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Introdução – Sumários
29/30-09-2022 – Aulas teóricas
1. A ordem jurídica e a sujeição do homem às duas regras
1.1. Considerações introdutórias
Para se orientar na vida os seres animados precisam de indicações. A este
respeito os animais em princípio seguem o que os seus instintos lhes indicam.
Mas quanto ao homem – ao contrário do que sucede com os animais – os instintos
que (ainda) possui não são suficientes para ele se orientar na vida. Sob este
aspecto podemos dizer que o homem é um ser ontogeneticamente inacabado.
Deste modo, precisa de padrões de conduta na vida e que lhe digam como se
deve comportar1. Não sendo os seus comportamentos determinados
essencialmente por instintos, é precisamente nas regras que os homens
encontram os modelos de orientação para as suas condutas. A sua vida de
convivência social, a realidade social, são ordenadas e disciplinadas por regras
sem as quais não consegue viver em sociedade e até o simples modo de vestir
obedece a regras (variáveis é certo) conforme as situações e as convivências
sociais. Já as crianças brincam de acordo com regras de jogo que estabeleceram
e que, de resto, observam com grande seriedade pois estas regras, ao criarem
igualdade de oportunidades para ganhar o jogo, permitem-lhes competir entre
si.
As regras dizem ao homem o que está certo ou errado, justo ou injusto, o que
vale e o que não vale, e são padrões de conduta que emanam das mais variadas
instituições que representam as estruturas da organização social em que o
homem está inserido.
Contudo, as regras não têm todas a mesma natureza ou importância; conforme
a sua origem varia a força vinculativa com que se impõem. Portanto, como ainda
veremos, quanto à sua força vinculativa há regras e regras atendendo
precisamente à sua origem.
1.2 A aprendizagem das regras de convivência humana: as Instituições e suas
regras; a individualidade dos homens; as relações humanas como relações de
poder
1
Cf. João BAPTISTA MACHADO, Introdução, pp. 8/9.
Como as regras não são congénitas o homem tem que as apreender. Desde o
seu nascimento o homem encontra-se envolvido num determinado ambiente que
o rodeia e influencia, ou seja, num contexto em que foi exposto e que actua
sobre ele, um contexto essencialmente humano. Quer dizer, o homem, desde o
seu nascimento sente a conivência humana que o rodeia. E esta convivência com
outros homens acompanha-o durante toda a sua vida, uma vez que apenas em
sociedade humana consegue (sobre)viver. Mas, para se orientar necessita, como
vimos, de regras.
Estas regras emanam de “instituições”. Por esta razão, para viver em sociedade,
o homem precisa de instituições2. As instituições poderão ser definidas como
conjuntos na realidade social que, como organizações sociais, estabelecem para
quem a elas pertence regras de conduta ou de comportamento que têm carácter
normativo e normador (norma = regra) e que, ao serem observadas, garantem
a segurança nas relações entre os homens abrangidos por elas3. É precisamente
nas instituições em que está inserido (familiares, educativas, económicas,
culturais, desportivas, políticas, etc.) com as suas normas próprias e padrões de
conduta com a sua grande variedade, que o homem aprende viver regradamente
em sociedade com os outros. Muitas vezes, as regras de convivência nem sequer
são sentidas porque na consciência das pessoas já estão completamente
interiorizadas como habituais. A primeira instituição em que o homem está
inserido e começa a ser socializado é a família, em que é exposto ao ambiente
social em que começa a sua aprendizagem do mundo.
Obviamente, também as regras ou normas jurídicas são parte da realidade social
que elas visam ordenar. Subjazem-lhes – de uma maneira ou outra – instituições
(ou realidades sociais) já prefiguradas na vida social com que interagem. Esta
constatação fica bem ilustrada, por exemplo, em relação a associações ou
sociedades e o direito que acaba por as enquadrar no seu sistema e, sobretudo,
quanto ao direito da família com as suas instituições próprias como o casamento,
a filiação ou a adopção que a vida real já configurou. Por isso mesmo o direito
da família é designado como um direito institucional.
A natureza social do homem – que tanto pertence ao mundo natural como ao
mundo cultural em que nenhum dos dois se sobrepõe ao outro e que estão
interrelacionados – determina que ele tenha necessidade de estar inserido em
instituições sociais que lhe dão estabilidade, orientação e regras nas suas
condutas e que, ao mesmo tempo, também o condicionam. O homem é um ser
social que evolui e se realiza na convivência com os outros, apresentando-nos
2
João BAPTISTA MACHADO, Introdução, pág. 8.
3
Cf. também João BAPTISTA MACHADO, Introdução, pp. 16, 22.
uma natureza ambivalente como indivíduo autónomo e ser social, a “sociabilidade
não social”, no dizer de Kant.
O homem está sempre relacionado com alguém – o homem precisa do outro – e
como indivíduo depende da sociedade. A sua sociabilidade existe em todos os
estados da sua evolução e em todas as culturas, sendo certo que os concretos
modos de convivência são naturalmente diferentes, exceptuado um ponto: todas
as relações sociais, inclusive as relações jurídicas, são, embora com graduações
diferentes, sempre relações de poder (sendo certo, todavia, que na maioria das
situações haverá um equilíbrio de poder, mas pode não ser assim, como acontece
não raras vezes, para referir apenas um exemplo, no mundo das relações
económicas e socais marcadas por grandes competividades onde se impõe o
poder do mais forte).
Por mais individualista um homem queira ser, ele continua inevitavelmente um
ser social. A sua humanidade específica está intrínseca e inseparavelmente ligada
à sua sociabilidade e a sociedade é uma forma de vida necessária por natureza
ao homem, essencial à constituição da humanidade do homem4. Por outro lado,
a conduta do homem enquanto ser social precisa de uma “ordem” que legitima
a sua actuação, de uma organização que implica a existência de regras ou normas
que o disciplinam. A necessidade de organização implica a existência de regras
ou normas que disciplinem a conduta do homem que, enquanto ser social, precisa
de uma “ordem” que legitime a sua atuação.
Os homens distinguem-se e caracterizam-se por uma extrema complexidade, por
uma individualidade que é um mosaico das mais diversas vivências que a
identificam, havendo assim diferenças consideráveis entre uns e outros, dotes
naturais muito desiguais, mentalidades e comportamentos diferenciados, sendo
estes comportamentos nem sempre “racionais” e dificilmente previsíveis ou
prognosticáveis e muitas vezes determinados por ressentimentos, antipatias, ou
invejas e, mesmo nas relações comerciais, não apenas por uma racionalidade
económica. Sendo assim, vemos que são as diferenças entre eles que mais
caracterizam os homens; diferenças essas que, com toda a sua diversidade e
multiplicidade, em caso algum afectam os homens na sua igualdade em
dignidade e direitos (e obrigações) decorrente da natureza humana e comum a
todos os seres humanos, mas estão perfeitamente de acordo com elas.
A primeira Declaração dos Direitos do Homem, o Bill of Rights da Virgínia, de
1776, por exemplo, proclamava que “all men are created equal”5 e, no mesmo
4
Cf. João BAPTISTA MACHADO, Introdução, pp. 11, 13; o realce é do autor citado.
5
A estes “all men” não pertenciam os escravos; “all men” eram unicamente os “free men”. Os
escravos eram considerados de valor inferior e mercadoria; cf. US-Supreme Court em 1857 no
processo Dred Scott v. Sandfort que decidiu que o escravo não tinha a qualidade de cidadão
americano.
sentido, apontava o lema da Revolução Francesa de 1789 “liberté, égalité,
fraternité”6.
Na verdade, todos os homens são todos iguais como homens, têm a mesma
natureza humana, mas como indivíduos são todos diferentes.
Contudo, embora dando estabilidade e orientação às condutas dos homens, as
próprias instituições estão naturalmente sujeitas à evolução (cultural, científica,
económica, política, social). Camões escreveu “todo o mundo é composto de
mudança, tomando sempre novas qualidades”, que dizer, a constante do mundo
é a mudança e a mudança da própria mudança. Para entendermos isso, basta
olharmos para o curto período da evolução da instituição da família – do Código
Civil, de 1967, até à Lei n.º 9/2010, de 31 de Maio, com as suas percepções
(revolucionadas) quanto a casamento7 e filiação, para não falarmos dos efeitos
enormes provocados pelos conhecimentos científicos respeitantes ao início (com
a procriação medicamente assistida e maternidade de substituição) e ao fim (a
morte cerebral e a permissão da transplantação de órgãos ainda vivos) da vida
– que no decurso de pouco mais de uma única geração sofreu alterações
profundas que reflectem a evolução e a alteração das concepções predominantes
na sociedade e a modificação das mentalidades das pessoas. E tudo isto
aconteceu sem convulsões sociais. Todavia, não obstante todas estas evoluções,
a família – ou os vários modelos familiares que foram surgindo – manteve a sua
função institucional de sempre: a inserção do homem na sociedade (sua
socialização primária), a aprendizagem de viver em comunidade, ou seja, de viver
num ambiente humano.
1.3 A Ordem natural e a ordem social
1.3.1 A ordem natural
Já Aristóteles abordava e distinguia entre direito natural e direito legal. O direito
natural tem em todos os lugares a mesma força e não depende do consentimento
ou não-consentimento dos homens (é, portanto, pré-existente). São regras
comuns à humanidade que vigoram sem mais em toda a parte. E em sentido
6
Sendo certo, porém, que estes princípios não se aplicavam aos escravos da colónia francesa do
Haiti, ao contrário do que eles legitimamente esperavam, e que se viram forçados a aprender
que não era bem assim quando a sua comunidade foi duramente esmagada.
7
O Código Civil, de 1967, na sua redacção primitiva definiu o casamento no artigo 1577.º como
“contrato celebrado entre duas pessoas de sexo diferente que pretendam constituir
legitimamente a família mediante uma comunhão plena de vida” enquanto a partir da Lei n.º
9/2010 o casamento passou a ser definido no artigo 1577.º como “contrato celebrado entre duas
pessoas que pretendam constituir família mediante uma plena comunhão de vida, nos termos
das disposições deste Código.”
semelhante Montesquieu constatou que há leis que os homens fizeram e leis que
eles não fizeram (mas que têm de observar).
O direito natural é perfeitamente diferente das leis naturais. O direito natural –
pré-existente ou sobrepositivo (cf.→ ponto 1.4.1) – regula de um modo universal
as relações humanas a partir de uma ideia de justiça; as leis naturais respeitam
a fenómenos naturais e ignoram por completo qualquer ideia de justiça.
1.3.2 A Ordem sociocultural como ordem normativa
A condição biológica (física) do homem, insuficiente para se afirmar por si só,
acaba por ser completada, pela sua condição ou componente cultural, sendo as
condições biológicas e culturais complementares, e não opostas. A cultura – com
as suas manifestações e produções, padrões de conduta e interacção, atitudes,
crenças e regras – é o meio ambiente construído pelo homem. Os padrões
culturais dizem ao homem como como se há-de comportar, dão lhe segurança e
ao mesmo tempo liberdade. “Tais padrões culturais de conduta ou instituições
representam para o indivíduo uma libertação do ónus de ter que tomar
demasiadas decisões (e são) um indicador do rumo” pelo qual se deve orientar8,
sendo certo que as culturas que os homens desenvolveram são muito diferentes
entre si9. Na medida em que o homem se mantém dentro dos respectivos padrões
culturais, anda seguro. Ele perde esta segurança quando é colocado num
ambiente cultural diferente que não conhece e em que não se sabe orientar.
Todavia, a cultura não determina por completo o pensar e agir dos homens na
medida em que é constitui “apenas” um complemento imprescindível da sua
condição biológica. Por outro lado, não há conhecimentos seguros quanto do
comportamento do homem é determinado biológica ou culturalmente; depende
da respectiva cultura.
1.3.3 A Ordem jurídica como necessidade prática para a convivência humana
A função do direito aparece-nos desta maneira como uma necessidade prática:
mediante o estabelecimento das suas normas de conduta possibilita e assegura
o desenvolvimento do homem na sua convivência com os outros, bem como a
satisfação dos seus interesses próprios ou individuais. O direito estabelece deste
modo regras para o comportamento exterior dos homens na sua convivência
entre si, define o quadro dentro do qual se podem (e devem) mover. Esta função
tem em vista sobretudo os aspectos da ordenação da liberdade individual e da
8
Cf. João BAPTISTA MACHADO, Introdução, pp. 9 e 8.
9
Por exemplo, a cultura dos astecas era bem diferente da cultura dos espanhóis que os
enfrentaram e não entenderam.
criação de segurança e certeza na convivência social.10 E as normas jurídicas que
vão ao encontro dos interesses dos homens revelaram-se, desde sempre, mais
eficientes do que proibições ou punições. Assim, quando a “ordenação da
liberdade” vai longe demais e constitui espartilhos à sua liberdade originária, o
homem autónomo tende a subtrair-se às normas jurídicas e a criar sistemas
paralelos, à margem das leis11. Portanto, apenas uma ordem jurídica que realize,
de uma maneira equilibrada, liberdade e segurança continua a ser aceite e
consegue conciliar e ordenar os interesses divergentes entre os homens ou entre
estes e a sociedade, bem como dirimir os conflitos que daí possam resultar.
Por regra, a ordem jurídica – que é aceite – conta com a observância espontânea
e o cumprimento voluntário das suas normas, em virtude do sentimento jurídico
comum dos homens, cuja convivência visa regular. Contudo, quando ela não é
experimentada como justa, mas antes como um regime de força (de modo que
uma infracção nem sequer é tida como tal), o referido comportamento não se
verifica. O mesmo sucede em períodos de crise (por exemplo, guerra, catástrofes
naturais com efeitos graves e prolongados, períodos de decadência moral), em
que se dissolvem os valores comuns da sociedade e, entre eles, também o
sentimento comum de justiça. E nestas situações todas as autoridades públicas
são poucas para manter a paz social.
Sempre que as normas jurídicas são desrespeitadas é necessário e lícito que os
órgãos estaduais recorrem a meios coercivos para impor a sua observância. É
uma característica do direito serem as suas normas munidas de coercibilidade12,
segundo as regras e formas de um processo judicial, ordenado e formalizado de
maneira objectiva e isenta para garantir a igualdade processual das partes
litigantes. O processo é levado a cabo pelas instâncias estaduais competentes, o
que exclui desde logo o recurso das partes à força própria. Na medida em que é
vedado fazer justiça pelas próprias mãos, o direito serve e protege desde já o
mais fraco, incapaz de se defender pela força, por ser mais fraco, mas capaz de
fazer valer os seus direitos num processo judicial, cujas decisões são executadas
igualmente por órgãos judiciais do Estado. Há, a este respeito, um monopólio do
Estado no sentido de fazer respeitar e impor o seu direito pela força. Só muito
excepcionalmente, quando não é possível recorrer aos meios coercivos normais,
o uso da força própria é permitido (cf.→ ponto 8.2).
10
Cf. J. BAPTISTA MACHADO, «Tutela da confiança e “venire contra factum proprium”», cit. = RLJ
117 (1984/1985), pp. 229 e ss.
11
De resto, cada homem dispõe de uma esfera privada íntima, um último reduto da sua liberdade
humana, que é intocável e está subtraída a qualquer intervenção de todos os poderes públicos.
Assim, BVerGE 6, pp. 32, 41 (Elfes-Urteil).
12
Nem toda a doutrina defende o significado da coercibilidade como característica essencial do
direito. Cfr. J. BAPTISTA MACHADO, Introdução, p. 33.
Em qualquer caso, e isto convém ser sublinhado, não pertence às funções do
direito eliminar as diversidades de interesses entre os homens e as correlativas
relações de tensão, necessárias à realização do homem na convivência com os
seus pares. De modo igual também não é função do direito eliminar a relação de
tensão existente entre o homem autónomo e a sociedade em que se integra,
dando supremacia àquele ou a esta. Uma solução neste sentido não
corresponderia às condições da natureza humana. Todas estas relações de
tensão devem ser ordenadas e reguladas de forma a garantir o desenvolvimento
tanto do homem autónomo, do indivíduo, como da própria sociedade, com todos
os efeitos frutíferos e benéficos, decorrentes de relações assentes na evolução
dinâmica dos seus elementos componentes13.
1.3.4 A Ordem moral como regra ética
Nestes termos, a função do direito é ordenadora e criadora de segurança e
certeza, que são valores elevados e imprescindíveis para a convivência humana.
Mas um valor mais que pode ser considerado como mais elevado do que a ordem
jurídica14 é a ordem moral. Esta distingue-se daquela tanto quanto ao conteúdo
como quanto à sua finalidade. O direito respeita, como vimos, às relações dos
homens entre si ou com a sociedade ao ordenar, delimitar e compatibilizar as
suas esferas de interesses e de actuação. Assim, o direito visa regular a
convivência exterior ao garantir a liberdade de agir. Dentro desta finalidade, a
observância das regras jurídicas é coercível, pois um comportamento exterior
pode ser fiscalizado e imposto. A ordem moral, por seu lado, dirige-se para dentro
e aponta para as convicções internas e o aperfeiçoamento ético do homem. Ela
resulta da sua consciência e é com base neste “fio condutor interno” que o
homem procura (ou deve procurar) pautar os seus actos. Por isso, as normas
morais são insusceptíveis de execução coerciva. Porque, se um comportamento
exterior pode ser obtido por via coerciva, as convicções internas subtraem-se a
semelhante tratamento. Quer dizer, uma lei não obriga “em consciência”, mas
obriga “por obediência”. Todavia, normalmente as condutas dos homens
conforme as leis correspondem também às suas convicções morais.
Dada a sua função de ordenação exterior da convivência humana, o direito
possibilita a todos viver em conformidade com as suas convicções interiores de
acordo com as suas concepções morais, crenças ou confissões religiosas. Mas
isto não quer significar que o direito dê a todos uma carta-branca em assuntos
morais (para a qual, aliás, nem teria competência funcional). Acresce que o
13
Mas isto significa também que só é possível garantir aos indivíduos os seus interesses legítimos
se, ao mesmo tempo, são garantidos à comunidade todos os recursos a que esta tem,
legitimamente, direito. Henry GEORGE, Progress and Poverty, London, 1884.
14
Para Aristóteles um valor superior ao direito é a amizade entre os homens. Mas este valor
transforma-se no seu contrário quando a amizade é colocada acima da lei, segundo o lema “ao
amigo é tudo devido e ao inimigo aplica-se a lei”.
direito não pode ignorar a moral, não pode abstrair de princípios morais. Estes
últimos são, de facto, orientações para ele, apesar das suas finalidades e níveis
de actuação diferentes. Contudo, daí não resulta que o direito pode, sem mais,
transpor princípios morais para o seu domínio, a não ser em situações específicas,
como sucede, por exemplo, quando o Código Civil, nos seus artigos 280.º e 281.º,
invoca os “bons costumes”, ou seja, os valores morais positivos compartilhados
e vigentes na sociedade, que um negócio jurídico deve respeitar (sob pena de
nulidade). O direito não pode juridificar a moral15, pois isto significaria que os
homens tivessem de subordinar não apenas o seu pensamento, i. é., as suas
convicções morais, mas também o seu comportamento exterior à moralidade o
que favorecia a hipocrisia e, pior, a intolerância e seria destruidor da liberdade e
da democracia e, em última análise, totalitário no sentido de quem impõe os seus
critérios morais16.
Na medida em que o direito não pode abstrair de todo de princípios morais pode
dizer-se que o ele se deve orientar na moral, na medida em que consagra o
“mínimo ético”, uma ordem de valores, que é aceite por todos17. Caso isto não
suceda, ao verificar-se uma dissonância aguda entre convicções morais
generalizadas e a ordem jurídica (ou uma parte sensível da mesma), estamos
perante uma crise social em que a ordem jurídica é sentida como um mero
sistema de força e não de justiça.
1.3.5 As Normas de conduta ou trato social
Diferentes das normas jurídicas e das exigências morais são os usos e costumes,
ou seja, meras normas de conduta social que, sendo observadas de facto pelos
homens, em princípio não têm valor jurídico, embora este, segundo o artigo 3.º
do Código Civil, pontualmente lhes possa ser atribuído por lei, como podemos
ver no exemplo do artigo 218.º do Código Civil, que considera o silêncio como
um meio declarativo quando este valor lhe é conferido pelos usos do tráfico
negocial18. À semelhança das normas jurídicas, as normas de conduta social são
15
Conflitos morais podem ser insolúveis para quem os sofrer e o seu desfecho não pode ser
imposto pelo direito, mas apenas permitido (por exemplo, em casos de diagnóstico pré-natal, de
interrupção da gravidez, da eutanásia, da utilização de embriões para fins terapêuticos ou ainda
da maternidade de substituição).
16
O mesmo sucede, inexoravelmente, quando se invocam ou aplicam princípios morais desligados
ou desenquadrados de quaisquer regras jurídicas.
17
Nas sociedades contemporâneas, pluralistas e individualistas (ou indivíduo-centristas),
religiosamente divididas e multi-étnicas, os homens partilham cada vez menos convicções morais
comuns, de modo que o “mínimo ético” aceite por todos fica cada vez mais reduzido, deixando
de dar uma orientação global ou uma base firme de valores comuns aos homens e à sociedade.
Nesta medida aumenta a relevância da ordem jurídica e simultaneamente a dificuldade para ela
de regular os comportamentos humanos, de estabelecer consensos e de garantir a paz social.
18
Portanto, para o Código Civil não há a regra quem cala consente. Também podemos referir os
artigos 1122.º, 1128.º, 1323.º, 1357.º e 1359.º, que, nas relações de vizinhança, se referem aos
usos da terra e suas tradições.
exteriores ao homem, mas, precisamente por não terem natureza jurídica, não
são como aquelas judicialmente coercíveis, sendo a sua observância sancionada
apenas por uma “coerção social” que consiste no desprezo, na marginalização ou
mesmo na exclusão da vida social. Esta sanção, por seu lado, tanto pode quase
não ser sentida, como pode ir mais longe e até ter consequências mais graves
do que a inobservância de uma norma jurídica, devido ao isolamento ou social
do infractor em reacção à sua conduta desconforme com as normas sociais
vigentes19.
Juridicamente relevantes são, por isso, apenas as normas do direito e, ainda,
excepcionalmente, as normas morais e as normas de conduta social quando elas
são juridificadas, quer dizer, dotadas de valor jurídico que lhes é atribuído pelas
próprias normas jurídicas, tal como exemplificámos com as disposições dos
artigos 280.º, 281.º, 218.º do Código Civil.
Acrescente-se que, quanto à realização ou à observância das normas jurídicas, o
homem está submetido a duas exigências: a exigência da justiça, bem como a
exigência da equidade (suum cuique tribuere et neminem laedere). Mas, em
contrapartida, nenhum homem está em relação ao seu próximo numa posição de
superioridade (ou de distanciamento) de tal ordem que apenas possa olhar para
o (seu) direito, tendo, nesta perspectiva, atitudes de fariseu; também deve ser
samaritano ou solidário20. A solidariedade é o comportamento mais humano (e
que não existe no mundo animal dominado pelos instintos). Igualmente não
podemos dizer que a crescente juridificação das relações inter-humanas as torna,
por causa disso, mais humanas; pelo contrário, frequentemente são tristes as
situações em que os homens, para se entenderem, nada mais sabem do invocar
direitos e leis.
1.4 A problemática do Direito Justo
1.4.1 Jus-naturalismo e jus-Positivismo
19
Na verdade, o medo de reacções provocadas por uma conduta “socialmente não correcta” faz
com que, com frequência, as pessoas se abstenham de formular um juízo próprio quando julgam
ou sentem que, com isso, contrariam as correntes de opinião dominantes. Desta forma há
assuntos em que não se quer tocar, ou por medo de se ser conotado com posições que lhe são
atribuídas falsamente, ou por medo de colher aplausos do lado errado. A partir do momento em
que uma posição deixa de ser defendida em público, ela está derrotada por já não ter voz.
Mas já não teme o isolamento social quem estiver desintegrado (excluído) da sociedade e, por
isso, não considera as consequências do seu comportamento, de modo que as normas de conduta
social perderam para ele os seus efeitos integradores e orientadores.
20
Por outro lado, a delimitação dos actos de solidariedade de deveres jurídicos não é líquida. Cf.
Júlio GOMES, «A controvérsia norte-americana em torno da consagração legal de um dever geral
de socorro», RDE XIV (1988), p. 101.
Ao ordenar a vida em sociedade o direito baseia-se fundamentalmente na ideia
da justiça que o legitima: o direito é uma ordem de convivência humana com um
sentido – o sentido da justiça. Mas as leis que consagram o direito podem não
ser sentidas como justas por contrariarem o sentimento de justiça comum dos
homens a que se destinam.
Como ponto de partida vamos admitir que o direito vigente plasmado em leis,
passa a entrar em contradições insanáveis com as concepções de justiça e as
convicções morais dominantes na sociedade que deve ordenar21
. Já vimos que o
direito não pode desconhecer a moral, não pode abstrair de princípios morais.
Caso contrário, pode surgir um conflito entre as convicções morais reinantes e as
imposições da lei em vigor que as despreza. É principalmente neste contexto
(mas não só) que se põe a problemática do Direito Justo.
A este respeito existem historicamente duas grandes linhas doutrinais, de um
lado as concepções do jus-positivismo e do outro as do pensamento do jus-
naturalismo, que se sucederam e evoluíram com modificações da antiguidade até
hoje.
Para o jus-positivismo o direito é feito pelo homem. A norma legal é encarada
como um acto de vontade do legislador, acto esse que, sendo a única fonte de
direito, traz o seu pleno sentido dentro de si. Assim, factores extralegais, como
por exemplo, o pensamento legislativo ou a realidade social, mesmo quando
modificada em relação ao tempo da feitura da lei, não são negados, mas nega-
se-lhes importância na aplicação da lei. Deste modo, o jus-positivismo aparece,
na sua modalidade mais rigorosa, como método interpretativo de uma fidelidade
incondicional à lei, como método que sujeita o jurista à lei sem lhe consentir a
pergunta acerca da sua justiça ou da sua moralidade. Neste contexto podemos
ver o n.º 2 do artigo 8.º do Código Civil que determina “o dever de obediência à
lei (ao qual o juiz está subordinado) não pode ser afastado sob pretexto de ser
injusto ou imoral o conteúdo do preceito legislativo” que assente na premissa de
a lei estar em conformidade com a justiça e a moral, dá, todavia, a subentender
que uma contradição poderá existir.
21
Uma constante do direito é (ou deve ser) a sua constante renovação. Mas não é só o direito, o
conteúdo das leis, que muda, renovando-se. Também as próprias concepções acerca do direito
e as suas funções, inclusive a própria ideia da justiça, estão sujeitas à evolução.
Esta constatação deve prevenir-nos contra a tentação (fácil) de julgar o direito do passado a
partir de conhecimentos e experiências adquiridos posteriormente, com juízos de valor ou
concepções ou ideologias (efémeras ou não) ou até modas de hoje. Bem pelo contrário, o direito
passado deve ser julgado dentro do seu contexto histórico, como ficou moldado pela evolução
correspondente, de acordo com os conhecimentos as experiências existentes na altura e dentro
da realidade social à qual se destinava. Se assim não acontece, cai-se num anacronismo e
comete-se, regularmente (e não poucas vezes conscientemente), uma falsificação.
Assim, também Aristóteles fez uma distinção entre o direito natural e o direito
legal. Quer dizer, desde a antiguidade houve sempre quem se interrogasse se
acima do direito positivo, que vigora e consta das leis, haverá um outro direito,
o direito natural, que prevalece sobre o primeiro e em que este encontra a sua
última fonte de validade e justificação, podendo este direito natural emergir ou
da natureza ou da vontade de Deus ou da condição humana ou da lógica da
razão. Neste sentido entende-se por direito natural um direito que existe
independentemente de uma estatuição humana e que vale de modo imutável
para todos os tempos e todos os povos.
Por conseguinte, os representantes do jus-naturalismo – uma vez que o direito
se legitima pela ideia de justiça – defendem a existência de um direito supralegal,
precisamente o direito natural, com as suas regras comuns para toda a
humanidade que valem sem mais em toda a parte, sendo certo que entre os seus
defensores não existe um conceito inequívoco a respeito deste direito. O direito
natural gira em volta da natureza essencial do homem que é comum a todos.
Segundo a concepção do jus-naturalismo, o direito é ao longo dos tempos
imutável no que diz respeito a determinados valores fundamentais, inerentes à
natureza humana (ou apenas mutável em consequência de convicções jurídicas
generalizadas em relação aos valores fundamentais resultantes da natureza do
homem, que evoluem em conformidade com as concepções éticas), valores
esses, que o direito positivo legislado tem que respeitar.
O direito natural tem sido, ao longo dos tempos, objecto da preocupação de
filósofos, historiadores, juristas e teólogos. Podem distinguir-se, na história, três
grandes épocas do pensamento jusnaturalista (apresentando cada uma delas
cambiantes e correntes diferenciadas): o pensamento da antiguidade (de
Hesíodo e Aristóteles até Séneca e Marco Aurélio) parte da existência de uma
ordem natural; o pensamento medieval cristão (de Sto. Agostinho até São Tomás
de Aquino e Francisco Suárez) é pensamento teológico: ”natural” significa ser
equivalente a não ter sido criado ou concebido pelo homem, existe por si; o
direito natural é universal, imutável e indelével; o pensamento do iluminismo (de
Grotius até Rousseau e Kant) afasta-se do pensamento teológico e coloca a razão
e/ou a natureza do homem no centro das suas reflexões (desviando-se quase
dos entendimentos tradicionais). Sendo assim, também o direito deve ser
deduzido da razão. Este entendimento teve uma relevância significativa no
período do jusnaturalismo racionalista dos séculos XVII e XVIII com efeitos de
grande alcance nas legislações posteriores.
A função do direito natural, que existe independentemente de uma eventual
concretização sua no direito positivado, actua como princípio universal em dois
sentidos: por um lado serve, afirmativamente, para legitimar o direito positivo
vigente expresso nas leis e em sintonia com ele; por outro, põe, dubitativamente,
como fator de correção, o direito vigente em causa à procura de um direito ainda
mais justo e mais em conformidade com os valores humanos comuns a todos os
homens, limitando assim a margem de decisão do legislador.
Na medida em que o pensamento jusnaturalista invoca a moral como alicerce do
direito, constitui a crítica da moralidade ao direito positivo. É patente que uma
contradição generalizada entre o direito positivo e as normas da moral provoca
uma crise social (ou é uma expressão da mesma). Em casos extremos esta crise
pode resultar numa revolução como mostra o exemplo da Revolução Francesa
de 1789 fomentada por exigências jusnaturalistas fundamentadas na razão.
O pensamento jusnaturalista racionalista teve um êxito enorme nas legislações
dos séculos XVIII e XIX, nas quais ganhou a sua expressão ao esgotar-se nelas
(de maneira que a antinomia entre direito positivo e direito natural deixou de ser
sentida por muito tempo porque as leis estavam em sintonia com o direito natural
de modo que se desvaneceu a consciência de que as leis podiam ser não justas
em virtude de não respeitarem valores de justiça superiores). O pensamento
jusnaturalista acabou por ser afastado, ainda no século XIX, pela Escola histórica
do direito (Beseler, K. F. von Savigny) e pelo jus-positivismo. Para a escola
histórica o direito é um fenómeno histórico que nasce do espírito do povo, dos
seus costumes, em que se manifesta e que traduz a mentalidade da respectiva
comunidade.
Seja como for, devido aos actos legislativos dos regimes totalitários do século XX
(fascismo, nazismo, estalinismo, maoismo) que “permitiram” com as suas leis
atentatórias aos valores da humanidade violações gravíssimas do direito (e da
justiça e da moral), voltou a haver uma consciencialização da antinomia entre o
direito positivo e os princípios superiores de um direito natural que levou a um
renascimento do jus-naturalismo, pensamento que o século XIX julgava poder
considerar ultrapassado e dispensável. Talvez se possa concluir que sempre se
chama pelo direito natural e pelos seus princípios quando o direito positivo estiver
em crise por se ter afastado daquele. Quanto maior este afastamento tanto mais
alto soa o grito pelo direito natural. Realmente, a experiência histórica da
humanidade – sobretudo quando esta julgou que fossem “factíveis” todas as
coisas – mostra que é justificado o pensamento jusnaturalista e que não está nas
mãos do homem criar um direito ideal e inteiramente justo.
1.4.2 Interdependência entre a ordem jurídica e a ordem moral
As normas ou regras de conduta que mencionámos (normas jurídicas, morais ou
de conduta social) situam-se a níveis diferentes e por isso a sua não observância
tem também consequências diferentes.
Como esclarecemos, a não observância das normas jurídicas, faz com que o seu
cumprimento seja imposto coercivamente pelos órgãos estaduais competentes.
A não observância das normas de conduta social, por seu lado, é sancionada pela
exclusão da convivência ou marginalização de quem as infringe e esta sanção até
pode vir a ser muito mais sentida pelo infractor do que uma sanção pelos órgãos
estaduais. A não obediência às normas morais não leva a sanções externas, mas
é sentida no foro íntimo, na consciência, de quem as não respeita.
Por outro lado, pode suceder que a obediência que uma pessoa deve a normas
morais pelas quais se pretende guiar leve a conflitos com normas jurídicas que,
devido a estes imperativos morais, a pessoa se recusa a acatar.
Mas existe, neste contexto, uma diferença fundamental se uma norma moral é
invocada contra uma lei ditatorial ou de um tirano22
ou se uma norma moral (ou
religiosa) é invocada para justificar a inobservância das leis num Estado
democrático de Direito. Enquanto a invocação das convicções morais em sistemas
ditatoriais ou opressivas pode ter toda a sua justificação, a invocação de ordens
absolutas de natureza moral, religiosa ou de cariz cultural ou ideológico num
Estado democrático de Direito não pode proceder pois estas ordens hão-de ser
relativizados pela lei aplicável a todos. O Estado de Direito toma conhecimento
da posição individual, moral ou religiosamente absoluta, e pondera-a; mas a lei,
democraticamente consagrada, a que todos estão igualmente sujeitos, não pode
ceder. A exigência da proteção da comunidade é superior a uma lesão das
convicções individuais. Na verdade, a aceitação das leis pelos seus destinatários
é um pilar fundamental da sua legitimação democrática.
1.4.3 De qualquer maneira, quanto à obediência a normas devemos distinguir
entre estar obrigado juridicamente e estar obrigado moralmente.
Estar obrigado juridicamente significa que alguém, apoiado numa determinada
norma jurídica, pode exigir de outrem um comportamento, uma conduta, que
este está obrigado a observar (por exemplo: o artigo 879.º CCiv, estabelece os
efeitos do contrato de compra e venda, e determina nas suas alíneas b) e c) as
22
Veja-se o caso da tragédia grega de Sófocles, “Antígona”, que retrata a desobediência frontal
desta contra ordem dada por Creonte. Antígona era irmã de Etéocles e Polinices, filhos de Édipo,
que mutuamente se mataram na disputa pelo trono de Tebas. Como ambos morrem, sucede no
trono Creonte, cuja primeira ordem incidia sobre os rituais de sepultamento dos irmãos. Ordenou
Creonte que quanto ao corpo de Etéocles, com que se relacionava bem, haveria lugar a todos os
rituais de sepultamento, mas o corpo de Polinices, seu opositor, seria largado em terra vazia e
sem o direito de ser sepultado, para que fosse comido por aves de rapina e pelos cães vadios.
Com tal ordem, Creonte queria dar um aviso a todos os que tentassem agir contra ele ou se lhe
opusessem. Antígona recusou cumprir tal ordem e providenciou para que o seu irmão tivesse
todos os ritos sagrados no seu sepultamento ainda que isso significasse ter de pagar com a
própria vida por ter violado expressamente a ordem de Creonte, mas só assim conseguiria dar
cumprimento às leis divinas, às quais se achava submissa, e que prevaleciam sobre a ordem, a
lei arbitrária, ditada por Creonte.
obrigações recíprocas do vendedor e do comprador às quais correspondem os
direitos de exigir a entrega do bem vendido e o pagamento do preço acordado;
o artigo 2009.º do Código Civil diz quais são as pessoas que são obrigadas a
prestar alimentos e estabelece, no seu n.º 1, alínea d), também a obrigação de
prestar alimentos entre irmãos).
Estar obrigado moralmente significa que é a nossa consciência que nos impõe
um dever (por exemplo: dar uma esmola ou fazer donativos a quem for vítima
de uma catástrofe natural ou socorrer a quem está a afogar-se ou apoiar os
irmãos nos casos em que a lei não estabelece a favor deles uma obrigação
alimentar [como sucede no direito alemão que desconhece semelhante obrigação
jurídica] ou praticar um acto de solidariedade humana ao consentir que após a
morte os órgãos podem ser retirados e transplantados [em vez da sua retirada
com base da lei que a permite]).
Obrigações morais e jurídicas podem coincidir: socorrer a quem está a afogar-se
não é apenas uma obrigação moral, mas também jurídica. Neste caso, a omissão
de prestar auxílio é um crime e como tal punido. Ainda pode suceder que alguém
cumpre uma obrigação jurídica e ao mesmo tempo sente-se também moralmente
compelido a cumprir (por exemplo, prestar alimentos legalmente devidos a seus
irmãos; ou, quem paga os seus impostos fá-lo sempre por estar juridicamente
obrigado; mas há quem defenda que existe também o dever moral de os pagar;
a maioria das pessoas, embora pague, talvez não sinta este dever moral, mas
teme a execução forçada).
Como já sabemos, apenas a observância das normas jurídicas – e não de outras
normas como as morais ou sociais – é garantida pelo poder do Estado (através
dos seus meios coercivos). Compete ao Estado decidir, de chamar para si, se
uma dada norma de conduta é uma norma jurídica, um preceito legal, sendo
assim juridificada, ou se não o é. O Estado tem o monopólio de determinar quais
são as normas de conduta que têm força de lei, que são normas jurídicas. As
normas morais em princípio não devem ser juridificadas23
. Neste ponto, as ordens
jurídicas dos vários Estados podem ter percepções diferentes (como mostra o
exemplo da obrigação [jurídica ou moral] de prestar alimentos aos irmãos).
1.4.4 Neste contexto podemos distinguir para já – entre as várias modalidades
de normas (que ainda vamos estudar) – as seguintes, ou seja:
1) Normas preceptivas (= normas que prescrevem, que impõem um certo
comportamento (por exemplo, as disposições do artigo 879.º CCiv que prevêem
23
Por exemplo, como já vimos, ao referir os artigos 280.º, 281.º e 218.º, todos do Código Civil,
excepcionalmente podem ser juridificadas normas morais ou também normas de conduta social.
as obrigações de vendedor e comprador; as normas que obrigam a fazer um
contrato de seguro contra incêndios ou normas que exigem que se contraia um
seguro automóvel, etc.);
2) Normas proibitivas ou sancionatórias (exemplos: as normas penais; mas há
também normas civis que proíbem comportamentos ou sancionam factos ilícitos
[por exemplo os artigos 334.º ou 483.º CCiv]). Analisemos a hipótese legal do
artigo 483.º: “aquele que … violar ilicitamente o direito de outrem …” sofre a
consequência, a sanção, de “fica obrigado a indemnizar …”. Temos aqui uma
previsão abstracta e geral (“violação do direito de outrem”) [uma previsão é geral
e abstracta quando não se refere a um caso concreto e individual mas a um caso
qualquer possível em geral; à esta previsão geral e abstracta devemos subsumir
um determinado comportamento concreto que ocorreu (por exemplo, o atirar
uma pedra contra uma janela ou o envenenar o cão do vizinho, que são actos
que violam o direito da propriedade que o artigo 483.º não permite)];
3) Normas permissivas que atribuem poderes, faculdades e garantem liberdades
(por exemplo, no CCiv os artigos 405.º [que estabelece o princípio da liberdade
contratual que permite às partes fixar livremente o conteúdo dos contratos …
com as cláusulas que lhes aprouver”], 1305.º [que define os amplos poderes do
proprietário] ou 2179.º, n.º 1, e 2188.º [que consagram a liberdade de fazer um
testamento]. Mas devemos ter a consciência que todas estas liberdades existem
sempre e apenas “dentro dos limites da lei”.
1.4.5 Resumindo: podemos dizer que estas normas referidas exprimem três
ideias: “tu deves, tu não deves e tu podes”.
Mas é fundamental a ideia de que antes de tudo as normas jurídicas aceitam e
protegem a liberdade; elas criam espaços de liberdade para a actuação humana.
Mantendo-se dentro destes espaços de liberdade, portanto aceitando as regras
legais, o homem anda seguro, quer dizer, actua com a segurança que a lei lhe
oferece. Neste sentido, o direito estabelece regras para o livre querer (O. Gierke),
dirige-se a homens dotados de razão e capazes de se autodeterminarem.
No fundo, a liberdade não é concedida ao homem, ela pertence-lhe, é inata – o
homem nasce livre, como já realçámos. Ele pode fazer uso da liberdade como
lhe aprouver e sem prestar contas desde que não diminua ou prejudique
ninguém. Contudo, a sua liberdade encontra, naturalmente, os seus limites, ou
seja, os “limites da lei” (como nos mostram os exemplos das normas referidas).
Os alicerces da liberdade são a propriedade privada e o Estado de Direito, ou
seja, um Estado submetido à lei e sujeito ao controlo judicial. Sem um sistema
de justiça independente, isento e eficiente a liberdade não está garantida.
Efectivamente a maior conquista civilizacional é o Direito e sua aplicação isenta
e incorrupta por meio de uma justiça independente. Podemos dizer que nada
protege mais os elementos mais fracos de uma sociedade e evita o abuso do
direito pelo mais forte do que a existência do Estado de Direito e de uma justiça
independente.
Resta acrescentar que o espaço de liberdade reservado aos indivíduos dentro de
uma sociedade mede-se pelo grau de autonomia que a ordem jurídica lhes
concede na organização e conformação das suas vidas.
2. A ordem jurídica como ordem normativa
2.1 Subjacente à ordem jurídica estão as características que a definem e a
individualizam face às outras ordens normativas e que, de resto, implicitamente,
já foram referidas. Pertencem aqui as seguintes:
2.1.1 Necessidade
Já explicámos que a ordem jurídica surge como necessidade prática para regular
a convivência humana, em consequência da sua vida em sociedade, da existência
simultânea de duas ou mais pessoas24
. Já Aristóteles referia que o homem é um
animal social, pois é um ser carente que necessita de se relacionar com o outro
para atingir a sua plenitude. Assim, a necessidade de se relacionar com o outro
(a alteridade) pressupõe também que haja regras que definam e delimitem os
direitos de uns a que correspondem os deveres dos outros.
2.1.2 Exterioridade
O Direito não regula os comportamentos e pensamentos não exteriorizados. O
direito regula comportamentos ou relacionamentos exteriores. As intenções de
cada um, mantendo-se no foro interno de cada um e não sejam exteriormente
concretizadas por qualquer forma ou acto, não são perceptíveis para o Direito.
Mas isto não significa dizer que o pensamento de cada um não possa ser valorado
pelo Direito, caso o comportamento e conduta o venha a exteriorizar e revelar.
Na verdade, o Direito pode conferir tratamentos distintos, consoante esteja em
causa uma conduta que tenha sido praticada com a intensão de prejudicar, por
24
Se a realidade fosse como aquela que se apresenta no romance “Robinson Crusoé” de Daniel
Defoe, as normas jurídicas não seriam necessárias dada a sua inutilidade. O romance crê-se
baseado nas vivências de um marinheiro chamado Alexander Selkirk, em que o personagem
principal, Robinson Crusoé decide comandar um navio do Brasil para África com escravos, sendo
que no meio da viagem em virtude de uma forte tempestade o navio naufraga perto de uma ilha
deserta no mar do Caribe. Todos os tripulantes morrem com excepção de Robinson Crusoé, que
vive na ilha sozinho durante vinte anos até que salva um nativo que tinha sido capturado por um
grupo de canibais, a quem deu o nome de Sexta-feira, por ter sido esse o dia da semana em que
o encontrou e salvou.
exemplo uma actuação de má fé, ou uma conduta criminosa premeditada, só que
nestes casos, para que se valore o pensamento prévio à conduta, é necessário
que esta seja exteriorizada25
.
2.1.3 Estatalidade
Esta característica significa que o Direito provém do Estado, sendo emanado dos
seus órgãos pelo que também a estes compete a aplicação do Direito. Temos a
doutrina do monismo jurídico26.
Todavia, há quem defende-se o oposto: não se nega que o Estado crie e aplique
Direito, através dos seus órgãos competentes, somente não se aceita que o
Estado seja o único a emanar normas jurídicas nem tampouco que seja o único
com o poder de as aplicar, ou seja, nega-se o monopólio da criação e aplicação
do Direito pelo Estado. Assim a doutrina do pluralismo jurídico27.
2.1.4 Imperatividade e obrigatoriedade
Na sua função elementar ou fundamental a ordem jurídica contém um comando
e esta é a característica da imperatividade. Se a ordem jurídica não fosse dotada
desta característica a sua função de ordenação social ficaria esvaziada.
Esta imperatividade traduz-se também na existência de sanções jurídicas que são
aplicadas em caso de violação das normas jurídicas; aliás, é a sua existência que
muitas vezes fundamenta e prova a imperatividade das mesmas e compele ao
seu cumprimento. Contudo, também há normas jurídicas que não contêm uma
sanção jurídica – por exemplo as definições legais ou noções (ver artigos 67.º ou
202.º, n. 1, e 397.º do Código Civil) – e mesmo assim são imperativas por serem
obrigatórias.
Na verdade, a ordem jurídica é composta por normas jurídicas imperativas no
sentido de a sua observância ser obrigatória não apenas no significado de elas
imporem ou proibirem uma conduta, mas também na acepção de a permitirem
ao atribuir um poder, uma faculdade ou liberdade, como sucede por exemplo
com a liberdade contratual. Assim, para estabelecer relações jurídicas, por
25
Veja-se a título de exemplo o artigo 132.º, n.º 2, al. j) do Código Penal, de onde resulta a
qualificação do crime de homicídio por se entender que atua com especial censurabilidade ou
perversidade aquele que tenha atuado com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios
empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas.
26
A este respeito Hans KELSEN, Reine Rechtslehre, 2.ª edição de 1960, reimpressão, Wien 1976,
sustenta no capítulo VI (pp. 289 ss.) a teoria da identidade de Estado e Direito.
27
Há, de facto, fontes de direito supraestaduais em que o direito não emana de órgãos estaduais
como sucede designadamente com o Direito Canónico, o Direito Internacional Público ou com o
Direito da União Europeia (Regulamentos [que vigoram imediatamente nos Estados-membros] e
Directivas [que necessitam de ser transpostas para o direito interno de cada Estado-membro]).
O direito da União Europeia continua a adquirir uma relevância crescente nas ordens jurídicas
dos Estados-membros da União.
exemplo para concluir um contrato, é obrigatório utilizar normas jurídicas que
regulam os regimes do contrato. Por isso, liberdade contratual significa actuar
livremente dentro da ordem jurídica e assim é obrigatório recorrer ao modelo, o
tipo legal “contrato”, consagrado no Código Civil, que é escolhido livremente
pelas partes, para assumir uma obrigação ou adquirir um direito28
.
2.1.5 Coercibilidade
Sendo coercível há, todavia, quem defende com boas razões que a coercibilidade
não é inerente ao direito, mas que o direito – sendo legitimado e orientado pela
justiça – justifica o recurso à força. Neste sentido, entende-se por coercibilidade
a possibilidade de recorrer ao uso da força para aplicar as sanções prescritas pelo
Direito em caso de violação deste, seja por actos ou por omissões29
, ou para
obrigar ao seu cumprimento, sempre que seja necessário e possível30
.
Quando se menciona a possibilidade de uso da força, quer-se dizer a possibilidade
de recorrer a órgãos estaduais e os mecanismos legais de que dispõem para
garantir o cumprimento das normas e evitar violações de direitos, mas não uso
de força rude.
Como acabamos de ver, por regra, compete ao Estado a aplicação do Direito
coercivamente. Muito excepcionalmente, em situações em que o recurso à força
coerciva dos órgãos estaduais não é possível, a ordem jurídica permite que as
pessoas podem, para tutelar os seus direitos, em termos muito limitados recorrer
à força própria (como ainda veremos; cf. → ponto 8.2).
Ler: João Baptista Machado, Introdução, pp. 7-9, 11-14, 19-22, 32-35, 50/51
(286-300); Ángel Latorre, pp. 19-22, 26-33;
e
como leitura facultativa segue em Anexo, Diogo Freitas do Amaral, Manual de
Introdução ao Direito, Volume I, pp. 165 a 211: “O problema do direito natural”.
28
E o mesmo vale a respeito das normas supletivas a que se recorre quando as partes de um
contrato, podendo o ter feito, nada disseram em relação a certos aspectos (ver, por exemplo,
quanto às despesas do contrato, a solução do artigo 878.º do Código Civil que tem grande
relevância prática). O regime supletivo é tão imperativo (ou obrigatório) quanto as normas
preceptivas ou proibitivas.
29
Como está previsto no artigo 486.º do Código Civil: a simples omissão constitui a obrigação de
reparar os danos quando havia o dever de praticar o acto omitido.
30
A coercibilidade não é possível em todo o Direito, por exemplo, quando está em causa o não
cumprimento de todos os deveres conjugais. E em relação ao Estado põe-se a questão quem o
pode obrigar a cumprir uma sentença em que o mesmo tenha sido condenado. É o célebre
impasse quis custodiet ipsos custodes? (quem guarda os guardas?).

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  • 1. Introdução – Sumários 29/30-09-2022 – Aulas teóricas 1. A ordem jurídica e a sujeição do homem às duas regras 1.1. Considerações introdutórias Para se orientar na vida os seres animados precisam de indicações. A este respeito os animais em princípio seguem o que os seus instintos lhes indicam. Mas quanto ao homem – ao contrário do que sucede com os animais – os instintos que (ainda) possui não são suficientes para ele se orientar na vida. Sob este aspecto podemos dizer que o homem é um ser ontogeneticamente inacabado. Deste modo, precisa de padrões de conduta na vida e que lhe digam como se deve comportar1. Não sendo os seus comportamentos determinados essencialmente por instintos, é precisamente nas regras que os homens encontram os modelos de orientação para as suas condutas. A sua vida de convivência social, a realidade social, são ordenadas e disciplinadas por regras sem as quais não consegue viver em sociedade e até o simples modo de vestir obedece a regras (variáveis é certo) conforme as situações e as convivências sociais. Já as crianças brincam de acordo com regras de jogo que estabeleceram e que, de resto, observam com grande seriedade pois estas regras, ao criarem igualdade de oportunidades para ganhar o jogo, permitem-lhes competir entre si. As regras dizem ao homem o que está certo ou errado, justo ou injusto, o que vale e o que não vale, e são padrões de conduta que emanam das mais variadas instituições que representam as estruturas da organização social em que o homem está inserido. Contudo, as regras não têm todas a mesma natureza ou importância; conforme a sua origem varia a força vinculativa com que se impõem. Portanto, como ainda veremos, quanto à sua força vinculativa há regras e regras atendendo precisamente à sua origem. 1.2 A aprendizagem das regras de convivência humana: as Instituições e suas regras; a individualidade dos homens; as relações humanas como relações de poder 1 Cf. João BAPTISTA MACHADO, Introdução, pp. 8/9.
  • 2. Como as regras não são congénitas o homem tem que as apreender. Desde o seu nascimento o homem encontra-se envolvido num determinado ambiente que o rodeia e influencia, ou seja, num contexto em que foi exposto e que actua sobre ele, um contexto essencialmente humano. Quer dizer, o homem, desde o seu nascimento sente a conivência humana que o rodeia. E esta convivência com outros homens acompanha-o durante toda a sua vida, uma vez que apenas em sociedade humana consegue (sobre)viver. Mas, para se orientar necessita, como vimos, de regras. Estas regras emanam de “instituições”. Por esta razão, para viver em sociedade, o homem precisa de instituições2. As instituições poderão ser definidas como conjuntos na realidade social que, como organizações sociais, estabelecem para quem a elas pertence regras de conduta ou de comportamento que têm carácter normativo e normador (norma = regra) e que, ao serem observadas, garantem a segurança nas relações entre os homens abrangidos por elas3. É precisamente nas instituições em que está inserido (familiares, educativas, económicas, culturais, desportivas, políticas, etc.) com as suas normas próprias e padrões de conduta com a sua grande variedade, que o homem aprende viver regradamente em sociedade com os outros. Muitas vezes, as regras de convivência nem sequer são sentidas porque na consciência das pessoas já estão completamente interiorizadas como habituais. A primeira instituição em que o homem está inserido e começa a ser socializado é a família, em que é exposto ao ambiente social em que começa a sua aprendizagem do mundo. Obviamente, também as regras ou normas jurídicas são parte da realidade social que elas visam ordenar. Subjazem-lhes – de uma maneira ou outra – instituições (ou realidades sociais) já prefiguradas na vida social com que interagem. Esta constatação fica bem ilustrada, por exemplo, em relação a associações ou sociedades e o direito que acaba por as enquadrar no seu sistema e, sobretudo, quanto ao direito da família com as suas instituições próprias como o casamento, a filiação ou a adopção que a vida real já configurou. Por isso mesmo o direito da família é designado como um direito institucional. A natureza social do homem – que tanto pertence ao mundo natural como ao mundo cultural em que nenhum dos dois se sobrepõe ao outro e que estão interrelacionados – determina que ele tenha necessidade de estar inserido em instituições sociais que lhe dão estabilidade, orientação e regras nas suas condutas e que, ao mesmo tempo, também o condicionam. O homem é um ser social que evolui e se realiza na convivência com os outros, apresentando-nos 2 João BAPTISTA MACHADO, Introdução, pág. 8. 3 Cf. também João BAPTISTA MACHADO, Introdução, pp. 16, 22.
  • 3. uma natureza ambivalente como indivíduo autónomo e ser social, a “sociabilidade não social”, no dizer de Kant. O homem está sempre relacionado com alguém – o homem precisa do outro – e como indivíduo depende da sociedade. A sua sociabilidade existe em todos os estados da sua evolução e em todas as culturas, sendo certo que os concretos modos de convivência são naturalmente diferentes, exceptuado um ponto: todas as relações sociais, inclusive as relações jurídicas, são, embora com graduações diferentes, sempre relações de poder (sendo certo, todavia, que na maioria das situações haverá um equilíbrio de poder, mas pode não ser assim, como acontece não raras vezes, para referir apenas um exemplo, no mundo das relações económicas e socais marcadas por grandes competividades onde se impõe o poder do mais forte). Por mais individualista um homem queira ser, ele continua inevitavelmente um ser social. A sua humanidade específica está intrínseca e inseparavelmente ligada à sua sociabilidade e a sociedade é uma forma de vida necessária por natureza ao homem, essencial à constituição da humanidade do homem4. Por outro lado, a conduta do homem enquanto ser social precisa de uma “ordem” que legitima a sua actuação, de uma organização que implica a existência de regras ou normas que o disciplinam. A necessidade de organização implica a existência de regras ou normas que disciplinem a conduta do homem que, enquanto ser social, precisa de uma “ordem” que legitime a sua atuação. Os homens distinguem-se e caracterizam-se por uma extrema complexidade, por uma individualidade que é um mosaico das mais diversas vivências que a identificam, havendo assim diferenças consideráveis entre uns e outros, dotes naturais muito desiguais, mentalidades e comportamentos diferenciados, sendo estes comportamentos nem sempre “racionais” e dificilmente previsíveis ou prognosticáveis e muitas vezes determinados por ressentimentos, antipatias, ou invejas e, mesmo nas relações comerciais, não apenas por uma racionalidade económica. Sendo assim, vemos que são as diferenças entre eles que mais caracterizam os homens; diferenças essas que, com toda a sua diversidade e multiplicidade, em caso algum afectam os homens na sua igualdade em dignidade e direitos (e obrigações) decorrente da natureza humana e comum a todos os seres humanos, mas estão perfeitamente de acordo com elas. A primeira Declaração dos Direitos do Homem, o Bill of Rights da Virgínia, de 1776, por exemplo, proclamava que “all men are created equal”5 e, no mesmo 4 Cf. João BAPTISTA MACHADO, Introdução, pp. 11, 13; o realce é do autor citado. 5 A estes “all men” não pertenciam os escravos; “all men” eram unicamente os “free men”. Os escravos eram considerados de valor inferior e mercadoria; cf. US-Supreme Court em 1857 no processo Dred Scott v. Sandfort que decidiu que o escravo não tinha a qualidade de cidadão americano.
  • 4. sentido, apontava o lema da Revolução Francesa de 1789 “liberté, égalité, fraternité”6. Na verdade, todos os homens são todos iguais como homens, têm a mesma natureza humana, mas como indivíduos são todos diferentes. Contudo, embora dando estabilidade e orientação às condutas dos homens, as próprias instituições estão naturalmente sujeitas à evolução (cultural, científica, económica, política, social). Camões escreveu “todo o mundo é composto de mudança, tomando sempre novas qualidades”, que dizer, a constante do mundo é a mudança e a mudança da própria mudança. Para entendermos isso, basta olharmos para o curto período da evolução da instituição da família – do Código Civil, de 1967, até à Lei n.º 9/2010, de 31 de Maio, com as suas percepções (revolucionadas) quanto a casamento7 e filiação, para não falarmos dos efeitos enormes provocados pelos conhecimentos científicos respeitantes ao início (com a procriação medicamente assistida e maternidade de substituição) e ao fim (a morte cerebral e a permissão da transplantação de órgãos ainda vivos) da vida – que no decurso de pouco mais de uma única geração sofreu alterações profundas que reflectem a evolução e a alteração das concepções predominantes na sociedade e a modificação das mentalidades das pessoas. E tudo isto aconteceu sem convulsões sociais. Todavia, não obstante todas estas evoluções, a família – ou os vários modelos familiares que foram surgindo – manteve a sua função institucional de sempre: a inserção do homem na sociedade (sua socialização primária), a aprendizagem de viver em comunidade, ou seja, de viver num ambiente humano. 1.3 A Ordem natural e a ordem social 1.3.1 A ordem natural Já Aristóteles abordava e distinguia entre direito natural e direito legal. O direito natural tem em todos os lugares a mesma força e não depende do consentimento ou não-consentimento dos homens (é, portanto, pré-existente). São regras comuns à humanidade que vigoram sem mais em toda a parte. E em sentido 6 Sendo certo, porém, que estes princípios não se aplicavam aos escravos da colónia francesa do Haiti, ao contrário do que eles legitimamente esperavam, e que se viram forçados a aprender que não era bem assim quando a sua comunidade foi duramente esmagada. 7 O Código Civil, de 1967, na sua redacção primitiva definiu o casamento no artigo 1577.º como “contrato celebrado entre duas pessoas de sexo diferente que pretendam constituir legitimamente a família mediante uma comunhão plena de vida” enquanto a partir da Lei n.º 9/2010 o casamento passou a ser definido no artigo 1577.º como “contrato celebrado entre duas pessoas que pretendam constituir família mediante uma plena comunhão de vida, nos termos das disposições deste Código.”
  • 5. semelhante Montesquieu constatou que há leis que os homens fizeram e leis que eles não fizeram (mas que têm de observar). O direito natural é perfeitamente diferente das leis naturais. O direito natural – pré-existente ou sobrepositivo (cf.→ ponto 1.4.1) – regula de um modo universal as relações humanas a partir de uma ideia de justiça; as leis naturais respeitam a fenómenos naturais e ignoram por completo qualquer ideia de justiça. 1.3.2 A Ordem sociocultural como ordem normativa A condição biológica (física) do homem, insuficiente para se afirmar por si só, acaba por ser completada, pela sua condição ou componente cultural, sendo as condições biológicas e culturais complementares, e não opostas. A cultura – com as suas manifestações e produções, padrões de conduta e interacção, atitudes, crenças e regras – é o meio ambiente construído pelo homem. Os padrões culturais dizem ao homem como como se há-de comportar, dão lhe segurança e ao mesmo tempo liberdade. “Tais padrões culturais de conduta ou instituições representam para o indivíduo uma libertação do ónus de ter que tomar demasiadas decisões (e são) um indicador do rumo” pelo qual se deve orientar8, sendo certo que as culturas que os homens desenvolveram são muito diferentes entre si9. Na medida em que o homem se mantém dentro dos respectivos padrões culturais, anda seguro. Ele perde esta segurança quando é colocado num ambiente cultural diferente que não conhece e em que não se sabe orientar. Todavia, a cultura não determina por completo o pensar e agir dos homens na medida em que é constitui “apenas” um complemento imprescindível da sua condição biológica. Por outro lado, não há conhecimentos seguros quanto do comportamento do homem é determinado biológica ou culturalmente; depende da respectiva cultura. 1.3.3 A Ordem jurídica como necessidade prática para a convivência humana A função do direito aparece-nos desta maneira como uma necessidade prática: mediante o estabelecimento das suas normas de conduta possibilita e assegura o desenvolvimento do homem na sua convivência com os outros, bem como a satisfação dos seus interesses próprios ou individuais. O direito estabelece deste modo regras para o comportamento exterior dos homens na sua convivência entre si, define o quadro dentro do qual se podem (e devem) mover. Esta função tem em vista sobretudo os aspectos da ordenação da liberdade individual e da 8 Cf. João BAPTISTA MACHADO, Introdução, pp. 9 e 8. 9 Por exemplo, a cultura dos astecas era bem diferente da cultura dos espanhóis que os enfrentaram e não entenderam.
  • 6. criação de segurança e certeza na convivência social.10 E as normas jurídicas que vão ao encontro dos interesses dos homens revelaram-se, desde sempre, mais eficientes do que proibições ou punições. Assim, quando a “ordenação da liberdade” vai longe demais e constitui espartilhos à sua liberdade originária, o homem autónomo tende a subtrair-se às normas jurídicas e a criar sistemas paralelos, à margem das leis11. Portanto, apenas uma ordem jurídica que realize, de uma maneira equilibrada, liberdade e segurança continua a ser aceite e consegue conciliar e ordenar os interesses divergentes entre os homens ou entre estes e a sociedade, bem como dirimir os conflitos que daí possam resultar. Por regra, a ordem jurídica – que é aceite – conta com a observância espontânea e o cumprimento voluntário das suas normas, em virtude do sentimento jurídico comum dos homens, cuja convivência visa regular. Contudo, quando ela não é experimentada como justa, mas antes como um regime de força (de modo que uma infracção nem sequer é tida como tal), o referido comportamento não se verifica. O mesmo sucede em períodos de crise (por exemplo, guerra, catástrofes naturais com efeitos graves e prolongados, períodos de decadência moral), em que se dissolvem os valores comuns da sociedade e, entre eles, também o sentimento comum de justiça. E nestas situações todas as autoridades públicas são poucas para manter a paz social. Sempre que as normas jurídicas são desrespeitadas é necessário e lícito que os órgãos estaduais recorrem a meios coercivos para impor a sua observância. É uma característica do direito serem as suas normas munidas de coercibilidade12, segundo as regras e formas de um processo judicial, ordenado e formalizado de maneira objectiva e isenta para garantir a igualdade processual das partes litigantes. O processo é levado a cabo pelas instâncias estaduais competentes, o que exclui desde logo o recurso das partes à força própria. Na medida em que é vedado fazer justiça pelas próprias mãos, o direito serve e protege desde já o mais fraco, incapaz de se defender pela força, por ser mais fraco, mas capaz de fazer valer os seus direitos num processo judicial, cujas decisões são executadas igualmente por órgãos judiciais do Estado. Há, a este respeito, um monopólio do Estado no sentido de fazer respeitar e impor o seu direito pela força. Só muito excepcionalmente, quando não é possível recorrer aos meios coercivos normais, o uso da força própria é permitido (cf.→ ponto 8.2). 10 Cf. J. BAPTISTA MACHADO, «Tutela da confiança e “venire contra factum proprium”», cit. = RLJ 117 (1984/1985), pp. 229 e ss. 11 De resto, cada homem dispõe de uma esfera privada íntima, um último reduto da sua liberdade humana, que é intocável e está subtraída a qualquer intervenção de todos os poderes públicos. Assim, BVerGE 6, pp. 32, 41 (Elfes-Urteil). 12 Nem toda a doutrina defende o significado da coercibilidade como característica essencial do direito. Cfr. J. BAPTISTA MACHADO, Introdução, p. 33.
  • 7. Em qualquer caso, e isto convém ser sublinhado, não pertence às funções do direito eliminar as diversidades de interesses entre os homens e as correlativas relações de tensão, necessárias à realização do homem na convivência com os seus pares. De modo igual também não é função do direito eliminar a relação de tensão existente entre o homem autónomo e a sociedade em que se integra, dando supremacia àquele ou a esta. Uma solução neste sentido não corresponderia às condições da natureza humana. Todas estas relações de tensão devem ser ordenadas e reguladas de forma a garantir o desenvolvimento tanto do homem autónomo, do indivíduo, como da própria sociedade, com todos os efeitos frutíferos e benéficos, decorrentes de relações assentes na evolução dinâmica dos seus elementos componentes13. 1.3.4 A Ordem moral como regra ética Nestes termos, a função do direito é ordenadora e criadora de segurança e certeza, que são valores elevados e imprescindíveis para a convivência humana. Mas um valor mais que pode ser considerado como mais elevado do que a ordem jurídica14 é a ordem moral. Esta distingue-se daquela tanto quanto ao conteúdo como quanto à sua finalidade. O direito respeita, como vimos, às relações dos homens entre si ou com a sociedade ao ordenar, delimitar e compatibilizar as suas esferas de interesses e de actuação. Assim, o direito visa regular a convivência exterior ao garantir a liberdade de agir. Dentro desta finalidade, a observância das regras jurídicas é coercível, pois um comportamento exterior pode ser fiscalizado e imposto. A ordem moral, por seu lado, dirige-se para dentro e aponta para as convicções internas e o aperfeiçoamento ético do homem. Ela resulta da sua consciência e é com base neste “fio condutor interno” que o homem procura (ou deve procurar) pautar os seus actos. Por isso, as normas morais são insusceptíveis de execução coerciva. Porque, se um comportamento exterior pode ser obtido por via coerciva, as convicções internas subtraem-se a semelhante tratamento. Quer dizer, uma lei não obriga “em consciência”, mas obriga “por obediência”. Todavia, normalmente as condutas dos homens conforme as leis correspondem também às suas convicções morais. Dada a sua função de ordenação exterior da convivência humana, o direito possibilita a todos viver em conformidade com as suas convicções interiores de acordo com as suas concepções morais, crenças ou confissões religiosas. Mas isto não quer significar que o direito dê a todos uma carta-branca em assuntos morais (para a qual, aliás, nem teria competência funcional). Acresce que o 13 Mas isto significa também que só é possível garantir aos indivíduos os seus interesses legítimos se, ao mesmo tempo, são garantidos à comunidade todos os recursos a que esta tem, legitimamente, direito. Henry GEORGE, Progress and Poverty, London, 1884. 14 Para Aristóteles um valor superior ao direito é a amizade entre os homens. Mas este valor transforma-se no seu contrário quando a amizade é colocada acima da lei, segundo o lema “ao amigo é tudo devido e ao inimigo aplica-se a lei”.
  • 8. direito não pode ignorar a moral, não pode abstrair de princípios morais. Estes últimos são, de facto, orientações para ele, apesar das suas finalidades e níveis de actuação diferentes. Contudo, daí não resulta que o direito pode, sem mais, transpor princípios morais para o seu domínio, a não ser em situações específicas, como sucede, por exemplo, quando o Código Civil, nos seus artigos 280.º e 281.º, invoca os “bons costumes”, ou seja, os valores morais positivos compartilhados e vigentes na sociedade, que um negócio jurídico deve respeitar (sob pena de nulidade). O direito não pode juridificar a moral15, pois isto significaria que os homens tivessem de subordinar não apenas o seu pensamento, i. é., as suas convicções morais, mas também o seu comportamento exterior à moralidade o que favorecia a hipocrisia e, pior, a intolerância e seria destruidor da liberdade e da democracia e, em última análise, totalitário no sentido de quem impõe os seus critérios morais16. Na medida em que o direito não pode abstrair de todo de princípios morais pode dizer-se que o ele se deve orientar na moral, na medida em que consagra o “mínimo ético”, uma ordem de valores, que é aceite por todos17. Caso isto não suceda, ao verificar-se uma dissonância aguda entre convicções morais generalizadas e a ordem jurídica (ou uma parte sensível da mesma), estamos perante uma crise social em que a ordem jurídica é sentida como um mero sistema de força e não de justiça. 1.3.5 As Normas de conduta ou trato social Diferentes das normas jurídicas e das exigências morais são os usos e costumes, ou seja, meras normas de conduta social que, sendo observadas de facto pelos homens, em princípio não têm valor jurídico, embora este, segundo o artigo 3.º do Código Civil, pontualmente lhes possa ser atribuído por lei, como podemos ver no exemplo do artigo 218.º do Código Civil, que considera o silêncio como um meio declarativo quando este valor lhe é conferido pelos usos do tráfico negocial18. À semelhança das normas jurídicas, as normas de conduta social são 15 Conflitos morais podem ser insolúveis para quem os sofrer e o seu desfecho não pode ser imposto pelo direito, mas apenas permitido (por exemplo, em casos de diagnóstico pré-natal, de interrupção da gravidez, da eutanásia, da utilização de embriões para fins terapêuticos ou ainda da maternidade de substituição). 16 O mesmo sucede, inexoravelmente, quando se invocam ou aplicam princípios morais desligados ou desenquadrados de quaisquer regras jurídicas. 17 Nas sociedades contemporâneas, pluralistas e individualistas (ou indivíduo-centristas), religiosamente divididas e multi-étnicas, os homens partilham cada vez menos convicções morais comuns, de modo que o “mínimo ético” aceite por todos fica cada vez mais reduzido, deixando de dar uma orientação global ou uma base firme de valores comuns aos homens e à sociedade. Nesta medida aumenta a relevância da ordem jurídica e simultaneamente a dificuldade para ela de regular os comportamentos humanos, de estabelecer consensos e de garantir a paz social. 18 Portanto, para o Código Civil não há a regra quem cala consente. Também podemos referir os artigos 1122.º, 1128.º, 1323.º, 1357.º e 1359.º, que, nas relações de vizinhança, se referem aos usos da terra e suas tradições.
  • 9. exteriores ao homem, mas, precisamente por não terem natureza jurídica, não são como aquelas judicialmente coercíveis, sendo a sua observância sancionada apenas por uma “coerção social” que consiste no desprezo, na marginalização ou mesmo na exclusão da vida social. Esta sanção, por seu lado, tanto pode quase não ser sentida, como pode ir mais longe e até ter consequências mais graves do que a inobservância de uma norma jurídica, devido ao isolamento ou social do infractor em reacção à sua conduta desconforme com as normas sociais vigentes19. Juridicamente relevantes são, por isso, apenas as normas do direito e, ainda, excepcionalmente, as normas morais e as normas de conduta social quando elas são juridificadas, quer dizer, dotadas de valor jurídico que lhes é atribuído pelas próprias normas jurídicas, tal como exemplificámos com as disposições dos artigos 280.º, 281.º, 218.º do Código Civil. Acrescente-se que, quanto à realização ou à observância das normas jurídicas, o homem está submetido a duas exigências: a exigência da justiça, bem como a exigência da equidade (suum cuique tribuere et neminem laedere). Mas, em contrapartida, nenhum homem está em relação ao seu próximo numa posição de superioridade (ou de distanciamento) de tal ordem que apenas possa olhar para o (seu) direito, tendo, nesta perspectiva, atitudes de fariseu; também deve ser samaritano ou solidário20. A solidariedade é o comportamento mais humano (e que não existe no mundo animal dominado pelos instintos). Igualmente não podemos dizer que a crescente juridificação das relações inter-humanas as torna, por causa disso, mais humanas; pelo contrário, frequentemente são tristes as situações em que os homens, para se entenderem, nada mais sabem do invocar direitos e leis. 1.4 A problemática do Direito Justo 1.4.1 Jus-naturalismo e jus-Positivismo 19 Na verdade, o medo de reacções provocadas por uma conduta “socialmente não correcta” faz com que, com frequência, as pessoas se abstenham de formular um juízo próprio quando julgam ou sentem que, com isso, contrariam as correntes de opinião dominantes. Desta forma há assuntos em que não se quer tocar, ou por medo de se ser conotado com posições que lhe são atribuídas falsamente, ou por medo de colher aplausos do lado errado. A partir do momento em que uma posição deixa de ser defendida em público, ela está derrotada por já não ter voz. Mas já não teme o isolamento social quem estiver desintegrado (excluído) da sociedade e, por isso, não considera as consequências do seu comportamento, de modo que as normas de conduta social perderam para ele os seus efeitos integradores e orientadores. 20 Por outro lado, a delimitação dos actos de solidariedade de deveres jurídicos não é líquida. Cf. Júlio GOMES, «A controvérsia norte-americana em torno da consagração legal de um dever geral de socorro», RDE XIV (1988), p. 101.
  • 10. Ao ordenar a vida em sociedade o direito baseia-se fundamentalmente na ideia da justiça que o legitima: o direito é uma ordem de convivência humana com um sentido – o sentido da justiça. Mas as leis que consagram o direito podem não ser sentidas como justas por contrariarem o sentimento de justiça comum dos homens a que se destinam. Como ponto de partida vamos admitir que o direito vigente plasmado em leis, passa a entrar em contradições insanáveis com as concepções de justiça e as convicções morais dominantes na sociedade que deve ordenar21 . Já vimos que o direito não pode desconhecer a moral, não pode abstrair de princípios morais. Caso contrário, pode surgir um conflito entre as convicções morais reinantes e as imposições da lei em vigor que as despreza. É principalmente neste contexto (mas não só) que se põe a problemática do Direito Justo. A este respeito existem historicamente duas grandes linhas doutrinais, de um lado as concepções do jus-positivismo e do outro as do pensamento do jus- naturalismo, que se sucederam e evoluíram com modificações da antiguidade até hoje. Para o jus-positivismo o direito é feito pelo homem. A norma legal é encarada como um acto de vontade do legislador, acto esse que, sendo a única fonte de direito, traz o seu pleno sentido dentro de si. Assim, factores extralegais, como por exemplo, o pensamento legislativo ou a realidade social, mesmo quando modificada em relação ao tempo da feitura da lei, não são negados, mas nega- se-lhes importância na aplicação da lei. Deste modo, o jus-positivismo aparece, na sua modalidade mais rigorosa, como método interpretativo de uma fidelidade incondicional à lei, como método que sujeita o jurista à lei sem lhe consentir a pergunta acerca da sua justiça ou da sua moralidade. Neste contexto podemos ver o n.º 2 do artigo 8.º do Código Civil que determina “o dever de obediência à lei (ao qual o juiz está subordinado) não pode ser afastado sob pretexto de ser injusto ou imoral o conteúdo do preceito legislativo” que assente na premissa de a lei estar em conformidade com a justiça e a moral, dá, todavia, a subentender que uma contradição poderá existir. 21 Uma constante do direito é (ou deve ser) a sua constante renovação. Mas não é só o direito, o conteúdo das leis, que muda, renovando-se. Também as próprias concepções acerca do direito e as suas funções, inclusive a própria ideia da justiça, estão sujeitas à evolução. Esta constatação deve prevenir-nos contra a tentação (fácil) de julgar o direito do passado a partir de conhecimentos e experiências adquiridos posteriormente, com juízos de valor ou concepções ou ideologias (efémeras ou não) ou até modas de hoje. Bem pelo contrário, o direito passado deve ser julgado dentro do seu contexto histórico, como ficou moldado pela evolução correspondente, de acordo com os conhecimentos as experiências existentes na altura e dentro da realidade social à qual se destinava. Se assim não acontece, cai-se num anacronismo e comete-se, regularmente (e não poucas vezes conscientemente), uma falsificação.
  • 11. Assim, também Aristóteles fez uma distinção entre o direito natural e o direito legal. Quer dizer, desde a antiguidade houve sempre quem se interrogasse se acima do direito positivo, que vigora e consta das leis, haverá um outro direito, o direito natural, que prevalece sobre o primeiro e em que este encontra a sua última fonte de validade e justificação, podendo este direito natural emergir ou da natureza ou da vontade de Deus ou da condição humana ou da lógica da razão. Neste sentido entende-se por direito natural um direito que existe independentemente de uma estatuição humana e que vale de modo imutável para todos os tempos e todos os povos. Por conseguinte, os representantes do jus-naturalismo – uma vez que o direito se legitima pela ideia de justiça – defendem a existência de um direito supralegal, precisamente o direito natural, com as suas regras comuns para toda a humanidade que valem sem mais em toda a parte, sendo certo que entre os seus defensores não existe um conceito inequívoco a respeito deste direito. O direito natural gira em volta da natureza essencial do homem que é comum a todos. Segundo a concepção do jus-naturalismo, o direito é ao longo dos tempos imutável no que diz respeito a determinados valores fundamentais, inerentes à natureza humana (ou apenas mutável em consequência de convicções jurídicas generalizadas em relação aos valores fundamentais resultantes da natureza do homem, que evoluem em conformidade com as concepções éticas), valores esses, que o direito positivo legislado tem que respeitar. O direito natural tem sido, ao longo dos tempos, objecto da preocupação de filósofos, historiadores, juristas e teólogos. Podem distinguir-se, na história, três grandes épocas do pensamento jusnaturalista (apresentando cada uma delas cambiantes e correntes diferenciadas): o pensamento da antiguidade (de Hesíodo e Aristóteles até Séneca e Marco Aurélio) parte da existência de uma ordem natural; o pensamento medieval cristão (de Sto. Agostinho até São Tomás de Aquino e Francisco Suárez) é pensamento teológico: ”natural” significa ser equivalente a não ter sido criado ou concebido pelo homem, existe por si; o direito natural é universal, imutável e indelével; o pensamento do iluminismo (de Grotius até Rousseau e Kant) afasta-se do pensamento teológico e coloca a razão e/ou a natureza do homem no centro das suas reflexões (desviando-se quase dos entendimentos tradicionais). Sendo assim, também o direito deve ser deduzido da razão. Este entendimento teve uma relevância significativa no período do jusnaturalismo racionalista dos séculos XVII e XVIII com efeitos de grande alcance nas legislações posteriores. A função do direito natural, que existe independentemente de uma eventual concretização sua no direito positivado, actua como princípio universal em dois sentidos: por um lado serve, afirmativamente, para legitimar o direito positivo vigente expresso nas leis e em sintonia com ele; por outro, põe, dubitativamente,
  • 12. como fator de correção, o direito vigente em causa à procura de um direito ainda mais justo e mais em conformidade com os valores humanos comuns a todos os homens, limitando assim a margem de decisão do legislador. Na medida em que o pensamento jusnaturalista invoca a moral como alicerce do direito, constitui a crítica da moralidade ao direito positivo. É patente que uma contradição generalizada entre o direito positivo e as normas da moral provoca uma crise social (ou é uma expressão da mesma). Em casos extremos esta crise pode resultar numa revolução como mostra o exemplo da Revolução Francesa de 1789 fomentada por exigências jusnaturalistas fundamentadas na razão. O pensamento jusnaturalista racionalista teve um êxito enorme nas legislações dos séculos XVIII e XIX, nas quais ganhou a sua expressão ao esgotar-se nelas (de maneira que a antinomia entre direito positivo e direito natural deixou de ser sentida por muito tempo porque as leis estavam em sintonia com o direito natural de modo que se desvaneceu a consciência de que as leis podiam ser não justas em virtude de não respeitarem valores de justiça superiores). O pensamento jusnaturalista acabou por ser afastado, ainda no século XIX, pela Escola histórica do direito (Beseler, K. F. von Savigny) e pelo jus-positivismo. Para a escola histórica o direito é um fenómeno histórico que nasce do espírito do povo, dos seus costumes, em que se manifesta e que traduz a mentalidade da respectiva comunidade. Seja como for, devido aos actos legislativos dos regimes totalitários do século XX (fascismo, nazismo, estalinismo, maoismo) que “permitiram” com as suas leis atentatórias aos valores da humanidade violações gravíssimas do direito (e da justiça e da moral), voltou a haver uma consciencialização da antinomia entre o direito positivo e os princípios superiores de um direito natural que levou a um renascimento do jus-naturalismo, pensamento que o século XIX julgava poder considerar ultrapassado e dispensável. Talvez se possa concluir que sempre se chama pelo direito natural e pelos seus princípios quando o direito positivo estiver em crise por se ter afastado daquele. Quanto maior este afastamento tanto mais alto soa o grito pelo direito natural. Realmente, a experiência histórica da humanidade – sobretudo quando esta julgou que fossem “factíveis” todas as coisas – mostra que é justificado o pensamento jusnaturalista e que não está nas mãos do homem criar um direito ideal e inteiramente justo. 1.4.2 Interdependência entre a ordem jurídica e a ordem moral As normas ou regras de conduta que mencionámos (normas jurídicas, morais ou de conduta social) situam-se a níveis diferentes e por isso a sua não observância tem também consequências diferentes.
  • 13. Como esclarecemos, a não observância das normas jurídicas, faz com que o seu cumprimento seja imposto coercivamente pelos órgãos estaduais competentes. A não observância das normas de conduta social, por seu lado, é sancionada pela exclusão da convivência ou marginalização de quem as infringe e esta sanção até pode vir a ser muito mais sentida pelo infractor do que uma sanção pelos órgãos estaduais. A não obediência às normas morais não leva a sanções externas, mas é sentida no foro íntimo, na consciência, de quem as não respeita. Por outro lado, pode suceder que a obediência que uma pessoa deve a normas morais pelas quais se pretende guiar leve a conflitos com normas jurídicas que, devido a estes imperativos morais, a pessoa se recusa a acatar. Mas existe, neste contexto, uma diferença fundamental se uma norma moral é invocada contra uma lei ditatorial ou de um tirano22 ou se uma norma moral (ou religiosa) é invocada para justificar a inobservância das leis num Estado democrático de Direito. Enquanto a invocação das convicções morais em sistemas ditatoriais ou opressivas pode ter toda a sua justificação, a invocação de ordens absolutas de natureza moral, religiosa ou de cariz cultural ou ideológico num Estado democrático de Direito não pode proceder pois estas ordens hão-de ser relativizados pela lei aplicável a todos. O Estado de Direito toma conhecimento da posição individual, moral ou religiosamente absoluta, e pondera-a; mas a lei, democraticamente consagrada, a que todos estão igualmente sujeitos, não pode ceder. A exigência da proteção da comunidade é superior a uma lesão das convicções individuais. Na verdade, a aceitação das leis pelos seus destinatários é um pilar fundamental da sua legitimação democrática. 1.4.3 De qualquer maneira, quanto à obediência a normas devemos distinguir entre estar obrigado juridicamente e estar obrigado moralmente. Estar obrigado juridicamente significa que alguém, apoiado numa determinada norma jurídica, pode exigir de outrem um comportamento, uma conduta, que este está obrigado a observar (por exemplo: o artigo 879.º CCiv, estabelece os efeitos do contrato de compra e venda, e determina nas suas alíneas b) e c) as 22 Veja-se o caso da tragédia grega de Sófocles, “Antígona”, que retrata a desobediência frontal desta contra ordem dada por Creonte. Antígona era irmã de Etéocles e Polinices, filhos de Édipo, que mutuamente se mataram na disputa pelo trono de Tebas. Como ambos morrem, sucede no trono Creonte, cuja primeira ordem incidia sobre os rituais de sepultamento dos irmãos. Ordenou Creonte que quanto ao corpo de Etéocles, com que se relacionava bem, haveria lugar a todos os rituais de sepultamento, mas o corpo de Polinices, seu opositor, seria largado em terra vazia e sem o direito de ser sepultado, para que fosse comido por aves de rapina e pelos cães vadios. Com tal ordem, Creonte queria dar um aviso a todos os que tentassem agir contra ele ou se lhe opusessem. Antígona recusou cumprir tal ordem e providenciou para que o seu irmão tivesse todos os ritos sagrados no seu sepultamento ainda que isso significasse ter de pagar com a própria vida por ter violado expressamente a ordem de Creonte, mas só assim conseguiria dar cumprimento às leis divinas, às quais se achava submissa, e que prevaleciam sobre a ordem, a lei arbitrária, ditada por Creonte.
  • 14. obrigações recíprocas do vendedor e do comprador às quais correspondem os direitos de exigir a entrega do bem vendido e o pagamento do preço acordado; o artigo 2009.º do Código Civil diz quais são as pessoas que são obrigadas a prestar alimentos e estabelece, no seu n.º 1, alínea d), também a obrigação de prestar alimentos entre irmãos). Estar obrigado moralmente significa que é a nossa consciência que nos impõe um dever (por exemplo: dar uma esmola ou fazer donativos a quem for vítima de uma catástrofe natural ou socorrer a quem está a afogar-se ou apoiar os irmãos nos casos em que a lei não estabelece a favor deles uma obrigação alimentar [como sucede no direito alemão que desconhece semelhante obrigação jurídica] ou praticar um acto de solidariedade humana ao consentir que após a morte os órgãos podem ser retirados e transplantados [em vez da sua retirada com base da lei que a permite]). Obrigações morais e jurídicas podem coincidir: socorrer a quem está a afogar-se não é apenas uma obrigação moral, mas também jurídica. Neste caso, a omissão de prestar auxílio é um crime e como tal punido. Ainda pode suceder que alguém cumpre uma obrigação jurídica e ao mesmo tempo sente-se também moralmente compelido a cumprir (por exemplo, prestar alimentos legalmente devidos a seus irmãos; ou, quem paga os seus impostos fá-lo sempre por estar juridicamente obrigado; mas há quem defenda que existe também o dever moral de os pagar; a maioria das pessoas, embora pague, talvez não sinta este dever moral, mas teme a execução forçada). Como já sabemos, apenas a observância das normas jurídicas – e não de outras normas como as morais ou sociais – é garantida pelo poder do Estado (através dos seus meios coercivos). Compete ao Estado decidir, de chamar para si, se uma dada norma de conduta é uma norma jurídica, um preceito legal, sendo assim juridificada, ou se não o é. O Estado tem o monopólio de determinar quais são as normas de conduta que têm força de lei, que são normas jurídicas. As normas morais em princípio não devem ser juridificadas23 . Neste ponto, as ordens jurídicas dos vários Estados podem ter percepções diferentes (como mostra o exemplo da obrigação [jurídica ou moral] de prestar alimentos aos irmãos). 1.4.4 Neste contexto podemos distinguir para já – entre as várias modalidades de normas (que ainda vamos estudar) – as seguintes, ou seja: 1) Normas preceptivas (= normas que prescrevem, que impõem um certo comportamento (por exemplo, as disposições do artigo 879.º CCiv que prevêem 23 Por exemplo, como já vimos, ao referir os artigos 280.º, 281.º e 218.º, todos do Código Civil, excepcionalmente podem ser juridificadas normas morais ou também normas de conduta social.
  • 15. as obrigações de vendedor e comprador; as normas que obrigam a fazer um contrato de seguro contra incêndios ou normas que exigem que se contraia um seguro automóvel, etc.); 2) Normas proibitivas ou sancionatórias (exemplos: as normas penais; mas há também normas civis que proíbem comportamentos ou sancionam factos ilícitos [por exemplo os artigos 334.º ou 483.º CCiv]). Analisemos a hipótese legal do artigo 483.º: “aquele que … violar ilicitamente o direito de outrem …” sofre a consequência, a sanção, de “fica obrigado a indemnizar …”. Temos aqui uma previsão abstracta e geral (“violação do direito de outrem”) [uma previsão é geral e abstracta quando não se refere a um caso concreto e individual mas a um caso qualquer possível em geral; à esta previsão geral e abstracta devemos subsumir um determinado comportamento concreto que ocorreu (por exemplo, o atirar uma pedra contra uma janela ou o envenenar o cão do vizinho, que são actos que violam o direito da propriedade que o artigo 483.º não permite)]; 3) Normas permissivas que atribuem poderes, faculdades e garantem liberdades (por exemplo, no CCiv os artigos 405.º [que estabelece o princípio da liberdade contratual que permite às partes fixar livremente o conteúdo dos contratos … com as cláusulas que lhes aprouver”], 1305.º [que define os amplos poderes do proprietário] ou 2179.º, n.º 1, e 2188.º [que consagram a liberdade de fazer um testamento]. Mas devemos ter a consciência que todas estas liberdades existem sempre e apenas “dentro dos limites da lei”. 1.4.5 Resumindo: podemos dizer que estas normas referidas exprimem três ideias: “tu deves, tu não deves e tu podes”. Mas é fundamental a ideia de que antes de tudo as normas jurídicas aceitam e protegem a liberdade; elas criam espaços de liberdade para a actuação humana. Mantendo-se dentro destes espaços de liberdade, portanto aceitando as regras legais, o homem anda seguro, quer dizer, actua com a segurança que a lei lhe oferece. Neste sentido, o direito estabelece regras para o livre querer (O. Gierke), dirige-se a homens dotados de razão e capazes de se autodeterminarem. No fundo, a liberdade não é concedida ao homem, ela pertence-lhe, é inata – o homem nasce livre, como já realçámos. Ele pode fazer uso da liberdade como lhe aprouver e sem prestar contas desde que não diminua ou prejudique ninguém. Contudo, a sua liberdade encontra, naturalmente, os seus limites, ou seja, os “limites da lei” (como nos mostram os exemplos das normas referidas). Os alicerces da liberdade são a propriedade privada e o Estado de Direito, ou seja, um Estado submetido à lei e sujeito ao controlo judicial. Sem um sistema de justiça independente, isento e eficiente a liberdade não está garantida.
  • 16. Efectivamente a maior conquista civilizacional é o Direito e sua aplicação isenta e incorrupta por meio de uma justiça independente. Podemos dizer que nada protege mais os elementos mais fracos de uma sociedade e evita o abuso do direito pelo mais forte do que a existência do Estado de Direito e de uma justiça independente. Resta acrescentar que o espaço de liberdade reservado aos indivíduos dentro de uma sociedade mede-se pelo grau de autonomia que a ordem jurídica lhes concede na organização e conformação das suas vidas. 2. A ordem jurídica como ordem normativa 2.1 Subjacente à ordem jurídica estão as características que a definem e a individualizam face às outras ordens normativas e que, de resto, implicitamente, já foram referidas. Pertencem aqui as seguintes: 2.1.1 Necessidade Já explicámos que a ordem jurídica surge como necessidade prática para regular a convivência humana, em consequência da sua vida em sociedade, da existência simultânea de duas ou mais pessoas24 . Já Aristóteles referia que o homem é um animal social, pois é um ser carente que necessita de se relacionar com o outro para atingir a sua plenitude. Assim, a necessidade de se relacionar com o outro (a alteridade) pressupõe também que haja regras que definam e delimitem os direitos de uns a que correspondem os deveres dos outros. 2.1.2 Exterioridade O Direito não regula os comportamentos e pensamentos não exteriorizados. O direito regula comportamentos ou relacionamentos exteriores. As intenções de cada um, mantendo-se no foro interno de cada um e não sejam exteriormente concretizadas por qualquer forma ou acto, não são perceptíveis para o Direito. Mas isto não significa dizer que o pensamento de cada um não possa ser valorado pelo Direito, caso o comportamento e conduta o venha a exteriorizar e revelar. Na verdade, o Direito pode conferir tratamentos distintos, consoante esteja em causa uma conduta que tenha sido praticada com a intensão de prejudicar, por 24 Se a realidade fosse como aquela que se apresenta no romance “Robinson Crusoé” de Daniel Defoe, as normas jurídicas não seriam necessárias dada a sua inutilidade. O romance crê-se baseado nas vivências de um marinheiro chamado Alexander Selkirk, em que o personagem principal, Robinson Crusoé decide comandar um navio do Brasil para África com escravos, sendo que no meio da viagem em virtude de uma forte tempestade o navio naufraga perto de uma ilha deserta no mar do Caribe. Todos os tripulantes morrem com excepção de Robinson Crusoé, que vive na ilha sozinho durante vinte anos até que salva um nativo que tinha sido capturado por um grupo de canibais, a quem deu o nome de Sexta-feira, por ter sido esse o dia da semana em que o encontrou e salvou.
  • 17. exemplo uma actuação de má fé, ou uma conduta criminosa premeditada, só que nestes casos, para que se valore o pensamento prévio à conduta, é necessário que esta seja exteriorizada25 . 2.1.3 Estatalidade Esta característica significa que o Direito provém do Estado, sendo emanado dos seus órgãos pelo que também a estes compete a aplicação do Direito. Temos a doutrina do monismo jurídico26. Todavia, há quem defende-se o oposto: não se nega que o Estado crie e aplique Direito, através dos seus órgãos competentes, somente não se aceita que o Estado seja o único a emanar normas jurídicas nem tampouco que seja o único com o poder de as aplicar, ou seja, nega-se o monopólio da criação e aplicação do Direito pelo Estado. Assim a doutrina do pluralismo jurídico27. 2.1.4 Imperatividade e obrigatoriedade Na sua função elementar ou fundamental a ordem jurídica contém um comando e esta é a característica da imperatividade. Se a ordem jurídica não fosse dotada desta característica a sua função de ordenação social ficaria esvaziada. Esta imperatividade traduz-se também na existência de sanções jurídicas que são aplicadas em caso de violação das normas jurídicas; aliás, é a sua existência que muitas vezes fundamenta e prova a imperatividade das mesmas e compele ao seu cumprimento. Contudo, também há normas jurídicas que não contêm uma sanção jurídica – por exemplo as definições legais ou noções (ver artigos 67.º ou 202.º, n. 1, e 397.º do Código Civil) – e mesmo assim são imperativas por serem obrigatórias. Na verdade, a ordem jurídica é composta por normas jurídicas imperativas no sentido de a sua observância ser obrigatória não apenas no significado de elas imporem ou proibirem uma conduta, mas também na acepção de a permitirem ao atribuir um poder, uma faculdade ou liberdade, como sucede por exemplo com a liberdade contratual. Assim, para estabelecer relações jurídicas, por 25 Veja-se a título de exemplo o artigo 132.º, n.º 2, al. j) do Código Penal, de onde resulta a qualificação do crime de homicídio por se entender que atua com especial censurabilidade ou perversidade aquele que tenha atuado com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas. 26 A este respeito Hans KELSEN, Reine Rechtslehre, 2.ª edição de 1960, reimpressão, Wien 1976, sustenta no capítulo VI (pp. 289 ss.) a teoria da identidade de Estado e Direito. 27 Há, de facto, fontes de direito supraestaduais em que o direito não emana de órgãos estaduais como sucede designadamente com o Direito Canónico, o Direito Internacional Público ou com o Direito da União Europeia (Regulamentos [que vigoram imediatamente nos Estados-membros] e Directivas [que necessitam de ser transpostas para o direito interno de cada Estado-membro]). O direito da União Europeia continua a adquirir uma relevância crescente nas ordens jurídicas dos Estados-membros da União.
  • 18. exemplo para concluir um contrato, é obrigatório utilizar normas jurídicas que regulam os regimes do contrato. Por isso, liberdade contratual significa actuar livremente dentro da ordem jurídica e assim é obrigatório recorrer ao modelo, o tipo legal “contrato”, consagrado no Código Civil, que é escolhido livremente pelas partes, para assumir uma obrigação ou adquirir um direito28 . 2.1.5 Coercibilidade Sendo coercível há, todavia, quem defende com boas razões que a coercibilidade não é inerente ao direito, mas que o direito – sendo legitimado e orientado pela justiça – justifica o recurso à força. Neste sentido, entende-se por coercibilidade a possibilidade de recorrer ao uso da força para aplicar as sanções prescritas pelo Direito em caso de violação deste, seja por actos ou por omissões29 , ou para obrigar ao seu cumprimento, sempre que seja necessário e possível30 . Quando se menciona a possibilidade de uso da força, quer-se dizer a possibilidade de recorrer a órgãos estaduais e os mecanismos legais de que dispõem para garantir o cumprimento das normas e evitar violações de direitos, mas não uso de força rude. Como acabamos de ver, por regra, compete ao Estado a aplicação do Direito coercivamente. Muito excepcionalmente, em situações em que o recurso à força coerciva dos órgãos estaduais não é possível, a ordem jurídica permite que as pessoas podem, para tutelar os seus direitos, em termos muito limitados recorrer à força própria (como ainda veremos; cf. → ponto 8.2). Ler: João Baptista Machado, Introdução, pp. 7-9, 11-14, 19-22, 32-35, 50/51 (286-300); Ángel Latorre, pp. 19-22, 26-33; e como leitura facultativa segue em Anexo, Diogo Freitas do Amaral, Manual de Introdução ao Direito, Volume I, pp. 165 a 211: “O problema do direito natural”. 28 E o mesmo vale a respeito das normas supletivas a que se recorre quando as partes de um contrato, podendo o ter feito, nada disseram em relação a certos aspectos (ver, por exemplo, quanto às despesas do contrato, a solução do artigo 878.º do Código Civil que tem grande relevância prática). O regime supletivo é tão imperativo (ou obrigatório) quanto as normas preceptivas ou proibitivas. 29 Como está previsto no artigo 486.º do Código Civil: a simples omissão constitui a obrigação de reparar os danos quando havia o dever de praticar o acto omitido. 30 A coercibilidade não é possível em todo o Direito, por exemplo, quando está em causa o não cumprimento de todos os deveres conjugais. E em relação ao Estado põe-se a questão quem o pode obrigar a cumprir uma sentença em que o mesmo tenha sido condenado. É o célebre impasse quis custodiet ipsos custodes? (quem guarda os guardas?).