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Nascida 
de novo 
Kenia teve que 
recomeçar do zero, 
após passar pelo maior 
obstáculo de sua vida 
Por Gabriela Ingrid 
Fotos Paula Giolito 
A quela noite de dezembro de 
1995 era de festa. Depois da for-matura 
do namorado, em Bam-buí 
(MG), Kenia Carneiro de Oliveira, 
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parou em algum ponto da estrada. 
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Kenia passou oito meses 
na cama após um acidente 
[ dezembro | 2014 ] Runner’s World 29
Segundo a mineira, a recuperação emo-cional 
foi muito mais difícil do que a física. 
“Eu tinha 17 anos, muitas fantasias e ilu-sões 
permeavam minha cabeça. Sonháva-mos 
com um noivado em janeiro de 1996, 
no mês do meu aniversário”, conta ela. “Na 
época perdi totalmente a fé. Hoje eu sei que 
foi Deus quem me salvou, mas eu nunca 
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nas nossas vidas. Demorei três anos 
para me relacionar de novo.” 
No acidente, Kenia teve politrauma-tismo 
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litros de sangue. Quando saiu do hospital, 
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esquerdo. Foram oito longos meses em 
cima de uma cama. “Eu tentei não desis-tir. 
Forçava meu corpo a se mexer e fazia 
muita fisioterapia”, ela conta. Quando 
finalmente conseguiu se levantar, apro-veitava 
as manhãs para caminhar com a 
mãe. “O esforço foi absurdo, doía muito, já 
que minha musculatura estava atrofiada 
depois de tantos meses na cama. Mas meu 
namorado virou meu anjo da guarda e 
meus pais e amigos me deram muita força. 
Eu tinha certeza de que voltaria a andar.” 
Entre levantar-se da cama e voltar a andar 
normalmente foram três meses. 
Depois da tempestade 
O fim da adolescência foi duro, mas Kenia 
acredita que saiu da experiência mais forte 
e segura. Ela mudou-se para Três Corações 
para se formar em administração, depois 
foi para Belo Horizonte e Nova York, onde 
morou durante um ano. De lá seguiu 
para o Rio, voltou para BH, morou no 
Canadá e finalmente estacionou no Rio, 
onde vive até hoje. Entre idas e vindas, 
Kenia começou a sentir vontade de prati-car 
um esporte, mas ainda tinha medo de 
se machucar. “Eu pensei que nunca fosse 
fazer algo que requer esforço e condicio-namento”, 
ela conta. Para tirar a dúvida, 
conversou com um ortopedista, que a tran-quilizou: 
“Ele disse que já estava tudo calci-ficado 
e que eu podia fazer o que quisesse, 
desde que não sentisse dor”. 
Com o aval do médico, ela passou a 
maratona em 2015 
A meta de Kenia para o ano 
que vem é completar os 42 km 
Em agosto deste ano, Kenia completou a Meia Maratona da Cidade do Rio de Janeiro em 2h58. 
VIDA NA RAIA Por Jean Galvão 
olhar os corredores na orla de forma dife-rente 
e se interessou pela corrida. Foi difícil 
pegar o jeito, mas há um ano ela entrou no 
ritmo. Colocou os 10 km como foco e trei-nou. 
Muito. E conseguiu. Depois vieram os 
21 km — uma meia em janeiro deste ano e 
outra em agosto. Em pouco tempo, Kenia 
fez jus ao próprio nome e hoje corre sem 
medo: “Eu quero mais. Quero fazer uma 
maratona e um duatlo em 2015”. 
A administradora, hoje com 36 anos, 
corre três vezes por semana e faz spin-ning. 
Sempre agitada e animada, Kenia 
não deixa a peteca cair: “Com a corrida, eu 
pude provar que, mesmo depois de tudo o 
que passei, nada é impossível”. 
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Revista Runners - Dezembro 2014

  • 1. Nascida de novo Kenia teve que recomeçar do zero, após passar pelo maior obstáculo de sua vida Por Gabriela Ingrid Fotos Paula Giolito A quela noite de dezembro de 1995 era de festa. Depois da for-matura do namorado, em Bam-buí (MG), Kenia Carneiro de Oliveira, então com 17 anos, entrou no carro do companheiro e os dois seguiram para Arcos. O trajeto seria de cerca de 260 km, quase 4 horas de viagem, mas o tempo parou em algum ponto da estrada. Dois micro-ônibus apostavam cor-rida na rodovia que liga as duas cida-des e, durante uma ultrapassagem, um deles perdeu o controle e atingiu o carro do casal. O namorado bateu a cabeça na direção e Kenia, que estava sem o cinto de segurança, foi arremessada pela janela. O micro-ônibus, após capotar, passou por cima do corpo dela, que ficou em coma induzido durante uma semana e teve que passar por diversas cirurgias. Só quando saiu do hospital, um mês depois, sua família deu a notícia: seu namorado não resistira e havia morrido. “Foi um cho-que, um abismo”, ela conta hoje. renascimento Kenia passou oito meses na cama após um acidente [ dezembro | 2014 ] Runner’s World 29
  • 2. Segundo a mineira, a recuperação emo-cional foi muito mais difícil do que a física. “Eu tinha 17 anos, muitas fantasias e ilu-sões permeavam minha cabeça. Sonháva-mos com um noivado em janeiro de 1996, no mês do meu aniversário”, conta ela. “Na época perdi totalmente a fé. Hoje eu sei que foi Deus quem me salvou, mas eu nunca entenderei por que uma coisa assim acon-tece nas nossas vidas. Demorei três anos para me relacionar de novo.” No acidente, Kenia teve politrauma-tismo e o pulmão perfurado e perdeu 4 litros de sangue. Quando saiu do hospital, só conseguia mover o pescoço e o braço esquerdo. Foram oito longos meses em cima de uma cama. “Eu tentei não desis-tir. Forçava meu corpo a se mexer e fazia muita fisioterapia”, ela conta. Quando finalmente conseguiu se levantar, apro-veitava as manhãs para caminhar com a mãe. “O esforço foi absurdo, doía muito, já que minha musculatura estava atrofiada depois de tantos meses na cama. Mas meu namorado virou meu anjo da guarda e meus pais e amigos me deram muita força. Eu tinha certeza de que voltaria a andar.” Entre levantar-se da cama e voltar a andar normalmente foram três meses. Depois da tempestade O fim da adolescência foi duro, mas Kenia acredita que saiu da experiência mais forte e segura. Ela mudou-se para Três Corações para se formar em administração, depois foi para Belo Horizonte e Nova York, onde morou durante um ano. De lá seguiu para o Rio, voltou para BH, morou no Canadá e finalmente estacionou no Rio, onde vive até hoje. Entre idas e vindas, Kenia começou a sentir vontade de prati-car um esporte, mas ainda tinha medo de se machucar. “Eu pensei que nunca fosse fazer algo que requer esforço e condicio-namento”, ela conta. Para tirar a dúvida, conversou com um ortopedista, que a tran-quilizou: “Ele disse que já estava tudo calci-ficado e que eu podia fazer o que quisesse, desde que não sentisse dor”. Com o aval do médico, ela passou a maratona em 2015 A meta de Kenia para o ano que vem é completar os 42 km Em agosto deste ano, Kenia completou a Meia Maratona da Cidade do Rio de Janeiro em 2h58. VIDA NA RAIA Por Jean Galvão olhar os corredores na orla de forma dife-rente e se interessou pela corrida. Foi difícil pegar o jeito, mas há um ano ela entrou no ritmo. Colocou os 10 km como foco e trei-nou. Muito. E conseguiu. Depois vieram os 21 km — uma meia em janeiro deste ano e outra em agosto. Em pouco tempo, Kenia fez jus ao próprio nome e hoje corre sem medo: “Eu quero mais. Quero fazer uma maratona e um duatlo em 2015”. A administradora, hoje com 36 anos, corre três vezes por semana e faz spin-ning. Sempre agitada e animada, Kenia não deixa a peteca cair: “Com a corrida, eu pude provar que, mesmo depois de tudo o que passei, nada é impossível”. 30 Runner’s World [ dezembro | 2014 ]