O documento descreve a carreira do editor Geraldo Jordão Pereira, que começou aos 17 anos trabalhando com seu pai, o editor José Olympio. Em 1976 fundou a Editora Salamandra, criando um dos maiores catálogos infantis do Brasil. Em 1992 lançou o livro Muitas Vidas, Muitos Mestres, dando origem à Editora Sextante. Apaixonado por histórias de suspense, Geraldo publicou O Código Da Vinci antes mesmo de ser lançado nos EUA, um grande sucesso editorial. A Edit
9. W
Prólogo
1268
York, Inglaterra
illiam não estava correndo.
Por algum tempo ele havia esperado nas sombras perto de um dos portões inferiores da cidade
murada de York, seu cavalo amarrado por perto. Sua amada Alicia não aparecera. Os sinos das
completas já tinham soado havia muito, então, impaciente e irritado, ele deixou o lugar do encontro
secreto e conduziu seu cavalo na direção da casa do pai dela.
O pai de Alicia era um bom homem. Um comerciante bem-sucedido que havia trabalhado muito para
chegar ao topo da classe mercante. Mas era anglo-saxão. A origem de Alicia, ainda mais sendo filha de
comerciante, a tornava uma esposa inadequada para William aos olhos de sua família normanda e
aristocrática.
Mas William a queria. Ele a havia cortejado em segredo e os dois tinham feito planos para se
encontrar e fugir para o Norte. Lá eles iriam se casar e, com as poucas joias e objetos que William
roubara de sua família, iriam começar uma vida juntos.
Ele era jovem, forte e extremamente inteligente. Alicia era bela, boa e esforçada. Juntos teriam uma
vida feliz.
Apesar de ter prometido, Alicia não aparecera.
William praguejou em anglo-normando, sua língua materna, supondo que o pai de Alicia tivesse
descoberto o plano de fuga e a houvesse confinado na casa.
Ele a amava. E a teria mesmo se fosse preciso lutar com o pai dela, espada com espada. Mesmo
agora, seu sangue fervia nas veias e seu corpo se tensionava de desejo por ela. Eles haviam concordado
em esperar até estarem casados para dormirem juntos, mas isso não os impediu de se beijarem e
usufruírem de pequenos prazeres sempre que puderam. Ele estava ansioso por desnudá-la pela primeira
vez e aprender os segredos de seu corpo.
Com pensamentos tão prazerosos e sensuais em mente, William tropeçou.
– Pelos ossos do Senhor! – praguejou, soltando as rédeas do cavalo e caindo para a frente.
Ouviu um gemido baixo vindo do solo.
Quando recuperou o equilíbrio, William se debruçou sobre o que parecia ser uma pilha de panos. Um
raio de luz da lua saiu de trás das nuvens, iluminando o obstáculo em que tropeçara.
O que ele imaginara ser um monte de tecidos era na verdade uma mulher. Ela usava um manto escuro
11. O
Capítulo 1
1o
de julho de 2013
Úmbria, Itália
Príncipe de Florença estava parado em frente a uma casa na Úmbria, perturbado.
Já havia prestado reverência à Princesa da região e conseguira evitar suas investidas românticas.
Ele aproveitara do corpo dela em ocasiões anteriores – ela era bela, inteligente, vibrante e sensual, como
a maior parte das de sua espécie. Naquela noite, porém, achou seus encantos insatisfatórios. Após
recusar educadamente o convite dela para fornicar, o Príncipe foi caçar em terras umbrianas com a
permissão dela.
Foi fácil localizar o professor Gabriel Emerson e sua família. Ele e sua esposa, Julianne, eram donos
da casa majestosa no topo de um morro, as luzes das janelas animando a escuridão. O problema do
Príncipe não estava em encontrar os Emersons ou em escapar do abraço da Princesa. Não, seu problema
advinha de uma promessa.
Raven Wood era humana, tinha uma beleza pouco convencional e muita coragem. Também costumava
proteger os outros, incluindo estranhos. Num momento de ternura, ela exigiu que o Príncipe prometesse
poupar a vida dos Emersons. Ele havia feito a promessa de boa-fé, não apenas porque desejava que ela
lhe confessasse seu passado misterioso, mas porque se importava com Raven e queria fazê-la feliz.
Desde que ela o abandonara, deixando claro que não aceitaria o fato de ele ser incapaz de amar, o
Príncipe sentira-se tentado a descumprir sua promessa e punir o professor por ter a audácia de alegar ser
o dono legítimo de obras de arte roubadas. Não era desculpa ele ter feito isso inadvertidamente. O
Príncipe queria vingança e, agora que o único ser humano no mundo que poderia persuadi-lo a ser
misericordioso o havia rejeitado, não tinha motivo para abrir mão disso.
Foi com esse estado de espírito que ele chegou à casa. Ouviu Katherine Picton, uma antiga amiga da
família, dar boa-noite a seus anfitriões e Clare, a pequena filha dos Emersons, ser colocada na cama no
quarto de seus pais.
Esperou impaciente enquanto os Emersons relaxavam na banheira da varanda do quarto.
O Príncipe torceu o nariz assistindo à interminável união conjugal. Parecia que toda vez que
encontrava o casal eles estavam metidos numa conjunção carnal. Ficou batendo o pé, numa bota de couro,
no chão do jardim, torcendo para que fossem rápidos.
Era uma noite sem estrelas, escura e quieta. O céu era uma abóbada de veludo sobre o Príncipe e a
brisa de verão sussurrava em seu ouvido. Enquanto ouvia Julianne gritar de prazer, ele se lembrou de
Raven emitindo os mesmos sons enquanto ele a amava.
12. Cerrou os dentes.
Amor: um eufemismo gentil para a conjunção de corpos em nome do prazer físico.
E ainda assim ele não podia fugir do termo quando se referia a ela.
Havia se passado quase um mês desde que ele sentira prazer com uma mulher – quase um mês desde
que tivera Raven em sua cama. Ele ainda podia sentir o calor da pele dela, as curvas macias de seu corpo
enquanto a acariciava, seu perfume penetrando nas suas narinas.
Mas foi a lembrança de seus olhos verdes que o manteve parado enquanto Julianne beijava o marido
e voltava ao quarto do casal. Raven tinha olhos grandes, repletos de sentimentos.
Você não se cansa da morte?
A voz dela interrompeu seus pensamentos.
A verdade era que, sim, ele se cansava da morte. Mesmo agora ele se sentia angustiado. Mas o
Príncipe se esforçou para sufocar seus temores e escalou a parede da villa, ansioso por surpreender o
professor quando ele se encontrasse sozinho.
E conseguiu.
– Nos encontramos novamente. – O tom amigável do Príncipe contrastava com sua expressão
ameaçadora.
Espantado, Gabriel se levantou da banheira quente, seu corpo nu e molhado reluzindo à luz fraca que
vinha do quarto.
– O que você quer? – gritou, fechando os punhos.
– Quero que se cubra, para começar. – O Príncipe jogou para o professor uma toalha que estava
perto, olhando-o com nojo.
Gabriel enrolou a toalha ao redor da cintura e saiu da banheira. Posicionou o corpo entre o Príncipe e
a porta do quarto, que ele fechou rapidamente.
– Perguntei o que você quer – repetiu o professor, numa postura decididamente defensiva.
– Quero que aquilo que é meu permaneça meu. Gostaria que você parasse de pegar minhas coisas e
exibi-las como se fossem suas.
O professor olhou incrédulo para o Príncipe.
– Não tenho nada seu. Vá embora. Agora.
Pelas janelas, por cima dos ombros do professor, o Príncipe observou Julianne acalentar a filha.
– V
ocê tem muitas riquezas. Melhor cuidar delas e não ir atrás do que não é seu.
– Novamente – disse o professor, com raiva –, estou pedindo que vá embora.
O ser sobrenatural balançou a cabeça, estudando o homem com seus frios olhos cinza.
– Ouvi dizer que você tem dificuldade em receber ordens. Percebo que isso é verdade.
– Eu falei para você ir embora. V
ocê também não parece estar ouvindo – respondeu o professor.
– V
ocê roubou minhas ilustrações.
Ao primeiro som de protesto do professor, o Príncipe levantou a mão, silenciando-o.
– Sei que você não as roubou pessoalmente, mas as ilustrações me pertenciam antes de caírem nas
mãos da família suíça que as vendeu para você. Eu as peguei de volta e elas devem permanecer comigo.
Para sempre.
– V
ocê está mentindo. As ilustrações pertenciam à família havia quase um século.
– Sim. – O Príncipe olhava para Gabriel com um ar desafiador. – Antes disso elas eram minhas.
13. O professor piscou, confuso.
Quando recuperou a compostura, seus olhos azul-safira se estreitaram.
– Foi você que entrou em nosso quarto de hotel em Florença. Eu não pude ver, mas senti sua
presença. – Gabriel abaixou o tom de voz. – O que você é?
– O que eu sou é irrelevante. Digamos simplesmente que não sou humano. Também não estou
acostumado a discutir com seres humanos ou a dar-lhes uma segunda chance.
Mais uma vez o olhar do Príncipe foi atraído para as figuras da mãe e da filha dentro da casa.
– V
ocê ama sua esposa?
O corpo de Gabriel se retesou.
– Sim.
– O suficiente para morrer por ela?
– Sem hesitar.
Gabriel deu um passo corajoso à frente.
Por um longo tempo, o Príncipe e o professor se encararam. O Príncipe quebrou o silêncio.
– Tenho mais respeito por um homem disposto a viver por sua família do que por um disposto a
morrer por ela. Proteja sua esposa e sua filha. Desista de qualquer tentativa de recuperar as ilustrações e
convença os italianos a fazer o mesmo.
– Eu paguei caro por elas. Seu argumento não me parece convincente.
Os olhos do Príncipe brilharam e ele rosnou.
O professor deu um passo atrás, o terror estampado em seu rosto.
O vampiro resistiu à vontade de atacar, de exercer seu poder e seu domínio. Lançou um olhar para
Gabriel, notando sua tensão, o cheiro da adrenalina correndo por seu corpo, seus batimentos cardíacos
acelerados, e se perguntou por que ele não havia fugido.
Gabriel pressionou as costas contra a porta do quarto, deixando claro que o vampiro teria que passar
por cima dele para atacar sua família. Ele estava disposto a dar a vida para proteger a esposa e a filha,
que permaneciam alegremente alheias lá dentro.
O Príncipe pensou em outro ser humano protetor, uma mulher que quase dera a vida para impedir que
um sem-teto fosse espancado até a morte.
Ele não gostava de ser lembrado disso.
– Sua esposa está doente – anunciou ele abruptamente, ajeitando as mangas da camisa.
A expressão de Gabriel se alterou.
– O quê?
– V
ocê é um homem inteligente, ou pelo menos é o que dizem. Estou certo de que percebe que tenho
certas… habilidades. Uma delas é sentir a doença dos humanos. Não consigo identificar o problema, mas
sei que há algo de errado com sua esposa, alguma coisa está fazendo o sangue dela perder ferro. Quando
a conheci na Uffizi, há dois anos, senti o cheiro da doença. O que quer que seja ainda a ameaça.
Evidentemente abalado pela revelação, o professor virou a cabeça e olhou para Julianne pela janela.
– V
ocê adquiriu ilustrações que foram roubadas – continuou o Príncipe. – Eu sou o proprietário
original, então as peguei de volta. Deveria ter destruído você, mas, em vez disso, eu o presenteei com
uma informação vital sobre a saúde de sua esposa. Acho que concorda que fui mais do que generoso.
Gabriel voltou sua atenção para o Príncipe. Estava claro que ele não sabia em que acreditar, mas seu
14. desejo de proteger a família venceu.
– V
ou abandonar a investigação e falar com a Interpol pessoalmente – disse Gabriel entre dentes
cerrados. – Não posso ser responsabilizado pelas ações dos outros. Se os italianos decidirem ir atrás de
você, o azar é deles.
– Se você retirar a busca, então não teremos mais o que discutir.
O Príncipe lançou um olhar prolongado para o professor, foi até a beirada da varanda e se virou.
Gabriel continuava parado numa postura defensiva na porta do quarto. Colocou a mão sobre a boca,
como que para se impedir de chamar a atenção da família.
O Príncipe o encarou com um olhar de pedra.
– Certifique-se de viver o suficiente para garantir que sua filha tenha uma boa vida. Podem acontecer
certas coisas às crianças quando perdem o pai.
Ele saltou sobre o corrimão e voou até o solo antes de desaparecer na escuridão.
15. F
Capítulo 2
6 de julho de 2013
Florença, Itália
icaram parados por um tempo que pareceu uma eternidade, a jovem humana e o vampiro com muitos
séculos de idade, unidos em um abraço desesperado no telhado com vista para a Galleria degli
Uffizi.
Era o mais improvável dos casais. No entanto, estava claro para ambos que formavam um par
perfeito.
O coração de Raven estava pleno, sua mente, relaxada, seu corpo, saciado. Ele saiu de dentro dela e
a pôs no chão sobre pés bambos.
Ajeitou a calça e tirou um lenço do bolso. Sustentando-a com um braço em volta da cintura, levantou
sua saia e passou o pano gentilmente entre as pernas dela. Quando terminou, jogou o lenço de lado e
cuidadosamente abaixou a saia de Raven.
– Agora que você me deu seu presente, preciso lhe dar o meu.
William acariciou a face dela, com os olhos iluminados.
Raven pôs a mão sobre o peito dele, em cima do coração. Sentiu sob a palma o estranho ritmo e o
silêncio quase assustador.
– Esse é o meu presente – disse ela, baixinho. – Pela maneira como você me toca, posso ver que me
ama.
Ele ergueu os dedos dela e os beijou, um a um.
– Mas você vai querer o meu outro presente.
– Este é o único que eu desejo. Mas mesmo assim fico feliz em ouvir.
– Amo você – sussurrou ele. – Defensa.
Ela sorriu junto ao ombro dele.
– Não sou mais uma criatura ferida; sou uma protetora.
– V
ocê sempre foi uma protetora. – Ele beijou sua testa, então passou o dedo pela pálida cicatriz que
havia ali. – Certa vez você contou que ninguém jamais a defendeu. Hoje vou defendê-la.
– Como assim? – Ela recuou, confusa.
– Prometi lhe dar justiça. Sempre cumpro minhas promessas.
Uma onda de ansiedade a atravessou.
– William, o que você fez?
Ele abriu um sorriso vagaroso.
16. – Fiz, não; vou fazer. Venha.
William a puxou com força para junto de si, e os dois subiram para o telhado até seus corpos
desaparecerem na noite como uma fina nuvem de fumaça.
Na expectativa do que viria, Raven parou aos pés da grande escadaria da luxuosa villa de William.
– Por aqui. – Ele apontou para o corredor.
Ela olhou com desejo para o segundo andar.
– Achei que iríamos subir.
Os olhos cinzentos dele pareceram brilhar.
– Vamos para a biblioteca.
Raven havia imaginado que ele a conduziria (ou carregaria) até o quarto, onde fariam amor até o pôr
do sol. Ela franziu a testa.
– Por quê?
– V
ocê vai ver. – Ele pegou a mão dela, conduzindo-a pelo corredor.
A biblioteca era um belo cômodo, com estantes que iam do chão ao teto, imensas janelas que cobriam
toda uma parede e o teto alto em redoma inteiramente de vidro. Uma luz fraca vinha do lado de fora, mas
Raven quase tropeçou na penumbra.
William acendeu uma vela para ajudá-la. Vampiros são capazes de ver perfeitamente no escuro.
– Não é nosso destino final – explicou ele. – É apenas o vestíbulo.
Ele se virou para uma das estantes e empurrou a lombada de um exemplar volumoso de Virgílio. Com
um ruído, a estante girou, revelando uma passagem escura.
Raven espiou dentro do espaço estreito. Ela não havia gostado da última jornada ao submundo,
quando ele a apresentou a alguns de seus colegas vampiros. Não tinha nenhuma vontade de repetir a
experiência.
– Eu estava louca para passar a noite na cama com você.
William olhou para ela voraz.
– Estou louco para isso também, pode acreditar. Mas ainda não dei seu presente.
Ela olhou para a passagem.
– Não gosto de surpresas.
– Dessa surpresa, você vai gostar. Eu garanto.
Ele a conduziu por uma escada em espiral, sustentando cuidadosamente o peso dela, já que Raven
estava sem a bengala.
O subsolo da villa estava úmido. Raven sentiu sua pele arrepiar e deteve William.
– Não pode me dar o presente lá em cima? No seu quarto?
– Tenha paciência, Cassita. – Ele a soltou e alisou o longo cabelo preto dela. – Tudo será revelado.
Eles continuaram por um longo corredor pontuado por uma série de pesadas portas de madeira.
Raven podia jurar que tinha ouvido ratos correndo e arranhando o chão atrás deles.
Ela se agarrou a William, até finalmente pararem em frente a uma grande porta de aparência antiga.
17. Estava fechada por fora. Com gestos experientes, ele levantou a barra e a abriu. O corredor ecoou com o
barulho das dobradiças enferrujadas.
Ele entrou primeiro na sala, usando a vela que levava para acender as tochas suspensas nas paredes.
Logo o espaço úmido e gelado foi banhado por uma luz quente e tremeluzente.
Raven hesitou na soleira. Inicialmente, pensou que a sala fosse uma adega, mas ao observar o interior
não encontrou nada parecido com garrafas ou barris de vinho.
Num canto, havia uma velha mesa e uma cadeira. Nas paredes, além dos castiçais de ferro que
mantinham as tochas agora acesas, havia um par enferrujado de algemas de ferro atreladas a correntes
longas e pesadas. Apenas a ausência de armas e instrumentos a impedia de acreditar que estava na porta
de uma câmara de tortura. Então ela viu.
No canto mais distante da sala havia uma pequena cela feita de grossas barras de ferro do chão até o
teto de pé-direito baixo.
A cela não estava vazia.
Ela entrou na sala, esmagando o cascalho espalhado pelo chão de pedra. A umidade parecia exalar do
chão, penetrando pelas solas de seus sapatos e subindo por suas pernas nuas. Ela estremeceu.
Dentro da cela estava um homem, deitado no chão. Sua roupa estava suja e rasgada e seu cabelo,
desgrenhado. À luz fraca que atravessava as barras de ferro, ela quase podia vislumbrar seu rosto.
Raven levou a mão ao nariz por causa do fedor que emanava do homem, como se ele não tomasse
banho havia dias e usasse o chão da cela como banheiro. Curiosa, ela se aproximou.
O prisioneiro escolheu aquele momento para se mover, revelando seu rosto. Raven levou um susto.
– Ah, meu Deus – sussurrou ela, parando onde estava.
William se materializou ao seu lado, levando os lábios à orelha dela.
– Feliz aniversário.
Xingando, Raven cambaleou até a porta. Ela deu apenas três passos antes de despejar o conteúdo de
seu estômago no chão.
– Não é a reação que eu esperava. V
ocê está bem?
Ela o afastou, vomitando uma segunda vez. Quando terminou, William tentou puxá-la em direção à
cadeira.
– Não.
Raven afastou a mão dele. Ele pareceu intrigado.
– E quanto ao seu presente?
– Que presente?
Trêmula, ela limpou a boca com as costas da mão.
– Eu lhe prometi justiça. – Ele acenou na direção do prisioneiro. – Isso é justiça.
Os olhos de Raven encontraram os de William.
– Como?
William sorriu, seus dentes brancos reluzindo à luz das tochas.
– Eu o trouxe aqui para que você mesma pudesse matá-lo.
21. secarem, e finalmente ela parou. Mas o que veio em seguida foi muito mais inquietante. Ela se deitou de
lado, olhando para a parede sem piscar.
Ele falou com ela, mas ela não respondeu. Tentou movê-la, mas o corpo dela mantinha-se na mesma
posição, como se seus músculos tivessem enrijecido. Ainda mais alarmado, percebeu que seu pulso
estava irregular e sua respiração, curta. Apesar do frio, sua testa estava banhada de suor.
As mudanças físicas em Raven o assustaram. Temia que tivesse ferido sua mente de alguma forma,
causando um dano irreparável.
Minutos se passaram e a ansiedade dele cresceu. Deixando a cautela de lado, colocou as mãos no
rosto de Raven e olhou em seus olhos.
– Raven, concentre-se no som da minha voz.
Ela não pareceu ouvi-lo.
– Seu corpo vai relaxar e você vai dormir. Vai descansar em paz até de manhã, sem preocupações.
Passaram-se alguns momentos sem que houvesse reação, e William repetiu as instruções.
Sua angústia aumentou. Não estava nem um pouco confiante no controle da mente. Ele era adepto da
técnica, mas Raven tinha uma mente forte. E se de alguma forma encontrar o padrasto tivesse rompido sua
mente…
Raven piscou e então seus grandes olhos verdes o focalizaram.
– Escute minha voz – repetiu. – Respire profundamente e relaxe seu corpo.
Imediatamente, a visão de Raven ficou turva. Em pouco tempo, sua respiração se acalmou e seus
músculos relaxaram.
– Boa menina. – Ele soltou o ar aliviado. – Feche os olhos.
Ela obedeceu e ele a soltou, puxando as cobertas e arrumando-as sobre seu corpo.
– Descanse bem, meu amor.
Beijou a testa de Raven, escutando a pulsação e a respiração dela se normalizarem.
Por vários minutos ele a observou dormir. Seu alívio repentino deu lugar a um desconforto. Ela
estava agora sob seu controle, e ele nunca havia ficado tão pouco à vontade como mestre.
Um pássaro na gaiola nunca é tão bonito quanto um pássaro livre. Lembrou-se das próprias
palavras.
Convenceu-se de que havia sido necessário usar o controle da mente nesse caso. Ela estava muito
perturbada. Algo terrível se passava com ela. Ele interviera antes de ficar pior, ou irreversível.
Duvidava que ela visse a situação da mesma forma quando ele pudesse se explicar. Ele não estava
ansioso por ter essa conversa.
Seu olhar vagou até a versão da Primavera pendurada em sua parede. O rosto de sua antiga amante,
Allegra, o assombrava. Foi tomado pela lembrança de seu corpo quebrado no chão sob a torre do sino
depois que ela pulou para a morte.
O suicídio de Allegra fora resultado de repulsa e desespero. Centenas de anos depois, aquele
incidente ainda o perturbava. E talvez, apesar de não querer admitir, também se sentisse responsável.
Ele olhou novamente para a bela mulher de cabelo escuro que dormia em sua cama. Havia apenas
algumas horas que se reencontraram. Não estava preparado para perdê-la.
William imaginara que ela ficaria feliz com o presente, um inclusive que lhe dera bastante trabalho
para encontrar. Ele achou que ela iria aproveitar a oportunidade para exercer justiça sobre o homem que
23. S
Capítulo 5
tefan de Montreal era o médico do principado de Florença. Ele era muito mais jovem do que o
Príncipe e os outros membros do Consilium, que comandava Florença. Mas havia sido treinado na
medicina do século XX, seu conhecimento em saúde e ciência contemporâneas era valorizado e sua
juventude como vampiro, ignorada.
Mesmo assim, quando o Príncipe o convocou ao Palazzo Riccardi, Stefan temeu que seus serviços
estivessem prestes a ser dispensados. Nos últimos anos, o Príncipe havia executado dois membros do
Consilium por fracassarem em suas tarefas. Stefan estava muito preocupado, imaginando que seria o
terceiro.
Ele tentou se acalmar pensando que, se o Príncipe desejava executá-lo, ele o faria na reunião do
Consilium e não numa de suas residências. No entanto, era um conforto inútil.
– Gosta dessa safra? – O Príncipe apontou para o sangue humano aquecido que Stefan estava
bebericando nervosamente.
– Jovem e doce. Obrigado, meu senhor.
Stefan tentou manter-se calmo enquanto esperava o Príncipe revelar a razão por trás de seu chamado,
passando a taça de uma mão para a outra conforme o tempo passava.
O vampiro mais velho mantinha-se de pé ao lado de uma janela, aparentemente perdido em
pensamentos. Sua taça de sangue permanecia intacta na mesa.
Stefan achou aquilo curioso.
– Acho que quebrei meu bichinho de estimação – finalmente falou o Príncipe, ainda de costas para o
médico.
Stefan pousou o copo numa mesa de canto.
– Morreu?
– Quê? Não.
O Príncipe se virou e franziu o cenho.
– Perdoe-me pela pergunta íntima, meu senhor. Ele se alimentou do senhor?
O Príncipe crispou os lábios.
– Não. E não é o corpo dela que está quebrado. É a mente.
– Mentes humanas, como corpos humanos, são facilmente quebradas. – Stefan entrelaçou seus dedos.
– É da natureza deles serem fracos.
O Príncipe o olhou com frieza antes de levantar sua taça e beber.
25. seu bichinho tenha precisado. O que o senhor descreve parece uma condição chamada de catatonia. Um
médico humano teria feito testes em seu bichinho e o medicado. Onde está agora?
– Ainda dormindo.
– Tentou acordá-lo?
– Não.
– Talvez o senhor enfrente alguns problemas. Catatonia, trauma e controle mental são uma
combinação pesada. Mesmo que consiga acordar o bichinho, ele pode não ser o mesmo de antes.
O Príncipe pareceu angustiado, mas logo retomou o controle.
– Quer dizer que o dano pode ser irreparável?
– É possível. O bichinho teve um colapso e o senhor usou controle mental sobre ele, o que pode
piorar os problemas. Imagine que usou um martelo para reparar um vaso quebrado. Tudo o que sobra são
estilhaços.
– Sard! – praguejou o Príncipe, sem elevar o tom de voz. – E se você tratá-la?
A mão de Stefan tremia quando ele levou seu copo até a mesinha de canto.
– Sou seu servo e farei, é claro, como manda. Mas há pouco que eu seja capaz de fazer que um
psiquiatra humano especializado nesse tipo de caso não faria com mais eficiência. V
ocê teria que
remover o controle mental antes de hospitalizar seu bichinho, isto é, se o controle puder ser removido. Se
a mente de seu bichinho estiver realmente quebrada, a solução mais fácil seria mantê-lo sob controle
mental até o senhor se cansar dele. Claro… – Ele fez um gesto vago.
– O quê? – perguntou o Príncipe num tom incisivo.
– Controle mental funciona apenas porque a mente consciente está sendo influenciada. As memórias
do bichinho ainda estariam intactas, mas não disponíveis para a mente consciente. Como médico, temo
que seu bichinho ainda tenha problemas psiquiátricos que o controle da mente não eliminaria. Por
exemplo, pode permanecer catatônico.
– E se eu executasse o homem que a traumatizou? E a convidasse para assistir?
Stefan conteve um sorriso.
– Com todo o respeito, meu senhor, está pensando como um vampiro. Se seu bichinho está
traumatizado meramente por ver o homem, pense no que aconteceria se fosse forçado a testemunhar sua
execução. – Ele interrompeu o contato visual e esfregou a nuca. – Posso falar livremente?
– Por isso trouxe você aqui. – O Príncipe se apoiou na mesa, cruzando os braços sobre o peito.
– Se prefere que seus bichinhos tenham vida, o nível de controle mental necessário para administrar
uma mente quebrada seria demais. Como disse, seria melhor encontrar outro bichinho mais saudável.
Mesmo sob seu controle mental, o bichinho pode se tornar imprevisível, instável. – Ele agarrou os braços
da cadeira. – Um risco de segurança.
O Príncipe deu um grande gole na bebida.
– Obrigado, Stefan. V
ou pensar em sua opinião. – Seus olhos cinza se fixaram no vampiro mais novo.
– Tenho certeza de que você vai manter esta conversa em segredo.
– Sim, meu senhor.
– Bom. – O Príncipe passou o dedo pela beirada da taça antes de levá-la à boca. – Eis uma notável
informação sobre a história do principado: ainda não executei um canadense.
– Que eu não seja o primeiro, meu senhor.
28. para ele. – Eu devolvi isso por um motivo. Pare de agir como se nada tivesse mudado.
Como ele se recusou a pegar a pulseira, ela a jogou sobre os lençóis. Colocou as pernas para fora da
cama e ficou de pé. Quando seus pés tocaram o carpete, ela foi tomada por uma sensação estranha.
Sua perna direita a incomodava, como costumava acontecer quando ela ficava de pé depois de um
tempo deitada. Mas não foi essa sensação que chamou sua atenção. Ela se sentia curiosamente nua
debaixo do vestido. Então passou as mãos pela barriga. Num gesto brusco, ficou de costas para William e
discretamente deslizou a mão sob a saia do vestido. Quando sentiu apenas pele, congelou.
– Onde está minha calcinha?
William ficou de pé num instante.
– Raven, me escute. Nós…
– O que aconteceu com minha calcinha? – Ela se virou para ele com raiva.
Ele apertou os lábios e seus olhos acinzentados se nublaram.
– É um vestido bonito.
– Não me importo com o que estou vestindo – rebateu ela. – O que me preocupa é o que não estou
vestindo. Nós terminamos. Não o vejo há um mês. Agora acordo na sua cama sem lembrar a noite
anterior e não estou usando nada por baixo!
– Não se lembra da noite passada? – perguntou ele numa voz baixa, lenta e cheia de decepção.
Ela levantou os braços, irritada.
– Do que eu deveria me lembrar? Diga.
William começou a falar, mas depois pareceu refletir melhor. Encarou-a por um tempo, enquanto ela
fechava e abria os punhos.
– A cor do seu vestido combina com você – disse ele finalmente. – Foi para uma ocasião especial?
Raven fechou a cara.
– Gina e Patrick fizeram uma festa de aniversário para mim. Por que isso importa?
– Eu visitei você depois, no seu apartamento.
– Por quê?
– Porque era seu aniversário. – Ele falava com uma voz suave. – Porque eu me importo com você.
Raven fechou os olhos e grunhiu.
– Por que está fazendo isso?
– Estou tentando ajudar, Raven. Juro. A festa foi na noite passada. V
ocê pode me acompanhar até lá
embaixo e ligar para seus amigos para confirmar a data. – Ele apontou para a porta do quarto.
Raven abaixou a cabeça para examinar as dobras de seu vestido verde. A palma de sua mão flutuou
sobre o tecido como um pássaro sobre o gramado. Ela se distraiu com o movimento relaxante.
– Eu me lembro da festa. Dei ao primo de Gina uma carona para casa depois.
– E então? – insistiu William.
– Fui para casa. – Raven fechou os olhos, lembrando-se de chegar a sua cozinha.
E ver a bela figura de William, sentado à mesa.
– Eu estava esperando por você – cochichou ele.
Imagens tomaram sua mente.
– Nós voamos juntos sobre os telhados. V
ocê me levou para o Duomo e me mostrou sua cidade. – Ela
engoliu em seco. – V
ocê me disse…
33. Ela o beijou, se esticando para correr os dedos pelo cabelo molhado dele enquanto a água caía sobre
os ombros. Movia-se com a avidez nascida do amor, do afeto e do alívio de lembrar que não o havia
perdido.
Ele era dela.
Mesmo agora, nua, com uma miríade de falhas que poucos homens deixavam de notar, ele a abraçou.
Ele abraçou suas imperfeições.
Ele a amava.
Suas mãos frias queimavam a pele dela, e ele a puxou, com os dedos bem abertos sobre sua barriga,
até que as costas de Raven entrassem em contato com o que surgia entre as pernas dele. Ela entregou seu
peso e ele a segurou firme, mordiscando e lambendo os lábios dela antes de deixá-la colocar a língua na
boca dele.
Ele manteve a intrusão por alguns segundos, então, com um grunhido, girou-a, pressionando seus
peitos juntos.
Raven olhou para os olhos cinzentos, que pareciam queimar.
– Tem certeza?
Ela assentiu.
– Preciso de palavras, Raven. Preciso saber que você quer.
– Eu quero você.
Ele a beijou, sua língua penetrando e saindo da boca dela num ritmo sensual. Ela virou a cabeça,
recebendo-o, enquanto a água continuava a cair. As mãos passeavam pela pele lisa enquanto a parte
inferior de seus corpos se alinhava. Ela tocava o pescoço dele, seus ombros, seu bíceps, segurando-os
firmemente num esforço de permanecer ereta.
William não era um amante manso. Em seus braços, ela sentia seu controle, seu desejo, e a guerra que
se deflagrava entre os dois sentimentos dentro dele. Mas ele nunca a machucava e sempre se preocupava
em dar prazer antes de tê-lo. Geralmente mais de uma vez.
– V
ocê é um sonho – suspirou ela. – Um sonho de amor que eu nunca achei que fosse ter.
William cravou os olhos nos nela. Sem aviso, ele a levantou, puxando as coxas de Raven ao redor de
seus quadris. Baixou a boca aos seios dela, provando e provocando antes de sugar gotas d’água de sua
carne ávida.
Ela envolveu os braços no pescoço dele, sentindo-o entre suas pernas. Ele a levantou mais alto, com
as mãos em suas costas, certificando-se de que estavam corretamente alinhados.
– Respire – ordenou, com os olhos penetrando nos dela.
Ele era o vampiro, orgulhoso e poderoso, no limite do controle. Ele mostrou os dentes como por
instinto e um rosnado escapou de seu peito.
– Apenas não me quebre – sussurrou ela, afastando uma mecha loura da testa dele.
A expressão de William ficou ainda mais feroz.
– Não vou. Qualquer que seja o mal que eu faça a você, juro curar.
Ele calou a resposta dela com seu beijo e então, com uma única estocada, entrou nela.
Seus beijos ficaram ferozes como seus movimentos, entrando e saindo dela, seguidamente. Segurava-
a com mais força enquanto levantava e a movia no ritmo de seu próprio movimento.
Raven se agarrou a ele, puxando-o para mais perto, para que ele pudesse ir mais fundo. Não que ele
34. precisasse de encorajamento.
Seus seios roçavam contra o peito dele, o que a excitava ainda mais. Ela ignorou a água, o cheiro do
sabão e de William, e o irritante desconforto em sua perna e no tornozelo. Estava concentrada na
sensação enquanto ele a levava rapidamente à beira do orgasmo.
Antes que pudesse dar sinal de que estava perto, Raven chegou ao clímax, a mão no pescoço dele
enquanto ela jogava a cabeça para trás. William manteve o ritmo até ela terminar, seu rosto descendo até
os seios dela, levando um deles até a boca.
Quando ela abriu os olhos, ela o encontrou olhando para ela, faminto.
– Estou apenas começando – disse ele rouco. – Respire.
36. – V
ocê fica irritável quando está com fome. Já reparei.
Raven lançou-lhe um olhar amargo.
Ele se sentou ao lado dela na cama e pousou um beijo arrependido nos lábios dela.
– V
ocê poderia se alimentar de mim – sugeriu ela.
– Sinto necessidade de algo mais forte. – Os olhos dele foram até onde a mão dela pousava,
descansando no colo. – Eu vou me alimentar de você novamente. Em breve.
Ela apontou vagamente para onde o olhar dele havia parado.
– Certamente. – Ele abriu um meio sorriso. – Acho que sua carne ferida se beneficiaria da frieza da
minha língua. Quando chegar o momento certo, vou provar o sangue que flui por sua coxa.
Raven ficou boquiaberta.
William apreciou a surpresa curiosa dela. Ele também gostava de ver Raven enrolada nos lençóis.
Era uma imagem que deveria ser capturada numa pintura e pendurada em sua parede. Perguntou-se se
confiaria num artista para pintar Raven num momento tão íntimo, mesmo se a nudez dela fosse coberta.
Concluiu imediatamente que não.
– Junte-se a mim na sala de visitas. Lucy vai guiá-la.
– O que devo usar?
Ele apontou para os lençóis.
Ela franziu a testa.
– Não posso descer assim.
– Esta é minha casa. V
ocê pode usar, ou não usar, o que quiser.
Ela cobriu-se mais com o lençol.
– Mesmo se fosse Halloween e você estivesse dando uma festa a fantasia, eu não andaria por aí
enrolada num lençol.
William ficou intrigado com a observação dela, mas não se deu o trabalho de questioná-la. Foi até o
armário e remexeu em alguns cabides.
– Eu estava ansioso por vê-la neste vestido. – Ele colocou um longo vestido de noite de cetim preto
sobre a cama.
O vestido era elegante mas sensual, com um decote muito profundo nas costas. A frente era quase tão
ousada, com um V que iria realçar seus seios generosos.
Raven olhou para ele com sobrancelhas erguidas.
– Sério?
– V
ocê também pode usar um roupão, mas acho desnecessário. Venha até mim quando estiver pronta e
eu conto o que aconteceu na noite passada. – Ele tentou manter o tom casual, mas sabia que havia
fracassado.
Raven encarou atentamente o vestido provocante jogado sobre a cama e assentiu.
William se retirou para a adega que ficava embaixo da villa, alheio aos gritos e ao choro que vinham
do calabouço. Não sentia remorso por manter o pedófilo prisioneiro. Ele sempre desprezara os pedófilos
e havia proibido a prática em seu principado.
O animal que estava na jaula no fim do corredor havia abusado da irmã mais nova de Raven. William
lera os relatos. Também vira as fotografias dos ferimentos de Raven.
Ele conhecia a escuridão. Conhecia o mal. Mas também sabia que havia aspectos da maldade que iam
37. além de qualquer coisa que ele pudesse compreender. Não perdia tempo tentando resolver os enigmas do
mal. O mal tinha sua própria lógica e não era algo que ele, considerando seu próprio código moral,
poderia entender.
E os humanos acham que nós que somos monstros.
Ele tinha visto muitas coisas desde o século XIII. Muito poucos acontecimentos na história humana o
surpreendiam ou chocavam, coberto como ele estava em indiferença. Ainda assim ele não era insensível
a Raven ou ao sofrimento dela.
Ele se arrependia de não ter matado o pedófilo quando teve chance.
Um atestado de óbito teria sido um excelente presente de aniversário. Por que diabo ele havia
hesitado?
William murmurou um palavrão. Sabia o motivo.
Sua mão pairou sobre as mais valiosas safras de sua adega, então parou. Seria fácil, fácil demais,
matar o pedófilo e mentir sobre isso. Mas Raven já havia demonstrado que sabia quando ele tentava
enganá-la.
Ele precisava de sangue de vampiro antigo para fortalecer sua confiança e encontrar as palavras para
contar a Raven quem ele mantinha no calabouço. Além disso, precisaria confessar ter usado controle
mental nela. Não era uma conversa pela qual ansiava, muito menos por seu inevitável desdobramento.
Suas mãos se fecharam sobre uma valiosa garrafa, escolhida pela força que o dono original possuíra.
William precisava do sangue de um antigo mentiroso, havia muito morto, para lhe dar coragem para dizer
a verdade.
Pouco depois, William estava sentado numa grande cadeira em frente à lareira, de cara fechada. A noite
de verão estava muito quente, mas William gostava do fogo. Algo em seu movimento, em seu som e seu
cheiro o confortava.
Raven não reclamou do calor. Ela se sentou à direita dele numa cadeira idêntica, com a perna ferida
dobrada sob o corpo, bebericando uma pequena taça de Vin Santo.
Ele havia quase terminado. Tentou beber discretamente, para não a perturbar, mas estava determinado
a não esconder sua alimentação dela.
– É bom?
Ela apontou para o cálice ornado de ouro em sua mão.
– Muito. – Ele levantou a bebida. – É do antigo Príncipe de Florença. Gostaria de provar?
– Não, obrigada.
– Provavelmente é uma decisão sábia. Ele possuía perversidade em abundância.
William bebeu com parcimônia antes de colocar a taça de volta na mesa. Para vampiros, sangue e
sexo andavam juntos. Agora que ele saciara um apetite, sentia o outro surgir. Luxúria era certamente um
dos mais antigos vícios de William, e ele a sentia pulsando por seu corpo.
Ele se permitiu o luxo de admirar a aparência de sua amante. Seu longo cabelo escuro era ondulado,
tendo secado ao ar. Sua pele trazia o brilho luminoso de uma mulher satisfeita na cama e seus olhos
verdes estavam brilhantes e claros.
40. forneceu alguns registros do processo, depoimentos de testemunhas, transcrições, arquivos médicos.
A cor se esvaiu do rosto de Raven.
– Mas são confidenciais.
– Dinheiro pode ser um poderoso incentivo. Quando não funcionou, Luka fez uso de meios mais
criativos.
Raven apertou bem os olhos e se remexeu em sua cadeira.
William adotou um tom mais suave.
– Vi os relatos e as fotos. O que descobri me deixou mais do que bravo, Cassita. Me magoou. Mais
do que posso expressar. V
ocê suportou muito mais do que apenas uma queda das escadas enquanto
protegia sua irmã. Havia diversos hematomas e ferimentos nos seus braços.
Inconscientemente, Raven tocou o braço esquerdo abaixo do cotovelo. William seguiu atento o
movimento dela.
– O arquivo sobre sua irmã esclareceu o que você havia me contado. Eu queria ir aos Estados Unidos
para lidar diretamente com a situação, mas por vários motivos tive que permanecer aqui. Mandei Luka
para observar sua irmã e sua mãe. Como você disse, sua irmã é bem-sucedida e parece satisfeita com o
homem que escolheu. Suponho que saiba sobre o novo casamento de sua mãe.
– Cara me contou.
– Se coubesse a mim decidir, eu teria matado sua mãe. Nenhum adulto razoável poderia ter ignorado
o que acontecia dentro da própria casa. Ela escolheu ignorar os sinais e por isso deveria ser punida.
Porém, você me pediu que não a machucasse. Mas seu padrasto…
Raven se levantou, interrompendo-o.
– É o suficiente.
Ela deu as costas para ele, pegando o roupão que fora jogado descuidadamente sobre as costas da
cadeira. Ela o vestiu, cobrindo o máximo de pele possível antes de amarrar o cinto com força.
– Acho deprimente que você só se disponha a compartilhar as informações mais básicas sobre si
mesmo e ainda assim se sinta compelido a mandar um investigador para a Flórida a fim de descobrir tudo
sobre mim e minha família disfuncional.
William observou os movimentos de Raven com preocupação crescente. Podia perceber o pico de
adrenalina no sangue dela e sentia seus próprios pulmões, por mais supérfluos que fossem, contraídos.
Era uma sensação terrível saber que estava ferindo a pessoa que amava. E ele ainda não havia lembrado
a ela quem estava deitado numa cela sob o piso.
Ele precisava prosseguir com mais cuidado.
– Não tenho prazer em voltar a esses assuntos – disse ele gentilmente. – Longe disso. Tente imaginar,
se puder, como seria se nossas posições fossem invertidas. Como você se sentiria se descobrisse que eu
passei por essas experiências quando criança?
– Eu provavelmente me sentiria como você. Mas não o faria falar sobre isso, porque sei que só
pioraria as coisas. – Raven segurou o roupão com os dedos trêmulos, de modo a cobrir parte do pescoço.
– Existe um propósito no que estou contando, juro. Algo a perturbou noite passada, e, por alguma
razão, sua mente bloqueou isso. Eu preferiria terminar minha história aqui. – Ele hesitou. – Mas, se você
insistir em ouvir o que aconteceu, devo contar.
– Já que chegamos tão longe. – Ela cambaleou ao redor da cadeira, pegou a taça e bebeu o que
41. restava.
– Gostaria de mais?
Ela abaixou a taça com um baque alto.
– É ruim assim?
Como ele não respondeu, Raven se sentou pesadamente na cadeira.
– Conte.
William observou enquanto ela se encolhia, aconchegando a bochecha no encosto da cadeira. Ele
passou a mão sobre o rosto.
– Fiz uma promessa a você depois de nossa conversa. Prometi que lhe daria justiça. Foi por isso que
enviei Luka aos Estados Unidos. Ele descobriu que seu padrasto e os advogados dele manipularam o
sistema e a investigação do incidente envolvendo você e sua irmã. Foi por isso que ele escapou da
punição. Quando Luka o localizou, descobriu que o homem usou identidades falsas antes e depois de
casar com sua mãe. Na verdade, o casamento dele com sua mãe foi uma fraude, porque ele já era casado.
– Ele era um filho da puta doente. Isso não me surpreende. – O tom de Raven era cortante.
– A investigação de Luka revelou um padrão. Na maior parte da vida adulta, seu padrasto migrava de
uma mãe solteira para outra, infiltrando-se na vida delas com o propósito de ganhar acesso a seus filhos.
William fez uma pausa, observando a reação de Raven. Ela continuava parada, olhando para o fogo.
– Seu padrasto estava vivendo na Califórnia com uma viúva e seus filhos pequenos. O casamento é
inválido porque ele ainda é casado com sua primeira e única esposa legal.
Agora Raven olhou para ele.
– Os meninos, ele…?
– Parece que o gosto dele é por meninas. Mas Luka descobriu… – William parou, pois o rosto de
Raven havia tomado um tom esverdeado. Aproximou-se dela, agachando-se ao lado da cadeira. –
Cassita, olhe para mim.
Como ela se recusou, William colocou a mão sobre o joelho dela.
– Acabou. Luka expôs seu padrasto e o grupo a que ele era associado. Muitas crianças foram
resgatadas, incluindo aqueles garotos. Todos os pedófilos foram presos.
– Havia muitos? – sussurrou ela, sua expressão aflita.
William sentiu seus pulmões se apertarem mais. Ele queria poder mentir, enganá-la, qualquer coisa
para protegê-la. Era bem possível que ela reagisse como na noite anterior, e toda a sua honestidade seria
desperdiçada.
Ele respirou fundo, mesmo que fosse desnecessário.
– Sim. Por sua causa as crianças foram salvas.
William observou enquanto a mão dela, pousada sobre a barriga, lentamente se fechava num punho.
– Foi por minha causa que elas se feriram.
– Isso é mentira. V
ocê é a razão pela qual eu fui procurá-lo. V
ocê é a razão pela qual eles foram
encontrados.
– Eu o deixei escapar. Se tivesse sido preso na Flórida, ele não teria feito mal a todas essas crianças.
Ele ficou de pé e inclinou-se sobre ela.
– Não assuma pecados que não são seus.
– Ele vem fazendo isso há anos. Eu deveria tê-lo detido.
42. – Me diga que poder você tinha aos 12 anos no hospital com uma perna quebrada. Seu padrasto
poderia ter atacado sua irmã uma segunda vez, mas você a tirou da casa. V
ocê a protegeu.
– Ele abusou dela de qualquer forma. – Raven segurou seu roupão, apertando o tecido.
– Ele foi pego agora. E não vai escapar.
– Mas eu deveria ter feito mais. Depois, quando já tinha idade suficiente. Podia ter prestado outras
queixas. Ter ido até a imprensa. – Ela levantou o olhar para ele. – V
ocê é rico?
William franziu a testa.
– Sim. Por quê?
– Muito rico?
Ele relaxou a postura, colocando as mãos nos bolsos da calça.
– Tenho propriedades e investimentos. Mantenho uma quantia razoável nos bancos suíços.
– É muito?
Ele parou.
– O suficiente para desestabilizar a Europa.
Percebendo a respiração entrecortada dela, ele se apressou em explicar.
– Tenho adquirido posses desde o século XIII. Exceto pelo roubo das minhas ilustrações, ninguém
nunca tirou nada de mim. Pelo menos não por muito tempo.
– Então você pode ajudá-las. – Ela se endireitou na cadeira. – Pode proteger as crianças, garantir que
frequentem a escola. Dar uma chance de verem coisas belas.
– Por quê?
– Porque estou pedindo. – Ela o olhava com olhos suplicantes.
– Não pretendo recusar – respondeu ele. – Mas por que me pede isso?
– Para que possam ver uma luz que brilha na escuridão.
William não sabia o que pensar dela – essa adorável jovem que tinha o coração exposto. Essa moça
nobre, feroz e generosa que tratava o sofrimento humano como se fosse responsabilidade dela.
Ele tocou a face de Raven.
– V
ocê é a luz que brilha na minha escuridão. – Então colocou a mão na cabeça dela, como um padre
que benze um acólito. – Foi por isso que estudou arte, para que pudesse encontrar a luz?
– Quando se está cercado de feiura, você só pode querer a beleza. Fiz tudo o que pude para me
certificar de que estaria cercada por coisas bonitas pelo resto da minha vida. Padre Kavanaugh me
ajudou.
William congelou. Odiava padres quase tanto quanto odiava Deus, por mais de um motivo. Ele retirou
a mão.
– V
ou instruir Luka a fazer o necessário para ajudar as crianças. Anonimamente, é claro.
– Obrigada.
Ele fez uma reverência.
Raven mudou subitamente de assunto.
– O que minha história tem a ver com a noite passada?
– Houve um incidente. V
ocê ficou chateada. V
ocê não se acalmava e eu não sabia o que fazer. – Ele
oscilou com o peso de um pé para o outro. – Eu usei controle mental.
– V
ocê o quê? – Raven ficou de pé num salto, esquecendo-se de sua perna frágil. Ela teria caído, mas
43. William a amparou. Ela empurrou o braço dele, tentando recuperar o equilíbrio. – Por que fez isso?
– Ouça. – Ele agarrou o braço dela, puxando-a contra si. – V
ocê estava chorando e histérica. Eu não
sabia o que fazer.
– Histérica? – Ela colocou as mãos no peito dele e o empurrou.
Os homens sempre desqualificam as mulheres como sendo histéricas. É a forma de dizerem que
nossos sentimentos não importam.
– Não estou desqualificando você. – Segurou-a com mais força. – Depois que parou de chorar, você
se deitou na cama, encarando a parede. V
ocê não se movia. Não respondia. Ver seu sofrimento me
desarmou. Não podia suportar ficar parado sem fazer nada. V
ocê, mais que todos, deveria entender.
Ela o empurrou mais uma vez.
– Isso não justifica ferrar com minha mente.
– Não? V
ocê se arriscou a ser estuprada e assassinada para impedir o espancamento de um sem-teto.
V
ocê se pronunciou para proteger Aoibhe quando aqueles assassinos a encurralaram. – Suas mãos
deslizaram dos cotovelos de Raven para sua cintura. – V
ocê arriscou sua vida ficando entre mim e os
caçadores. Por quê? Porque você me ama. Não vê? Eu colocaria meu braço no fogo para diminuir seu
sofrimento.
Raven acalmou-se um pouco.
– Não pode usar controle mental sempre que eu estiver chateada.
– Não foi só por causa da sua reação.
– Então o que foi?
A boca de William se fechou de vez.
– O que foi, William? – insistiu ela.
Ele se certificou de que ela estava equilibrada antes de soltá-la. Deu-lhe as costas e caminhou até a
lareira, colocando uma das mãos na cornija.
– Responda, droga!
– Fiquei com medo. – No momento em que as palavras escaparam de seus lábios, William se
arrependeu.
– Medo? – repetiu Raven. – V
ocê é um vampiro. É um príncipe. Do que poderia ter medo?
– Sard! – xingou ele, colocando a outra mão sobre a cornija. Abaixou a cabeça, apoiando-a
pesadamente contra as mãos.
– William?
– Fiquei com medo de tê-la quebrado.
45. esses flashes estão nublados.
– V
ocê ficou inconsciente a maior parte do tempo.
– Decidi que não queria reviver aqueles momentos. Mas preciso saber o que aconteceu na noite
passada.
– Muito bem. – William indicou com a cabeça uma cadeira para que ela se sentasse.
– Apenas desembuche.
Ele pegou os dedos quentes dela com seus dedos frios, aconchegando a mão dela na sua.
– Mandei Luka atrás de seu padrasto porque pretendia matá-lo. Era o mínimo de justiça que você
merecia e eu queria dar isso a você. Porém, quando o momento chegou, nós estávamos separados. A
execução dele não era uma decisão que achei que me coubesse.
Raven arregalou os olhos.
– William, o que você fez?
– Eu o derrubei das escadas.
– O quê?
– Torci o braço dele, da forma como você descreveu que ele torceu o seu. A perna dele agora está
quebrada e ele tem outros ferimentos menores. – Não havia remorso no rosto de William. – Decidi
reservar a punição para que você a executasse.
O rosto de Raven ficou pálido e ela se afastou.
– Onde ele está?
William apontou para o piso.
– Lá embaixo.
Levou certo tempo para Raven processar o que William estava dizendo.
– Ele está aqui? – murmurou ela. – Nesta casa?
– Sim.
– Preciso sair daqui. – Ela mancou em direção à porta que levava ao corredor.
– Está trancado numa cela, embaixo da villa. – William falava rapidamente. – Ele nunca mais vai
machucá-la. Isso eu juro.
– Por que você o trouxe aqui?
– Eu prometi justiça.
– Justiça. – Ela riu amargamente. – É tarde demais.
– Nunca é tarde demais para justiça. Depois que me tornei vampiro, anos depois de Alicia ter sido
morta, localizei os assassinos e acabei com eles.
O lábio inferior de Raven tremeu.
– Onde você estava quando eu tinha 12 anos?
William a alcançou e a envolveu com os braços.
– V
ocê é minha agora. Ninguém mais pode tocá-la. Ninguém vai feri-la. E qualquer um que já fez isso
vai pagar.
Ela se agarrou a ele, escondendo o rosto em sua camisa. Ele a abraçou com mais força.