares de anos, )a tambem, houve homens que amaram, odlaram, sofreram, inventaram, combateram. Na verdade, nao exlstem povos infantes; todos sao adultos, mesmo os que nao mantlveram um diario de sua inffll1cia e adolescencia. Poder-se-ia, sem duvida, dizer que as soclcdades humanas utiliza- " ---..:...-." ,.-' "" ra~l~~,:sig~almente um tempo pass ado que, para algumas, terla sldo, m~mD,-.tempo_pe}~la6;-qtie~ljmas·a.Qertavam 0 passo, enquanto outras gaz_ete_~,.Yam. pclocaminho, c'hegar.se.i~,·~issim, a distingui~ ·-~~t~e dUM especies _de_Jli~t6ria: uma hi~t6ria - p-rogre~slva, aqulsitiva, que acumula os achados e invenc;6es para construlr glandes civili;lRc;oes, e uma outra hist6Iia, ta!,ez igualmente ativa e utilizan,lo nao men or talento, mas a qual faltaria 0 dom slntetlco, que e prlvllegio da primeira. Cad!!. inova-=-" <;10, ao in~~~ de vir j ~~~;'--;e.. i~. inovac;oes antcriurcs. oricntaam;-no --mesmo sentidci:·se-cH:SsOlveria numa especie de fluxo onciulante, que nao 5he~"::~!.~~::::i1~E:.~~~~e ..~I~:6tar duravelmente da dire<;ao primitiva. Esta concepc;ao nos parece mais fle:dvel e matizada que as vis6es sim- pllstas que expusemos nos panigrafos anteriores. Podemos atribuir-lhe urn lugar na nossa tentativa de interpretac;ao da diversidade das cui- turas, e isto, sern ser injusto com nenhuma. Mas, antes, e preciso exa- minar inumeras quest6es. Devemos considerar Inicialmente as eulturas pertencentes ao s~- gundo grupo que distinguimos: as que precederam historicainente a cul- tura _ qualquer que seja - sob cujo ponto de vista nos colOllamos. s~a situa~ao e muito mals complicada que nos casos ant:ri~rmente exa~ru- nados. Pois ?o hip6tese de uma eVOIUl;;aO, que parece tao ll1serta e fragll quando se utilizam, para hierarquizar, sociedades contemporaneas afas- tadas no espac;o, parece aqui dlficilmente contestavel e ate diretamen~e atestada pelos fatos. Sabemos, pelo testeniunho concordante da Arqueo- logia, Pre-hist6ria e Paleontologia, que a Europa atual foi Inieialmente habitada pOl' especies varladas'do genera homo, que se serviam de utcn- silios de silex grosseiramente talhados; que a estas primelras culturas se sucederam outras em que se rennou 0 talhe da pedra e depois e acom- panhou do pollmento e do trabalho em osso e marfim; que a~are~eram em seguida a ceramica, a teceJ::',gem, a agricultura e a domestr2a<;ao de animais, progre'ssivamente ~"sociadas a metalurgla, da qual tambem po- demos distinguir as etapas. portanto, essas formas sucessivas se orde- nam no sentido de uma "evoluc;ao e de um progresso; umas sap superio- res, outras, Inferiores. Mas, se tudo isto e vercladeiro, como nao aglrlam estas dlstin<;oes, inevitavelmente, sabre 0 modo pelo qual tratamos forma'!' contemporaneas, mas que apresentam entre si afastamentos an6.logos? Nossas eonclusoes anterlores poderlam, entao, ser questionadas par este " , novo angulo. ; Os progressos rea1indcs pela 11l1manidade de,de suas orjg~ns sao Uio manifestos e brilhantes. que qualquer tentativa para dlscutr-Ics se re::luziria a um exercicio de ret6rica. E contudo, nao e tao facll como se cre ordena-Ios numa serie regular e continua. Ha uns cinquenta an as 03 cie~tistas utilizavam, para representa-los, esquema"s de uma simplicida- de admiravel: idade do. pedra lascada, idacle da pedra polida, idade do cobre, do bronze, do ferro. Tudo isto e muito comodo. Smpeitamos atu~l- mente que 0 polimento e a talha do. pedi'a existiram as vezes ao mesmO tempo, quando a segunda tecnica eclipsa completamente a primeira, naO e como resultado de urn progresso tecnico que tivesse brotado esponta- neamente da etapa anterior, mas como uma tentativa para. coplar, em pedra, as armas e os utensilios de metal das civilizac;oes, sem duvlda
  • 8. mais "a vanc;adas", POI'em de fate contemporaneas de suas imitadoras. Inversamente, a cerfllnica, que se acreditava soliclaria da "idade da pe- dra polida", esla assoclada com a talha da pedra em certas regi6es do norte da Europa. Restringindo-nos ao periodo da pectra lascada, chamado paleolitlco. ·lembremo-nos que, ha apenas alguns an os atras, pensava-se que as dl- f~rehtes formas desta tecnica - caracterizancto respectivamente as in- f· . dlistrias "de laminulas", as indtistrias "de lascas" e as indllstrias "de "laminas" - correspondiam a um progresso hist6rico em tr es eta pas, que ·se denominavam paleolitico inferior, paleolitico medio e paleolitico su- ,peilor. Admite-se atualmente que essas tres formas coexistiram, consti- · tuindo-se, nao como etapas de um progresso de sentido unico, e sim · como aspectos ou, como se diz, "facies" de uma realidade nao-estatica, submetida a variac;6es e transformac;6es muito complexas. De fato, 0 ·Levalloisiano, que ja citamos e cujo florescimento se situa entre 250 e 70 milenios antes da era crista, atinge uma perfeic;iio na tecnica da ta- 'lha que s6 se pade reencontrar no fim do neolitico, duzentos e quarenta f e cinco a sessenta e cinco mil anos apos, e que nos seria bastante dificil reproduzi,' ntualmente. Tudo 0 que e valido para as culturas, 0 e tambem no plano das ra~as, sem que se possa estabelecer (POl' causa das ordens de glandeza diferenLes) nenhuma cOll'elac;iio entre os dois processos: na EUlopa, 0 homem de Neanderthal nao precedeu as formas mais antigas do Homo sapiens; estas foram suas contempor [lneas, talvez meslllo antecedentes. · E nao se exclui que os mais diversos tipos de hominideos tenham coe- xistido no tempo: "pigmeus" da Africa do Sui, "gigantes" da China e da Indonesia; e ate no espac;o, enl certos lugares da Africa. Uma vez mai~, tudo isto nao visa a riegar a r('a1ida~le de um pro- gressS' da humanidade, mas nos convida a concelJe-lo com mais pru- dencia. '0 desenvolvimento dos conhecimentos pre-hist6ricos e arqueo- 16gicos tende a desdobrar no espac;o fomms de civilizac;ao que erames levados a imaginar como 'escalonadas no tempo. Isto significa duas coisas: inicialmente, que 0 "progresso" (sc e que cstc termo ainda con- vem para designai' lumi. realidade bem diferente daquela a qual nOs dedlcarainos inicialmente) nao e nem necessario, nem continuo; procede pOl' saltos, pulos, ou, como diriam os bi610gos, por mutac;ues. Esses saltos .e pulos nao 'consistem em ir sempre alem na mesma direc;iio; acompa- ' nham-se de mudanc;as de orientac;ao, um pouco a moda do eavalo do xa:irez, que tem sempre divelsas progress6es a sua disposic;ao, mas nunc a no mesmo sentido. A humanidade em progresso em nada se parece com urn persona~em subindo uma esc:!<da,acrescentando por cada urn de s~us movimentos urn novo degrau a todos os outros que ja tivesse conqms- tado; evoca antes 0 jogador, cuja chance esta dividlda em mUitos dados e que, cada vez que as lanc;a, os ve se espalharem no pano, ocasionando contas bem difercntes. 0 que se ganha num lance se arrisca a perder no outro, e e apenas de urn tempo a outro que a historla e rumulativa, isto e, que as contas se somam para formar uma combina!;ao favoravel. o exemplo da America mostra de manelra convincente que esta his- toria cumulativa nao e privilegio de uma civilizac;ao ou de um periodo da hist6ria. Este imenso continente ve a chegada do homem, sem dll- vida em pequenos grupos de namades, que passavam pelo estreito de Behring grac;as its llitimas glaciac;6es, situadas pelos conhecimentos ar .. queol6gicos atuais provisoriamente ao redor do 209 milenlo. Durante este periodo, esses homens realizaram uma das mais surpreendentes demons- trac;6es de his tori a cumulativa acontecidas: explorando lnteiramente as recursos naturais de um meio natural novo, domesticando ai (ao lado de certas especies animais) as mais variadas especies vegetais para sua alimentac;ao, seus remedios e setis venenos, e - fato inedito em ou- tras regi6es _ promovendo substancias venenosas como a mandioca a condic;ao de alimento de base, au outras a de estimUlante ou anestesico; colecionando certos venenosou estupefacientes em func;ao de especies animais sobre as quais cada um deles exerce uma ac;ao eletiva; final- mente, levando certas indllstrias como a tecelagem, a ceramica e a tra- balho dos metals preciosos ao mais alto grau de perfeic;ao. Para ap':e- ciar esta imensa obra, basta medir a contribuic;ao da America as civill- za<;oes do Velho Mundo. Em primeiro lugar, a batata, a borracha, a ta- baco e a coca (base da anestesia moderna) que, par motivos diversOS, sem duvida, constituem quatro pilares da cultura ocidental; a milho e a amendoim, que deveriam revolucionar a economia africatla talvez an- tes de se generalizar no regime alimentar da Europa; depois, a cacau, a baunilha, 0 tom.ate, a abacaxi, a pimenta, diversas especies de feij6es, de algot16es e de cucurbitaceos. Enfirn, a zero, base da Aritmetica e, in- diretamente, das matematicas modernas, era conhecido e utilizado pelos Maias pelo menos rneio-milenio antes de sua descoberta pelos sabios hindus, de quem a Europa a recebeu atraves dos arabes. Talvez por est a razao, seu calendario era, na mesm? epoca, mais exato que a do Velho Mnndo. A questao de saber se a regime politico dos Incas era sccialista au totalitario .ia fez correr muita tinta. De qualquer modo, provinha daS
  • 9. formulas mais modernas, e esta va :tlais adlantado diversos seculos que ()S fenamenos europeus do mesmo tipo. A atengao renovada recentemente sabre a curare, relembrarla, se fosse p:-eciso. que os conhecimentos ci:on- tlficos dos indigenas amerlcanos, que se dedlcam a tantas substanclas vegetais nao empregadas no resto cIa muncIo, ainda podem fornecer im- portantes contribuigoes a este. 6 HISTaRIA ESTACIONARIA E HISTORIA CUMULATIVA A discussao anterior sabre a exemplo americano deve-nos incitar a. levar alem nossa reflexao SQbre a diferenga entre "historia estaciona- ria" e "historia cumulativa". Se atribuimos a America 0 privilegio da historia cumulativa, nao e, com efeito, apen8.s porque the reconhecemos a paternidade de um certo nfunero de contribuigoes que the emprestamos, au que se parecem com as nossas? Mas qual seria nossa posigao na pre- senga de uma civilizagao que se tivesse dedicado a desenvolver valores proprios, onde nenhum fosse suscetivel cIe interessar a civilizagao do abservador? Este nao seria leva do a qualificar esta civiliza<;ao como es- tacionaria? Em outras palavras, a distin<;ao entre as duas formas de historia depende da natureza intrinseca das culturas as quais se aplica, ou resulta da perspectiva etnocentrica na qual sempre nos colocamos pam avaliar uma cultura diferente? Considerariamos, assim, como cumu- lativa toda cultura que se desenvolvesse num senticlo an~l1ogo ao nosso, isto e, cujo desenvolvimento fosse dotado para n6s de significac;:iio. Ao ]:'8.'SO que 8S outlas culturas nos pareceriam esLaclon{l!.ia~. n:1J necessa- riamente porque 0 sao, mas porque sua linha de desenvolvimento nada nos significa, nao e mensuravel nos termos do sistema de referencia que utilizamos. Que seja este 0 caso, isto resulta de um exame, mesmo sumario, das condi<;6es nas quais aplicamos a distin<;ao entre as duas hist6rias, nao para caracterizar sociedades diferentes da nossa, mas no pr6prio Intel ior desta. Esta aplica<;ao e mais freqiiente do que se acredita. As pessoas idosas consideram geralmente como estacionaria a historia que decorre na sua velhice, em opcsigao a hist6ria cumulativa que os anos mais jovens testemunharam. Uma epoca na qual nao estao mais aliva- mente empenhadas, onde nao tern mais papel ativo, nao tern mais Een- tido: nada se passa ai, ou 0 que se pasoa so Ihes ararece com caracte- ri.sticas negativas; ao passe que seus netos vivem este peliodo com todo a fervor que perderafn seus antepassados. Os adversarios de um regl~ politico nao reconhecem de bom grado que este evolui; c.ondenam-no em bloco repelinda-o para fora da historia, como uma especle de intervalo mons~ruoso somente no fim do qual a vida recome<;ani. Completamen- te distinta' e a concep<;ao dos partidarios, e se-lo-a tanto mais, e bom observar, quanta mais intimamentlc participarem e num grau .elevado, do funclonamento do aparelho. A historicidade ou, para ser mars exato, a riqueza em acontecimentos de uma cultura ou de urn proces.so cultural, sac fun<;ao, nao de suas propriedades intrinsecas, mas da srtu~gao em que nos encontramos em relagao a elas, do mlmero e da diversrdade de nossos inter esses, que nelas empenhamos. A oposi<;ao entre culturas progresslvas e culturas inertes parece, assim, resultar, inicialmente, de uma diferenga de focaliza<;ao. Para quem observa ao microscopio, que se "colacou" numa certa distancia m'eclida a partir do objetivo, os corpos situ ados aquem ou alem, mesma que 0 afastamento seja de centesimos de milimetros, aparecerao. con- fusos ou embagados, ou ate nao aparecerao: estao fora do campo de visao. Uma outra compara<;ao permitira revelar a mesma ilusao: a que se emprega para expllcar os primeiros' rudimentos da teoria da relati- vidade. Para mostral' que a dimensao e a velocidade de deslocamento dos corpos nao sac valores absolutos, mas fun<;6es da posi<;ao do obser- vador, lembra-se que, para um viajante sentado junto a janela de urn trem a velocldade e 0 comprimento dos outros trens variam .segundo esse; se desloquem no mesmo sentido ou num senti do contrario. Ora, to do membro de uma cultura e dela tao estritamente solidario como esse viajante ideal 0 e de seu trem. Desde nosso nascimento, nasso meio faz penetrar em n6s, atraves de mil prflcessos conscient:s e inconEcientes, .urn sistema complexo de referencias, consistindo em jUlzOS de valor, motlva- c;6es, centros de Interesse, compreendendo ai a visao reflexiv~ que a educa- c;ao nos Impoe do devil' historico de nossa civiliza<;ao, sem a qual esta ~e tornaria impensavel ou apareceria em contradi<;ao com as condutas reals. Deslocamo-nos literalmente com esse sistema de referencias, e as reall- dacles culturais cIe fOIIt s6 sac observaveis atraves das deforma<;6es que ele Ihes imp6e, chegando mesmo a colocar-nos na Impossibilidade de per- ceber 0 que quer que seja. Numa ampla medida, a distin<;ao entre as "culturas que se mexem" e as "culturas que nao se mexem" se explica pel a mesma diferen<;a de posi<;ao que faz com que, para nosso viajante, urn trem em mcvimento se mexa ou nao. Com uma diferen<;a, e verda de, cuja importancia apa-
  • 10. recent plenamente no dia longinquo, mas que ccrtnlllcnte Vlra, em que se procural a formular uma teoria da relatividacle, generalizada num sen- tido distinto clo cle Einstein, isto e, aplicando-se ao mesmo tempo as ciencins fisicas e as ciencias sociais: em ambas, tuclo parece se passar de modo simetrico, mas inverso. Pam 0 observador do mundo fisico (como mnstra 0 exemplo clo viajante), sac os sistemas evoluindo no mesmo sen- tbo quP 0 seu que parecem im6veis, ao passe que os mais r:'tpiclos sac os que evoluem em sentidos diferentes. 'Da-se 0 contr:'trio com as cul- turas, ja que nos parecpm tanto mals ativas quanto mais se d£slocam no scntido da nossa, e estacionarias quanclo sua orienta,fio clive!ge. Mas no caso das ciencias do homem, 0 fator velocidadc s6 tem um valor me- taf6rico. Para tornar a compara<;ao valida deve-se substitul-lo pelos de injormar;6.o e signijicar;6.o. Ora, sabemos que e possivel acumular multo mais informa<;oes sobre urn trem que se move paralelamente ao nosso e com velocldade parecida (pOl' exemplo, exal~lnar 0 rosto dos viajantes, conta-los etc) que sobre um trem que nos ultrapassa ou que ultrapas- samos com grande velociclade, ou que nos parece tanto mais curto se c1rcula numa outra dire<;ao. No f1m das contas, passa tao depre~sa que s6 guardamos dele uma impressao c:mfusa. de omle os pr6prios sign03 de velocldade estao ausentes; reduz-se a um turvamento momentaneo do campo visual; nao e mais um trem, nao signijica mais nada. Parece que ha, pOl·tanto, uma rela<;ao entre a no<;ao fisica de movimento apa- rente e uma outra no<;ao que provem igualmente da Fislca, da Psicologla e da Sociologia: a de qnantidade da injormar;6.o suscetivel de "passar" entre dois indlviduos ou grupos, em fun<;ao da major ou menor diversl- dade de suas respectivas cultmas. Carla vez que somos levados a qualificar uma cultum humana de inerte ou estacionnria, devemos. pOitanto, nos pcrguntar se est~ imobi- lisl1lo aparente nao re~;ulta da Ignorancia que temos de seus interesses verdaclciros, conscipntes ou inconscientes, e se, ten~lo criterios diferentes dos nossos, esta cultura nao e, a nosso resj:·elto, vitima da mesma lIusao. Ou soja, apareceriamos um ao outro como desproviclos de int.ere~se, mul- to simj:lesmcntc POI que nao nos parecemos. A civiliza<;ao ocidental se dedicou inteiramente, dpsde ht'l dois ou tres seculos, a colocar a disposi<;ao do homem meios mecanicos cada vez mais possantes. Se adotarmos este criterio, far-se-{L tla quantidade de energia disponivel per capita a expressao do malor ou menor grau de desenvolvimento das sociedades humanas. A civili,a,iio o-iclental sob SU3. forma norte-amerlcana ocuparii. 0 prlmeiro lugar, seguida pelas socle- dades europeias, sovietica e japonesa, vinclo a reboque uma massa de sociedades asiaticas e africanas, que logo se tomarao Indlstlntas. Ora, essas centenas ou mesmo milhares ae socledades que se chamam "Insu~ f1cientemente desenvolvidas" e "primitivas", que se fundem num con~ junto confuso quando encaradas sob a rela<;ao que acabamos de c1tar (6 que nao e absolutamente pr6pria para qualificii.-las, porque lhes falta esta linha de desenvolvimento ou seu lugar entre elas e bem secul1'"lariol, nao sao Identieas. Sob outras rela,oes, elas se situam como antipodas Ulnas das outras; segundo 0 ponto de vista escolhido, chegar-se-Ia, por- tanto, a c1asslficai;oes diferentes. Se 0 criterio usaclo tivesse sldo 0 grau de aptidao em triunfar sobre os meios geograficos mais hostis, nao hii. a menor duvida de que os es~ quimos, pOI' um laclo, e os beduinos, de outro, ganhariam. A india soube, melhor que nenhull1a outra civiliza<;ao, elaborar um sistema filosofico- religioso, e a China um genero de vicla, ambos capazes de reduzir as conseqlienclas psicol6gicas de. um desequilibrio demografico. Hi treze seculos atras a Islao formuloh 7 'uma teoria da soJidariedacle de todas as form as da vida humana: tecnica, econ6mica, social, esplritual, que 0 Ocidente s6 encontrou muito recentemente, com certos aspectos do pen~ samento marxista e com 0 nascimento da Etnologla moderna. Esta visao profetica permitiu aos arabes ocuparem um lugar proeminente na vida intelectual da Idade Media. 0 Ocldente, mestre das maquinas, tem co- nhecimentos muito elementares sobre a utiliza<;ao e os recursos desta maquina suprema que e 0 corpo humano. Neste dominio, ao contrarlo, bem como naquele outro conexo das rela<;oes entre 0 fisico e 0 moral, 0 Oriente e 0 Extremo-Oriente estao algun's milenios a sua frente; produ- zlram estas vastas sumas te6ricas e pnttlcas que sao a loga ,da india, as tecnicas de respirac;ao chinesas OU a ginastlca visceral dos antigos MaorI. A agrlcultura sem terra, ha pouco na ordem do dla, fol praticada durante muitos seculos pOI' certos povos polinesios, que tambem teriam podido ensinar ao mundo a arte da navegat;ao, mundo este que subver- teram profundamente no seculo XVIII, revelando-Ihe um tlpo de vicla. social e mnr~l mals livre e generoso do que tudo 0 que se podia f;US- peitar: Para tudo 0 que diz respeito 1l.organiza<;ao da familia e a harmoni- za<;ao das rela<;oes entre grupo familiar e social, os australian os, atra- sados no plano econ6mico, ocupam um lugar tao avan<;aclo em rela<;ao ao resto da humanidade, que e necessarlo, para compreender os sistemas de regras por eles elabolados de modo consciente e refJetldo, apelar para
  • 11. certas formas clas matematlcas modernas. Foram eles que verdacIelrll.- mente descobriram que as elos do casamento formam a talagan;a sobre a qual as outras insLitui~6es nao sao senao as borcIados; pais, mesmo nas sociedades modernas onde a paJ:;el da familia tencIe a se restrlnglr, a intensidacIe dos elos de famlJla nao e menor: ela se afrcuxa apenas num circulo mais estreito, em cujos limites outros elos, interessando outras famUias, vem logo substitui-la. A articula~ao das familia;> pOl' meio de inter-casamentos pode conduzir it forma~ao de amplas clJameiras entre alguns conjuntas, ou de pequenas charneiIas entre conjuntos muilo nu- merosos; mas, pequenas ou grandes, sao estas clJarneiras que mantem todo 0 edificio social e que Ihe cUio sua flexibilidade. De mocIo freqUen- temente muito lucido, os australianos fizeram a teoria deste mecanismo e inventariaram as principais metodos q·ue permitiriam reaIiZll-lJ, com as vantagens e as inconvenientes que se ligam a cacla urn. Ultrapassaram tambem 0 plano da observai;ao empirica para se elevarem ao conheci- mento de algumas leis que regem 0 sistema. Assim, nao e de modo ne- llhum exageracIo saudar neles, nao apenas os precursores de toda 60- cioJogia familial, mas ainda as verclacleiros introdutor es do rigor e~pe- culativo aplicado ao estudo dos fatos sociais. A riqueza e a audacia cIa inven~fro estetica dos melanesios, seu ta- lento para integral' nil. vida social os produtos mais obscuros da ativi- dade inconsciente do esplrito, contituem um clos mais altos cimos que os homens ji atingiIam nO~Eas clire<;6es. A contribui~ao da Africa e mais complexa mas tambem mais obscura, pais foi apenas recentemente que se come~ou a suspeitar de seu papel como melting pot cultural do Velho Mundo: lugar onde toqls as influencias vieram fundir-se para retomar sua march a ou se manter em reserva, mas sempre transforma- das em novos sentidos. A civiliza~ao egipcia, cuja importancia para Il. humanidade e conhecida, s6 e inteligivel como uma obra comum da Asia e da Africa; e as grandes sistemas politicos da Africa; e os gran- des sistemas politicos da Africa antiga, suas constru~6es juridicas, suas cloutr inas filos6ficas POI' muito tempo escondiclas dos ociclentais, sU80s ar tes pillsticas e sua mUsica, que exploram metadicamcnte todas as pos- sibilidades ofereciclas POI' cada meio cle expressao, sao outros tantos in- dices de um pasEado extraordinariamente fer til. Alias, este e diretamente alestado pela perfei~ao das antigas tecnicas cIo bronze e do marfim, que SU!ledtm de longe tudo a que 0 Ocidente praticava ncstes dominios nil. mesma epoca. Ja lembramos a contribui~ao amel icana, e e inutil in- sistir sobr 0 isto. Alias, naa sao espeeialmente est as contribul~6es parcel ares que de- vem reter a nossa aten~ao, pais corriamos a risco de ficar com a liit~la, duplamente falsa, de uma civi1iza~ao mundial composta como um roupa de Arlequlm. Cogltou-se demaslado acerca de todas as prioridades: fen[- cia para a escrita; chlnesa para 0 papel, a p6lvora -de canhao, a bUssola; hindu para a vldro e 0 a~o ... elementos sao menOs importantes que 0 modo pelo qual cada culture. as agrupa, retem ou exclui. E a que faz a origlnalidade de cada uma delas esta antes nil. sua manelra particular de resolver problemas, de perspectivar valores, que sao aproximadamente os mesmo para tad os os homens: pais todos as homens, sem exce<;ao, possl1em uma Jinguagem, tecnlcas, uma arte, conhecimentos positivos, cren~as reJigio"sas, uma organiza~ao social, economlca e poUtlea. Ora, essa dosagem nunca e exatamente a mesma para cad a cultura, e, cada vez mais, a Etnologla moderna dedica-se menos a erlglr urn inventario de tra~os separados, do que a descobrir as orlgens secretas dessas op~6es. Talvez se formulern obje~6es contra uma tal argumenta<;ao, par caU- sa de seu carateI' te6rico. };: possivel, dir-se-a, no plano de uma 16glca abstrata, que cada cultura seja cap·az de tel' jUlgamento verdadeiro so- bre outra, ja que uma cultura nao pode fugir de si mesma e que sua apr,cia~ao, fica, por conseguinte, prisioneira de urn relativlsmo sem recur~ so/M.as olhem ao seu redor; sejam atentos ao que se passa no mundo ha urn seculo, e todas as s'uas especula.~6p.s desmoronarao. Longe Cie f1carem encerradas em si mesmas, todas as civl1lza~6es reconhecem, uma apos outra, a Sl1periorldade de uma dE)las, que e a civl1lza~ao acid ental. Nao vemos todo 0 mundo tomar-lhe emprestado progresslvamente as tecnl- Fas, seu genero de vida, suas distra~6es e ate .suas rou~as? D~ mesmo modo que DI6genes provava 0 movimento cammhando, e 0 proprio ca- minhar das culturas humanas que, desde as vastas massas da Asia ate as tribos perdidas na· selva brasilelra ou africana, prova, pOl' uma ade- sao unanlme sem precedentes nil. hist6ria, que uma das form8os da civi- lIza~ao humana e superior a todas as outras: 0 que as paises "insufi- cientemente desenvolvidos" censure.m aos Qutros nas assemblelas inter-
  • 12. nacionais, nao e que os estejam ocidentalizando, mas de flao lhes da- rem, com bast ante I apidez, os meios de se ociden(alizarem. ','Tocamos aqui no ponto mais sensivel de nosso debate: de nada adiantaria querer defender a originalidade das culturas humanas con- tra elas mesmas. Ademais, e extl emamente dificil para 0 etn61ogo fazel' lima justa aprecial;ao cle um fenomeno como a univelsalizal;ao da cul- t '.Ita ocidental, e isto POl' inumeras razoes. Inicialmente, a existencia de llma civilizal;ao mundial e urn fato provalvelmente (mica na hist61ia, ou cujos precedentes cleveliam ser procurados numa pre-hist6l'ia longlnqua, rla qual pouco sabemos. Em ~-eguida, reina lima grande incerteza sobre a consistencia do fenameno em quesUio. Na veldade desde hit um se~ulo e meio, a civilizal;aO ociclental tencle, quer na sua totalid'aCle, quer POl' alguns de seus elementos-chaves como' a industrializal;ao, a se expandil' no mundo; e, na medida em que as outra:> culturas procuram presel val' alguma coisa de sua heranl;a tradicional, esta tentativa se reduz geral- mente as superestruturas, isto e, aos 'aspectos mais fritgeis e que, po- demos supor, serao vanidos peJas profundas transformal;oes que se rea- lizam. Mas 0 feno!lleno eshi em andamentn, naa conlleccmos ainda seu J'C'sultado. Acabar-se-it com uma ocidenlalizal;ao integral do planeta, r.om variantes russ 0.1 americana? Aparecerao formas fncreticas, cuja possibilidade' entrevemos ja nO mundo islfunico, na 1n la e na China? Ou entao, 0 movimento de fluxo ja es~ganclO ao fim, estando 0 mundo ocidental prestes a sucumbir, como os monstros pre-hist6ricos, a uma expansao fisica incompativel com os mecanismos internos que asseguram sua existencia? :E levando-se em conta todas essas reservas que tentaremos avalial" 0 processo que se desenrola diante de n6s e d~ qU; somos, consciente ou inconscientemente, os agentes, os auxillares ou a:' vitimas. Comel;aremos POl' observar que esta adesao ao genero de vida oei- dental, ou a alguns de seus a,spectos, esta lorige de ser tao espontiinea quanto os ocidentais gostariam de acreditar. Resulta menos de uma decisao livre que de uma ausencia de escolha. A civilizadio ccidental eslabcleceu seus soldados, suas feitorias, suas plRntar;oes e' missionarios pOl' todo 0 mundo; interveio clireta ou indiretamente na vida das po- jJu]al;oes de cor; sUbverteu profundamente seu modo tradicicnal de exist.encia, quer impondo 0 seu, quer Instaurando cOilcli<;oesque provo- cavam 0 dcsmoronamento dos quadros existentes, ~em substitui-Ios pOl' outra coisa. as povos subjugados ou desorganizados s6 podiam, portan- to, aceitar as solul;6es de sUbstituil;ao que se Ihes ofercciam, ou, se nao estavam dispostos a isto, esperar aproxlmarem-se delas 0 suficlente para estarem aptos a combate-Ias no mesmo terreno. Sem esta desigualdade na relal;aO das forl;as, as sociedades nao se entregam com tanta facl- Jidade; sua Weltanschauung (cosmovisao) se aproxima mais daquela d3S pobres tribos do Brasil oriental onde 0 etn6grafo Curt Nimuendaju, ado- tado pOl' eles como um clos seus, cada vez que voltava a selva depois de uma estada nos centros civilizados, provocava soIUl;OSde pesar entre os incligenas que imaginavam os sofrimentos que ele clevia tel' sofrido lon- ge do unico lugar - a alcleia deles - onde acreditavam que a vida valla a pen?, ser vivida. Todavia, ao fonnular esta reserva, s6 fizemos cleslocar a questao. Se nao e 0 consentimento que funda a superioridade ocidental, nao seria esta entii.o a maior energia de que ela dispoe, e que fol precisamente 0 que Ihe pe,mitiu forl;ar 0 consentimento? Tocamos aqui 0 cerne da questao. Pois esta desigualdade de forl;a nao depende da subjetividade coletiva, como os fatos de adesao que evocamos ha pouco. E um fcname- no objetivo, que somente 0 apelo a causas objetivas pode explicar. Nao se trata de empreender aqui um estudo de mosofia das civi- Jiza<;oes; pode-se discutir atraves de volumes e volumes a natureza dos valores professados pela civiliza~ao ocldental. S6 reall;aremos os mais manifestos, os que estao menos sUjeitos a controversia. Reduzem-se. pa- rece, a dois: a civilizal;ao ocidental procura pOl' um lado segunclo a ex- pressao cle Leslie White, aumentar c('ntinuamente a quantidade de ener- gia disponivel per capita; pOl' outro lado, procura proteger e prolongal' a vida humana, e se queremos resumir, considerar-se-a que 0 segundo aspecto e uma modalidade do primeiro, porque a quantidade de energia disponivel aumenta, em valor absoluto, com a dural;ao e a integi'idade oa existencia individual. Para afastar qualquer discussao, admitir~se-a. tambem de said a, que essas caracterlsticas podem-se acomJ!lanhar de fe- namenos compenmt6lios, servindo-Ihes de algum modo de freio: pJr exemplo, os grandes massacres que constituem as guerras mundiais, e a desigualdade que preside a. repartil;8.o da energia disponivel entl e cs individuos e as classes. Isto posto, constaLa-se imediatamente que, se a civiliza<;ao ocidental se dedicou efetivamente a essas tarefas, com um exclusivismo onde re- side talvez sua fIaqueza, ela nao e certamente a (mica. Toclas as socie- dades humanas, descle os tempos mais remotos agiram no mesmo sen- tido; e fOlam sociedades muito longinquas e arcaicas, que igualariamos de bom grado aos povos "selvagens" atuais, que realizaram nosse doml-
  • 13. nlo os progressos mals declslvos. Atualmente, elas constituem sempre a 'maior parte do que denominamos civilizac;ao. Ainda dependemos das imensas descobertas que marcaram 0 que se denomina, sem nenllum exa- gero, a revoluc;ao neolitica: a agricultura, a criac;ao de animais, a cera- mIca, a tecelagem... A todas estas "artes da civilizac;ao" so trouxernos, ha oit u dez mil !:~s, aperfeic;~tos. ,-- E verdade que certos espirltos tem uma desagral!(lvcl tendencia para reservar 0 privllegio do esforc;o, da Inteligencia e da imaginac;ao as des- cobertas recentes, ao passu que as que foram realizadas pela humanidade no seu periodo "barbaro" sedam obra do aeaso, - havendo ai, em suma, apenas um pequeno merlto. Esta aberrar;:ao nos pareee tao grave e dl- vulgada, e se presta tao profundamente a impedir uma vlsao exata da relac;ao entre as eulturas, que aereditamos ser IndLspensavel dissipa-Ia comPletame~ - - -- --- - U-se nos tratados de Etnologia - e nao nos menos considerados- que 0 homem deve 0 conhecimento do fogo ao aeaso do raio ou a um ineendio da mata; que 0 achado de uma ear;:a acid ental mente assada nestas condic;6es Ihe revelou a cocc;ao dos alimentos; que a invenr;:ao da ceramica resulta do esquecimento de uma bola de argila pelto de um forno. Dir-se-ia que 0 homem teria vivido primeiramente numa especie de idade de DurO tecnologica, onde as invenc;6es eram colhldas com B mesma facilidade que os frutos e as f1ores. Ao homem moderno cstariam reservadas as fadigas do trabalho e as Iluminar;:oes do genio. Esta visao Ingenua e resultado de uma total ignorfmcia da comple- xidade e da diversidade das operac;6es implicadas nus tecnicas mals ele- mentares. Para fabricar um utensilio de pecha luscatla eficr!z, n[o basta bater num calhau ate que ele se estilhace: percebeu-se isLo lJem, no dia em que se tentou reproduzir os princ.ipais tipus de utensiJios pre-histo- rieos. Entao - e observando tambem a mesma tecnica nos povos que ainda a possuem - descobriu-se a ccmplexidade dos procedimentos in- dispensavels, e que vao, algumas vezes, ate a fabricac;ao preliminar de verdadeiros "aparelhos de talhar": martelos com contrapesos, para con- tralar 0 Impacto e sua dlrer;:ao; dispositivos amortecedores para evltar que a vibrar;:ao nao rompa 0 estllhar;:o. E preciso tambem um vasto con- junto de nor;:6es sobre a orIgem local, os procedimentos de extrar;:ao, a reslstencia e a estrutura dos materlais utillzados, um trelno muscular aproprlado, 0 conhecimento dos "jeitinhos" etc; numa palavra, uma ver- dadelra "liturgla", correspondente, mutatis mutandis, aos diversos ea- pltulos da metalurgla. Do mesmo modo, os Incendios naturais pod em as vezes tostar ou assaI'; mas e dlficllmente concebivel (salvo no caso dos fen6menos vul- eanicos, cuja distribuir;:ao geografica e restrlta) que fac;am ferver ou co- zlnhar no vapor. Ora, estes metodos de cocc;ao nao sao menos universals que os outros, Portanto, nao ha razao de exclulr 0 ato Inventlvo, que fol certamente requerldo para esses ultimos metodos, quando se quer expllcar os primelros. A ceramica ofereee um exemplo excelente, pols uma erenr;:a multo divulgada afirma que nao ha nada mais simples que dar forma a um torrao de arglla e endurece-Io no fogo. Que se far;:a a experlencia. E pre- clso primeiramente descobrir argllas pr6prlas a cocr;:ao; ora, se urn gran- de numero de condir;:6es naturals e necessarlo para Isto, nenhuma e su- ficiente, pois arglla alguma nao mesclada a um corpo Inerte, escolhlda em funr;:ao de suas caarcterlstlcas partlculares, resultarla, apos a cocr;:ao, num reciplente utllizavel. E preclso elaborar as tecnlcas da modelagem que permltem realizar esta proeza de guardar em equllibrlo durante um tempo apreciti.vel, e de modificar ao mesmo tempo, um corpo plastlco que nao tem "flrmeza"; flnalmente, e preciso descobrlr 0 combustivel par- ticular, a forma do forno, 0 tipa de calor e a durar;:ao da cocr;:ao que permitirao torna-Io solido e Impermeavel, atraves de todos os ol:stiiculos da~ rachaduras, esfarelamentos· e deformac;6es. Poder-se-Iam multlpliear os exemplos. Todas estas operar;:6es sao· demaslado numerosas e complexas para que 0 acaso pudesse explica-Ias. Cada uma delas, tomada Isoladamente, nada slgnifica, e 0 que permite seu sucesso e sua comblnar;:ao lmaglna- da, desejada, pesqulsada e experlmentada. E claro que exlste 0 acaso, mas nao da nenhum resultado' de per si. Durante dols mll e qulnhentos anos aproximadamente, 0 mundo ocidental conheceu a exlstencia da ele- tricidade - descoberta, sem duvida, pOI' acaso - mas 0 acaso permaneceu esteril ate os esforr;:os Intencionals e dirigidos pelas hlp6teses dos Ampere e Faraday. a aeaso nao teve um papel malar na invenr;:ao do arco, do bu- merangue ou da zarabatana, no nascmento da agricultura e da crlar;:ii.o
  • 14. cle .animais, da qUE' na descoberta cia penicilinn. _ donde se sabe, ade- mals, qU~ e_le nao faltou. Deve-se, portanto, distinguir cUidadosamente a t:'~nsnllssao de uma tecnlca de uma gera<;fto it outra, semprc com uma fa.Clll:lade relatlva gra<;as a observa<;fto e ao exercicio quotidiano, e a cr!a<;ao ou melhoria das tecnicas no interior de cada gera<;ao. Estas BU- roen : sempre a mesma potencia imaginativa e os mesmos esfor<;os en- carn.l<;ados por parte de certos indlviduos, qualquer que seja a tecnica p~r.tlcular_ que se tenha em mente. As sociedades que denomlnamos pri- lmtlvas nna sao menos ricas ('m homens como Pasteur e palissy que as outras 3. Em breve encontral'emos 0 acaso e a probabilidade, mas em outro Jugar e com um outro papel. Niio os utlllzaremos para expllcar pregui- <;osame~te 0 nascimento de inven<;6es ja fcitas, mas para intelpretar um fenomeno que se situa em outro nivel de realiclade: isto e, apesar cle ~m.a close de imagina<;ao, de inven<;ao e de esfor<;o criador, que temos o dlrelto e1e Supor que permane<;am de modo mais ou menDs constanta na his tori a cia humanidade, esta cO,mbina<;ao nao determina muta<;6es culturais importantes senao em certos period os e lugares. Pois, para chegar a este resultado, nao bastam os fatores puramente psicol6gicos: devem, inlcialmente, encontrar-se presentes, Com uma orienta<;ao simi- lar, num mimer~ s.uficiente de indivfduos, para que 0 criador esteja logo segura de um publlco; e esta condi<;ao depende da reuniao de um mime- 1"0 considenivel de outros fatores, de natureza hlstorica, econ6mica e so- ciologica. Chegar-se-ia, portanto, para expllcar as diferen<;as nos cursos d~s civiliza<;6es, a invocar conjuntos de causas tao complexas e descon- tmuas ~ue seriam incongnosciveis, quer por raz6es pniticas, quer ate pOl' razoes teoricas, tais como 0 aparecimento, impossivel de ser evltado ~e perturba<;6es Iigadas as tecnicas de observa<;ao. Com efeito, para de~ s~nrolar uma meacla formada de flos tao nUmerosos e tenues, selia pre- CISOsubmeter a sociedade considerada (e tambem 0 mundo que a cerca) a um estudo etnognifico global e de todos os instantes. Mesmo sem evocar a enormidade da empresa, sabe-se que os etnografos, que traba- lham, contudo, numa escala infinitamente mais rerluzlda, estao freqUen- teme~te lhnltados em suas observa<;6es pel as ll1udan<;as sutis as quais sua SImples prese~<;a basta para introduzir no grupo humano, objeto de seu estudo. Ao mvel das sociedades modernas, sabe-se tambem que as sondagens de opiniao publica modificam a orienta<;ao desta opiniao, pelo proprio fato de seu emprego, despertando na popula<;ao urn fator de re- f1exao sobre sl, que nao existia anteriormente. Esta situa<;ao justifica que se introduza, nas clencias socials, a no- <;ao de probabilidade, ja ha muito tempo presente em certos ramos da Fislca, como a Termodinamlca, por exemplo. voltaremos a isto; por agora bastara lembrar-se que a complexldade das descobertas modernas nao resulta de uma malor freqUencia ou de uma melhor disponlbllidade de genlo em nossos contemporaneos. Muito pelo contrario, pOIque reco- nhecemos, atraves dos seculos, que cada gera<;ao, para progredir, s6 terla necessldade de acrescentar uma poupan<;a constante ao capital legado pela gera<;6es anteriores. Devemos-Ihes nove decimos de nossa riqueza; e talvez mais, se, como jii. fol feito, avallarmos a data do apareclmento das principals descobertas em rela<;1io a data, aproxlmada, do come<;o da civiliza<;ao. Constata-se entao que a agricultura nasce DO decorrer de uma fase recente, correspondendo a 2% desta dura<;ao; a metalurgia a 0,7%, 0 alfabeto a 0,35%. Ii. fisica galilaica a 0,0357'0 e 0 darwlnismo a 0,009% 4. A revolu<;8.o cientifi'ca e industrial do Ocidente se inscreve in- teiramente num periodo igual a cerca de meio milesimo da vida da hu- manidade. Podemos, portanto, mostrar-nos prudentes antes de aflrmar- mos que ela esta destinada a mudar-Ihe totalmente a significa<;ao. Nao e menos verdadeiro - e cremos ser a formulagao deflnitlva que podemos dar de nosso problema - que, sob a rela<;ao das inven<;6es tec- nicas (e da reflexao clentffica que as toma possiveis). a civlllza<;ao ocl- dental se mostrou mais cumulativa que as outras; que ap6s ter disposto do mesmo capital neolitico inicial, soube acrescentar-lhe melhorias (es- crita alfabetica, aritmetica e geometria). das quais, alias, esqueceu al- gumas rapidamente; mas que, ap6s uma estagna<;1io que, groS80 modo, se desenrola durante dois ou dois mil e quinhentos anos (do primeiro milenio antes da era crista ate 0 seculo XVIII aproximaclamente), ela se revelou subitamente como 0 foco de uma revolu<;ao industrial de que - por sua amplitude, sua unlversalidade e a importancia de seus re- sultados - somente a revolu<;1io neolltlca pudera oferecer outrom urn equivalente. Por conseguinte, duas vezes em sua hist6ria e com urn tntervalo aproximado de dez mil anos, soube a humanidade acumular uma· multi- plicidade de inven<;6es orientadas no mesmo sentido; e este mimero por um lado e esta continuiQade, POI' outro, concentraram-se num lapso de
  • 15. tempo suficlentemente curto para Que se operassem aHas sinteses tecnl- cas; sfnteses que acarretaram mudan~as slgnlflcatlvas nas rela~oes Que o homem mantem com a natureza e Que, pOl' sua vez, tornaram possi- vels outras muclan~as. A Imagem de uma rea~ao em cadela, desencadea- da IXlr corpos catalisadores, permite Ilustrar este processo que, ate agora, se repetlu duas vezes, e duas vezes apenas, no, his tori a da humanl~lade. Como Isto se produzlu? Inlclalmente, nao devemos eSQuecer Que outras revolu~oes, apresen- tando as mesmas caracteristicas cumulativas, puderam desenrclar-se alhures e em outros momentos, mas em dominios diferentes da ativi- dade humana. Expllcamos anterlormente porque a nossa propria revo- lu~ii.o industrial e a revolu~iio neolitica (que a precedeu no tempo, mas Que provem das mesmas preocupa~oes) saD as (micas que nos podem aparecer como tais, porque nosso sistema de referencias permlte men- sura-Ias. Todas as outras mudan~as, Que certamente se procluziram, 56 se revelam sob forma de fragmentos, ou profundamente deformadas. Nflo podem ter urn sentido para 0 hOmem ocldental moderno (pelo me- nos todo seu sentido); podem ate ser para ele como se nao existissem. Em segundo lugar, 0 exemplo da revolu~ao neolitica (a (mica Que o homem ocidental moderno chega a reconhecer bem claramente) de- ve-Ihe Insplrar alguma modestia Quanto a preemlnencla Que ele pudes- se ser tentado a reivindlcar em proveito de alguma ra~a, de uma reglao ou de Urn pais. A revolu~ao industrial nasceu na Europa ocidental; de- pols, apareceu nos Estados Unidos. e em seguida no Japao; desde 1917 ela se acelera na Uniflo Sovietica, amanha, sem duvida, surglni em ou- tra parte; de meio em meio seculo, brllha com uma chama mais ou me- nos intensa em centros distintos. Em que se transformaram na escala dos mllenios, as questoes de priori dade, de que nos orgulhamos tanto? Ha aproximadamente mll ou dols m] anos, a rev01uGao neolftica se de- sencadeou slmultaneamente no, bacia do mar Egeu, no Eglto, no Oriente iPr6xlmo, no vale do Indo e na China; e. desde 0 emprego do carbona radloativo para a determlnaGflo dos periodos arqueologlcos, suspeitamos que 0 neolitico america no, mais antigo do que se acreditava outrora. nao deve tel' come~ado muito mais tarde que no Velho Mundo. E pro- vavel que tres ou quatro pequenos vales pUdessem, neste concurso, re- elamar uma prloridade de alguns seculos. a que sabemos disto atual- mente? 11.0contrario, estamos certos de que a questao da priorldade nao tem importancia, precisamente porquc 0 aparecimrnto simult.aneo das mesmas perturba~oes tecnologicas (seguidas de perto pOI' perturba~oes socials), em territ6rlos tao vastos e em regloes tao afastadas, mostra bem que ela nao dependeu do genio de uma ra~a ou de uma cultura, mas de condiGoes tao gerais, que elas se situ am fora da consclencb dos homens. Estejamos certos, portanto, que. se a revolu~ii.o industrial nll-O tivesse aparecldo Inlclalmente na Europa ocldental e setentrlonal, ela se teria manifestado algum dia numa outra parte do globo. Ese, como e verossimll, deve-se estender ao conjunto da terra habitada, cad a cul- tura introduziI a ai tantas contribui~oes particulares, que 0 hlstorlador dos futuros mllenlos legitimamente conslderara futi! a qUestao de saber quem pode, pOI' urn ou dois seculos, reclamar a prioridade. Isto posto. e preciso introduzlr uma nova Iimita~ao, senao a vaUdade, ao menos ao rigor da distin~ao entre hist6ria estacionaria e hist6r1a cumu- lativa. Nao apenas esta distln<;ao ~ relatlva aos nossos Interesses, como ja most-ramos, mas ela nunca consegue ser clara. No caw das Inven<;oes tecnicas, e bem certo que nenhum periodo, nenhUma cultura, e abs.olu- tamente estacionario. Todos os povos possuem e transformam, melhoram e esquecem tecnicas suficientemente complexus para permltir-lhes dornl- nul' seu meio; sem 0 que ja teriam desaparecldo ha multo tempo. por- tanto, a dlferen~a nunco. e entre hlst6r1a cumulativa e hist6rlo. nao cumulativa; toda hist6rla e cumulo.tlva, com difcren~as ele grau. Sabe- se, POI' exemplo, que os antlgos chineses e os esqulm6s tin ham desenvol- vido suas artes mecanicas; e faltou muito pouco para que chegassem ao ponto onde se da a "rea~ao em cadeia", determlnando a passagem de um tipo de c1viliza~ao a urn otltro. Conhece-se 0 exemplo do. p6lvora de canhiio: os chineses tinham resolvido, tecnicamente falando, todos os problemas que elo. colocava, menos 0 de sua utillza~ao com resultados macl~os. as antigos mexico.nos nao Ignoravam a roda, como se diz fre- qUentemente; conheclam-na 0 bastante para fabrlcar animals com 1'0- dlnhas vara suas crian~as; ter-Ihes-ia bastado urn passo suplementar para possuirem a carro~a. Nestas condl~oes, 0 problema do, rarldade relativa (para cad a sis- tema de referencias) de cnlturas "m;!.ls cumulativas" em rela~ao as cul- turas "menos cumulativas" se reduz a um problema conhecldo, que de- pende do calculo das probabllldnc1es. E 0 mesmo problema qUf! conslste em determinar a probabilidade relativa de uma comblna~ao complexa em rela<;ao a outras combinaGoes do mesmo tipo, mas de menor comple- xidade. POI' exemplo, e bastante freqiiente, na roleta, uma seqUencia de dois numej'os consecutivos (7 e 8, 12 e 13. 30 e 31, pOI' exemplo); uma de tres numeros ja e rara, lUna de quatro, muito mals. E ~ somente urns
  • 16. vez num nllinero muito elevado de lances que se rcaliza:a, talvcz, llma se- rle de sels, sete ou oito ntimeros conforme a ordem natural dos mime- ros. Se Dossa aten~ao se fixar exelusivamente nas series longas (por ex em- plo, se apostamos nas series de cinco ntimeros consecutivos), as series mals curtas se tornarao para nos equivalentes a serle nao-ordenadas. ll: esquecer que elas so se distinguem das nossas pelo valor de uma fra~ao, e que, encaradas sob outro angulo, talvez apresentem grandes regularl- dades. Levemos mals avante nossas comparat;6es. Um jogador, que trans- ferlsse todos os seus ganhos para series cada vez mals long as, poderla se desencorajar, apOs mllhares ou mllh6es de lances, por Dunea ver apa- recer a serle de nove numeros consecutlvos, e pensar que teria sido me- lhor parar mals cedo. Contudo, nao se 'exclul que urn outro jogador, se- gulndo a mesma formula de aposta, mas sobre series de urn outro tipo (por exemplo, urn certo rltmo de alternancia entre vermelho e pre to, ou entre par e impar), aclamarla como combinat;6es slgniflcativas aque- las que 0 primelro jogador percebe co~mo desordem. A humanidade nao evolul num sentldo unieo. E se num certo plano ela parece estaclonarla, ou ate regressiva, isto nao slgnlfica que, de urn outro pOnto de vista, ela nao seja a sede de traDsformat;6es Importantes. o grande flJOsofo Ingles do seculo~XVIII, Rume, dedlcou-se urn dla a resolver 0 falso problema que se colocam multas pessoas, quando se Inquletam em saber porque todas as mulhcres nao sac bonitas, mas ape- nas uma pequena minorla. Mostra facllmente que a questao DaO tern nenhum senti do. Se todas as mulheres fossem ao menos tao bonltas quanto a mals bela, nOs as acharlarnos banals, e reservarlamos DOSSO quallflcatlvo para a pequena mlnorla que ultrapassarla 0 modelo com urn. Tambem quando estamos Interessados Dum certo t1po de progresso, re- servamos-Ihe 0 merlto para as culturas que 0 realizam em seu mals alto grau, e f!camos Indiferentes diante das outras. Assim, 0 progresso s6 e 0 maximo de progresso Dum sentldo pre-determinado pelo gosto de cada urn. Flnalmente, e precise encarar nosso problema sob UIl1 ultimo angulo. Urn jogador como 0 dos panigrafos anteriores, que so apostaria nas se- ries mals longas (qualquer que seja 0 modo como ele as conccba), teria toda chance de se arruinar. Mas nao seria 0 mesmo para uma collgat;ao de apostadores jcgando as mesmas series em valor absoluto, mas em muitas roletas e se atrlbuindo 0 prlvilegio de reunir os resultados favo- ravels as comblnat;6es de cad a um. Pols se, tendo acertado sozlnho 0 21 e 0 22, tenho necessidade do 23 para contlnuar mlnha serie, ha evlden- temente multo mals chances de que ele sala em dez mesas que Duma unica. Ora, e'sta sltua~ao se pareee bastante cOm a das culturas que che- garam a realizar as formas mais cumulativas de hist6ria. Essas formas extremas jamals foram obra de culturas Isoladas, mas slm de culturas combinando voluntarla ou involuntariamente seus jogos respectivos, e realizando, atrnves de melos variados (mlgrat;6es, emprestimos, troeas comerciais, guerras), essas coligar;6es cujo modelo acabamos de imagi- nar. E e aqui que compreendemos clara mente 0 absurdo que existe em se declarar uma cultura superior a outra. Pois, na medida em que es- tlvesse sozinha uma cUltura nunca poderia ser "superior"; como 0 jog-a- dor isolado, ela s6 conseguiria realizar pequenas series de alguns elemen- tos, e a probabilidade de que uma serie longa "saisse" em sua hlst6rla (sem estar teorlcamente excluidr» serla tao fragll que se preelsarla dispor de um tempo inflnltamente mals longo do que aquele no qual se inscreve 0 desenvolvimento total da humanldade, para ser possivel ve-la realizar-se. Mas - ja 0 dissemos anterlormente - nenhuma cultura esta s6; ela e semp·re dada em coligat;ao com outras culturas, e e Isto que Ihe permite ectificar series cumulativas. A probabllldade de que, entre essas series, aparet;a uma longa, depende naturalmente da extensao, da durat;ao e da varlabllidade do regime de collgat;ao. Destas observat;6es decorrem duas conseqiiencias. Durante este estudo, perguntamo-nos repetidas vezes como fora pos- slvel a humanidade ter permanecido estacionaria durante Iove declmos de sua hist6ria, ou ate mals: as primelras civillzat;6es tern de duzentos mil a quinhentos mil anos, as condit;6es de vida se transform am apenas no decorrer dos ultimos dez mil anos. Se nossa. alllllise e exata, nao fol lporque 0 homem paleolitlco tivesse side menOs Intellgente, menos dotado que seu sucessor neolitico, mas slmplesmente porque, na his tori a humana, uma combina~ao de grau n levou urn tempo de dura~ao t para sair; esta poderia ter-se produzido muito mais cedo ou muito mals tarde. 0 fato nao tem maior significat;ao que 0 numero de lances que urn jogador deve esperar para ver produzir-se uma combinat;ao dada: esta combina~ao po de acontecer no primeiro lance, no mileslmo, no mi-
  • 17. Jlonesimo ou nunca. Mas, durante este tempo todo, a humanldade, do mesmo modo que 0 jogador, nao deixou de especular. Nem sempre que- rendo-o, e sem Jamais compreende-Io exatamente, ela "faz neg6clos~ culturais, lanca-se em "operacoes-clvilizacao", nem todas as vezes coroa- das de exito. Ora beira 0 sucesso, ora compromete as aquisicoes ante- rlores. As grandes simpllflcac6es, autorlzadas por nos~a Ignorancia da maloria dos aspectos das socledades pre-llist6ricas, pennitem i1ustrar esta marcha Incerta e ramlflcada, pois nada e mais surpreendente do que esses arrependimentos que conduzem do apogeu levallolsiano i1. me- diocridade mousterlana, dos esplendores aurlgnaciano e solutreano a as- pereza do magdalenlano, depols aos contrastes extremos oferecldos pelos diversos aspectos do mesolitico. o que e verdadelro no tempo nao 0 e menor. no espaco, mas deve ser expresso de outro modo. A chance que uma cultura tem de totalizar este conjunto complexo de Invencoes de todas as ordens, que denomi- namos uma c1vllizaCao, e funcao do nfunero e do. diversidade das cultu- ras com as quais participa no. elaboracao - a maior parte das vezes invo- luntaria - de uma estrategia comum. Ntimero e diversidade, dizemos. A comparacao entre 0 Velho Mundo e 0 Novo na vespera do. descoberta llustra. b'em esta dupla necessidade. A Europa dos prlm6rdios do Renasc!mento era 0 lugar do encontro e fusao das mais diversas influencias: as tradicoes grega, romana, ger- manica e anglo-sax6nica; as influencias at abe e chinesa. A America pre-colombiana nao gozava, quantitativamente falando, de menos can- tatas, ja que as culturas americanas mantinham relaCues, e as duas Americas formavam conjuntamente um imcnso continente. Mas, 0.0 passo que as culturas que se fecund am mutua mente no solo europeu sac o produto de uma velha diferenclacao de muttas dezenas de mil€mlos, as da America, cuja povoaCao e mais recente, tiveratl1, men os tempo de divergir; ofere cern urn quadro mais homogeneo. Por i~so, se bem que nao se possa dizer que 0 nivel cultural do Mexico ou do Peru tivesse sido, no momento da descoberta, Inferior 0.0 da Europa (vlmos ate que sob certos aspectos ele Ihe era superior), os divcrsos aspe:tos do. cultura eram ai, talvez, menos bem articulados. Ao lado de sucessos acimini-veis, as civilizacoes pre-colombianas estao cheias de lacl'nas; elas tem, se se pode dizer, "buracos". Ofere cern tambem 0 espetaCLllo, menos contradi- t6rio do que parece, do. coexistencia de formas precoces e formas abor- ti vas. Sua organizacao pouco flexivel e fIacamente diversificada exp!ica de modo verossimil sell desmoronamento diante de UIl1 plil1l1ado (Ie con- qUistadores. E a causa profunda pode ser procurada no fato de Que a "collgacao" cultural amerlcana era estabeleclda entre parceiros menos diferentes entre si do que 0 eram os do Velho Mundo. Portanto, nao ha socledade cumulativa em si e por sl. A hist6rla cumulatlva nao e propriedade de certas racas ou de certas culturas que se dlstlnguirlam, asslm, das outras. Eia resulta de sua conduta mais do que de sua natureza. Exprlme uma certa modalldade de existencla das culturas que e apenas sua manetra de ser conjunta. Neste senti do, pode- se dlzer que a hlst6rla cumulativa i. a forma de hist6rla caracterlstica desses super-organismos socials que constituem os grupos de s6c1edades, 0.0 passo que a hlst6ria estacionarla - se e que ela existe verdadeira- mente - serio. a marca desse genero de vida inferior, que e 0 das so- cledades soHtarlas. A fatalidade exclusiva e a tinica tara que podem afliglr urn grupo humano Impedl-Io de realizar plenamente sua natureza, e a de ser s6. Ve-se assim 0 que ha de inepto e pouco satisfat6r10 para 0 espirito nas tentatlvas com as quais nos contentamos geralmente para justifi- car a contribu!<;ao das racas e culturas humanas para a civllizacao. Enumeram-se tracos, esquadrinham-se quest6es de origem, atrlbuem-se prloridades. Por melhor intencioriados que sejam, estes esfol'Cos sac fu- tels, porque falham triplamente no. sua finalidade. Prlmeiro, 0 me:lto de uma invencao atribuido a uma determ inado. cultura nunca e seguro. Em segundo lugar, as contribulC6es culturals podem sempre repartlr-se em dois grupos. De urn lado, temos traC(os, aquisic6es isoladas, cuja im- portaneia e faeil de avaliar e que oferecem tambem urn carater limitado. Que 0 tabaco tenha vindo do. America, e um fa~o, mas, aflnal de contas. e apesar de toda a boa vontade manifestada para esta flnaHdade pelas Illstitulc6es illternacionais, nao nos podemos sentiI' invadldos de grati- dao para com os indlgenas americanos toda vez que fumaplos urn c1- garro. 0 tabaco e uma aquls!<;ao requintada que se incorporou a arte de viver, assim como outras sao l1tels (por exemplo, a borracha); deve- mos-1l1es prazeres e comodldades suplementares, mas se nao exlstlssem, nao se abalarlam as ralzes de nossa clvlllzacao; e, em caso de serlo. necessidade, terlamos sabido encontra-Ios, ou substitul-Ios por outros. No p610 oposto (e claro, com toda uma serle de formas intermedia- rias) , existem contrlbulcoes que oferecem urn canUer de sistema, Isto e, correspondente 0.0 modo pr6prio que cad a socledade escolheu para ex- prlmlr e satisfazer 0 conjunto das aspirac6es humanas. A origlnalidade e a natureza insubstitulvel desses estllos de vida, ou, como dizem cs
  • 18. .anglo-saxoes, desses patterns, sac inegavels, mas representam outras tanlas escolhas excusivas; e mal compreendemos como uma civillzac;ao poderia esperar aproveitar-se do estilo de vida de uma outra, a nao ser renunciando a ser ela mesma. Com efelto, as tentatlvas de acomoda- C;ao s6 podem chegar a dols resultados: ou uma desorganlzaC;ao e urn desmoronamento do sistema de urn dos grupos; ou uma sintese original, mas que, entao, consiste na emergencla de urn terceiro sistema, 0 qual se torna irredutfvel em relac;ao aos outros dols. Alias, 0 problema nao e saber se uma socledade pode ou nao lucrar com 0 estllo de vida de seus vizinhos, mas se pode chegar a compreende-Ios e ate a conhece-Ios e em que medida. Vimos que esta questao nao comporta nenhuma res- posta categ6rica. Enfim, nao existe contribulC;ao sem beneflciirio. Mas se exlstem culturas concretas, que se podem situar no tempo e no espac;o, e dns 'quais se pode dizer que "contribuiram" e que continuam a faze-Io, 0 que e esta "civllizac;ao mundial", supostamente beneficiaria de todas essas 'contribuic;oes? Nao e uma cvillza<;ao distlnta de todas as outras, go- zando de urn mesmo coeficiente de realidade. Quando falamos de civi- lIzac;ao mundial, nao designamos uma epoca da hlst6r1a, ou urn grupo 'de homens: evocamos uma noc;ao abstrata, a qual atribuimos urn valor, quer moral, quer 16gico: moral, se se trata de uma finalidade que pro- pomos as sociedades existentes; logico, se agrupamos sob urn mesmo vocabulo os elementos comuns que a analise permite dlstingulr entre as dlferentes culturas. Em ambos os casos, nao se deve disslmular que a noc;ao de civlIlzaC;ao e muito pobre, esquematlca, e que seu conteudo i!ltclectual e afetivo nao oferece uma grande densidade. Querer avaliar contribulc;oes culturais prenhes de uma hist6ria milenar, e de todo a . peso dos pensamentos, dos sOfrimentos, dos desejos e do labor dos ho- mens que as levaram a existencia, relaclonando-as exclusivamente aO padrao de uma clvlIlzac;ao mundial que ainda e uma forma vazia, serta empobrece-Ias singularmente, esvazia-Ias de sua substancla e delas con- servar apenas urn corpo descarnado. Ao contrario, procuramos mostrar que a verdadeira cont.ribuic;ao das culturas nao consiste na lista de suas invenc;oes particulares, maS no ajastamenio dijerencial que of ere cern entre si. 0 senlimento de gratl- dao e humildade, que cad a membro de uma detenninada cultura pode e deve experimental' pOI' todos os OUtlOs, s6 podelia fundar-se numa unica convicc;iio: que as outras culturas sac dlferentes dn sua, das mals variadas maneiras, e isto, mesmo que a natureza profunda dessas dUe- renc;as the escape, ou que, apesar de todos os seus esforc;os, s6 consiga. penetrar nela imp·erfeitamente. POI' outro lado, consideramos a nOC;ao de civillzac;lio mundlal coma uma especie de conceito limite, ou como manelra abrevlada de deslg- nar urn processo complexo. Pois se nossa demonstrac;ao e valida, nlio ha, nao pode haver uma civiliza<;ao mundial no sentido absoluto que geralmente se atribui a este termo, porque a civlIlzac;lio impllca a coe- existencia de culturas oferecendo entre si 0 maximo de diversidade, e consiste mesmo nesta coexistencia. A civiJIzac;lio mundial s6 poderia ser a coliga<;iio, em escala mundial, de culturas, preservando cada qual sua originalic1ade. Nao nos encontramos, entao, dlante de um estranho paradoxo? Tomando os termos no senti do que lhes atribuimos, viu-se que to do progresso cultural e func;ao de uma coligac;ao entre as culturas. Esta collga<;ao consiste na partllha (consclente au inconsciente, voluntaria ou' Involuntaria, intenclonal au acidental, desejada ou imposta) das chances que cada cultura encontra. em seu desenvolvimento hist6rico; enfim, admitimos que esta coliga<;ao e bem mais fecunda quando ela se esta- belece entre culturas mals diversificadas. Isto posto, parece que nos encontramos diante de condi<;oes contradit6rias. iPois este jogo em comum, do qual resulta todo progresso, deve acarretar, como ,conseqtien- cia, a mais longo ou mais curto prazo, uma homogeneizac;ao dos recursos de cad a jogador. E se a diversidade e uma condic;ao inicial, e precise . reconhecer que as chances de ganhar se tornam tanto mais fracas quanto mais a partida for prolongada. Parece que s6 existem dois remedios para essa consequencia inelu- tavel. Urn deles consiste, para cada jogador, em provocar ajaslamentos dijerenciais em seu jogo; a coisa e passivel, parque cada sociec1ade (a "jogador" de nosso modelo te6rico) se campoe de uma caligac;ao de grupas: confessionais, profissionais e econ6mlcos, e 0 capital social arris- cado e constituido pelas apostas de todos estes participantes. As desigl1al- dades socials sao 0 exemplo mais evidente desta solu<;iio. As granc1es
  • 19. revohH;oes que eseolhemos como ilustra<;ao: neolltlca e Industrlnl, se aeompanharam, nao apenas da dive1'sifiea,ao do eo1'po social, eOll1u muito bem 0 observara Spence" mas tambe!l1 da inslau!"u<;fto de stat1ls diferenciais entre os grupos, sobretudo do ponto de vi~tl1 cconomir·o. Hfi muito tempo observou-se que as descobertas neoliticas acarretaram 1'a- pidamente uma diferencia,flO social, com 0 nascimcnto, no Oriente an- tigo, das grandes concentra<;6es urbanas, a apari<;ao dos Estados, das castas e classes. Aplica-se a mesma observa<;ao a revolu<;ao Industrial, condicionada pelo apareclmento de um proletariado e condUzindo a for- mas novas e mais extremadas de explora<;ao do trabalho humano. Ate agora, tendia-se a tratar essas transforma<;6es como sendo a conseqlit~n- cia das transforma<;6es tecnicas, cstabelecendo entre estas e aquelas uma rela<;ao de causa e ef~ito. Se nossa Interpreta<;ao e exata, a rela- <;ao de causalidade (com a sucessao temporal que ela implica) deve seT abandonada _ como, alias, a ciencia moderna tcnde geralmente a fuzer _ em beneficlo de uma correla<;ao funcional entre os dols fenomen0s. Notemos, de passagem, que 0 reconhecimento do fato de que 0 progre~so tecnico tenha tido como correlativo historlco 0 desenvolvlmento da ex- plora<;ao do homem pelo homem, pode incitnr-nos a uma certa diserl<;ao nas manifesta<;6es de orgulho que nos Insplra Hio facllmente 0 primelro destes dois fenomenos. o segundo remedio e, numa larga medlda, eondiclonado pelo prlmel- ro: consiste em Introduzir, de bom grado ou It for<;a, novos parcelros na coliga,ao, desta vez extern os, e cujas "apostas" sejam bem diferentes das que caracterizam a associa<;ao inicial. Tambem esta solu<;ao fol ten- tada, e se 0 termo capitalismo pennlte, grosse modo, Identlfiear a p1'l- meifa, as te1'mos imperialismo e (;olonialismo ajudarao a llustrar a se- gunda. A expansao colonial do seculo XIX pennitlu a Europa Industrial renovar (e nao certamente em seu beneficio exclusivo) um Impulso que, sem a introdu<;ao de povos subjugados no circuIto, conerio. 0 risco de esgotar-se muito mais rapidal11ente. Ve-sc que, nos dois casos, 0 remedio e alaI gar a coliga<;ao, quer por diversificn,ao In terna, quer pela admissfto de novos parcelros; afinal de contas, trata-se sempre de aumentar 0 numero dos jogadores, Isto e, de voltar a complexldade e a diversidade da situn<;fto inicial. Mas ve-se tambem que estas solu<;6es so podem reta1'dar provisoriamente 0 pro- cesso. So pode haver explora<;ao, no seio de uma collga<;ao: entre os dois grupos, dominante e dominado, existem contatos e se fazem trocas. POI' sua vez, e apesar da rela<;flO unilateral que aparentemente os une, devem, consclente ou inconsclcntemente, juntar suas apostas e, progrc."l_ slvamente, as dlferen<;as que os op6em tendem a dlminulr. Por outro lado, as melhorias socials, por outro, 0 acesso gradual, dos povos colonlzados. a. independencla fazem-nos asslstlr ao desenrolar deste fenomeno; S6 bem que haja ainda muita estrada a percorrer nestas dUllS dlrer;6es, sabemos que as coisas irao inevitavelmente neste sentldo. Na verdade, talvez seja preciso interpretar 0 apareclmento, no mundo, de regimes politicos e socials antagonleos como uma terceira solu<;iio; pode-se con- ceber que uma diversifica<;ao, renovando-se cada vez em outro plano, permlta manter Indefinldamente, atraves de form as variavels e que nunca deixarao de surpreender os horn ens, esse estado de desequlllbrio de que depende a sobrevivencia biologlca e cultural da humanidade. De qualquer modo, e difiell imaginal', senao sob forma contradlt6- ria, um proeesso que se pode resumlr asslm: para progredlr, ~ preclso que os homens colaborem; e, no deconer desta eolabora<;fto, eles. veem Identlficar-se gradualmente as contrlbul<;6es, cuja dlferen<;a iniclal era precisamente 0 que tornava sua colabora<;ao fecunda e necessaria. Mas, mesmo que esta eontradi<;ao seja insoluvel, 0 dever sagrado da humanldade e conservar em mente seus dois termos, Igualmente pre- sentes; nunca perder de vista tim, em beneficio excluslvo do outro; evltar, sem duvlda, urn partlcularismo cego, que tenderla a reservar 0 privlle- gio da humanldade a uma ra<;a, uma cultura oU' uma sociedade; mas tambem jamais esqueeer que nenhuma fra<;ao da humanldade dlsp6e de formulas apllcaveis ao eonjunto, e que uma humanldade confundida num genero de vida unlco e inconcebivel, pois seria uma humanidade petrificada. A esse respeito, as instituI<;6es Internacionais tem dlante de sl uma imensa tarefa, e pesadas responsabllidades. Ambas sao mals complexas do que se imagina. Pois a mlssao das institui<;6es internaclonais e dupla: consiste, por um lado, numa Iiquida<;ao, e por outro, num alerta. Devem, Inlcialmente, assistlr a humanldade, e tornar tao pouco dolorosa e pc- rlgosa quanto possivel a reabsor<;iio destas diversldades mortas, resi- duos sem valor de modos de colabora<;fto, cuja presen<;a em estado de vestiglos putrefatos constitul um •isco permanente de Infec<;fto para 0 corpo internaclonal. Devem podar, amputar se preciso, e facilitar 0 nas- clmento de outras formas de adapta<;ao. Mas, ao mesmo tempo, devem estar apalxonadamente atentas ao fato de que, para possuir 0 mesmo valor funcional que os precedcntes, estes novas modos nao podem reproduzi-Ios ou serem concebldos se-
  • 20. guinda 0 mesmo padrao, sem se reduzirem a soluc;6es cada vez mals insipidas e finalmente inefieazes. f: precise que saibam, ao cantnirlo, que a humanidade e rica de possiblJidades imprevistas, que, ao apare- cerem, sempre delxarao os homens estupefatos; que 0 progresso nao e feito a imagem confortuvel desta "similitude melhorada" onele nos pro- cur am os um repouso preguic;oso, mas que e repleto de aventuras, rup- turas e escandalos. A humanidade esta constantemente as voltas com dois 'processos contraelitorios, dos quais um tenele a instaurar a unifica- c;ao, ao passo que 0 outro visa a manter ou restabelecer a diversificac;ao. A posic;ao de cad a epoca ou de cada cultura no sistema, a orientac;ao segundo a qual ela se encontra ai engajada, sao tals que apenas um destes processos the parece tel' urn sentido, parecendo 0 outro ser a negac;ao do primeiro. Mas dizer, como poderiamos estar Inclinados, que a humanidade se desfaz, ao "mesmo tempo que se faz, ainela se originarla de uma visao Incompleta. Pois, nos dols pianos e em dols nivels opostos. trata-se bem de duas manelras de se fazeI'. A necessldade de preservar a diversidade das culturas, num mundo ameac;ado pela monotonia e uniformidade, nao escapou certamente as instltuic;6es intemacionais. Elas devem compreender tambem que niio bas tara, para atingir esta finalielade, acalentar tradic;6es locais e con- ceder uma tregua aos tempos passados. E 0 fa to da diversidade que deve ser salvo, nao 0 conteudo hlstorleo que cada epoca the deu, e que ne- nhmna saberia perpetual' pan alem de sl mesma. E preclso, pOltanto, atentar para a forc;a nascente, encorajar as potencialidades seeretas, despertar todas as vocac;6es para conviver que a his tori a tem em reser- va; e preciso tambem estar pronto para considerar sem surpresa, sem r.epugnancia e sem revolta, 0 que todas essas novas formas sociais de expressao nao poderao deixar de ofere eel' de inusitado. A tolerancia nao e uma posic;ao contemplativa, dispensando as Indulgencias ao que foi ou que e. E uma atitude dinamica, que consiste em preyer, com preen- del' e promover 0 que quer ser. A divcrsidade das culturas humanas est:. atras de nos, a nossa volta e a nossa frente. A unica relvindicac;ao que podemos fazer a este respeito, (exigencia que cria para cada individuo deveres correspondentes) e que ela se realize de modo que cada forma seja uma contribuic;ao para a maior generosidade das outras.