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Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Centro de Ciências Sociais
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
Laura Vianna Vasconcellos
Alberto Pasqualini e o trabalhismo no Brasil
Rio de Janeiro
2009
Laura Vianna Vasconcellos
Alberto Pasqualini e o trabalhismo no Brasil
Dissertação apresentada, como requisito
parcial para obtenção do título de Mestre, ao
Programa de Pós-Graduação em História, da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Área de concentração: História Política
Orientador: Francisco Carlos Palomanes Martinho
Rio de Janeiro
2009
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/ CCS/A
Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta dissertação.
_____________________________________ ___________________________
Assinatura Data
P284 Vasconcellos, Laura Vianna.
Alberto Pasqualini e o trabalhismo no Brasil/ Laura Vianna
Vasconcellos. – 2009.
120 f.
Orientador: Francisco Carlos Palomanes Martinho.
Dissertação (mestrado) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.
Bibliografia.
1. Pasqualini, Alberto, 1901-1960. 2. Trabalhismo – Brasil - História
– Teses. 3. Partidos políticos - Brasil - Teses. I. Martinho, Francisco
Carlos Palomanes. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. III. Título.
CDU 329:331(81)
Laura Vianna Vasconcellos
Alberto Pasqualini e o trabalhismo no Brasil
Dissertação apresentada, como requisito
parcial para obtenção do título de Mestre, ao
Programa de Pós-Graduação em História, da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Área de concentração: História Política
Aprovada em: 10 de setembro de 2009.
Banca Examinadora:
____________________________________________
Francisco Carlos Palomanes Martinho
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UERJ
____________________________________________
Maria Letícia Corrêa
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UERJ
____________________________________________
Alexandre Fortes
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UFRRJ
Rio de Janeiro
2009
AGRADECIMENTOS
Agradeço ao professor Francisco Palomanes, pela paciência, dedicação e
carinho que teve comigo durante todo esse período difícil.
Meu agradecimento especial à Maria Letícia, pelas críticas e dicas valiosas.
Aos meus pais, pelo incentivo, afeto e compreensão. O gosto pela história devo a
eles.
A todo mundo lá de casa: tia Cris, Delfina, ao meu irmão, Chico, à D. Dulce.
Aos amigos de Petrópolis e de outros cantos, companheiros na minha já tão
madura e conhecida meninice: Ágata, Nafisa, Monalisa, Rodolfo, e Roberta.
Às amigas da música, pelo universo novo: Sílvia, Mônica e Anna Teresa.
Agradeço ao Sérgio, amigo de toda hora, e ao Sandor, pelo carinho.
À Rosane, pela paciência, teimosia e profissionalismo.
Meu agradecimento especial à minha irmã, Dora, companheirinha de sempre.
A todos que passaram na minha vida durante esses dois anos.
Setembro de 2009
RESUMO
VASCONCELLOS, Laura Vianna. Alberto Pasqualini e o trabalhismo no Brasil,
2009. 120f. Dissertação (Mestrado em História) - Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.
Este trabalho é uma análise do pensamento político de Alberto Pasqualini e de
seu papel na elaboração e feitura do trabalhismo no Brasil. Além de suas principais
ideias, foram analisadas também o papel de Pasqualini no PTB, as relações políticas
com Getúlio Vargas e com o getulismo. É um estudo sobre Alberto Pasqualini e sua
inserção no trabalhismo, compreendido aqui como fenômeno complexo e de longa
duração.
Palavras-chave: Pasqualini. Trabalhismo. Getulismo.
ABSTRACT
The basic intent of this work was to analyse the political concept of Alberto
Pasqualini and his role in the foundation and development of laborism in Brazil, his
fundamental concepts, his importance as member Brazilian Labour Party (Partido
Trabalhista Brasileiro – PTB) and his political connections with getulism. This analysis
includes also a research on Alberto Pasqualini and his insertion in labourism as a
complex and long lasting phenomenon.
Keywords: Pasqualini. Labourism. Getulism
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO....................................................................................................8
1 A TRAJETÓRIA POLÍTICA DE ALBERTO PASQUIALINI:
ENTRE A MEMÓRIA E OS JORNAIS...........................................................25
1.2 O trabalhismo nas páginas dos jornais: o Diário de Notícias e o Correio
do Povo..................................................................................................................40
2 O PENSADOR E O HOMEM POLÍTICO: PRINCIPAIS IDÉIAS E
ATUAÇÃO PARLAMENTAR..........................................................................53
2.1 Socialismo, capitalismo e trabalhismo...............................................................54
2.2 Sociedade e Estado..............................................................................................56
2.3 Partido e mentalidade social..............................................................................60
2.4 Personalismo político..........................................................................................61
2.5 Ditadura...............................................................................................................63
2.6 Nacionalismo.......................................................................................................64
2.7 Os debates sobre o Petróleo e a criação da Petrobrás.....................................73
2.8 O Plano Lafer .....................................................................................................77
3 OS TRABALHISMOS GETULISTA E PASQUALINISTA NAS
INTERPRETAÇÕES HISTORIOGRÁFICAS................................................80
4 ALBERTO PASQUALINI E O TRABALHISMO..........................................88
4.1 O positivismo em longa duração - as origens do trabalhismo gaúcho
(Ou as raízes do trabalhismo pasqualinista).....................................................88
4.2 A componente getulista do pensamento político de Alberto
Pasqualini...........................................................................................................100
4.3 Pós escrito...........................................................................................................111
5 CONCLUSÃO...................................................................................................116
REFERÊNCIAS ...............................................................................................120
8
INTRODUÇÃO
O TRABALHISMO NA HISTORIOGRAFIA
Como a pesquisa se dedica ao trabalhismo de Alberto Pasqualini, sobre suas principais
influências e contribuições, é necessário que se faça uma retrospectiva histórica das
interpretações que analisam não só o trabalhismo, mas também o período de 1945-1964. As
interpretações se polarizam entre entendê-lo inserido no ciclo populista ou simplesmente
como trabalhista. A produção acerca do assunto é bem vasta, tendo sido iniciada ainda na
década de 1950, com o grupo Itatiaia. Mas, por razões objetivas – sendo o limite de páginas
uma delas –, e por motivos de posicionamento, foram escolhidas as obras produzidas mais
recentemente, todas originárias de fins da década de 1980 pra cá. Explica-se: por ser o
conceito de trabalhismo essencial na pesquisa, consideramos fazer mais sentido revisitar
autores que discutem o trabalhismo em si do que relembrar o já clássico debate entre
populismo versus trabalhismo. Não que ele deva ser desdenhado, esquecido no tempo, mas a
curiosidade, aqui, se direciona mais à definição do trabalhismo na historiografia, já que
consideramos que as idéias de Pasqualini podem lhe ser uma contribuição diferente, ainda que
muito pouco estudada.
A referência paradigmática inicial para a produção sobre o trabalhismo é o livro A
invenção do trabalhismo,1
de Angela de Castro Gomes. Com essa obra, Angela Gomes deu o
ponta-pé inicial para uma série de críticas e questões sobre um velho e importante conceito
das ciências sociais do Brasil, o populismo. É importante ressaltar que o livro não rompe com
todos os preceitos deste conceito, mas, com sua abordagem inovadora sobre o tema, a obra
abriu brechas para que se iniciasse uma série de críticas mais contundentes a esse conceito.
Portanto, depois desta obra, – houve algumas produções antes, mas seu livro
permanece como referência básica para o assunto – começaram a ser sistematizadas
interpretações que, inspiradas não somente nas abordagens culturais e antropológicas e pelas
inovações proporcionadas pela renovação da História Política, mas também pelas idéias de
1
GOMES, Angela de Castro Gomes. A invenção do trabalhismo. 2. ed. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994.
9
Thompson, de Roger Chartier, e de Carlos Guinsburg,2
acabaram por questionar, algumas a
até repudiar, o uso da palavra “populismo” como conceito.
Os alvos principais eram aquelas interpretações que, grosso modo, consideravam o
populismo o herdeiro do “clientelismo” da Primeira República, ou seja, como responsável
pela perpetuação de uma relação desigual entre Estado e sociedade. Eram interpretações que
ressaltavam a cooptação da classe trabalhadora em relação ao Estado, submissão esta
proporcionada seja pela propaganda política do Estado, pela sua política repressiva ou mesmo
pela redenção interessada das massas populares aos agrados do ditador Getúlio Vargas. A
chamada teoria da modernização dava as bases para essas interpretações. Segundo essa teoria,
a classe trabalhadora, por ser originária do meio rural, era ingênua, incapaz de estruturar laços
sólidos de solidariedade e de tradição de luta. Era uma população sem consciência de classe,
submissa e manipulada facilmente pelo braço forte do Estado.3
Conceitos e expressões como “Estado de compromisso”, “bloco de poder”,
“cooptação”, “manipulação”, dão a voga das interpretações mais clássicas sobre o ciclo
populista, sobre a relação entre Estado e sociedade do período entre 1945 e 1964.
Excetuando-se Francisco Weffort que, mesmo sublinhando os aspectos autoritários,
manipuladores e fascistas do Estado populista, admitiu algum grau de satisfação e de
expressão política para as massas populares daquela época, os demais estudiosos do período
procuravam ressaltar apenas o aspecto manipulador do Estado. Foi Angela de Castro Gomes
quem sistematizou, ainda na década de 1980, a idéia de que o que unia o Estado desse período
e a sociedade, as massas populares e trabalhadoras em especial, era um pacto político entre
esses dois atores. Para ela, esse pacto traduzia algum nível de reciprocidade, de troca entre
esses dois pólos, ainda que de maneira desproporcional. Ao criticar as bases teóricas e
conceituais do populismo, a autora propõe, em seu livro, a utilização de um outro conceito
para compreender a relação entre Estado e sociedade do período getulista: o trabalhismo.
Adepto desta mesma revisão, Jorge Ferreira é o segundo autor analisado neste
pequeno balanço bibliográfico. Com uma abordagem diferente sobre o assunto, o autor é,
hoje, um dos principais questionadores do conceito de populismo. Estudioso do trabalhismo,
Jorge Ferreira é por muitos criticados por levar os argumentos de Angela de Castro Gomes ao
extremo, supervalorizando a idéia de pacto e de identificação entre massas populares e
Estado.
2
Sobre esse assunto ver o artigo de Jorge Ferreira em seu livro O populismo e sua história: debate e crítica. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2001.
3
Idem.
10
Outro autor importante, mas pouco citado, é Miguel Bodea. Mineiro de nascimento,
mas gaúcho como historiador, seu trabalho apresenta uma abordagem diferenciada sobre o
tema. Bodea é o único, dentre os autores citados, que estuda o trabalhismo como um
fenômeno anterior à década de 1930. Seus esforços tentam dar conta do que foi a origem
histórica trabalhista, destinando-se, em função disso, a analisar especificamente o caso do Rio
Grande do Sul. Ele é também crítico ao conceito de populismo.
O quarto e último autor analisado é Marcelo Badaró. Pesquisador dos movimentos
grevistas e sindicais do Rio de Janeiro, Badaró é crítico das formulações estruturais do
populismo, mas é também bastante cauteloso com as interpretações que defendem o uso do
conceito de trabalhismo para entender o período. O autor considera e conclui que as
interpretações de Angela de Castro Gomes e de Jorge Ferreira acabaram por idealizar o
Estado trabalhista. Para ele, se antes, nas interpretações que se utilizavam do conceito de
populismo, o Estado era demonizado e as classes trabalhadoras vitimadas e manipuladas,
agora, numa perspectiva inversa, mas tão radical quanto, o Estado e os líderes do período
seriam superestimados. O autor acredita que a sua visão é a mais critica ao tema, uma vez que
questiona as noções estruturais do populismo, mas, nem por isso, é provocadora de um efeito
inverso; o da ideologização do Estado e das lideranças do período.
* * *
Iniciemos com A invenção do trabalhismo, de Angela de Castro Gomes.
O livro é a tese de doutoramento da autora, apresentada ao Instituto Universitário de
Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ) em junho de 1987. Ele é dividido em duas partes; a
primeira, intitulada “A hora e a vez dos trabalhadores”, abrange os anos que vão desde a
Proclamação da República, em 1889, até 1934, ano em que Agamenon Magalhães foi
designado para ocupar o Ministério do Trabalho Indústria e Comércio. Nela, a autora aborda a
participação e ação política dos trabalhadores neste período. Segundo Angela de Castro, esta
seria a parte em que a voz estaria com os trabalhadores, sendo eles os responsáveis pela
formulação de suas demandas, reagindo e desafiando ao contexto da época.
A outra metade do livro, intitulada “Trabalhadores do Brasil”, é dedicada ao período
1942-45. Segundo a autora, a partir do ano de 1942, ano em que Alexandre Marcondes Filho
assumiu o Ministério do Trabalho Indústria e Comércio, teria se iniciado um período de
transformações profundas, sobretudo no que diz respeito à participação política dos
11
trabalhadores e a sua relação com o Estado.4
Angela de Castro Gomes acredita que, a partir
desta data, teria havido um esforço por parte dos homens do governo5
, sobretudo por parte de
Marcondes Filho, para a elaboração de uma nova ideologia política; o trabalhismo. É nesse
complexo processo de “invenção” que a autora se detém. Ela faz isso através da análise
minuciosa e eficaz de fontes históricas do período, como a revista Cultura Política, onde os
mais importantes ideólogos do regime escreveram, e do programa de rádio “A Hora do
Brasil”, dando atenção especial aos discursos proferidos pelo próprio ministro Marcondes
Filho.
Angela de Castro Gomes inicia sua argumentação questionando a lógica da
interpretação que até então explicava a natureza do pacto político do Estado Novo: por meio
de legislações sociais que regulamentavam as leis de mercado de trabalho o Estado teria
conseguido a adesão das massas trabalhadoras. Ou seja, o pacto político era explicado
basicamente pela lógica material; os ganhos obtidos com as leis sociais eram trocados por
obediência política. A autora complexifica essa explicação afirmando que, na realidade, tal
mecanismo só teria começado a surtir efeitos no pós-1940, quando associado a esta lógica
material – essencial para a construção do pacto social, ela não nega – elaborou-se um discurso
trabalhista que resgatava o discurso operário da Primeira República, porém, de uma forma
repaginada.
Para a autora, portanto, não haveria mera submissão e perda de identidade por parte
das massas trabalhadoras, mas antes elas faziam parte de um pacto político que combinava
ganhos materiais com ganhos simbólicos da reciprocidade; ou seja, para ela, mais do que a
legislação social, era a dimensão simbólica que garantia a unidade e o funcionamento do
pacto. É à elaboração desse discurso simbólico – o trabalhismo – que a autora dá atenção.
Com as pressões pela democratização, o Estado varguista deu início ao processo de
transição, tentando manter as orientações e bases de seu governo. Para tanto, investiu em três
frentes; na montagem de uma complexa e bem-sucedida política de propaganda; no incentivo
à sindicalização, a fim de estreitar e manter certo controle sobre o movimento operário; e na
formação de um novo partido, o PTB. Desta maneira, o governo pretendia obter maior base
política junto às classes populares, essencial para um processo de transição “seguro”. No
4
A relação entre estes dois atores se modificou estruturalmente a partir deste período. Se antes havia mecanismos de
reivindicação autônomos mediando a relação entre essas duas esferas, agora, a partir desta data, graças à montagem de
maquinário institucional e propagandístico, o Estado passava a se relacionar com a sociedade sem intermediários; Getúlio,
segundo o mito criado em torno dele, auscultava diretamente os anseios das massas populares e os sindicatos passariam a
atuar atrelados ao Estado e com o perfil coorporativo.
5
A autora faz referência ao período de 1932 a 1937 como “O Estado Novo em primeiro movimento”. São desse período as
primeiras leis de regulamentação do trabalho.
12
livro, cada uma destas esferas de atuação é analisada, sendo a cada uma delas dedicada um
capítulo especial. A autora acredita que, com esse esforço e objetivo, o Estado Novo teria
montado as bases de uma ideologia política não só capaz de manter a ordem, mas também
responsável por um sólido pacto político.
Angela de Castro Gomes explica a natureza desse pacto político pela lógica da dádiva,
de Marcel Mauss. Segundo a autora, o sentimento de “estar em falta” dos trabalhadores em
relação ao Estado e a Getúlio Vargas, apresentado como doador dos benefícios sociais, teria
gerado um elo entre esses dois atores, o Estado e a sociedade. Para ela, “a lógica da [...]
dádiva pode ser considerada como um mecanismo criador de hierarquias sociais, ou seja,
criador de novas lideranças porque criador de seus seguidores e da lealdade que une esses dois
termos”.6
Em um item intitulado “dar, receber e retribuir – a política brasileira fora do
mercado”, a autora explica com mais detalhes o funcionamento da lógica da dádiva. Segundo
ela, haveria uma dupla obrigação; a responsabilidade do Estado de doar a legislação social,
assegurando, assim, o bem–comum, e a obrigação das massas trabalhadoras em receber tal
dádiva, afinal, era o sentimento de “estar em falta”, para a autora, que selava o pacto político.
Para ela, “toda a dádiva só se cumpre com a aceitação do que é dado. Sua lógica é bilateral, e
assim como aquele que dá o faz por “necessidade”, aquele que recebe precisa “aceitar” o
benefício. A recusa de uma dádiva é o descumprimento de uma obrigação social”. E assim o
é, ainda segundo Angela de Castro Gomes, porque, ao fazer isso – a recusa de uma dádiva –,
o que sucede é a ruptura de uma articulação mutuamente definidora. Se receber benefícios é
um direito, é também um dever, segundo essa lógica. Assim, caberia ao Estado criar a
obrigação de receber, mais do que somente doar. E ele o fez quando identificou o exercício da
cidadania ao trabalhador.
Para Angela de Castro Gomes, ao contrário de significar uma submissão, esta relação
entre Estado e sociedade, mesmo que desigual, teria algum nível de reciprocidade; enquanto o
Estado se beneficiava do sentimento de retribuição gerado pela elaboração e efetivação dos
benefícios sociais, as massas trabalhadoras, por sua vez, sentiam-se, de alguma forma,
identificadas e realizadas com os valores e o discurso do Estado varguista, já que muitas deles
eram demandas de lutas antigas.
O empenho do governo varguista na elaboração de uma ideologia política fora tão
bem-sucedido, segundo a autora, que se teria inaugurado uma nova cultura política. Angela de
6
GOMES, Angela de Castro Gomes, op.cit.
13
Castro Gomes mostra, ao longo de boa parte do livro, como o Estado varguista, por meio de
programas de rádio, de comemorações especiais – como o aniversário de Getúlio Vargas e o
próprio dia da Revolução de 1930 –, por meio da repressão e censura com o DIP, e,
sobretudo, pela ressignificação de antigos conceitos, conseguiu estabelecer um elo de
identificação entre as massas trabalhadoras e o Estado. Ao redefinir conceitos como liberdade,
democracia, ao criticar o liberalismo atomizador da Primeira República, e ao definir Getúlio
Vargas como o chefe-guia, o pai com capacidade de antever os desejos da sociedade e único
capaz de entender os anseios do povo, foram criando-se as bases de uma ideologia política
que ainda hoje deita raízes em nossa sociedade.7
O que Angela de Castro Gomes parece ressaltar em seu livro é a complexa montagem
desta ideologia política, o trabalhismo, que mesclava antigos anseios da classe trabalhadora e
atribuía ao governo a sua capacidade de realização e iniciativa; ao chefe de Estado, pelos seus
atributos pessoais de antevisão e generosidade, a sua responsabilidade. Um discurso que
possuía bases sociais sólidas porque resgatava antigas demandas sociais e reinterpretava a
história do Brasil de modo a manter o projeto político do Estado Novo. Ou seja, uma
ideologia que, apesar de autoritária, possuía legitimidade na cultura política8
da classe
trabalhadora, satisfazendo algumas de suas reivindicações.
A autora, com esta tese, confrontou a interpretação que analisava a relação entre o
Estado e a sociedade desse período com um único sentido, a do Estado manipulando a classe
trabalhadora. Fez isso, no entanto, sem esquecer o aspecto autoritário de todo esse processo,
afinal, deixa claro que toda a invenção e formulação do trabalhismo foram feitas a partir da
iniciativa do Estado, seja elaborando órgãos, departamentos e partidos, seja através de intensa
propaganda política. Portanto, apesar de dar destaque à lógica material da relação, segundo
ela, fundamental para o pacto político, a autora também chamou a atenção para a sua
dimensão simbólica, responsável, esta sim, pela solidificação do pacto político trabalhista. Por
não concordar com as interpretações que viam na relação entre Estado e sociedade do período
apenas o seu aspecto manipulador e de cooptação, estruturado apenas pela lógica material e
7
A autora demonstra também que, ao redefinir tais conceitos, o que se estava formulando era uma nova interpretação de
nossa própria história nacional. O exemplo máximo desta bem-sucedida elaboração é a referencia da Revolução de 1930
como marco histórico de um regime político novo, distante da República Velha.
8
Angela de Castro Gomes, assim como Pierre Rosanvallon, reforça a perspectiva da história política que avalia o político
como um espaço de negociação, de auto-representação das relações sociais de um determinado período. Para ambos, a
política deve ser entendida em seu sentido mais amplo – a cultura política –, e compreendida como historicamente construída,
como produto de uma dada época histórica; de seus valores culturais e políticos. GOMES, Angela de Castro Gomes.
“Política: história, ciência, cultura etc”. Estudos Históricos, n. 17. Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas, 1996.
14
pela repressão do Estado, a autora acaba por rejeitar o conceito de populismo, adotando, em
seu lugar, mas com outras bases, o de trabalhismo.
Angela de Castro Gomes reiterou sua interpretação mais recentemente no livro de
Jorge Ferreira, O populismo e sua história. No artigo que escreveu para a coletânea, “O
populismo e as ciências sociais no Brasil”, a autora se posiciona mais nitidamente ao
reafirmar que, ao escrever A invenção do Trabalhismo, na década de 1980, sua intenção foi de
rejeitar não apenas a palavra “populismo”, mas o seu conteúdo básico, qual seja; uma classe
trabalhadora e passiva e sem consciência, sendo manipulada por políticos inescrupulosos.
Assim, a autora refuta o conceito como explicação para as relações entre massa trabalhadora e
Estado.
[...] o que eu pretendia demarcar era justamente que não aceitava esta concepção, nem de
classe trabalhadora, nem de pacto político. O uso da “palavra” populismo, assim, me pareceu
algo extremamente danoso para enunciar o que eu desejava defender, e a “palavra”
trabalhismo, cuja invenção eu acompanhava em minha análise histórica, surgia como muito
mais adequada para a proposta da então tese.9
E explica melhor o que entende por trabalhismo também, quando afirma que este
seria
[...] como uma categoria, passando a se referir a um certo conjunto de idéias e práticas
políticas, partidárias e sindicais, o que poderia ser identificado para ara além de seu contexto
de origem histórica: o Estado Novo. Como todas as “palavras”, trabalhismo não estava
desprovida de significados sociais, estando ligada a alguns partidos e lideranças,
especialmente e não casualmente, do pós-45.10
Portanto, na interpretação da autora, o trabalhismo seria uma ideologia política
construída em um período específico, por iniciativa dos homens do governo, e que, de uma
forma ou de outra, representava as aspirações e desejos da classe trabalhadora. Esta ideologia
política, segundo ela, faria parte de uma cultura política que não se restringiu somente ao
período do Estado Novo, mas a toda uma época.
É com o auxílio da metodologia adotada por Pierre Rosanvallon, em seu “Por uma
história conceitual do político”, que o trabalhismo de Angela Gomes pode ser mais bem
anunciado. Neste artigo, o autor faz críticas à história das idéias em sua concepção clássica, e
defende a formação progressiva de uma história conceitual do político. Com essa abordagem,
9
Populismo e sua história, p. 55.
10
Idem.
15
o político seria tratado não como “uma instância ou um domínio da realidade”, mas como um
lugar em que “se articulam o social e sua representação, onde a experiência coletiva se enraíza
e se reflete ao mesmo tempo”.11
Ou seja, nessa perspectiva, as representações seriam
entendidas não como algo externo aos atores políticos, mas como um trabalho permanente de
reflexão da sociedade sobre ela mesma.
O político, para ele, deve ser visto como o espaço da articulação do social e de sua
representação, por isso a preocupação de se incorporar como objeto de estudo os elementos
que formam o que se poderia chamar de cultura política. O historiador, para Rosanvallon,
deve analisar o objeto de estudo não como algo externo ao seu tempo, mas, ao contrário,
como produto dele. Ou seja, acreditamos que é com essa perspectiva que o trabalhismo foi
considerado pela autora; como expressão de uma época, por isso legítima.
Com o mesmo esforço de Angela de Castro Gomes, qual seja, o de repudiar o conceito
de populismo, Jorge Ferreira escreve boa parte de sua obra. No entanto, se a intenção dos dois
estudiosos é a mesma, a abordagem e o foco de análise de cada um são bastantes distintos um
do outro. Enquanto Angela de Castro Gomes analisa a relação entre o Estado e a sociedade a
partir do foco do Estado – a partir de fontes oficiais e estatais, como programas de rádio,
discursos ministeriais e revistas –, Jorge Ferreira dá mais atenção à esfera da sociedade – suas
fontes são, essencialmente, cartas de populares e jornais da época. O autor preocupa-se mais
com a recepção e participação popular no pacto, por isso em A invenção do trabalhismo o
conceito norteador da obra é a noção de cultura política, enquanto nos trabalhos de Jorge
Ferreira o que se sobressai e a noção de cultura política popular.12
Mudança de perspectiva
muito importante e pouco comentada.
Apesar de fazer menção ao caráter autoritário do governo varguista, o autor se dedica
mais a demonstrar o grau de reelaboração exercido pelas classes populares e a sua relativa
autonomia frente ao discurso varguista.13
Boa parte de sua produção é destinada a comprovar
o caráter de apoio popular ao regime vargista; é com essa perspectiva que o autor analisa o
11
ROSANVALLON, Pierre. “Por uma história conceitual do político”. Revista Brasileira de História, n. 30. São Paulo,
1995, p. 12.
12
Este assunto está na introdução de seu livro, Getulismo, PTB, e cultura política popular1945-1964. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2005. O autor fala em recuperar, ainda que parcialmente, as vivências e experiências políticas dos
trabalhadores, populares e eleitores do PTB; em compreender as atitudes, as motivações e a maneira como os quadros do
PTB, entre 1945-1964, deram significados e interpretaram a realidade social em que viveram. Sabendo da dificuldade de
recuperar a atuação política desses populares, já que faltam registros concretos, o autor se utiliza do conceito de cultura,
entendendo-o como conjunto de atitudes, representações sociais e códigos de comportamento que forma as crenças, idéias e
valores reconhecidos por um certo grupo social. Ao analisar as manifestações políticas das camadas populares adeptas do
trabalhismo com o conceito de cultura, o autor acredita estar reconstruindo um aparato simbólico que, de alguma maneira,
teve existência real para os trabalhadores; é como se a cultura, sob este ponto de vista, organizasse a realidade na consciência
social dessas pessoas. O que se sobressai, portanto, é a preocupação do autor em entender de que maneira o trabalhismo foi
interpretado e percebido por essas camadas populares, p 14.
13
O autor faz isso em seu livro Trabalhadores do Brasil.
16
queremismo – segundo ele, um movimento popular tão importante quanto a Aliança Nacional
Libertadora e a campanha pelas “diretas já”. A mesma abordagem se faz presente em sua
análise do período ministerial de João Goulart. O título do capítulo a ele dedicado já o
expressa bem: “O ministro que conversava: João Goulart no ministério”,14
demonstrando o
caráter dialógico do trabalhismo, sobretudo a partir desta fase.
Sobre o conceito de populismo em si, a produção mais importante é o artigo “O nome
e a coisa: o populismo na política brasileira”, no livro, já citado aqui, O populismo e sua
história. Nele, Jorge Ferreira faz uma retrospectiva histórica do conceito de populismo no
Brasil, dividindo a sua elaboração em três gerações; a primeira, dos anos 1950-1960, que pode
ser simbolizada pelo grupo de Itatiaia, marcadamente influenciada pela teoria da
modernização; a segunda, dos anos 1970/80, bastante tocada por um certo tipo de marxismo e
pelo conceito de hegemonia gramsciano, – segundo ele, esta seria a mais radical de todas as
gerações, exaltando ao máximo o binômio repressão-propaganda do Estado Novo; e a terceira
e última, a qual o autor se filia, seria a dos anos 1980/1990, já de crítica e relativização do
conceito.
Ao contrário de Angela de Castro Gomes, Jorge Ferreira é bem mais explícito em seu
repúdio ao populismo como conceito explicativo. Quando o autor afirma não compreender a
expressão (populismo) “como um fenômeno que tenha regido as relações entre Estado e
sociedade durante o período de 1930 a 1964 ou como uma característica peculiar da política
brasileira naquela temporalidade”, deixa isso bem claro. E o evidencia ainda mais quando
afirma, poucas frases depois, que “o populismo foi uma categoria que, ao longo do tempo, foi
imaginada, e, portanto construída, para explicar essa mesma política”.15
Ou seja, populismo,
para ele, seria uma categoria forjada, com um objetivo pré-determinado e um conteúdo de
pouca eficiência teórica.
O autor não nega nem subestima o caráter repressivo e policial do governo varguista,
mas acredita que as interpretações tendem a supervalorizá-lo de tal modo a retirar qualquer
autonomia de consciência e de ação aos trabalhadores. Assim, Jorge Ferreira não concorda,
por exemplo, que o “mito” Vargas tenha sido resultado somente de uma campanha bem-
sucedida de propaganda política e ideológica, mas sim conseqüência de alguns benefícios
reais que esses trabalhadores conquistaram ao longo de seu regime. Ele argumenta não haver
propaganda política e ideológica, por mais elaborada que seja, capaz de sustentar, durantes
tantos anos, a mesma autoridade política no poder. Assim, para ele, “o mito Vargas
14
FERREIRA, Jorge. O imaginário trabalhista ..., op.cit.
15
FERREIRA, Jorge. O populismo e sua história, op.cit., p. 64.
17
expressava um conjunto de experiências que, longe de se basear em promessas irrealizáveis,
fundamentadas tão somente em imagens e discursos vazios, alterou a vida dos
trabalhadores”.16
O autor rechaça ainda as opiniões que, inspiradas em Focault ou nos pensadores da
Escola de Frankfurt, como Habermas, explicam a legitimidade do regime varguista tão
somente pelas políticas de controle social operadas por aquele governo. Segundo estas
interpretações, o Estado teria controlado e esmiuçado todos os aspectos da vida do
trabalhador, seu lazer, seus hábitos, a tal ponto que teria retirado qualquer indício de
autonomia desses homens. De acordo com Jorge Ferreira, esta seria uma interpretação
totalizadora e vitimizadora da sociedade, uma vez que retiraria dela qualquer voz ativa, seja
de participação ou apoio ao regime.
Ferreira ressalta ainda as contribuições da História Cultural para o tema, sobretudo de
autores com Guinzburg, Chartier e Peter Burke. O autor utiliza-se bastante das diretrizes
teóricas de cada um deles em sua produção. Os três, cada um a seu modo, deram
contribuições importantes para a relativização da formulação, antes amplamente aceita, de que
as classes dominantes teriam o monopólio exclusivo da produção das idéias. A partir da
década de 1980, por influência desse trio, – não só deles, mas principalmente – passou-se a
adotar a idéia de que as idéias circulam, que os trabalhadores não são somente receptivos, mas
produtores eles mesmos de sua própria cultura. E que, longe de receberem passivamente as
idéias, eles as reinterpretariam com base em sua própria cultura, transformando o discurso
original em um outro que é imprevisível. É o que Jorge Ferreira tentou demonstrar em seu
outro livro, Trabalhadores do Brasil17
. Por meio de cartas escritas por “pessoas comuns”, o
autor argumenta que o discurso varguista foi utilizado segundo os interesses dessas pessoas e
que, muitas vezes, eles extrapolavam os limites pré-estabelecidos pelo próprio governo,
transformando-se em algo inesperado. Para o autor, portanto, “os mecanismos de ‘controle
operário’ foram implementados, mas sua atuação e eficácia eram limitados pela própria
cultura da classe trabalhadora”.18
Sobre a relação entre o Estado e a sociedade, em particular as massas trabalhadoras, o
autor é bem enfático; ele concorda com a opinião de Angela de Castro Gomes sobre a maior
intervenção estatal a partir do ano de 1942, por conta da necessidade de abertura do regime e
da manutenção do projeto varguista, e que tal investimento teria sido fundamental para
16
Idem, p. 88.
17
FERREIRA, Jorge. Trabalhadores do Brasil: o imaginário popular. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getulio Vargas,
1997.
18
O populismo e sua história, op.cit., p. 90.
18
configurar a identidade da classe trabalhadora brasileira19
. Ainda defende que a relação entre
os trabalhadores e o Estado do período não pode ser considerada como de mão única, assim
como o fez Angela de Castro Gomes, porém a ênfase com que o autor argumenta aparece com
maior dosagem de certeza. Jorge Ferreira acredita que havia, entre as duas partes, Estado e
classe trabalhadora, interesses comuns. Além disso, no trabalhismo, ainda segundo ele,
haveria idéias, crenças e valores que já vinham sendo formuladas e reivindicadas desde antes
de 1930, e que, por esta razão, ele teria expressado “uma consciência de classe, legítima
porque histórica”.20
Ou seja, para o autor, o projeto trabalhista, para ser aceito e compreendido, precisava
ter bases e sustentação no patrimônio simbólico e na cultura popular, caso contrário não se
manteria, nem serviria como orientação ideológica para um dos mais bem-sucedidos partidos
de nossa história, o PTB – basta lembrar que ele foi o partido que mais cresceu no período
1945-1964. Considerar o trabalhismo como uma ideologia imposta por parte do Estado, para
Ferreira, é ter uma opinião elitista, já que isto seria uma maneira de se analisar a relação
Estado-sociedade a partir de cima, dando ao aparato estatal, ou mesmo às classes dominantes,
um poder demasiadamente grande.
Jorge Ferreira ainda faz a genealogia da palavra populismo, afirmando que,
inicialmente sinônimo de “popular”, este era um adjetivo até positivo, uma qualidade. Depois,
lentamente foi sendo adotada pela direita como meio de desqualificar o apoio popular a
Vargas e a política trabalhista, sendo logo consagrado pela academia e por jornalistas neste
mau sentido.
O autor ainda destaca que, para ele, a palavra populismo acabou por ser utilizada como
um indício de estranhamento, revelando que, quando utilizada para se referir a alguém ou a
alguma tendência política, o que se está por trás dela é a referência e a identificação do Outro.
De acordo com ele, o populismo é uma maneira de nos relacionarmos com alguém ou algo
que nos incomoda, de maneira a desqualificá-lo; populista, para ele, é o desafeto, o
adversário. Portanto, para o autor, a palavra “populismo” nasceu situada politicamente, sendo
formulada pela direita como meio de tentar explicar, de maneira pejorativa, o que não
entendia.
19
Esta é uma referência à Invenção do trabalhismo. Segundo ela, a partir desta data teria havido um maior empenho por parte
do governo, sobretudo pelo ministro do trabalho, Marcondes Filho, pela sindicalização dos trabalhadores. O modelo de
sindicato defendido era o corporativo.
20
O populismo e sua história, op. cit., p. 103.
19
Um outro trabalho igualmente interessante, porém com bem menor divulgação, foi o
Trabalhismo e populismo no Rio Grande do Sul, de Miguel Bodea.21
Nele, o autor rebate um
dos pilares de sustentação da teoria do populismo; a idéia de que os líderes “populistas”, em
especial Getúlio Vargas, teriam ascendido politicamente acima de suas agremiações
partidárias. Ou seja, que Getúlio Vargas, assim como Leonel Brizola e João Goulart, nutriria
um verdadeiro desprezo por esse tipo de representação, utilizando-as somente como
trampolim político.
O autor demonstra, por meio de um estudo minucioso da formação do PTB no Rio
Grande do Sul, que tal idéia não procede; Getúlio Vargas e os demais “populistas” teriam,
segundo ele, firmando suas lideranças em uma estrutura política regional e somente depois se
projetaram como figuras nacionais. Ou seja, segundo ele, suas trajetórias políticas teriam
começado de baixo, na disputa de pleitos e debates, para depois somente se destacarem como
líderes políticos nacionalmente reconhecidos. Com isso, Bodea também repudia a idéia
consagrada de que a legitimidade desses “populistas” estaria fundamentada somente em seu
carisma. Para ele, mesmo que carismáticos, esses políticos só se consagraram como líderes
das massas, como representantes populares, depois de uma carreira política já encaminhada.
Ou seja, segundo o autor, o carisma foi uma conseqüência da vida partidária e do sucesso
político de cada um e não o contrário; o sucesso político como resultado de seu carisma
pessoal.
Fazendo a crítica da crítica, sem, contudo, fazer uma apologia dos alicerces da teoria
populista, está Marcelo Badaró. O autor é questionador desses dois pólos de interpretação, dos
adeptos do conceito de populista e dos que militam pelo trabalhismo, embora considere com
estima o esforço revisionista de Angela de Castro Gomes e Jorge Ferreira.
Assim como Ferreira e Angela de Castro Gomes, Badaró revisita antigas certezas,
tentando desconstruí-las. O autor destaca que, ao contrário do que os teóricos do populismo
pensavam, as greves e sindicatos do “período populista” possuíam, sim, certa autonomia em
suas ações, apesar da forte presença estatal. Segundo Marcelo Badaró Mattos, havia sindicatos
que conseguiam escapar das determinações e limites impostos pelo sindicalismo oficial, –
seriam exemplares os casos das representações sindicais nas empresas e aqueles estruturados
de acordo com o local de trabalho. Do mesmo modo, as greves, antes tidas como tuteladas
21
BODEA, Miguel. Trabalhismo e populismo no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1992. Este livro é um
dos mais importantes na minha pesquisa, sobre o trabalhismo de Alberto Pasqualini. Nele, o autor analisa com detalhes o
trabalhismo gaúcho, esmiuçando jornais de Porto Alegre, e fazendo entrevistas com personalidades importantes do PTB do
Rio Grande do Sul.
20
pelo estado e por uma liderança sem pouca relação com as bases, devem ser consideradas
como importantes manifestações dos trabalhadores do período. Da análise que fez do
sindicalismo carioca, o autor identifica muitos casos de greves participativas e combativas,
organizadas a partir do local de trabalho e com integração entre demandas políticas gerais,
mas também com reivindicações econômicas particulares.
Apesar de fazer revisões e questionar as bases da interpretação do “sindicalismo
populista”, Badaró não deixa de elaborar críticas aos dois principais autores questionadores do
conceito de populismo. Suas críticas dirigem-se mais a Jorge Ferreira, mas não isentam,
contudo, sua antiga orientadora, Angela de Castro Gomes.
Em relação a Angela, as críticas não se direcionam tanto à Invenção do trabalhismo,
mas às mudanças sofridas na argumentação da autora. Segundo Badaró, no artigo que Angela
de Castro Gomes fez sobre a análise histórica do populismo, intitulado “O populismo e as
ciências sociais no Brasil”,22
existe uma radicalização perigosa nas suas colocações. Para o
autor, se antes, em A invenção do trabalhismo, as críticas ao conceito de populismo eram
veladas e indiretas, – de fato, a autora não formula abertamente essa crítica em momento
algum23
–, depois, no seu artigo, Angela Gomes pecaria pelo exagero ao substituir a idéia de
“pacto trabalhista” por “trabalhismo”. Esta substituição de populismo por trabalhismo, e não
mais por pacto trabalhista, expressaria, na verdade, ainda segundo Badaró, a troca de um
reducionismo por outro; “sai a classe trabalhadora inconsciente e manipulada pelo Estado
representado nas lideranças carismáticas, para entrarem em cena trabalhadores conscientes e
satisfeitos com a política trabalhista empreendida por políticos efetivamente populares e de
esquerda”.24
O mesmo se aplicaria a Jorge Ferreira. Para Badaró, o autor vai adiante nesse
reducionismo e isso se expressaria pela omissão da idéia de pacto entre atores desiguais,
argumento presente e central em A invenção do trabalhismo. Na opinião de Marcelo Badaró,
Jorge Ferreira não só ignora a noção de pacto, como considera esta uma relação “em que as
partes, Estado e classe trabalhadora, identificaram interesses comuns” (trecho citado pelo
próprio Badaró),25
transmitindo, em sua opinião, a idéia de relação entre iguais.
O autor ainda cometeria um outro excesso, segundo Marcelo Badaró; a tomada do
trabalhismo não mais como pacto político ou como categoria explicativa crítica à noção de
22
FERREIRA, Jorge. O populismo e sua história, op cit.
23
Ela defende a necessidade de se rever alguns pilares da teoria populista, e ela o faz, mas não deixa bem clara a substituição
de um conceito pelo outro. Talvez a substituição dos conceitos fique só evidente mesmo na escolha do título do livro.
24
MATTOS, Marcelo Badaró. Greves e repressão ao sindicalismo carioca 1945-1964. Rio de Janeiro: Aperj/Faperj, 2003.
25
FERREIRA, Jorge. O populismo e sua história, op. cit., p. 103.
21
populismo, mas como “expressão histórica da consciência operária”.26
Por conta dessas
afirmações, tidas como exageradas por Marcelo Badaró, o autor acusa Jorge Ferreira de ser
um apologético do PTB. Se a palavra “populismo” teria origem política bem definida, na
UDN, como sustenta Ferreira,27
a sua crítica também o teria, de acordo com Badaró, só que
no pólo oposto, no trabalhismo.
Marcelo Badaró ainda aponta fragilidades teóricas e empíricas nessa “visão positivada
do trabalhismo”.28
Para ele, quando Jorge Ferreira compara o trabalhismo ao Estado do bem-
estar social europeu, e, quando, Daniel Aarão Reis29
considera ser a legislação social uma
cornucópia, eles o fazem sem considerar o fato de que a aplicabilidade dessas leis era bem
distinta do que estava escrito no papel. Assim, numa citação que faz a John French, Badaró
destaca o desrespeito das empresas à legislação, a parcialidade da Justiça do Trabalho e os
obstáculos criados pelo governo para a sindicalização; todos seriam exemplos, segundo o
autor, da discrepância entre o ideal expresso na lei e a realidade de sua efetivação.30
Cita
ainda as conclusões de French, embora as considerando um tanto quanto exageradas. Para este
autor, a CLT não seria uma conquista efetivada pela classe trabalhadora, mas sim um
referencial para lutar por direitos sonegados; “meus argumentos é que a legislação trabalhista
nunca foi realmente concebida para ser real, e, no entanto, havia uma classe trabalhadora que
estava apta a se apropriar dessa legislação social”.31
Marcelo Badaró admite haver certo
exagero nisso tudo.
O autor até admite haver semelhanças entre o Estado de bem-estar social europeu e a
nossa experiência trabalhista, afinal, ambos seriam exemplos de regimes conciliadores de
classes, baseados em espaços corporativistas de mediação de interesses entre capital e
trabalho, no qual o Estado atuaria com forte presença. No entanto, segundo o autor, o paralelo
se encerraria aí. Haveria, segundo ele, uma diferença de origem histórica entre a social-
democracia européia e o nosso trabalhismo; enquanto a primeira se originaria de um
corporativismo societal – onde os espaços de mediação são conquistados pela organização dos
atores, o que garantiria a este modelo um caráter bifronte, com o controle estatal sobre as
organizações de classe, mas, ao mesmo tempo, com espaços decisórios no Estado para a
26
A citação escolhida por Badaró é uma já citada aqui: “Compreendido como um conjunto de experiências políticas,
econômicas, sociais, ideológicas e culturais, o trabalhismo expressou uma consciência de classe, legítima porque histórica”.
FERREIRA, Jorge. O populismo e sua história, op. cit., p. 103.
27
FERREIRA, Jorge. O populismo e sua história, op cit.
28
MATTOS, Marcelo Badaró. Greves e repressão policial ao sindicalismo carioca, op. cit., p. 29.
29
Ambas as colocações se encontram em O populismo e sua história, op. cit.
30
Estas colocações são de Jonh French, autor citado por Badaró. Marcelo Mattos Badaró ainda
31
FRENCH, Jonh D. Afogados em leis. A CLT e a cultura política dos trabalhadores brasileiros. São Paulo: Perseu Abramo,
2001. Em nota de rodapé, Badaró admite que a caracterização feita por French da legislação trabalhista como apenas uma
jogada cínica é um bocado radical. Está na nota 45, do primeiro capítulo de seu Greves e repressão..., op. cit.
22
participação das organizações. Ao contrário, na experiência trabalhista brasileira, o Estado
seria o garantidor desses espaços por meio de sindicatos tutelados e através do poder
normativo da Justiça de Trabalho. Na opinião de Badaró, isso caracterizaria o regime como
corporativista estatal, já que, nele, a atuação do Estado teria muito mais peso. Além disso, o
autor ainda destaca que a dimensão participativa no trabalhismo fora muito mais aberta aos
órgãos de classe do empresariado do que aos da classe trabalhadora de fato.
Se haveria erros conceituais na comparação do trabalhismo com a social-democracia
européia, o autor acredita haver erros também teóricos nas leituras de Angela de Castro
Gomes e Jorge Ferreira. Aqui, mais uma vez, as críticas mais enfáticas de Marcelo Badaró são
dirigidas a Ferreira. Para ele, Jorge Ferreira e também Angela de Castro Gomes, embora em
menor medida, apresentam uma leitura simplista e até preconceituosa, ao que parece, da obra
de Gramsci. Na opinião de Badaró, os autores reduzem e associam as leituras simpatizantes
da linha teórica gramsciniana com o arsenal argumentativo das teorias que defendem o
conceito de populismo. Mais do que isso, e aí quem o faz de maneira mais evidente, na
interpretação do autor, seria Ferreira, haveria uma tendência de polarizar, por parte de ambos
os revisionistas, as diretrizes teóricas de Gramsci a Thompson, como se houvesse entre os
dois argumentos diametralmente opostos. Para Badaró, tal leitura seria errônea, já que mesmo
Thompson, em sua análise sobre a classe operária inglesa, utiliza-se de conceitos
gramscinianos para entender o mesmo problema abordado pelo intelectual italiano; a
dominação de classe – e elas a explicam sem apelar para reducionismos economicistas, mas
adotando também mecanismos culturais como fonte de argumentação.
Por fim, por analisar o trabalhismo como relação entre atores, o Estado e a classe
trabalhadora, Badaró acredita que essas leituras perdem de vista o que, de alguma forma,
estava presente nas interpretações adeptas do conceito de populismo; a contradição entre a
proposta de incorporação controlada das massas à política e a existência de espaços de
mobilização autônoma. Para Marcelo Badaró, os estudos de Ferreira e Angela de Castro
Gomes tenderiam a enfatizar a isonomia nas relações entre Estado e trabalhadores, portanto.
O autor confessa, também, que o intuito de sua pesquisa sobre as greves é, ao mesmo
tempo, o de demonstrar a existência efetiva de espaços e de reivindicações da classe
trabalhadora no período entre 1945 e 1964, contestando um dos pilares da teoria do
sindicalismo populista, mas, sem, no entanto, apagar as contradições entre o Estado e a classe
trabalhadora, como o fazem Angela de Castro Gomes e Jorge Ferreira. Para Badaró, a própria
existência de greves combativas durante esse período é demonstrativa de uma relação não tão
harmônica assim entre esses dois atores.
23
Mais um indício da relação complexa entre a classe trabalhadora e o Estado do
período, seria, além das greves, a existência do “setor trabalhista”. Este era um ramo da
polícia política especializado na vigilância e repressão aos sindicatos e movimentos grevistas,
dissolvendo piquetes e prendendo trabalhadores. Este uso da palavra trabalhismo, segundo
Badaró, seria curiosamente ignorado pelos adeptos da teoria da isonomia.
Em nossa opinião, as críticas que Marcelo Badaró faz a Angela de Castro Gomes e a
Jorge Ferreira são relevantes, embora algumas delas tenham que ser relativizadas. De fato,
observam-se, nos escritos desses dois autores revisionistas, uma definição problemática de
Estado e uma certa fluidez no que se define como trabalhismo. Além disso, alguns conceitos
parecem confusos e às vezes misturados, sobretudo em A invenção do trabalhismo; caso dos
conceitos de ideologia e cultura política.
No entanto, há que se ressaltar e enobrecer as investidas que os dois estudiosos
desenvolveram na tentativa de relativizar noções antes consagradas, como: manipulação,
cooptação, massa de manobra, etc. Esta não é tarefa fácil de desempenhar já que, na tentativa
de desconstruir uma interpretação consagrada e um conceito tão enraizado na academia e no
linguajar cotidiano, como o de populismo, os dois arriscaram-se a cometer o risco contrário;
elaborar um conceito com a mesma amplitude teórica, mas de maneira desconstrutiva. Assim,
o trabalhismo de Angela de Castro Gomes e de Jorge Ferreira tenta dar conta daquilo que a
noção de populismo abarcava, mas sempre com um esforço de negação. Deste esforço surgiria
então este trabalhismo inventado, espécie de conceito historiográfico que tenta explicar as
relações entre Estado e sociedade no período 1945-1964, embora ele mesmo tenha sido
inventado no ano de 1942, segundo Angela de Castro Gomes.
Não se quer dizer com isso, num reducionismo preguiçoso, que este conceito de
trabalhismo deva ser ignorado, ou desvalorizado. As formulações desenvolvidas por ambos os
autores trouxeram contribuições valiosíssimas para o estudo do período; a percepção de que
havia sim algum nível de reciprocidade entre os anseios dos trabalhadores e o esforço
propagandístico e ideológico desenvolvido pelo governo; a identificação e representação deste
mesmo governo na classe trabalhadora não devem ser menosprezadas e a noção de troca entre
atores desiguais, muito importante nos trabalhos de Angela de Castro Gomes, substituindo a
idéia unilateral de cooptação e manipulação.
No entanto, na tentativa de se criticar e revisar as bases da teoria do populismo,
elaborou-se um conceito tão amplo quanto aquele; o de trabalhismo. E, no afã de substituir a
noção de populismo, nossos autores deram pouca atenção à dimensão doutrinária do
trabalhismo, à sua definição conceitual. Trabalhismo aparece como ideologia política, como
24
cultura política, como projeto político, mas raramente se vê o trabalhismo como doutrina.
Evidentemente, pela forma como o PTB foi fundado, pela ação direta de Vargas e como um
mecanismo de reforço do getulismo32
– entendido como opinião política e pública favorável a
Vargas –, tornou-se difícil observar com maior zelo esta dimensão teórica-doutrinária do
trabalhismo, que ficou desvalorizada.
Porém, este trabalho pretende cobrir esta lacuna, e, como ambição ainda maior,
pretende verificar de que maneira o maior teórico do trabalhismo o definiu; consideramos que
só assim, este poderá ser entendido da maneira como os seus formuladores o quiseram
delimitar. Já se discutiu sobre o caráter autoritário do trabalhismo, sobre o seu teor de
manipulação, fato que o debate populismo versus trabalhismo vem dando conta há algumas
décadas; já se argumentou ainda, numa perspectiva que privilegia a ação do Estado, que este
trabalhismo teria sido inventado, fruto da ação consciente e organizada dos homens de base
do governo Vargas; há ainda os que se dedicam a analisá-lo pela ótica das camadas populares,
a sua receptividade a essa “construção”, a sua participação na “montagem” desse trabalhismo.
Alguns o analisam através da história do partido, dividindo-o em fases, de getulismo a
trabalhismo. No entanto, os estudos especialmente voltados à doutrina trabalhista são
pouquíssimos.
Um dos objetivos desta pesquisa é verificar de que maneira o pensamento de
Pasqualini, apesar de todo o seu processo de mudança e de incorporação lenta de Getúlio
como símbolo-líder do trabalhismo, pode ser uma outra forma de definir o próprio
trabalhismo, desta vez não como uma ideologia política, mas como uma doutrina.
O maior cuidado será não reproduzir a oposição entre o trabalhismo doutrinário e o
trabalhismo getulista.
32
Esta interpretação é consagrada por Angela de Castro Gomes, Jorge Ferreira e Maria Celina D`Araújo. Os três falam do
PTB como um partido carismático. Haverá maior dedicação a este assunto mais à frente, no item especialmente voltado para
a relação de Pasqualini com o getulismo. As referências bibliográficas estarão neste item.
52
2 O PENSADOR E O HOMEM POLÍTICO: PRINCIPAIS IDÉIAS E ATUAÇÃO
PARLAMENTAR
Por ser bastante fragmentada e não linear, já que boa parte de sua obra foi publicada
em artigos de jornais e depois reorganizada em livro, as formulações de Pasqualini são
difíceis de sintetizar. Assim, fez-se, neste capítulo, um pequeno roteiro de suas principais
idéias. A intenção é destacar os pontos centrais do que seria sua visão particular do
trabalhismo por meio de um glossário, sem, no entanto, qualquer pretensão de esgotar a
complexidade de seu pensamento.
Na segunda parte do capítulo, há uma rápida narrativa de suas principais realizações
como parlamentar e também sobre as grandes questões que debateu. Se, no primeiro capítulo,
nos interessaram a biografia e a entrada no PTB, aqui é a atuação como político que merece
atenção.
Nunca é demais ressaltar que Pasqualini sempre foi muito mais lembrado como
teórico e pensador do que como político. A dificuldade de encontrar fontes que detalhem sua
atuação como parlamentar é mesmo evidente; até nos jornais de época, Alberto Pasqualini era
exaltado como intelectual e como pensador. Essa imagem sua não foi construída depois de sua
morte, mas foi algo que o acompanhou desde muito cedo. Seus adversários políticos nunca
cansaram de dizê-lo; no interior do partido era esta também sua identidade. As manifestações
em época de sua morte também relembraram este perfil intelectual de Pasqualini. No entanto,
o presente capítulo tentará dar conta, em alguma medida, do homem político Alberto
Pasqualini – tão preterido.
A divisão entre pensamento e política em momento algum significa qualquer
dualidade estanque entre estas duas feições de nosso teórico. O propósito é justamente
mesclar tudo isso nesta destacada personalidade do trabalhismo que foi Alberto Pasqualini.
Às principais idéias, primeiro.
53
2.1 Socialismo, capitalismo e trabalhismo
Indagaram-se, algumas vezes, a direita política e católicos fervorosos, se não seria o
nosso teórico gaúcho um comunista. Num mundo repartido entre capitalismo e socialismo, era
mesmo normal que se esperasse tal tipo de definição. Perguntavam-lhe se era e acusaram-no
também muitas vezes de ser ateu, fato que sua formação religiosa e as constantes referências a
Deus e às encíclicas papais negam com facilidade. Porém, a primeira questão, sem dúvida,
tomou-lhe mais tempo; não foram poucas as páginas em que tentava situar seu pensamento
entre esses dois pólos político-ideológicos.
O primeiro esclarecimento:
Não poderíamos dizer pura e simplesmente que pertencemos a um desses dois mundos; que
somos capitalistas ou socialistas, pela simples razão de que diversificam as concepções a
respeito, existindo uma pluralidade de formas de capitalismo e de socialismo.93
Pasqualini diferia o capitalismo do socialismo pela característica da propriedade, pela
iniciativa particular de empreendimento de um, e pela estatal de outra, e também pelas
relações sociais; estas talvez denunciem mais sua própria concepção de Estado e o motivo de
sua opção pelo trabalhismo como modelo de política para o Brasil.
Explicava ele que: “No regime capitalista há, pois, três figuras: o patrão ou o
capitalista, o trabalhador ou o empregado e o Estado. No regime comunista, pelo menos tal
como hoje existe, há só duas figuras: o Estado e o trabalhador.”
E prosseguia, afirmando:
No regime capitalista, quem regula as relações jurídicas entre patrões e empregados, quem
fixa as normas de trabalho, quem resolve as questões que surgem entre as duas partes, é o
Estado. No regime comunista, o árbitro dessas questões é o próprio patrão, isto é, a
autoridade, donde há o perigo de perder o trabalhador e sua liberdade.94
Por essa passagem, pode-se notar que Pasqualini distinguia entre Estado e autoridade,
acabando por conceber o Estado como uma esfera de representação plena para os
93
Trecho do discurso de Pasqualini como candidato ao governo do Estado, em 1947. Este pronunciamento depois fez parte
do livro Bases e sugestões para uma política social, compondo o segundo capítulo. SIMON, op cit., p. 128.
94
Idem, p.128.
54
trabalhadores (o interessante é que o contraste é feito entre Estado versus autoridade, não
havendo qualquer referência a órgãos representativos de classe, como sindicatos e partidos).
O modelo real de socialismo, em sua visão, seria um exemplo de autoridade, já que
usaria de métodos coercitivos e violentos para garantir a justiça social. Ainda segundo ele,
“no regime socialista” existiriam duas classes: “uma, dos que mandam e estão de cima, e a
outra dos que obedecem e estão debaixo”.95
O mundo socialista poderia, pois, do ponto de vista jurídico da propriedade, eliminar as
classes, mas não poderia eliminar a hierarquia e a polícia. O proletário continuará sendo
sempre proletário, ao passo que o patrão será apenas substituído pelo burocrata ou pelo agente
da autoridade pública.96
Pasqualini temia o regime comunista no Brasil porque acreditava que, por ser um país
com baixo nível de desenvolvimento econômico, a socialização dos meios de produção
pareceria um entrave para o nosso crescimento econômico e até uma irresponsabilidade para o
país:
Se, no Brasil, coletivizássemos os meios de produção, se passassem eles às mãos do Estado,
acabaríamos todos morrendo à míngua.
Como dizem os próprios comunistas, no Brasil não há condições objetivas ou
materiais, nem condições subjetivas ou psicológicas, para a instituição entre nós do regime
socialismo.
Precisamente por sermos um país ainda em fase de pré-capitalização, precisamos de
iniciativa privada, e de muita iniciativa privada. Estejam, pois, tranqüilos os nossos
capitalistas, que terão ainda, entre nós, vida muito longa se souberem realmente compreender
a verdadeira função do capital, isto é, se souberem fazer o uso devido dos meios de
produção.97
Se o temor pelo comunismo marcava as formulações de nosso teórico, as críticas ao
capitalismo liberal também não eram amenas. Como vimos, desde suas primeiras publicações,
tanto nas “Sugestões” como no “Manifesto-programa da USB”, elas já estavam presentes.
Mas, agora, em seu discurso em Caxias, durante a campanha para o governo do Estado,
Pasqualini explicava melhor o que queria dizer:
Capitalismo egoísta é o que tem como elemento psicológico o egoísmo. É o que pretende tudo
pra si, isto é, para os detentores dos meios de produção. Os métodos do individualismo, como
já tive ocasião de observar, são os de luta, luta pela dominação, luta pelo sujeitamento do
indivíduo a outro indivíduo, luta pelo ganho sem limites, sem consideração, sem escrúpulos.98
95
Idem ibidem.
96
Idem ibidem.
97
Idem, p.129.
98
Idem, p. 129.
55
Previa que este capitalismo egoísta, também denominado por ele individualista,
tenderia, nas suas últimas conseqüências, ao “monopólio”, à ”hegemonia econômica”; à
“exploração do povo”.99
Em contraposição ao capitalismo individualista, Pasqualini situava o que ele
acreditava ser a melhor opção para o nosso país; o “capitalismo humanizado”, “cristão” e
“solidarista”.100
Segundo ele, este tipo capitalismo não deitava suas raízes no egoísmo, mas
antes se “inspirava nos princípios da cooperação e da solidariedade social”.101
Defendia que
este “capitalismo humanizado” teria como princípio básico a satisfação humana, e que, por
essa razão, deveria haver uma relação de solidariedade entre os detentores dos meios de
produção e os trabalhadores, responsáveis por seu acionamento.102
No decorrer de sua fala, Pasqualini ainda igualaria este “capitalismo solidarista103
” ao
trabalhismo, situando-o num posicionamento distante dos dois extremos; o capitalismo
egoísta e o comunismo.
A essa forma de capitalismo humanizado, que não desconhece os princípios da solidariedade
social, mas antes neles se assenta, damos o nome de capitalismo solidarista.
Ele exclui, de um lado, o capitalismo individualista e, de outro, a socialização dos
meios de produção ou o comunismo. Sua concepção fundamental é de que o capital não deve
ser apenas um instrumento produtor de lucro, mas, principalmente, um meio de expansão
econômica e de bem-estar coletivo.
Esta é também, senhores, a idéia substancial do nosso programa. Para nós,
trabalhismo e capitalismo solidarista são expressões equivalentes.104
2.2 Sociedade e Estado
O ideal de sociedade de Pasqualini e do seu trabalhismo era aquela sociedade onde
reinasse, não a luta de classes, mas sim o equilíbrio harmônico entre elas. A sociedade ideal
em seu pensamento aparece como um todo social harmonioso. A luta de classe seria mais
característica, para ele, daquele capitalismo liberal, egoísta e desumanizado que do
capitalismo como um todo. Seria, portanto, conseqüência de uma mentalidade social egoísta,
e não uma característica do regime capitalista em si. Para Pasqualini, essa desigualdade
99
Idem ibidem.
100
Idem ibidem.
101
Idem ibidem.
102
Idem ibidem.
103
Expressão do próprio Pasqualini.
104
Idem ibidem.
56
classista deveria ser combatida não pelo comunismo, que acentuaria ainda mais a polaridade,
mas pela ação do Estado, que garantiria o equilíbrio entre trabalhadores, assegurando-lhes
seus direitos básicos e impedindo o acúmulo de riquezas nas mãos das classes mais abastadas.
Assim, o capitalismo deveria ser mantido, mas um capitalismo humanizado, trabalhista, onde
a relação das classes não fosse de luta, mas de integração solidária.
A idéia de harmonia entre as classes, presente não só nos escritos e discursos de
Pasqualini, mas também nas diretrizes e práticas do próprio trabalhismo getulista – sua atitude
conciliatória durante seu governo o comprova, quando tentava harmonizar os interesses das
diferentes frações da elite gaúcha105
–, estava já em Augusto Comte quando este definia o que
era, para ele, a idéia de progresso. Progresso, segundo ele, estava associado à noção de
equilíbrio; assim, longe de combater o que estava em excesso, o que se devia fazer era
contrabalançar os elementos do conjunto social de modo a deixá-los em harmonia. Afirmava
Pasqualini: para reorganizar o todo social, “a sã política, filha da moral e da razão, não destrói
o órgão que cresceu em excesso, mas vai conservá-lo retificando as suas dimensões e
integrando-o em uma nova ordem superior”.106
2.3 Partido e mentalidade social
A concepção de partido político de Pasqualini destoava um pouco da de seus
adversários políticos e também de seus companheiros de partido. Longe de considerar o
partido somente como uma agremiação cujos fins se voltavam única e exclusivamente para
resultados eleitorais, – pelo menos era assim que aparecia em seus escritos – Pasqualini
acreditava que a verdadeira função das agremiações políticas era a de promover a mobilização
social, difundir ideias e ser um instrumento de educação do povo – atuava na construção de
uma ordem. O contraste com a concepção pragmática que Getúlio apresentava do PTB era
marcante: Vargas flertava abertamente com o PSD, com vistas a garantir a vitória nas urnas,
seu fim último e maior. Se, para Pasqualini, o instrumento difusor do trabalhismo era o
partido, para Vargas, o mais importante era assegurar o domínio da máquina do Estado, para,
105
BOSI, Alfredo, op cit, p. 288. BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992
106
Idem ibidem.
57
lá, promover as mudanças e medidas que julgasse necessárias. Na prática, os dois acabaram
por se complementar na construção e fortalecimento do PTB, pouco importando as diferenças
de argumentação, embora elas existissem.
Pasqualini tinha esta interpretação sobre o papel dos partidos políticos porque não via
no Brasil a existência de uma opinião pública organizada. Pensava que a função das
agremiações políticas era despertar o interesse do povo para as questões sociais fundamentais
do Brasil.107
Portanto, os partidos apresentavam, segundo ele, uma função quase didática e,
por consequência, propagandística dessa consciência, dessa opinião pública. Os partidos não
eram somente representativos dos anseios populares, mas também atuantes nesta função
maior de construção de uma mentalidade social.
Dizia ele: “Nosso problema não é apenas vencer uma eleição e controlar o governo;
nosso problema é criar uma mentalidade social que facilite o uso dos meios que o poder
oferece para realizar o programa que defendemos.108
Em entrevista que concedeu ao Diário de Notícias do dia 13 de junho de 1948,
Pasqualini explicaria sua percepção particular sobre política, partido político e ideologia. Na
ocasião, declarara a Décio Freitas, jornalista do Diário, que todo partido político digno deste
nome deveria ser portador de uma concepção social, de uma ideologia; um conjunto de
objetivos definidos, de soluções concretas e de diretrizes que poriam em prática tais soluções
e objetivos. A isso, Pasqualini também chamava “ideal partidário”; ideal que não se realizaria
por si só, esclarecia o teórico, mas que necessitaria de uma organização responsável por sua
veiculação, impulsão e prática. Sintetizava explicando que “[...] um partido político é assim a
conjunção de dois elementos: da ideologia, que é a alma, e da organização, que é o corpo ou
seu instrumento de ação”.109
A ideologia de Pasqualini seria, então, este conjunto de objetivos e de soluções,
propostas por um partido para tentar superar uma determinada situação política, econômica e
social; a sua maneira de, diante dela, lidar e enxergar saídas. Em muitas vezes ela aparece, nos
seus textos e entrevistas, como sinônimo de concepção social, que seria, segundo suas
próprias palavras:
[...] é a sua posição [do partido político] em face dos problemas econômicos e sociais e a
natureza das soluções que propõe para esses problemas. É unicamente a aceitação dessa
concepção e dessas soluções que devem, por outro lado, constituir o motivo para que qualquer
107
Correio do Povo, 23 de setembro de 1945, p. 11.
108
Correio do Povo, 17 de dezembro de 1946, p. 7 e 8.
109
Diário de Notícias, 1948, p. 4 e 24.
58
cidadão se filie a determinado partido. A vinculação partidária deve resultar, portanto, de uma
“convicção” e de uma “adesão” à ideologia do partido.110
É precisamente a “adesão” a essa ideologia partidária que caracterizaria, segundo o
pensador gaúcho, uma agremiação de homens livres em torno de um ideal, ao contrário de um
partido organizado em torno de uma pessoa. Era hábito de Pasqualini comentar sua
insatisfação com a falta de ideologia dos partidos políticos de sua época, crítica a que o
próprio PTB não escapava. Sobre os partidos, de uma maneira geral, afirmava:
Há ainda nos partidos muito individualismo, muito personalismo, muita ausência de
convicção partidária. Seria necessário que os homens agissem em função de idéias e soluções.
Em política, no Brasil, estamos ainda na fase da antropolatria mais grosseira. Temos um
longo caminho a percorrer. Se considerarmos a política como a arte de investigar e realizar o
bem comum, os homens deveriam estar a serviço da política. Em geral, porém, se procura
fazer da política um instrumento a serviço de pessoas. Política deveria significar renúncia,
desprendimento, ação em benefício da coletividade. No entanto, só significa, às vezes,
ambições e interesse.111
A temática do personalismo volta e meia aparecia em seus pronunciamentos, o que
justifica que a ela se dedique um item específico. Bastou-nos, até o momento, dar ênfase à sua
insatisfação com o perfil personalista das agremiações políticas, com o pragmatismo eleitoral
dos partidos e com a ausência do que seria, ou deveria ser, o motor de toda política: a
preocupação com o bem comum. Esses três pilares são as diretrizes da concepção de política
do pensador, entendida em seu sentido restrito, e traduzem o que seria, para ele, o ideal de
partido e o que almejava para o seu PTB: maior independência da figura de Getúlio Vargas
como eixo organizacional da agremiação; cautela nas alianças políticas; e a consciência das
eleições como uma etapa necessária para uma realização ainda maior, a satisfação das
necessidades básicas dos trabalhadores e da população de um modo geral, e, no sentido
amplo, a transformação da sociedade em um todo social harmonioso. Eram esses os ideais da
política, segundo ele.
É bom lembrar que essas três idéias aparecem como o ideal de política para o
nosso pensador. Na prática, Pasqualini talvez tenha sido o mais fervoroso dos petebistas.
Apesar de suas críticas e de suas formulações ideais para o trabalhismo – muitas delas se
distanciavam muito da atuação política e do discurso de Vargas e do PTB, como vimos –,
Pasqualini de fato acreditava que o PTB e Vargas seriam o caminho único para construção
110
Idem ibidem.
111
SIMON, Pedro, op.cit., apud “Discurso no Diretório Municipal do PTB”, Correio do povo, 6 de abril de 1949, p. 14.
59
daquela sociedade. Ou seja: ainda que na retórica o PTB e o trabalhismo de Pasqualini
parecessem bastante distintos do de Vargas, e suas diferenças não devem ser minimizadas, na
prática, mesmo com suas críticas, Pasqualini optou por continuar e servir ao PTB como única
agremiação capaz de pôr em prática seus planos e anseios.
2.4 Personalismo político
Boa parte dos estudos sobre Pasqualini centraliza-se na crítica que o teórico fazia ao
personalismo político do PTB. No entanto, é preciso fazer certa ressalva. Pasqualini era um
crítico ao personalismo político, certamente o era, mas fazia e condenava o personalismo de
todos os partidos. Considerava que as agremiações e as figuras políticas eram pouco
ideológicas, pensavam antes em si mesmas do que na política, cujo ideal maior era, segundo
ele, realizar e assegurar o bem comum.
O personalismo, portanto, não era um mal exclusivo do PTB, mas sim um fenômeno
da política brasileira. A censura que fazia ao centralismo dos partidos e da política em geral
não se iniciara com sua entrada no PTB; vinha de antes. Depois que se filiou ao Partido,
atuava realmente como um político preocupado em elaborar um arcabouço doutrinário para o
trabalhismo, fazendo isso por meio de suas idéias e formulações. Quando se examina sua
atuação no PTB, logo se percebe esse perfil nas atuações que teve; criticou o apoio de Getúlio
e do Partido à candidatura de Eurico Gaspar Dutra, por julgar que este tinha pouco em comum
com os ideais do PTB; suas campanhas tiveram sempre um cunho altamente teórico,
deixando, por muitas vezes, a disputa eleitoral em segundo plano; no PTB, fez parte da
Revista Trabalhista, como integrante do Departamento de Estudos Planificados do Partido,
departamento responsável pela organização doutrinária do trabalhismo e por fornecer as
diretrizes das medidas a serem tomadas pelos trabalhistas no Parlamento; já na década de
1950, juntou-se a uma dissidência partidária, integrada por Danton Coelho, a Frente
Trabalhista Brasileira, cujo objetivo maior era conferir ao partido maior teor doutrinário.112
112
Sobre a Frente Trabalhista Brasileira, ver o livro de Maria Celina D´Araújo, Sindicatos, crisma e poder. Rio de Janeiro:
Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1996. A autora acredita que, a partir da década de 1950, teria se iniciado uma série de
mudanças no PTB. O Partido, que até então se concentrara nas orientações de Getúlio Vargas, começara a presenciar o
surgimento de novas lideranças internas, combatendo ou pondo em xeque as ambições de poder de seus integrantes. A partir
desse período, Maria Celina D`Araújo observa o florescimento de lideranças que procuravam dar ao Partido um perfil mais
programático; a Frente teria sido um dos indícios desses esforços.
60
Suas críticas ao personalismo político, portanto, não se resumiam ao PTB, mas
também se dirigiam aos demais partidos. No entanto, suas ressalvas ao uso
descompromissado do termo trabalhismo, muitas vezes confundido com a admiração política
a Getúlio Vagas, era uma característica do PTB que lhe incomodava. Mas isso é assunto que
merece ser tratado com maior cuidado, razão pela qual lhe dedicaremos algumas páginas
especiais, logo ao final deste trabalho.
2.5 Ditadura
Em um dos seus artigos mais importantes, Pasqualini esclareceria qual sua posição
sobre as ditaduras e líderes políticos. Ele não é do livro Bases e sugestões para uma política
social,113
mas é um bom exemplo sobre como o nosso teórico avaliava o Estado Novo e a
figura de Vargas.
Pasqualini reconhecia que a democracia representativa era o sistema político natural
das coletividades humanas mais evoluídas, com o poder cada vez mais despersonalizado. No
entanto, situações conjunturais poderiam, segundo ele, justificar regimes ditatoriais:
A inadaptabilidade ocasional do sistema democrático, o desgaste das suas energias em luta e
competições estéreis, a decomposição dos órgãos de governo, a sua falta de coordenação, a
sua ineficiência e impotência ante os mais graves problemas sociais e nacionais podem
favorecer e propiciar, até nas sociedades mais civilizadas, surto de primitivismo
caracterizados pela regressão do poder ao indivíduo e pela centralização da autoridade.114
Ou seja, em momentos de crise generalizada, Pasqualini considerava a tendência à
concentração do poder, num retrocesso às formas mais primitivas de regime político. Em
momentos como esses, a concepção mística do chefe político – que seria, segundo ele, a
forma intelectualizada e estilizada da percepção mítica do chefe quase divino – afloraria.
Para Pasqualini, nos povos de certo nível cultural, a ditadura postularia uma base
ideológica mais complexa, e fundamentar-se-ia num ideal ou programa político e social. Em
povos assim, explica o nosso teórico, o regime ditatorial se apoiaria na ação de um partido, o
113
Correio do Povo, 11 de julho de 1943
114
Idem.
61
que pressuporia o reconhecimento de que o povo seria a origem do poder, e não o líder.
Apesar disso, a figura do chefe político, ou ditador, seria muito proeminente, e, sua queda, em
muitas das vezes, poderia significar o fim do partido, advertia. Em sociedades de baixo nível
cultural, a ditadura não se basearia em premissas ideológicas e na ação do partido, se
sustentaria, segundo Pasqualini, na ação golpista do ditador.
Assim, Pasqualini concluiria: “Mas se a personalização do poder é sempre uma
ditadura, nem sempre a ditadura envolve, necessariamente, a personalização do poder”.115
Para ele, haveria dois tipos de ditaduras: as regressivas, de caráter puramente
personalista, míticas e caudilhescas, e as “técnicas”, ocorridas em momento de crise e de
perigo nacional. As ditaduras técnicas ocorreriam, portanto, em momentos de circunstâncias
excepcionais. Elas não visariam a abolição do regime democrático, e teria objetivos definidos
claros: a segurança nacional, uma necessidade de reorganizar o país, a “higienização” da
administração, com o restabelecimento da “harmonia e o sintonismo entre os povos e os
órgãos governamentais”. 116
Alberto Pasqualini explicava que, nas ditaduras técnicas, o ditador não possui aura de
um ser iluminado, um semi-divino ou um “caudilho que se apossou do Estado”. É apenas um
cidadão, um magistrado, “um estadista em quem a nação confia e reconhece [...] os atributos
morais e intelectuais”.117
Do ponto de vista sociológico, Pasqualini reconhecia que havia entre nós fatores que
poderiam estimular a adoção de um regime ditatorial regressivo. Dentre eles, citava o
cicliotismo latino (diversos regimes latino-americanos tinham esse perfil) e o misticismo
africano. Mas o contato com países anglo-saxões, a nossa rápida industrialização, a
conseqüente elevação do padrão cultural de nosso país e a organização de nossa administração
em bases técnicas parecem ter afastado aquela nossa tendência natural.
Na sua avaliação, o golpe de Estado de 1937 teria preservado entre nós a democracia,
por mais paradoxal que isso parecesse. “A concentração de poder foi a vacina antógena
polivalente contra o surto epidêmico das formas regressivas do poder”.118
Vê-se, pois, que nosso teórico reconhecia e avaliava o golpe de 1937 como um
episódio positivo para a nossa história. Afastando as forças regressivas, Vargas foi o homem
intelectualmente capaz de conduzir esse processo que afastaria o Brasil de um regime
115
Idem.
116
Idem.
117
Idem.
118
Idem.
62
ditatorial regressivo e personalista. Mas, com ele a frente, o país parece ter sido salvaguardado
de um futuro antidemocrático e primitivo.
A ditadura “técnica” varguista parece obedecer às premissas daquela famosa filosofia
do mal necessário, que Pasqualini não parecia ou conseguia condenar.
2.6 Sobre Vargas e o processo histórico brasileiro
A particularidade desta entrevista, que foi concedida ao Diário de Notícias do dia 10
de dezembro de 1949, é que nela Alberto Pasqualini expõe sua interpretação mais clara sobre
o papel de Vargas e sua influência no processo histórico brasileiro. Chama a atenção a
similaridade de sua interpretação com a de Paulo Schilling, intelectual que teve atuação
política marcante no governo de Leonel Brizola no Rio Grande do Sul.
Pasqualini escrevia em 1949 que estaríamos entrando na segunda etapa do
trabalhismo. Segundo ele, a legislação social do governo Vargas teria outorgado as garantias
jurídicas do trabalhador; ela seria a sua carta de alforria – expressão usada pelo próprio
Pasqualini.
A peculiaridade e os méritos de Vargas teria sido a realização desta outorga sem
derramar lágrimas ou sangue. “A sabedoria de um governo antecipou-se às próprias
reivindicações do proletariado. Só isso seria o bastante para redimi-lo de todos os seus
possíveis enganos”119
.
A segunda etapa do trabalhismo seria dar maior amplitude à legislação social,
estendendo seus benefícios a todos os trabalhadores – falava especialmente da previdência
social.
Em relação a Vargas, dizia assim.
É necessário que os nossos homens públicos e que todos os homens de responsabilidade,
aqueles que possuem a visão panorâmica das coisas e não o estreito diafragma dos políticos
de aldeia, compreendam esse fenômeno e compreendam quanto é útil à coletividade e à
ordem social que exista no seio das massas esta força de polarização, de liderança e de
contensão que as guie, às conduza às suas legítimas conquistas, suavemente, sem os atropelo,
os estravazamento e os excessos das agitações sociais.120
119
Diário de Notícias, 10 de dezembro de 1949.
120
Idem.
63
Prosseguia, exaltando que as medidas de proteção ao trabalho no Brasil não teriam custado
uma ameaça, um tiro, uma gota de sangue sequer, “porque a sabedoria do seu governo
(Getúlio Vargas) se antecipou às próprias reivindicações das classes proletárias”.121
Não é surpresa que Pasqualini exaltasse a “paz” e a “tranqüilidade” que conduziram
todo este processo de conquistas de direitos. Como bom positivista que era, nosso teórico
jamais nutriu grandes simpatias por processos revolucionários. Por sua inspiração comteana,
Pasqualini acreditava que progresso estava estreitamente ligado à noção de ordem, e
acreditava ainda que caberia a uma elite de ilustrados a condução das transformações sociais.
122
2.7 Nacionalismo
A ausência de uma preocupação maior por parte de Pasqualini com relação às
bandeiras nacionalistas chama a atenção. O fato é ainda mais curioso porque o PTB e Vargas,
pessoalmente, foram sempre referências importantes para o levantamento de tais questões no
Brasil. No entanto, Pasqualini poucas palavras dedicou ao assunto, manifestando um quase
total desapego por esse debate, se comparado a Getúlio Vargas.
A identificação entre nacionalismo e trabalhismo foi intensa, sobretudo na década de
1950, quando Vargas fazia pronunciamentos exaltados sobre o assunto.123
Lucília de Almeida
Neves fala do nacionalismo como uma febre nacional, que permaneceu no PTB depois da
morte de Vargas, mas que superou seus limites, contagiando também outras legendas,
organizações da sociedade civil e população em geral. Era época de intenso debate tendo em
vista os projetos governamentais de implantação de empresas estatais, como a Vale do Rio
Doce, a Petrobras, a Eletrobrás e a Fábrica Nacional de Motores (FNM). No PTB, o
nacionalismo foi característica marcante, sobretudo a partir daqueles anos.
121
Idem.
122
Sobre a influencia do positivismo no republicanismo gaúcho ver: LOVE. Joseph L. O regionalismo gaúcho. São
Paulo,Editora perspectiva.nele, Love explica a influência de Comte nos líders republicanos, particularmente em Castilho e
Vargas. “a filosofia social de Comte forneceu a Castilhos e sua geração uma versão paternalista e altamente racionalista do
liberalismo do século XIX”. As principais idéias que absorveram de Comte: a defesa das liberdades individuais, a
condenação da escravidão, separação entre Igreja e Estado, educação primária universal e o intervencionismo estatal para
proteger os operários industriais. P. 39.
123
A citação é de Paulo Schilling, no seu livro Como se coloca a direita no poder. São Paulo: Global, 1979, e reproduzida
pela autora: “Criminosa multiplicação do capital estrangeiro, em detrimento do trabalho de milhões de brasileiros”.
DELGADO, Lucília de Almeida Neves. “Trabalhismo, nacionalismo e desenvolvimentismo”. In ___. O populismo e sua
história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
64
A ausência de referências maiores de Pasqualini às bandeiras nacionalistas faz alguns
estudiosos duvidarem de seu papel como teórico do trabalhismo. Maria Vitória Benevides é
uma das que destacam de tal forma a relação entre trabalhismo e nacionalismo que atribui a
San Tiago Dantas o papel que muitos indicam para Pasqualini na elaboração doutrinária do
trabalhismo.
Sant Tiago Dantas [...] participou intensamente da formulação de importantes aspectos do
trabalhismo, principalmente em relação ao sindicalismo (praticamente ignorado por
Pasqualini) e ao nacionalismo. [...] as contribuições de San Tiago são, a nosso ver, o que de
mais concreto se escreveu sobre a doutrina [trabalhista].124
Trabalhismo e nacionalismo, de fato, eram ideologias que andavam juntas, numa
identificação que permaneceria no conteúdo programático do trabalhismo tempos depois. No
entanto, é preciso dar conta da complexidade do que foi o nacionalismo no Brasil.
Na interpretação de Vânia Maria Losada,125
o nacionalismo teria nascido como uma
ideologia estatal. Só depois, já na campanha do “Petróleo é nosso”, a partir de 1943, é que
ganharia conotação popular. Adepta da teoria do populismo de Francisco Weffort126
– que
entende o Estado emergente da crise de 1929 como um Estado sem hegemonia de classe, e
que, na busca por legitimidade, teria suas bases de sustentação ampliadas – a autora acredita
que o nacionalismo teria se originado a partir da ação do Estado populista de Vargas,127
para
perdurar no desenvolvimentismo de Juscelino Kubitschek e no social-reformismo de João
Goulart.128
O nacionalismo surgia na década de 1950 como uma ideologia indispensável à
construção de uma nação autônoma e independente. A elite política e intelectual da época
vociferava em torno da necessidade de industrialização brasileira, única maneira de o país
seguir um caminho próprio e independente. A burguesia nacional era a classe escolhida para
conduzir este processo, numa forma de combate à elite agrária atrasada e dependente. O
objetivo era superar o nosso subdesenvolvimento, modernizar nossa sociedade e economia,
para, com isso, construir uma nação brasileira.
124
BENEVIDES, Maria Victoria de Mesquita. O PTB e o trabalhismo: partido e sindicato em São Paulo 1945-1964. São
Paulo: Brasiliense, 1989, p. 96.
125
MOREIRA, Vânia M. Losada. “Nacionalismo e reforma agrária nos anos 50”. Revista Brasileira de História, v. 18, n. 35,
São Paulo, 1998.
126
Sobretudo WEFFORT, Francisco, O populismo na política brasileira. 3ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003.
127
Na interpretação de Weffort, o nacionalismo teria sido fundamental para a sustentação do Estado populista.
128
MOREIRA, Vânia M. Losada, op. cit., p. 3.
65
Bandeiras como o “anti-imperialismo”, visto como uma ameaça externa ao nosso
desenvolvimento, eram alardeadas; no plano interno, o inimigo eram as elites agrárias
exportadoras; no plano internacional, o imperialismo, sobretudo o norte-americano, era a
ameaça de dominação. Todavia, mesmo possuindo um discurso mais ou menos homogêneo,
os nacionalistas discordavam quanto ao papel do capital externo no desenvolvimento
industrial do país.
Os nacionalistas liberais, liderados pelo grupo do ISEB (Instituto Superior de Estudos
Brasileiros), consideravam que éramos um país não só atrasado economicamente, mas
também culturalmente. O papel do ISEB, segundo eles, era, então, operar a necessária
“tomada de consciência” de nossa condição de subdesenvolvimento ou semicolonialismo,
para superá-la por meio de uma “ideologia do desenvolvimento nacional”, que estimulasse a
industrialização brasileira em bases capitalistas.129
Os isebianos tiveram ligação estreita com o governo de Juscelino Kubitschek, em
particular com seus “planos de metas”; o vínculo fora tão estreito que, em muitas ocasiões –
explica Vânia Losada –, o nacionalismo dos intelectuais do ISEB se confundiu com o
desenvolvimentismo daquele período.
Os nacionalistas econômicos, de tendência mais esquerdista, liderados por intelectuais
variados e por partidos de esquerda, como o PTB e o PCB, não se contentavam com o
desenvolvimentismo dos anos de Juscelino. Para Lousada, os nacionalistas econômicos não
formavam um bloco monolítico em termos político-partidários, com diferenças ideológicas
bastante acentuadas, mas adotavam perspectivas mais reformistas, o que lhes rendeu a
alcunha de vermelhos.130
Esses nacionalistas que se reuniram na Frente Parlamentar Nacionalista (FPN)
originavam-se de setores da “ala moça” do PSD, do PTB e até mesmo da UDN, representada
pela ala “Bossa-Nova”. Todos defendiam reformas estruturais, como a incorporação da
população ao sistema econômico, por meio de uma industrialização planejada que elevasse
seu padrão de vida. O combate ao imperialismo era tema constante, bem como a defesa de
reformas nas estruturas sociais, econômicas e políticas. Nesse conjunto, ganhava destaque a
reforma agrária.
Uma das bandeiras mais destacadas era mesmo a questão do capital estrangeiro. Para
os nacionalistas econômicos, havia necessidade de disciplinar a remessa de lucros, royalties e
129
Idem, p. 6. Citação feita a CORBISIER, Roland. Brasília e o desenvolvimento nacional. Rio de Janeiro: ISEB/MEC,
1960, p. 23.
130
MOREIRA, Vânia M. Losada, op. Cit., p. 7.
66
dividendos. Além disso, defendiam a intervenção do Estado em empresas estrangeiras que
estivessem ferindo os interesses nacionais. Argumentavam que os setores básicos da
economia, como indústria pesada e energia, deveriam ser desenvolvidos a partir de iniciativa
estatal e controlados pelo Estado. Só assim seria possível o desenvolvimento do país sem
perda de autonomia.
Ao contrário dos nacionalistas liberais, os econômicos não creditavam ao
desenvolvimento econômico a solução para superar os problemas socioeconômicos do país.
Para isso, militavam também pela reforma agrária, contra a participação indiscriminada do
capital estrangeiro na economia nacional e a presença de interesses imperialistas no
desenvolvimento nacional.131
Por essa posição, muitos nacionalistas de esquerda não aderiram ao
desenvolvimentismo de JK e tomaram atitude dúbia em relação ao presidente, nutrindo certo
entusiasmo pelo impulso econômico daquele período, de um lado, mas, ao mesmo tempo,
mostrando-se bastante desconfiados com os rumos que a administração de Juscelino assumia.
Vânia Losada destaca que foi na Revista Brasiliense onde os nacionalistas econômicos
conseguiram sua maior expressão. Ali, Chaves Neto esclareceria a confusão entre
nacionalismo e desenvolvimentismo, tão umbilicalmente ligados, sobretudo para os
nacionalistas liberais:
O elemento essencial para distinguir o nacionalismo do desenvolvimentismo era a orientação
econômica no sentido de permitir ou não a internacionalização econômica. Em resumo, ele
não considerava o desenvolvimentismo uma política nacionalista, pois estava favorecendo a
integração do Brasil no sistema imperialista.132
Anos mais tarde, já no governo de João Goulart, o nacionalismo ganharia um maior
conteúdo de massas, por conta das mobilizações a favor das reformas de base, nos anos 1960.
Só aí, afirma a autora, pode-se falar em nacionalismo e desenvolvimentismo como duas idéia
absolutamente distintas.133
Portanto, o nacionalismo de esquerda assumia uma posição mais cautelosa em relação
ao capital estrangeiro – aceitando somente os empréstimos feitos de governo para governo,
por exemplo – e sempre se manifestou mais criticamente em relação ao desenvolvimentismo.
131
Idem, p. 8.
132
Idem, p. 8.
133
Idem, p. 9.
67
Suas lutas sempre foram em prol de mudanças mais estruturais na sociedade, sendo a reforma
agrária uma das principais.
Nacionalismo e trabalhismo se misturaram no PTB dos anos 1950. A análise militante
e apaixonada de Paulo Schilling, em seu Como se coloca a direita no poder,134
dá destaque a
essa complexa relação e difere bastante da interpretação de Vânia Lousada.
No item específico sobre o nacionalismo varguista, Schilling indica o nascimento da
ideologia nacionalista na atuação dos homens de 1930 e destaca sua posterior transformação,
de movimento policlassista e agregador – assim como teria sido a própria revolução –, em
nacionalismo revolucionário e anti-imperialista.
A revolução de 30 teria sido a origem de nosso nacionalismo, já que ela, segundo o
autor, teria sido fundamental para revolução industrial brasileira. No entanto, longe de
concordar com as interpretações que atribuem àquele movimento um caráter eminentemente
burguês, Schilling acredita que a Revolução de 30 foi um movimento orientado por
latifundiários, com caráter popular, responsável pela criação e o fortalecimento de nossa
burguesia: “Não foi a burguesia nacional quem fez a Revolução de 30. Poder-se-ia dizer: foi
esta quem ‘fez’ a burguesia nacional”.135
Por não ter sido conduzida pela nossa burguesia nacional, e sim pelo Estado
paternalista,136
a Revolução de 30 teria facilitado o avanço do proletariado brasileiro, num
processo bem diferente do ocorrido na Europa. O que os trabalhadores europeus conseguiram
com anos de lutas, ao longo de um século ou mais, os trabalhadores brasileiros obtiveram em
pouquíssimos anos, graças à atuação deste “paternalismo estatal”. A consequência disso tudo,
segundo o autor, seria um processo de acumulação de capital não tão brutal como o inglês.
Além de um processo de acumulação de capital mais ameno, a falta de protagonismo
burguês no processo político da Revolução de 30 teria permitido que outras classes fossem
beneficiadas com os seus desdobramentos: as classes médias se tornariam mais atuantes, a
pequena-burguesia assumiria um papel destacado nas decisões políticas e a própria classe
trabalhadora teria boa parte de suas demandas atendidas.
134
SCHILLING, Paulo. Como se coloca a direita no poder. São Paulo: Global Editora, 1979.
135
SCHILLING. Paulo, op. cit., p. 24.
136
Paulo Schilling explica que, entre as expressões “paternalista” e “bonapartista”, prefere a última para definir o Estado
emergente da Revolução de 30. Segundo ele, a nossa burguesia mais forte estava associada ao mercado externo, deixando
pouco espaço para que se desenvolvesse uma burguesia nacional, com interesses direcionados para o mercado interno. Diante
dessa deficiência, caberia ao Estado dar-lhe o estímulo e as bases necessárias. Para o autor, a burguesia nacional só se
consolidou como classe no Brasil, então, pela ação estatal (p. 23). Sem capital necessário e caracterizada por uma
artificialidade como classe, à burguesia caberia apenas desenvolver papel importante nas indústrias leves, e, mesmo assim,
com o auxílio financeiro estatal. Só com a emergência de um Estado paternalista, assegurador das condições necessárias para
a burguesia atuar no processo de industrialização, é que teve início a nossa revolução industrial (p. 25).
68
Por necessitarem do apoio das classes trabalhadoras para aplicar seu ideário político –
dentre todos, o autor dá destaque ao nacionalismo econômico –, os revolucionários de 1930
atenderam muitas das demandas históricas dos trabalhadores. Desta forma, vinculava-se a
questão nacional à social, resultando num regime que, na avaliação de Paulo Schilling, teve
saldo positivo – excetuando-se a questão fundiária, que Getúlio Vargas deixou intocada.
Schilling destaca ainda que haveria dois tipos de nacionalismos: o das superpotências,
imperialista, racista e colonial; e o dos países subdesenvolvidos, que buscava a igualdade
racial, a superação do subdesenvolvimento e da miséria, e o estabelecimento de alguma
justiça social.
Num regime nacionalista, como Schilling pensa ser o inaugurado pela Revolução de
30, era natural que a principal classe beneficiada pelo movimento assumisse uma posição
também nacionalista. Assim foi com a burguesia nativa. No entanto, o nacionalismo burguês
jamais foi estrutural, sendo logo dissipado com o passar dos anos. Por sua efemeridade, o
autor recusa a expressão “nacionalismo burguês” para definir a ideologia nacionalista daquele
período; prefere que defini-lo como “nacionalismo de massas”:137
Os homens de 30 tentaram um tipo diferente de nacionalismo, um nacionalismo que fosse
aceito por todas as classes sociais, um nacionalismo policlassista. Um nacionalismo
“amálgama” que refletia, aliás, a política paternalista, “bonapartista” adotada pelo governo
revolucionário (que se havia instituído como árbitro, por cima das classes sociais).138
Segundo Schilling, esse nacionalismo funcionaria razoavelmente até o momento da
traição da burguesia nacional, em 1954. Na carta-testamento de Vargas, o nacionalismo não
mais se apresentava como uma ideologia de comunhão, perdendo sua feição bonapartista e
unificadora. A burguesia traidora agora representava o papel de testa-de-ferro dos monopólios
imperialistas – e era intensamente denunciada por Getúlio Vargas em sua mensagem de
morte. A partir de então, o nacionalismo ganhava contornos de uma ideologia revolucionária e
popular: era o nacionalismo popular-revolucionário.139
A adesão às diretrizes da carta-
testamento estaria, a partir daquele momento, intensamente associada aos interesses da nação,
sendo constantemente lembrada pelos líderes trabalhistas, particularmente, Leonel Brizola.
A união desse nacionalismo aos trabalhistas seria tão umbilical que João Goulart é
considerado por Schilling um traidor dos interesses nacionais, já que não teria resistido ao
137
Idem, p. 30.
138
Idem, p. 30.
139
Idem, p. 34.
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Laura vianna vasconcelos alberto pasqualini e o trabalhismo no brasil

  • 1. Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Ciências Sociais Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Laura Vianna Vasconcellos Alberto Pasqualini e o trabalhismo no Brasil Rio de Janeiro 2009
  • 2. Laura Vianna Vasconcellos Alberto Pasqualini e o trabalhismo no Brasil Dissertação apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-Graduação em História, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: História Política Orientador: Francisco Carlos Palomanes Martinho Rio de Janeiro 2009
  • 3. CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ/REDE SIRIUS/ CCS/A Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta dissertação. _____________________________________ ___________________________ Assinatura Data P284 Vasconcellos, Laura Vianna. Alberto Pasqualini e o trabalhismo no Brasil/ Laura Vianna Vasconcellos. – 2009. 120 f. Orientador: Francisco Carlos Palomanes Martinho. Dissertação (mestrado) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Bibliografia. 1. Pasqualini, Alberto, 1901-1960. 2. Trabalhismo – Brasil - História – Teses. 3. Partidos políticos - Brasil - Teses. I. Martinho, Francisco Carlos Palomanes. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. III. Título. CDU 329:331(81)
  • 4. Laura Vianna Vasconcellos Alberto Pasqualini e o trabalhismo no Brasil Dissertação apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-Graduação em História, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: História Política Aprovada em: 10 de setembro de 2009. Banca Examinadora: ____________________________________________ Francisco Carlos Palomanes Martinho Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UERJ ____________________________________________ Maria Letícia Corrêa Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UERJ ____________________________________________ Alexandre Fortes Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UFRRJ Rio de Janeiro 2009
  • 5. AGRADECIMENTOS Agradeço ao professor Francisco Palomanes, pela paciência, dedicação e carinho que teve comigo durante todo esse período difícil. Meu agradecimento especial à Maria Letícia, pelas críticas e dicas valiosas. Aos meus pais, pelo incentivo, afeto e compreensão. O gosto pela história devo a eles. A todo mundo lá de casa: tia Cris, Delfina, ao meu irmão, Chico, à D. Dulce. Aos amigos de Petrópolis e de outros cantos, companheiros na minha já tão madura e conhecida meninice: Ágata, Nafisa, Monalisa, Rodolfo, e Roberta. Às amigas da música, pelo universo novo: Sílvia, Mônica e Anna Teresa. Agradeço ao Sérgio, amigo de toda hora, e ao Sandor, pelo carinho. À Rosane, pela paciência, teimosia e profissionalismo. Meu agradecimento especial à minha irmã, Dora, companheirinha de sempre. A todos que passaram na minha vida durante esses dois anos. Setembro de 2009
  • 6. RESUMO VASCONCELLOS, Laura Vianna. Alberto Pasqualini e o trabalhismo no Brasil, 2009. 120f. Dissertação (Mestrado em História) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009. Este trabalho é uma análise do pensamento político de Alberto Pasqualini e de seu papel na elaboração e feitura do trabalhismo no Brasil. Além de suas principais ideias, foram analisadas também o papel de Pasqualini no PTB, as relações políticas com Getúlio Vargas e com o getulismo. É um estudo sobre Alberto Pasqualini e sua inserção no trabalhismo, compreendido aqui como fenômeno complexo e de longa duração. Palavras-chave: Pasqualini. Trabalhismo. Getulismo.
  • 7. ABSTRACT The basic intent of this work was to analyse the political concept of Alberto Pasqualini and his role in the foundation and development of laborism in Brazil, his fundamental concepts, his importance as member Brazilian Labour Party (Partido Trabalhista Brasileiro – PTB) and his political connections with getulism. This analysis includes also a research on Alberto Pasqualini and his insertion in labourism as a complex and long lasting phenomenon. Keywords: Pasqualini. Labourism. Getulism
  • 8. SUMÁRIO INTRODUÇÃO....................................................................................................8 1 A TRAJETÓRIA POLÍTICA DE ALBERTO PASQUIALINI: ENTRE A MEMÓRIA E OS JORNAIS...........................................................25 1.2 O trabalhismo nas páginas dos jornais: o Diário de Notícias e o Correio do Povo..................................................................................................................40 2 O PENSADOR E O HOMEM POLÍTICO: PRINCIPAIS IDÉIAS E ATUAÇÃO PARLAMENTAR..........................................................................53 2.1 Socialismo, capitalismo e trabalhismo...............................................................54 2.2 Sociedade e Estado..............................................................................................56 2.3 Partido e mentalidade social..............................................................................60 2.4 Personalismo político..........................................................................................61 2.5 Ditadura...............................................................................................................63 2.6 Nacionalismo.......................................................................................................64 2.7 Os debates sobre o Petróleo e a criação da Petrobrás.....................................73 2.8 O Plano Lafer .....................................................................................................77 3 OS TRABALHISMOS GETULISTA E PASQUALINISTA NAS INTERPRETAÇÕES HISTORIOGRÁFICAS................................................80 4 ALBERTO PASQUALINI E O TRABALHISMO..........................................88 4.1 O positivismo em longa duração - as origens do trabalhismo gaúcho (Ou as raízes do trabalhismo pasqualinista).....................................................88 4.2 A componente getulista do pensamento político de Alberto Pasqualini...........................................................................................................100 4.3 Pós escrito...........................................................................................................111 5 CONCLUSÃO...................................................................................................116 REFERÊNCIAS ...............................................................................................120
  • 9. 8 INTRODUÇÃO O TRABALHISMO NA HISTORIOGRAFIA Como a pesquisa se dedica ao trabalhismo de Alberto Pasqualini, sobre suas principais influências e contribuições, é necessário que se faça uma retrospectiva histórica das interpretações que analisam não só o trabalhismo, mas também o período de 1945-1964. As interpretações se polarizam entre entendê-lo inserido no ciclo populista ou simplesmente como trabalhista. A produção acerca do assunto é bem vasta, tendo sido iniciada ainda na década de 1950, com o grupo Itatiaia. Mas, por razões objetivas – sendo o limite de páginas uma delas –, e por motivos de posicionamento, foram escolhidas as obras produzidas mais recentemente, todas originárias de fins da década de 1980 pra cá. Explica-se: por ser o conceito de trabalhismo essencial na pesquisa, consideramos fazer mais sentido revisitar autores que discutem o trabalhismo em si do que relembrar o já clássico debate entre populismo versus trabalhismo. Não que ele deva ser desdenhado, esquecido no tempo, mas a curiosidade, aqui, se direciona mais à definição do trabalhismo na historiografia, já que consideramos que as idéias de Pasqualini podem lhe ser uma contribuição diferente, ainda que muito pouco estudada. A referência paradigmática inicial para a produção sobre o trabalhismo é o livro A invenção do trabalhismo,1 de Angela de Castro Gomes. Com essa obra, Angela Gomes deu o ponta-pé inicial para uma série de críticas e questões sobre um velho e importante conceito das ciências sociais do Brasil, o populismo. É importante ressaltar que o livro não rompe com todos os preceitos deste conceito, mas, com sua abordagem inovadora sobre o tema, a obra abriu brechas para que se iniciasse uma série de críticas mais contundentes a esse conceito. Portanto, depois desta obra, – houve algumas produções antes, mas seu livro permanece como referência básica para o assunto – começaram a ser sistematizadas interpretações que, inspiradas não somente nas abordagens culturais e antropológicas e pelas inovações proporcionadas pela renovação da História Política, mas também pelas idéias de 1 GOMES, Angela de Castro Gomes. A invenção do trabalhismo. 2. ed. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994.
  • 10. 9 Thompson, de Roger Chartier, e de Carlos Guinsburg,2 acabaram por questionar, algumas a até repudiar, o uso da palavra “populismo” como conceito. Os alvos principais eram aquelas interpretações que, grosso modo, consideravam o populismo o herdeiro do “clientelismo” da Primeira República, ou seja, como responsável pela perpetuação de uma relação desigual entre Estado e sociedade. Eram interpretações que ressaltavam a cooptação da classe trabalhadora em relação ao Estado, submissão esta proporcionada seja pela propaganda política do Estado, pela sua política repressiva ou mesmo pela redenção interessada das massas populares aos agrados do ditador Getúlio Vargas. A chamada teoria da modernização dava as bases para essas interpretações. Segundo essa teoria, a classe trabalhadora, por ser originária do meio rural, era ingênua, incapaz de estruturar laços sólidos de solidariedade e de tradição de luta. Era uma população sem consciência de classe, submissa e manipulada facilmente pelo braço forte do Estado.3 Conceitos e expressões como “Estado de compromisso”, “bloco de poder”, “cooptação”, “manipulação”, dão a voga das interpretações mais clássicas sobre o ciclo populista, sobre a relação entre Estado e sociedade do período entre 1945 e 1964. Excetuando-se Francisco Weffort que, mesmo sublinhando os aspectos autoritários, manipuladores e fascistas do Estado populista, admitiu algum grau de satisfação e de expressão política para as massas populares daquela época, os demais estudiosos do período procuravam ressaltar apenas o aspecto manipulador do Estado. Foi Angela de Castro Gomes quem sistematizou, ainda na década de 1980, a idéia de que o que unia o Estado desse período e a sociedade, as massas populares e trabalhadoras em especial, era um pacto político entre esses dois atores. Para ela, esse pacto traduzia algum nível de reciprocidade, de troca entre esses dois pólos, ainda que de maneira desproporcional. Ao criticar as bases teóricas e conceituais do populismo, a autora propõe, em seu livro, a utilização de um outro conceito para compreender a relação entre Estado e sociedade do período getulista: o trabalhismo. Adepto desta mesma revisão, Jorge Ferreira é o segundo autor analisado neste pequeno balanço bibliográfico. Com uma abordagem diferente sobre o assunto, o autor é, hoje, um dos principais questionadores do conceito de populismo. Estudioso do trabalhismo, Jorge Ferreira é por muitos criticados por levar os argumentos de Angela de Castro Gomes ao extremo, supervalorizando a idéia de pacto e de identificação entre massas populares e Estado. 2 Sobre esse assunto ver o artigo de Jorge Ferreira em seu livro O populismo e sua história: debate e crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. 3 Idem.
  • 11. 10 Outro autor importante, mas pouco citado, é Miguel Bodea. Mineiro de nascimento, mas gaúcho como historiador, seu trabalho apresenta uma abordagem diferenciada sobre o tema. Bodea é o único, dentre os autores citados, que estuda o trabalhismo como um fenômeno anterior à década de 1930. Seus esforços tentam dar conta do que foi a origem histórica trabalhista, destinando-se, em função disso, a analisar especificamente o caso do Rio Grande do Sul. Ele é também crítico ao conceito de populismo. O quarto e último autor analisado é Marcelo Badaró. Pesquisador dos movimentos grevistas e sindicais do Rio de Janeiro, Badaró é crítico das formulações estruturais do populismo, mas é também bastante cauteloso com as interpretações que defendem o uso do conceito de trabalhismo para entender o período. O autor considera e conclui que as interpretações de Angela de Castro Gomes e de Jorge Ferreira acabaram por idealizar o Estado trabalhista. Para ele, se antes, nas interpretações que se utilizavam do conceito de populismo, o Estado era demonizado e as classes trabalhadoras vitimadas e manipuladas, agora, numa perspectiva inversa, mas tão radical quanto, o Estado e os líderes do período seriam superestimados. O autor acredita que a sua visão é a mais critica ao tema, uma vez que questiona as noções estruturais do populismo, mas, nem por isso, é provocadora de um efeito inverso; o da ideologização do Estado e das lideranças do período. * * * Iniciemos com A invenção do trabalhismo, de Angela de Castro Gomes. O livro é a tese de doutoramento da autora, apresentada ao Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ) em junho de 1987. Ele é dividido em duas partes; a primeira, intitulada “A hora e a vez dos trabalhadores”, abrange os anos que vão desde a Proclamação da República, em 1889, até 1934, ano em que Agamenon Magalhães foi designado para ocupar o Ministério do Trabalho Indústria e Comércio. Nela, a autora aborda a participação e ação política dos trabalhadores neste período. Segundo Angela de Castro, esta seria a parte em que a voz estaria com os trabalhadores, sendo eles os responsáveis pela formulação de suas demandas, reagindo e desafiando ao contexto da época. A outra metade do livro, intitulada “Trabalhadores do Brasil”, é dedicada ao período 1942-45. Segundo a autora, a partir do ano de 1942, ano em que Alexandre Marcondes Filho assumiu o Ministério do Trabalho Indústria e Comércio, teria se iniciado um período de transformações profundas, sobretudo no que diz respeito à participação política dos
  • 12. 11 trabalhadores e a sua relação com o Estado.4 Angela de Castro Gomes acredita que, a partir desta data, teria havido um esforço por parte dos homens do governo5 , sobretudo por parte de Marcondes Filho, para a elaboração de uma nova ideologia política; o trabalhismo. É nesse complexo processo de “invenção” que a autora se detém. Ela faz isso através da análise minuciosa e eficaz de fontes históricas do período, como a revista Cultura Política, onde os mais importantes ideólogos do regime escreveram, e do programa de rádio “A Hora do Brasil”, dando atenção especial aos discursos proferidos pelo próprio ministro Marcondes Filho. Angela de Castro Gomes inicia sua argumentação questionando a lógica da interpretação que até então explicava a natureza do pacto político do Estado Novo: por meio de legislações sociais que regulamentavam as leis de mercado de trabalho o Estado teria conseguido a adesão das massas trabalhadoras. Ou seja, o pacto político era explicado basicamente pela lógica material; os ganhos obtidos com as leis sociais eram trocados por obediência política. A autora complexifica essa explicação afirmando que, na realidade, tal mecanismo só teria começado a surtir efeitos no pós-1940, quando associado a esta lógica material – essencial para a construção do pacto social, ela não nega – elaborou-se um discurso trabalhista que resgatava o discurso operário da Primeira República, porém, de uma forma repaginada. Para a autora, portanto, não haveria mera submissão e perda de identidade por parte das massas trabalhadoras, mas antes elas faziam parte de um pacto político que combinava ganhos materiais com ganhos simbólicos da reciprocidade; ou seja, para ela, mais do que a legislação social, era a dimensão simbólica que garantia a unidade e o funcionamento do pacto. É à elaboração desse discurso simbólico – o trabalhismo – que a autora dá atenção. Com as pressões pela democratização, o Estado varguista deu início ao processo de transição, tentando manter as orientações e bases de seu governo. Para tanto, investiu em três frentes; na montagem de uma complexa e bem-sucedida política de propaganda; no incentivo à sindicalização, a fim de estreitar e manter certo controle sobre o movimento operário; e na formação de um novo partido, o PTB. Desta maneira, o governo pretendia obter maior base política junto às classes populares, essencial para um processo de transição “seguro”. No 4 A relação entre estes dois atores se modificou estruturalmente a partir deste período. Se antes havia mecanismos de reivindicação autônomos mediando a relação entre essas duas esferas, agora, a partir desta data, graças à montagem de maquinário institucional e propagandístico, o Estado passava a se relacionar com a sociedade sem intermediários; Getúlio, segundo o mito criado em torno dele, auscultava diretamente os anseios das massas populares e os sindicatos passariam a atuar atrelados ao Estado e com o perfil coorporativo. 5 A autora faz referência ao período de 1932 a 1937 como “O Estado Novo em primeiro movimento”. São desse período as primeiras leis de regulamentação do trabalho.
  • 13. 12 livro, cada uma destas esferas de atuação é analisada, sendo a cada uma delas dedicada um capítulo especial. A autora acredita que, com esse esforço e objetivo, o Estado Novo teria montado as bases de uma ideologia política não só capaz de manter a ordem, mas também responsável por um sólido pacto político. Angela de Castro Gomes explica a natureza desse pacto político pela lógica da dádiva, de Marcel Mauss. Segundo a autora, o sentimento de “estar em falta” dos trabalhadores em relação ao Estado e a Getúlio Vargas, apresentado como doador dos benefícios sociais, teria gerado um elo entre esses dois atores, o Estado e a sociedade. Para ela, “a lógica da [...] dádiva pode ser considerada como um mecanismo criador de hierarquias sociais, ou seja, criador de novas lideranças porque criador de seus seguidores e da lealdade que une esses dois termos”.6 Em um item intitulado “dar, receber e retribuir – a política brasileira fora do mercado”, a autora explica com mais detalhes o funcionamento da lógica da dádiva. Segundo ela, haveria uma dupla obrigação; a responsabilidade do Estado de doar a legislação social, assegurando, assim, o bem–comum, e a obrigação das massas trabalhadoras em receber tal dádiva, afinal, era o sentimento de “estar em falta”, para a autora, que selava o pacto político. Para ela, “toda a dádiva só se cumpre com a aceitação do que é dado. Sua lógica é bilateral, e assim como aquele que dá o faz por “necessidade”, aquele que recebe precisa “aceitar” o benefício. A recusa de uma dádiva é o descumprimento de uma obrigação social”. E assim o é, ainda segundo Angela de Castro Gomes, porque, ao fazer isso – a recusa de uma dádiva –, o que sucede é a ruptura de uma articulação mutuamente definidora. Se receber benefícios é um direito, é também um dever, segundo essa lógica. Assim, caberia ao Estado criar a obrigação de receber, mais do que somente doar. E ele o fez quando identificou o exercício da cidadania ao trabalhador. Para Angela de Castro Gomes, ao contrário de significar uma submissão, esta relação entre Estado e sociedade, mesmo que desigual, teria algum nível de reciprocidade; enquanto o Estado se beneficiava do sentimento de retribuição gerado pela elaboração e efetivação dos benefícios sociais, as massas trabalhadoras, por sua vez, sentiam-se, de alguma forma, identificadas e realizadas com os valores e o discurso do Estado varguista, já que muitas deles eram demandas de lutas antigas. O empenho do governo varguista na elaboração de uma ideologia política fora tão bem-sucedido, segundo a autora, que se teria inaugurado uma nova cultura política. Angela de 6 GOMES, Angela de Castro Gomes, op.cit.
  • 14. 13 Castro Gomes mostra, ao longo de boa parte do livro, como o Estado varguista, por meio de programas de rádio, de comemorações especiais – como o aniversário de Getúlio Vargas e o próprio dia da Revolução de 1930 –, por meio da repressão e censura com o DIP, e, sobretudo, pela ressignificação de antigos conceitos, conseguiu estabelecer um elo de identificação entre as massas trabalhadoras e o Estado. Ao redefinir conceitos como liberdade, democracia, ao criticar o liberalismo atomizador da Primeira República, e ao definir Getúlio Vargas como o chefe-guia, o pai com capacidade de antever os desejos da sociedade e único capaz de entender os anseios do povo, foram criando-se as bases de uma ideologia política que ainda hoje deita raízes em nossa sociedade.7 O que Angela de Castro Gomes parece ressaltar em seu livro é a complexa montagem desta ideologia política, o trabalhismo, que mesclava antigos anseios da classe trabalhadora e atribuía ao governo a sua capacidade de realização e iniciativa; ao chefe de Estado, pelos seus atributos pessoais de antevisão e generosidade, a sua responsabilidade. Um discurso que possuía bases sociais sólidas porque resgatava antigas demandas sociais e reinterpretava a história do Brasil de modo a manter o projeto político do Estado Novo. Ou seja, uma ideologia que, apesar de autoritária, possuía legitimidade na cultura política8 da classe trabalhadora, satisfazendo algumas de suas reivindicações. A autora, com esta tese, confrontou a interpretação que analisava a relação entre o Estado e a sociedade desse período com um único sentido, a do Estado manipulando a classe trabalhadora. Fez isso, no entanto, sem esquecer o aspecto autoritário de todo esse processo, afinal, deixa claro que toda a invenção e formulação do trabalhismo foram feitas a partir da iniciativa do Estado, seja elaborando órgãos, departamentos e partidos, seja através de intensa propaganda política. Portanto, apesar de dar destaque à lógica material da relação, segundo ela, fundamental para o pacto político, a autora também chamou a atenção para a sua dimensão simbólica, responsável, esta sim, pela solidificação do pacto político trabalhista. Por não concordar com as interpretações que viam na relação entre Estado e sociedade do período apenas o seu aspecto manipulador e de cooptação, estruturado apenas pela lógica material e 7 A autora demonstra também que, ao redefinir tais conceitos, o que se estava formulando era uma nova interpretação de nossa própria história nacional. O exemplo máximo desta bem-sucedida elaboração é a referencia da Revolução de 1930 como marco histórico de um regime político novo, distante da República Velha. 8 Angela de Castro Gomes, assim como Pierre Rosanvallon, reforça a perspectiva da história política que avalia o político como um espaço de negociação, de auto-representação das relações sociais de um determinado período. Para ambos, a política deve ser entendida em seu sentido mais amplo – a cultura política –, e compreendida como historicamente construída, como produto de uma dada época histórica; de seus valores culturais e políticos. GOMES, Angela de Castro Gomes. “Política: história, ciência, cultura etc”. Estudos Históricos, n. 17. Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas, 1996.
  • 15. 14 pela repressão do Estado, a autora acaba por rejeitar o conceito de populismo, adotando, em seu lugar, mas com outras bases, o de trabalhismo. Angela de Castro Gomes reiterou sua interpretação mais recentemente no livro de Jorge Ferreira, O populismo e sua história. No artigo que escreveu para a coletânea, “O populismo e as ciências sociais no Brasil”, a autora se posiciona mais nitidamente ao reafirmar que, ao escrever A invenção do Trabalhismo, na década de 1980, sua intenção foi de rejeitar não apenas a palavra “populismo”, mas o seu conteúdo básico, qual seja; uma classe trabalhadora e passiva e sem consciência, sendo manipulada por políticos inescrupulosos. Assim, a autora refuta o conceito como explicação para as relações entre massa trabalhadora e Estado. [...] o que eu pretendia demarcar era justamente que não aceitava esta concepção, nem de classe trabalhadora, nem de pacto político. O uso da “palavra” populismo, assim, me pareceu algo extremamente danoso para enunciar o que eu desejava defender, e a “palavra” trabalhismo, cuja invenção eu acompanhava em minha análise histórica, surgia como muito mais adequada para a proposta da então tese.9 E explica melhor o que entende por trabalhismo também, quando afirma que este seria [...] como uma categoria, passando a se referir a um certo conjunto de idéias e práticas políticas, partidárias e sindicais, o que poderia ser identificado para ara além de seu contexto de origem histórica: o Estado Novo. Como todas as “palavras”, trabalhismo não estava desprovida de significados sociais, estando ligada a alguns partidos e lideranças, especialmente e não casualmente, do pós-45.10 Portanto, na interpretação da autora, o trabalhismo seria uma ideologia política construída em um período específico, por iniciativa dos homens do governo, e que, de uma forma ou de outra, representava as aspirações e desejos da classe trabalhadora. Esta ideologia política, segundo ela, faria parte de uma cultura política que não se restringiu somente ao período do Estado Novo, mas a toda uma época. É com o auxílio da metodologia adotada por Pierre Rosanvallon, em seu “Por uma história conceitual do político”, que o trabalhismo de Angela Gomes pode ser mais bem anunciado. Neste artigo, o autor faz críticas à história das idéias em sua concepção clássica, e defende a formação progressiva de uma história conceitual do político. Com essa abordagem, 9 Populismo e sua história, p. 55. 10 Idem.
  • 16. 15 o político seria tratado não como “uma instância ou um domínio da realidade”, mas como um lugar em que “se articulam o social e sua representação, onde a experiência coletiva se enraíza e se reflete ao mesmo tempo”.11 Ou seja, nessa perspectiva, as representações seriam entendidas não como algo externo aos atores políticos, mas como um trabalho permanente de reflexão da sociedade sobre ela mesma. O político, para ele, deve ser visto como o espaço da articulação do social e de sua representação, por isso a preocupação de se incorporar como objeto de estudo os elementos que formam o que se poderia chamar de cultura política. O historiador, para Rosanvallon, deve analisar o objeto de estudo não como algo externo ao seu tempo, mas, ao contrário, como produto dele. Ou seja, acreditamos que é com essa perspectiva que o trabalhismo foi considerado pela autora; como expressão de uma época, por isso legítima. Com o mesmo esforço de Angela de Castro Gomes, qual seja, o de repudiar o conceito de populismo, Jorge Ferreira escreve boa parte de sua obra. No entanto, se a intenção dos dois estudiosos é a mesma, a abordagem e o foco de análise de cada um são bastantes distintos um do outro. Enquanto Angela de Castro Gomes analisa a relação entre o Estado e a sociedade a partir do foco do Estado – a partir de fontes oficiais e estatais, como programas de rádio, discursos ministeriais e revistas –, Jorge Ferreira dá mais atenção à esfera da sociedade – suas fontes são, essencialmente, cartas de populares e jornais da época. O autor preocupa-se mais com a recepção e participação popular no pacto, por isso em A invenção do trabalhismo o conceito norteador da obra é a noção de cultura política, enquanto nos trabalhos de Jorge Ferreira o que se sobressai e a noção de cultura política popular.12 Mudança de perspectiva muito importante e pouco comentada. Apesar de fazer menção ao caráter autoritário do governo varguista, o autor se dedica mais a demonstrar o grau de reelaboração exercido pelas classes populares e a sua relativa autonomia frente ao discurso varguista.13 Boa parte de sua produção é destinada a comprovar o caráter de apoio popular ao regime vargista; é com essa perspectiva que o autor analisa o 11 ROSANVALLON, Pierre. “Por uma história conceitual do político”. Revista Brasileira de História, n. 30. São Paulo, 1995, p. 12. 12 Este assunto está na introdução de seu livro, Getulismo, PTB, e cultura política popular1945-1964. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. O autor fala em recuperar, ainda que parcialmente, as vivências e experiências políticas dos trabalhadores, populares e eleitores do PTB; em compreender as atitudes, as motivações e a maneira como os quadros do PTB, entre 1945-1964, deram significados e interpretaram a realidade social em que viveram. Sabendo da dificuldade de recuperar a atuação política desses populares, já que faltam registros concretos, o autor se utiliza do conceito de cultura, entendendo-o como conjunto de atitudes, representações sociais e códigos de comportamento que forma as crenças, idéias e valores reconhecidos por um certo grupo social. Ao analisar as manifestações políticas das camadas populares adeptas do trabalhismo com o conceito de cultura, o autor acredita estar reconstruindo um aparato simbólico que, de alguma maneira, teve existência real para os trabalhadores; é como se a cultura, sob este ponto de vista, organizasse a realidade na consciência social dessas pessoas. O que se sobressai, portanto, é a preocupação do autor em entender de que maneira o trabalhismo foi interpretado e percebido por essas camadas populares, p 14. 13 O autor faz isso em seu livro Trabalhadores do Brasil.
  • 17. 16 queremismo – segundo ele, um movimento popular tão importante quanto a Aliança Nacional Libertadora e a campanha pelas “diretas já”. A mesma abordagem se faz presente em sua análise do período ministerial de João Goulart. O título do capítulo a ele dedicado já o expressa bem: “O ministro que conversava: João Goulart no ministério”,14 demonstrando o caráter dialógico do trabalhismo, sobretudo a partir desta fase. Sobre o conceito de populismo em si, a produção mais importante é o artigo “O nome e a coisa: o populismo na política brasileira”, no livro, já citado aqui, O populismo e sua história. Nele, Jorge Ferreira faz uma retrospectiva histórica do conceito de populismo no Brasil, dividindo a sua elaboração em três gerações; a primeira, dos anos 1950-1960, que pode ser simbolizada pelo grupo de Itatiaia, marcadamente influenciada pela teoria da modernização; a segunda, dos anos 1970/80, bastante tocada por um certo tipo de marxismo e pelo conceito de hegemonia gramsciano, – segundo ele, esta seria a mais radical de todas as gerações, exaltando ao máximo o binômio repressão-propaganda do Estado Novo; e a terceira e última, a qual o autor se filia, seria a dos anos 1980/1990, já de crítica e relativização do conceito. Ao contrário de Angela de Castro Gomes, Jorge Ferreira é bem mais explícito em seu repúdio ao populismo como conceito explicativo. Quando o autor afirma não compreender a expressão (populismo) “como um fenômeno que tenha regido as relações entre Estado e sociedade durante o período de 1930 a 1964 ou como uma característica peculiar da política brasileira naquela temporalidade”, deixa isso bem claro. E o evidencia ainda mais quando afirma, poucas frases depois, que “o populismo foi uma categoria que, ao longo do tempo, foi imaginada, e, portanto construída, para explicar essa mesma política”.15 Ou seja, populismo, para ele, seria uma categoria forjada, com um objetivo pré-determinado e um conteúdo de pouca eficiência teórica. O autor não nega nem subestima o caráter repressivo e policial do governo varguista, mas acredita que as interpretações tendem a supervalorizá-lo de tal modo a retirar qualquer autonomia de consciência e de ação aos trabalhadores. Assim, Jorge Ferreira não concorda, por exemplo, que o “mito” Vargas tenha sido resultado somente de uma campanha bem- sucedida de propaganda política e ideológica, mas sim conseqüência de alguns benefícios reais que esses trabalhadores conquistaram ao longo de seu regime. Ele argumenta não haver propaganda política e ideológica, por mais elaborada que seja, capaz de sustentar, durantes tantos anos, a mesma autoridade política no poder. Assim, para ele, “o mito Vargas 14 FERREIRA, Jorge. O imaginário trabalhista ..., op.cit. 15 FERREIRA, Jorge. O populismo e sua história, op.cit., p. 64.
  • 18. 17 expressava um conjunto de experiências que, longe de se basear em promessas irrealizáveis, fundamentadas tão somente em imagens e discursos vazios, alterou a vida dos trabalhadores”.16 O autor rechaça ainda as opiniões que, inspiradas em Focault ou nos pensadores da Escola de Frankfurt, como Habermas, explicam a legitimidade do regime varguista tão somente pelas políticas de controle social operadas por aquele governo. Segundo estas interpretações, o Estado teria controlado e esmiuçado todos os aspectos da vida do trabalhador, seu lazer, seus hábitos, a tal ponto que teria retirado qualquer indício de autonomia desses homens. De acordo com Jorge Ferreira, esta seria uma interpretação totalizadora e vitimizadora da sociedade, uma vez que retiraria dela qualquer voz ativa, seja de participação ou apoio ao regime. Ferreira ressalta ainda as contribuições da História Cultural para o tema, sobretudo de autores com Guinzburg, Chartier e Peter Burke. O autor utiliza-se bastante das diretrizes teóricas de cada um deles em sua produção. Os três, cada um a seu modo, deram contribuições importantes para a relativização da formulação, antes amplamente aceita, de que as classes dominantes teriam o monopólio exclusivo da produção das idéias. A partir da década de 1980, por influência desse trio, – não só deles, mas principalmente – passou-se a adotar a idéia de que as idéias circulam, que os trabalhadores não são somente receptivos, mas produtores eles mesmos de sua própria cultura. E que, longe de receberem passivamente as idéias, eles as reinterpretariam com base em sua própria cultura, transformando o discurso original em um outro que é imprevisível. É o que Jorge Ferreira tentou demonstrar em seu outro livro, Trabalhadores do Brasil17 . Por meio de cartas escritas por “pessoas comuns”, o autor argumenta que o discurso varguista foi utilizado segundo os interesses dessas pessoas e que, muitas vezes, eles extrapolavam os limites pré-estabelecidos pelo próprio governo, transformando-se em algo inesperado. Para o autor, portanto, “os mecanismos de ‘controle operário’ foram implementados, mas sua atuação e eficácia eram limitados pela própria cultura da classe trabalhadora”.18 Sobre a relação entre o Estado e a sociedade, em particular as massas trabalhadoras, o autor é bem enfático; ele concorda com a opinião de Angela de Castro Gomes sobre a maior intervenção estatal a partir do ano de 1942, por conta da necessidade de abertura do regime e da manutenção do projeto varguista, e que tal investimento teria sido fundamental para 16 Idem, p. 88. 17 FERREIRA, Jorge. Trabalhadores do Brasil: o imaginário popular. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getulio Vargas, 1997. 18 O populismo e sua história, op.cit., p. 90.
  • 19. 18 configurar a identidade da classe trabalhadora brasileira19 . Ainda defende que a relação entre os trabalhadores e o Estado do período não pode ser considerada como de mão única, assim como o fez Angela de Castro Gomes, porém a ênfase com que o autor argumenta aparece com maior dosagem de certeza. Jorge Ferreira acredita que havia, entre as duas partes, Estado e classe trabalhadora, interesses comuns. Além disso, no trabalhismo, ainda segundo ele, haveria idéias, crenças e valores que já vinham sendo formuladas e reivindicadas desde antes de 1930, e que, por esta razão, ele teria expressado “uma consciência de classe, legítima porque histórica”.20 Ou seja, para o autor, o projeto trabalhista, para ser aceito e compreendido, precisava ter bases e sustentação no patrimônio simbólico e na cultura popular, caso contrário não se manteria, nem serviria como orientação ideológica para um dos mais bem-sucedidos partidos de nossa história, o PTB – basta lembrar que ele foi o partido que mais cresceu no período 1945-1964. Considerar o trabalhismo como uma ideologia imposta por parte do Estado, para Ferreira, é ter uma opinião elitista, já que isto seria uma maneira de se analisar a relação Estado-sociedade a partir de cima, dando ao aparato estatal, ou mesmo às classes dominantes, um poder demasiadamente grande. Jorge Ferreira ainda faz a genealogia da palavra populismo, afirmando que, inicialmente sinônimo de “popular”, este era um adjetivo até positivo, uma qualidade. Depois, lentamente foi sendo adotada pela direita como meio de desqualificar o apoio popular a Vargas e a política trabalhista, sendo logo consagrado pela academia e por jornalistas neste mau sentido. O autor ainda destaca que, para ele, a palavra populismo acabou por ser utilizada como um indício de estranhamento, revelando que, quando utilizada para se referir a alguém ou a alguma tendência política, o que se está por trás dela é a referência e a identificação do Outro. De acordo com ele, o populismo é uma maneira de nos relacionarmos com alguém ou algo que nos incomoda, de maneira a desqualificá-lo; populista, para ele, é o desafeto, o adversário. Portanto, para o autor, a palavra “populismo” nasceu situada politicamente, sendo formulada pela direita como meio de tentar explicar, de maneira pejorativa, o que não entendia. 19 Esta é uma referência à Invenção do trabalhismo. Segundo ela, a partir desta data teria havido um maior empenho por parte do governo, sobretudo pelo ministro do trabalho, Marcondes Filho, pela sindicalização dos trabalhadores. O modelo de sindicato defendido era o corporativo. 20 O populismo e sua história, op. cit., p. 103.
  • 20. 19 Um outro trabalho igualmente interessante, porém com bem menor divulgação, foi o Trabalhismo e populismo no Rio Grande do Sul, de Miguel Bodea.21 Nele, o autor rebate um dos pilares de sustentação da teoria do populismo; a idéia de que os líderes “populistas”, em especial Getúlio Vargas, teriam ascendido politicamente acima de suas agremiações partidárias. Ou seja, que Getúlio Vargas, assim como Leonel Brizola e João Goulart, nutriria um verdadeiro desprezo por esse tipo de representação, utilizando-as somente como trampolim político. O autor demonstra, por meio de um estudo minucioso da formação do PTB no Rio Grande do Sul, que tal idéia não procede; Getúlio Vargas e os demais “populistas” teriam, segundo ele, firmando suas lideranças em uma estrutura política regional e somente depois se projetaram como figuras nacionais. Ou seja, segundo ele, suas trajetórias políticas teriam começado de baixo, na disputa de pleitos e debates, para depois somente se destacarem como líderes políticos nacionalmente reconhecidos. Com isso, Bodea também repudia a idéia consagrada de que a legitimidade desses “populistas” estaria fundamentada somente em seu carisma. Para ele, mesmo que carismáticos, esses políticos só se consagraram como líderes das massas, como representantes populares, depois de uma carreira política já encaminhada. Ou seja, segundo o autor, o carisma foi uma conseqüência da vida partidária e do sucesso político de cada um e não o contrário; o sucesso político como resultado de seu carisma pessoal. Fazendo a crítica da crítica, sem, contudo, fazer uma apologia dos alicerces da teoria populista, está Marcelo Badaró. O autor é questionador desses dois pólos de interpretação, dos adeptos do conceito de populista e dos que militam pelo trabalhismo, embora considere com estima o esforço revisionista de Angela de Castro Gomes e Jorge Ferreira. Assim como Ferreira e Angela de Castro Gomes, Badaró revisita antigas certezas, tentando desconstruí-las. O autor destaca que, ao contrário do que os teóricos do populismo pensavam, as greves e sindicatos do “período populista” possuíam, sim, certa autonomia em suas ações, apesar da forte presença estatal. Segundo Marcelo Badaró Mattos, havia sindicatos que conseguiam escapar das determinações e limites impostos pelo sindicalismo oficial, – seriam exemplares os casos das representações sindicais nas empresas e aqueles estruturados de acordo com o local de trabalho. Do mesmo modo, as greves, antes tidas como tuteladas 21 BODEA, Miguel. Trabalhismo e populismo no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1992. Este livro é um dos mais importantes na minha pesquisa, sobre o trabalhismo de Alberto Pasqualini. Nele, o autor analisa com detalhes o trabalhismo gaúcho, esmiuçando jornais de Porto Alegre, e fazendo entrevistas com personalidades importantes do PTB do Rio Grande do Sul.
  • 21. 20 pelo estado e por uma liderança sem pouca relação com as bases, devem ser consideradas como importantes manifestações dos trabalhadores do período. Da análise que fez do sindicalismo carioca, o autor identifica muitos casos de greves participativas e combativas, organizadas a partir do local de trabalho e com integração entre demandas políticas gerais, mas também com reivindicações econômicas particulares. Apesar de fazer revisões e questionar as bases da interpretação do “sindicalismo populista”, Badaró não deixa de elaborar críticas aos dois principais autores questionadores do conceito de populismo. Suas críticas dirigem-se mais a Jorge Ferreira, mas não isentam, contudo, sua antiga orientadora, Angela de Castro Gomes. Em relação a Angela, as críticas não se direcionam tanto à Invenção do trabalhismo, mas às mudanças sofridas na argumentação da autora. Segundo Badaró, no artigo que Angela de Castro Gomes fez sobre a análise histórica do populismo, intitulado “O populismo e as ciências sociais no Brasil”,22 existe uma radicalização perigosa nas suas colocações. Para o autor, se antes, em A invenção do trabalhismo, as críticas ao conceito de populismo eram veladas e indiretas, – de fato, a autora não formula abertamente essa crítica em momento algum23 –, depois, no seu artigo, Angela Gomes pecaria pelo exagero ao substituir a idéia de “pacto trabalhista” por “trabalhismo”. Esta substituição de populismo por trabalhismo, e não mais por pacto trabalhista, expressaria, na verdade, ainda segundo Badaró, a troca de um reducionismo por outro; “sai a classe trabalhadora inconsciente e manipulada pelo Estado representado nas lideranças carismáticas, para entrarem em cena trabalhadores conscientes e satisfeitos com a política trabalhista empreendida por políticos efetivamente populares e de esquerda”.24 O mesmo se aplicaria a Jorge Ferreira. Para Badaró, o autor vai adiante nesse reducionismo e isso se expressaria pela omissão da idéia de pacto entre atores desiguais, argumento presente e central em A invenção do trabalhismo. Na opinião de Marcelo Badaró, Jorge Ferreira não só ignora a noção de pacto, como considera esta uma relação “em que as partes, Estado e classe trabalhadora, identificaram interesses comuns” (trecho citado pelo próprio Badaró),25 transmitindo, em sua opinião, a idéia de relação entre iguais. O autor ainda cometeria um outro excesso, segundo Marcelo Badaró; a tomada do trabalhismo não mais como pacto político ou como categoria explicativa crítica à noção de 22 FERREIRA, Jorge. O populismo e sua história, op cit. 23 Ela defende a necessidade de se rever alguns pilares da teoria populista, e ela o faz, mas não deixa bem clara a substituição de um conceito pelo outro. Talvez a substituição dos conceitos fique só evidente mesmo na escolha do título do livro. 24 MATTOS, Marcelo Badaró. Greves e repressão ao sindicalismo carioca 1945-1964. Rio de Janeiro: Aperj/Faperj, 2003. 25 FERREIRA, Jorge. O populismo e sua história, op. cit., p. 103.
  • 22. 21 populismo, mas como “expressão histórica da consciência operária”.26 Por conta dessas afirmações, tidas como exageradas por Marcelo Badaró, o autor acusa Jorge Ferreira de ser um apologético do PTB. Se a palavra “populismo” teria origem política bem definida, na UDN, como sustenta Ferreira,27 a sua crítica também o teria, de acordo com Badaró, só que no pólo oposto, no trabalhismo. Marcelo Badaró ainda aponta fragilidades teóricas e empíricas nessa “visão positivada do trabalhismo”.28 Para ele, quando Jorge Ferreira compara o trabalhismo ao Estado do bem- estar social europeu, e, quando, Daniel Aarão Reis29 considera ser a legislação social uma cornucópia, eles o fazem sem considerar o fato de que a aplicabilidade dessas leis era bem distinta do que estava escrito no papel. Assim, numa citação que faz a John French, Badaró destaca o desrespeito das empresas à legislação, a parcialidade da Justiça do Trabalho e os obstáculos criados pelo governo para a sindicalização; todos seriam exemplos, segundo o autor, da discrepância entre o ideal expresso na lei e a realidade de sua efetivação.30 Cita ainda as conclusões de French, embora as considerando um tanto quanto exageradas. Para este autor, a CLT não seria uma conquista efetivada pela classe trabalhadora, mas sim um referencial para lutar por direitos sonegados; “meus argumentos é que a legislação trabalhista nunca foi realmente concebida para ser real, e, no entanto, havia uma classe trabalhadora que estava apta a se apropriar dessa legislação social”.31 Marcelo Badaró admite haver certo exagero nisso tudo. O autor até admite haver semelhanças entre o Estado de bem-estar social europeu e a nossa experiência trabalhista, afinal, ambos seriam exemplos de regimes conciliadores de classes, baseados em espaços corporativistas de mediação de interesses entre capital e trabalho, no qual o Estado atuaria com forte presença. No entanto, segundo o autor, o paralelo se encerraria aí. Haveria, segundo ele, uma diferença de origem histórica entre a social- democracia européia e o nosso trabalhismo; enquanto a primeira se originaria de um corporativismo societal – onde os espaços de mediação são conquistados pela organização dos atores, o que garantiria a este modelo um caráter bifronte, com o controle estatal sobre as organizações de classe, mas, ao mesmo tempo, com espaços decisórios no Estado para a 26 A citação escolhida por Badaró é uma já citada aqui: “Compreendido como um conjunto de experiências políticas, econômicas, sociais, ideológicas e culturais, o trabalhismo expressou uma consciência de classe, legítima porque histórica”. FERREIRA, Jorge. O populismo e sua história, op. cit., p. 103. 27 FERREIRA, Jorge. O populismo e sua história, op cit. 28 MATTOS, Marcelo Badaró. Greves e repressão policial ao sindicalismo carioca, op. cit., p. 29. 29 Ambas as colocações se encontram em O populismo e sua história, op. cit. 30 Estas colocações são de Jonh French, autor citado por Badaró. Marcelo Mattos Badaró ainda 31 FRENCH, Jonh D. Afogados em leis. A CLT e a cultura política dos trabalhadores brasileiros. São Paulo: Perseu Abramo, 2001. Em nota de rodapé, Badaró admite que a caracterização feita por French da legislação trabalhista como apenas uma jogada cínica é um bocado radical. Está na nota 45, do primeiro capítulo de seu Greves e repressão..., op. cit.
  • 23. 22 participação das organizações. Ao contrário, na experiência trabalhista brasileira, o Estado seria o garantidor desses espaços por meio de sindicatos tutelados e através do poder normativo da Justiça de Trabalho. Na opinião de Badaró, isso caracterizaria o regime como corporativista estatal, já que, nele, a atuação do Estado teria muito mais peso. Além disso, o autor ainda destaca que a dimensão participativa no trabalhismo fora muito mais aberta aos órgãos de classe do empresariado do que aos da classe trabalhadora de fato. Se haveria erros conceituais na comparação do trabalhismo com a social-democracia européia, o autor acredita haver erros também teóricos nas leituras de Angela de Castro Gomes e Jorge Ferreira. Aqui, mais uma vez, as críticas mais enfáticas de Marcelo Badaró são dirigidas a Ferreira. Para ele, Jorge Ferreira e também Angela de Castro Gomes, embora em menor medida, apresentam uma leitura simplista e até preconceituosa, ao que parece, da obra de Gramsci. Na opinião de Badaró, os autores reduzem e associam as leituras simpatizantes da linha teórica gramsciniana com o arsenal argumentativo das teorias que defendem o conceito de populismo. Mais do que isso, e aí quem o faz de maneira mais evidente, na interpretação do autor, seria Ferreira, haveria uma tendência de polarizar, por parte de ambos os revisionistas, as diretrizes teóricas de Gramsci a Thompson, como se houvesse entre os dois argumentos diametralmente opostos. Para Badaró, tal leitura seria errônea, já que mesmo Thompson, em sua análise sobre a classe operária inglesa, utiliza-se de conceitos gramscinianos para entender o mesmo problema abordado pelo intelectual italiano; a dominação de classe – e elas a explicam sem apelar para reducionismos economicistas, mas adotando também mecanismos culturais como fonte de argumentação. Por fim, por analisar o trabalhismo como relação entre atores, o Estado e a classe trabalhadora, Badaró acredita que essas leituras perdem de vista o que, de alguma forma, estava presente nas interpretações adeptas do conceito de populismo; a contradição entre a proposta de incorporação controlada das massas à política e a existência de espaços de mobilização autônoma. Para Marcelo Badaró, os estudos de Ferreira e Angela de Castro Gomes tenderiam a enfatizar a isonomia nas relações entre Estado e trabalhadores, portanto. O autor confessa, também, que o intuito de sua pesquisa sobre as greves é, ao mesmo tempo, o de demonstrar a existência efetiva de espaços e de reivindicações da classe trabalhadora no período entre 1945 e 1964, contestando um dos pilares da teoria do sindicalismo populista, mas, sem, no entanto, apagar as contradições entre o Estado e a classe trabalhadora, como o fazem Angela de Castro Gomes e Jorge Ferreira. Para Badaró, a própria existência de greves combativas durante esse período é demonstrativa de uma relação não tão harmônica assim entre esses dois atores.
  • 24. 23 Mais um indício da relação complexa entre a classe trabalhadora e o Estado do período, seria, além das greves, a existência do “setor trabalhista”. Este era um ramo da polícia política especializado na vigilância e repressão aos sindicatos e movimentos grevistas, dissolvendo piquetes e prendendo trabalhadores. Este uso da palavra trabalhismo, segundo Badaró, seria curiosamente ignorado pelos adeptos da teoria da isonomia. Em nossa opinião, as críticas que Marcelo Badaró faz a Angela de Castro Gomes e a Jorge Ferreira são relevantes, embora algumas delas tenham que ser relativizadas. De fato, observam-se, nos escritos desses dois autores revisionistas, uma definição problemática de Estado e uma certa fluidez no que se define como trabalhismo. Além disso, alguns conceitos parecem confusos e às vezes misturados, sobretudo em A invenção do trabalhismo; caso dos conceitos de ideologia e cultura política. No entanto, há que se ressaltar e enobrecer as investidas que os dois estudiosos desenvolveram na tentativa de relativizar noções antes consagradas, como: manipulação, cooptação, massa de manobra, etc. Esta não é tarefa fácil de desempenhar já que, na tentativa de desconstruir uma interpretação consagrada e um conceito tão enraizado na academia e no linguajar cotidiano, como o de populismo, os dois arriscaram-se a cometer o risco contrário; elaborar um conceito com a mesma amplitude teórica, mas de maneira desconstrutiva. Assim, o trabalhismo de Angela de Castro Gomes e de Jorge Ferreira tenta dar conta daquilo que a noção de populismo abarcava, mas sempre com um esforço de negação. Deste esforço surgiria então este trabalhismo inventado, espécie de conceito historiográfico que tenta explicar as relações entre Estado e sociedade no período 1945-1964, embora ele mesmo tenha sido inventado no ano de 1942, segundo Angela de Castro Gomes. Não se quer dizer com isso, num reducionismo preguiçoso, que este conceito de trabalhismo deva ser ignorado, ou desvalorizado. As formulações desenvolvidas por ambos os autores trouxeram contribuições valiosíssimas para o estudo do período; a percepção de que havia sim algum nível de reciprocidade entre os anseios dos trabalhadores e o esforço propagandístico e ideológico desenvolvido pelo governo; a identificação e representação deste mesmo governo na classe trabalhadora não devem ser menosprezadas e a noção de troca entre atores desiguais, muito importante nos trabalhos de Angela de Castro Gomes, substituindo a idéia unilateral de cooptação e manipulação. No entanto, na tentativa de se criticar e revisar as bases da teoria do populismo, elaborou-se um conceito tão amplo quanto aquele; o de trabalhismo. E, no afã de substituir a noção de populismo, nossos autores deram pouca atenção à dimensão doutrinária do trabalhismo, à sua definição conceitual. Trabalhismo aparece como ideologia política, como
  • 25. 24 cultura política, como projeto político, mas raramente se vê o trabalhismo como doutrina. Evidentemente, pela forma como o PTB foi fundado, pela ação direta de Vargas e como um mecanismo de reforço do getulismo32 – entendido como opinião política e pública favorável a Vargas –, tornou-se difícil observar com maior zelo esta dimensão teórica-doutrinária do trabalhismo, que ficou desvalorizada. Porém, este trabalho pretende cobrir esta lacuna, e, como ambição ainda maior, pretende verificar de que maneira o maior teórico do trabalhismo o definiu; consideramos que só assim, este poderá ser entendido da maneira como os seus formuladores o quiseram delimitar. Já se discutiu sobre o caráter autoritário do trabalhismo, sobre o seu teor de manipulação, fato que o debate populismo versus trabalhismo vem dando conta há algumas décadas; já se argumentou ainda, numa perspectiva que privilegia a ação do Estado, que este trabalhismo teria sido inventado, fruto da ação consciente e organizada dos homens de base do governo Vargas; há ainda os que se dedicam a analisá-lo pela ótica das camadas populares, a sua receptividade a essa “construção”, a sua participação na “montagem” desse trabalhismo. Alguns o analisam através da história do partido, dividindo-o em fases, de getulismo a trabalhismo. No entanto, os estudos especialmente voltados à doutrina trabalhista são pouquíssimos. Um dos objetivos desta pesquisa é verificar de que maneira o pensamento de Pasqualini, apesar de todo o seu processo de mudança e de incorporação lenta de Getúlio como símbolo-líder do trabalhismo, pode ser uma outra forma de definir o próprio trabalhismo, desta vez não como uma ideologia política, mas como uma doutrina. O maior cuidado será não reproduzir a oposição entre o trabalhismo doutrinário e o trabalhismo getulista. 32 Esta interpretação é consagrada por Angela de Castro Gomes, Jorge Ferreira e Maria Celina D`Araújo. Os três falam do PTB como um partido carismático. Haverá maior dedicação a este assunto mais à frente, no item especialmente voltado para a relação de Pasqualini com o getulismo. As referências bibliográficas estarão neste item.
  • 26. 52 2 O PENSADOR E O HOMEM POLÍTICO: PRINCIPAIS IDÉIAS E ATUAÇÃO PARLAMENTAR Por ser bastante fragmentada e não linear, já que boa parte de sua obra foi publicada em artigos de jornais e depois reorganizada em livro, as formulações de Pasqualini são difíceis de sintetizar. Assim, fez-se, neste capítulo, um pequeno roteiro de suas principais idéias. A intenção é destacar os pontos centrais do que seria sua visão particular do trabalhismo por meio de um glossário, sem, no entanto, qualquer pretensão de esgotar a complexidade de seu pensamento. Na segunda parte do capítulo, há uma rápida narrativa de suas principais realizações como parlamentar e também sobre as grandes questões que debateu. Se, no primeiro capítulo, nos interessaram a biografia e a entrada no PTB, aqui é a atuação como político que merece atenção. Nunca é demais ressaltar que Pasqualini sempre foi muito mais lembrado como teórico e pensador do que como político. A dificuldade de encontrar fontes que detalhem sua atuação como parlamentar é mesmo evidente; até nos jornais de época, Alberto Pasqualini era exaltado como intelectual e como pensador. Essa imagem sua não foi construída depois de sua morte, mas foi algo que o acompanhou desde muito cedo. Seus adversários políticos nunca cansaram de dizê-lo; no interior do partido era esta também sua identidade. As manifestações em época de sua morte também relembraram este perfil intelectual de Pasqualini. No entanto, o presente capítulo tentará dar conta, em alguma medida, do homem político Alberto Pasqualini – tão preterido. A divisão entre pensamento e política em momento algum significa qualquer dualidade estanque entre estas duas feições de nosso teórico. O propósito é justamente mesclar tudo isso nesta destacada personalidade do trabalhismo que foi Alberto Pasqualini. Às principais idéias, primeiro.
  • 27. 53 2.1 Socialismo, capitalismo e trabalhismo Indagaram-se, algumas vezes, a direita política e católicos fervorosos, se não seria o nosso teórico gaúcho um comunista. Num mundo repartido entre capitalismo e socialismo, era mesmo normal que se esperasse tal tipo de definição. Perguntavam-lhe se era e acusaram-no também muitas vezes de ser ateu, fato que sua formação religiosa e as constantes referências a Deus e às encíclicas papais negam com facilidade. Porém, a primeira questão, sem dúvida, tomou-lhe mais tempo; não foram poucas as páginas em que tentava situar seu pensamento entre esses dois pólos político-ideológicos. O primeiro esclarecimento: Não poderíamos dizer pura e simplesmente que pertencemos a um desses dois mundos; que somos capitalistas ou socialistas, pela simples razão de que diversificam as concepções a respeito, existindo uma pluralidade de formas de capitalismo e de socialismo.93 Pasqualini diferia o capitalismo do socialismo pela característica da propriedade, pela iniciativa particular de empreendimento de um, e pela estatal de outra, e também pelas relações sociais; estas talvez denunciem mais sua própria concepção de Estado e o motivo de sua opção pelo trabalhismo como modelo de política para o Brasil. Explicava ele que: “No regime capitalista há, pois, três figuras: o patrão ou o capitalista, o trabalhador ou o empregado e o Estado. No regime comunista, pelo menos tal como hoje existe, há só duas figuras: o Estado e o trabalhador.” E prosseguia, afirmando: No regime capitalista, quem regula as relações jurídicas entre patrões e empregados, quem fixa as normas de trabalho, quem resolve as questões que surgem entre as duas partes, é o Estado. No regime comunista, o árbitro dessas questões é o próprio patrão, isto é, a autoridade, donde há o perigo de perder o trabalhador e sua liberdade.94 Por essa passagem, pode-se notar que Pasqualini distinguia entre Estado e autoridade, acabando por conceber o Estado como uma esfera de representação plena para os 93 Trecho do discurso de Pasqualini como candidato ao governo do Estado, em 1947. Este pronunciamento depois fez parte do livro Bases e sugestões para uma política social, compondo o segundo capítulo. SIMON, op cit., p. 128. 94 Idem, p.128.
  • 28. 54 trabalhadores (o interessante é que o contraste é feito entre Estado versus autoridade, não havendo qualquer referência a órgãos representativos de classe, como sindicatos e partidos). O modelo real de socialismo, em sua visão, seria um exemplo de autoridade, já que usaria de métodos coercitivos e violentos para garantir a justiça social. Ainda segundo ele, “no regime socialista” existiriam duas classes: “uma, dos que mandam e estão de cima, e a outra dos que obedecem e estão debaixo”.95 O mundo socialista poderia, pois, do ponto de vista jurídico da propriedade, eliminar as classes, mas não poderia eliminar a hierarquia e a polícia. O proletário continuará sendo sempre proletário, ao passo que o patrão será apenas substituído pelo burocrata ou pelo agente da autoridade pública.96 Pasqualini temia o regime comunista no Brasil porque acreditava que, por ser um país com baixo nível de desenvolvimento econômico, a socialização dos meios de produção pareceria um entrave para o nosso crescimento econômico e até uma irresponsabilidade para o país: Se, no Brasil, coletivizássemos os meios de produção, se passassem eles às mãos do Estado, acabaríamos todos morrendo à míngua. Como dizem os próprios comunistas, no Brasil não há condições objetivas ou materiais, nem condições subjetivas ou psicológicas, para a instituição entre nós do regime socialismo. Precisamente por sermos um país ainda em fase de pré-capitalização, precisamos de iniciativa privada, e de muita iniciativa privada. Estejam, pois, tranqüilos os nossos capitalistas, que terão ainda, entre nós, vida muito longa se souberem realmente compreender a verdadeira função do capital, isto é, se souberem fazer o uso devido dos meios de produção.97 Se o temor pelo comunismo marcava as formulações de nosso teórico, as críticas ao capitalismo liberal também não eram amenas. Como vimos, desde suas primeiras publicações, tanto nas “Sugestões” como no “Manifesto-programa da USB”, elas já estavam presentes. Mas, agora, em seu discurso em Caxias, durante a campanha para o governo do Estado, Pasqualini explicava melhor o que queria dizer: Capitalismo egoísta é o que tem como elemento psicológico o egoísmo. É o que pretende tudo pra si, isto é, para os detentores dos meios de produção. Os métodos do individualismo, como já tive ocasião de observar, são os de luta, luta pela dominação, luta pelo sujeitamento do indivíduo a outro indivíduo, luta pelo ganho sem limites, sem consideração, sem escrúpulos.98 95 Idem ibidem. 96 Idem ibidem. 97 Idem, p.129. 98 Idem, p. 129.
  • 29. 55 Previa que este capitalismo egoísta, também denominado por ele individualista, tenderia, nas suas últimas conseqüências, ao “monopólio”, à ”hegemonia econômica”; à “exploração do povo”.99 Em contraposição ao capitalismo individualista, Pasqualini situava o que ele acreditava ser a melhor opção para o nosso país; o “capitalismo humanizado”, “cristão” e “solidarista”.100 Segundo ele, este tipo capitalismo não deitava suas raízes no egoísmo, mas antes se “inspirava nos princípios da cooperação e da solidariedade social”.101 Defendia que este “capitalismo humanizado” teria como princípio básico a satisfação humana, e que, por essa razão, deveria haver uma relação de solidariedade entre os detentores dos meios de produção e os trabalhadores, responsáveis por seu acionamento.102 No decorrer de sua fala, Pasqualini ainda igualaria este “capitalismo solidarista103 ” ao trabalhismo, situando-o num posicionamento distante dos dois extremos; o capitalismo egoísta e o comunismo. A essa forma de capitalismo humanizado, que não desconhece os princípios da solidariedade social, mas antes neles se assenta, damos o nome de capitalismo solidarista. Ele exclui, de um lado, o capitalismo individualista e, de outro, a socialização dos meios de produção ou o comunismo. Sua concepção fundamental é de que o capital não deve ser apenas um instrumento produtor de lucro, mas, principalmente, um meio de expansão econômica e de bem-estar coletivo. Esta é também, senhores, a idéia substancial do nosso programa. Para nós, trabalhismo e capitalismo solidarista são expressões equivalentes.104 2.2 Sociedade e Estado O ideal de sociedade de Pasqualini e do seu trabalhismo era aquela sociedade onde reinasse, não a luta de classes, mas sim o equilíbrio harmônico entre elas. A sociedade ideal em seu pensamento aparece como um todo social harmonioso. A luta de classe seria mais característica, para ele, daquele capitalismo liberal, egoísta e desumanizado que do capitalismo como um todo. Seria, portanto, conseqüência de uma mentalidade social egoísta, e não uma característica do regime capitalista em si. Para Pasqualini, essa desigualdade 99 Idem ibidem. 100 Idem ibidem. 101 Idem ibidem. 102 Idem ibidem. 103 Expressão do próprio Pasqualini. 104 Idem ibidem.
  • 30. 56 classista deveria ser combatida não pelo comunismo, que acentuaria ainda mais a polaridade, mas pela ação do Estado, que garantiria o equilíbrio entre trabalhadores, assegurando-lhes seus direitos básicos e impedindo o acúmulo de riquezas nas mãos das classes mais abastadas. Assim, o capitalismo deveria ser mantido, mas um capitalismo humanizado, trabalhista, onde a relação das classes não fosse de luta, mas de integração solidária. A idéia de harmonia entre as classes, presente não só nos escritos e discursos de Pasqualini, mas também nas diretrizes e práticas do próprio trabalhismo getulista – sua atitude conciliatória durante seu governo o comprova, quando tentava harmonizar os interesses das diferentes frações da elite gaúcha105 –, estava já em Augusto Comte quando este definia o que era, para ele, a idéia de progresso. Progresso, segundo ele, estava associado à noção de equilíbrio; assim, longe de combater o que estava em excesso, o que se devia fazer era contrabalançar os elementos do conjunto social de modo a deixá-los em harmonia. Afirmava Pasqualini: para reorganizar o todo social, “a sã política, filha da moral e da razão, não destrói o órgão que cresceu em excesso, mas vai conservá-lo retificando as suas dimensões e integrando-o em uma nova ordem superior”.106 2.3 Partido e mentalidade social A concepção de partido político de Pasqualini destoava um pouco da de seus adversários políticos e também de seus companheiros de partido. Longe de considerar o partido somente como uma agremiação cujos fins se voltavam única e exclusivamente para resultados eleitorais, – pelo menos era assim que aparecia em seus escritos – Pasqualini acreditava que a verdadeira função das agremiações políticas era a de promover a mobilização social, difundir ideias e ser um instrumento de educação do povo – atuava na construção de uma ordem. O contraste com a concepção pragmática que Getúlio apresentava do PTB era marcante: Vargas flertava abertamente com o PSD, com vistas a garantir a vitória nas urnas, seu fim último e maior. Se, para Pasqualini, o instrumento difusor do trabalhismo era o partido, para Vargas, o mais importante era assegurar o domínio da máquina do Estado, para, 105 BOSI, Alfredo, op cit, p. 288. BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992 106 Idem ibidem.
  • 31. 57 lá, promover as mudanças e medidas que julgasse necessárias. Na prática, os dois acabaram por se complementar na construção e fortalecimento do PTB, pouco importando as diferenças de argumentação, embora elas existissem. Pasqualini tinha esta interpretação sobre o papel dos partidos políticos porque não via no Brasil a existência de uma opinião pública organizada. Pensava que a função das agremiações políticas era despertar o interesse do povo para as questões sociais fundamentais do Brasil.107 Portanto, os partidos apresentavam, segundo ele, uma função quase didática e, por consequência, propagandística dessa consciência, dessa opinião pública. Os partidos não eram somente representativos dos anseios populares, mas também atuantes nesta função maior de construção de uma mentalidade social. Dizia ele: “Nosso problema não é apenas vencer uma eleição e controlar o governo; nosso problema é criar uma mentalidade social que facilite o uso dos meios que o poder oferece para realizar o programa que defendemos.108 Em entrevista que concedeu ao Diário de Notícias do dia 13 de junho de 1948, Pasqualini explicaria sua percepção particular sobre política, partido político e ideologia. Na ocasião, declarara a Décio Freitas, jornalista do Diário, que todo partido político digno deste nome deveria ser portador de uma concepção social, de uma ideologia; um conjunto de objetivos definidos, de soluções concretas e de diretrizes que poriam em prática tais soluções e objetivos. A isso, Pasqualini também chamava “ideal partidário”; ideal que não se realizaria por si só, esclarecia o teórico, mas que necessitaria de uma organização responsável por sua veiculação, impulsão e prática. Sintetizava explicando que “[...] um partido político é assim a conjunção de dois elementos: da ideologia, que é a alma, e da organização, que é o corpo ou seu instrumento de ação”.109 A ideologia de Pasqualini seria, então, este conjunto de objetivos e de soluções, propostas por um partido para tentar superar uma determinada situação política, econômica e social; a sua maneira de, diante dela, lidar e enxergar saídas. Em muitas vezes ela aparece, nos seus textos e entrevistas, como sinônimo de concepção social, que seria, segundo suas próprias palavras: [...] é a sua posição [do partido político] em face dos problemas econômicos e sociais e a natureza das soluções que propõe para esses problemas. É unicamente a aceitação dessa concepção e dessas soluções que devem, por outro lado, constituir o motivo para que qualquer 107 Correio do Povo, 23 de setembro de 1945, p. 11. 108 Correio do Povo, 17 de dezembro de 1946, p. 7 e 8. 109 Diário de Notícias, 1948, p. 4 e 24.
  • 32. 58 cidadão se filie a determinado partido. A vinculação partidária deve resultar, portanto, de uma “convicção” e de uma “adesão” à ideologia do partido.110 É precisamente a “adesão” a essa ideologia partidária que caracterizaria, segundo o pensador gaúcho, uma agremiação de homens livres em torno de um ideal, ao contrário de um partido organizado em torno de uma pessoa. Era hábito de Pasqualini comentar sua insatisfação com a falta de ideologia dos partidos políticos de sua época, crítica a que o próprio PTB não escapava. Sobre os partidos, de uma maneira geral, afirmava: Há ainda nos partidos muito individualismo, muito personalismo, muita ausência de convicção partidária. Seria necessário que os homens agissem em função de idéias e soluções. Em política, no Brasil, estamos ainda na fase da antropolatria mais grosseira. Temos um longo caminho a percorrer. Se considerarmos a política como a arte de investigar e realizar o bem comum, os homens deveriam estar a serviço da política. Em geral, porém, se procura fazer da política um instrumento a serviço de pessoas. Política deveria significar renúncia, desprendimento, ação em benefício da coletividade. No entanto, só significa, às vezes, ambições e interesse.111 A temática do personalismo volta e meia aparecia em seus pronunciamentos, o que justifica que a ela se dedique um item específico. Bastou-nos, até o momento, dar ênfase à sua insatisfação com o perfil personalista das agremiações políticas, com o pragmatismo eleitoral dos partidos e com a ausência do que seria, ou deveria ser, o motor de toda política: a preocupação com o bem comum. Esses três pilares são as diretrizes da concepção de política do pensador, entendida em seu sentido restrito, e traduzem o que seria, para ele, o ideal de partido e o que almejava para o seu PTB: maior independência da figura de Getúlio Vargas como eixo organizacional da agremiação; cautela nas alianças políticas; e a consciência das eleições como uma etapa necessária para uma realização ainda maior, a satisfação das necessidades básicas dos trabalhadores e da população de um modo geral, e, no sentido amplo, a transformação da sociedade em um todo social harmonioso. Eram esses os ideais da política, segundo ele. É bom lembrar que essas três idéias aparecem como o ideal de política para o nosso pensador. Na prática, Pasqualini talvez tenha sido o mais fervoroso dos petebistas. Apesar de suas críticas e de suas formulações ideais para o trabalhismo – muitas delas se distanciavam muito da atuação política e do discurso de Vargas e do PTB, como vimos –, Pasqualini de fato acreditava que o PTB e Vargas seriam o caminho único para construção 110 Idem ibidem. 111 SIMON, Pedro, op.cit., apud “Discurso no Diretório Municipal do PTB”, Correio do povo, 6 de abril de 1949, p. 14.
  • 33. 59 daquela sociedade. Ou seja: ainda que na retórica o PTB e o trabalhismo de Pasqualini parecessem bastante distintos do de Vargas, e suas diferenças não devem ser minimizadas, na prática, mesmo com suas críticas, Pasqualini optou por continuar e servir ao PTB como única agremiação capaz de pôr em prática seus planos e anseios. 2.4 Personalismo político Boa parte dos estudos sobre Pasqualini centraliza-se na crítica que o teórico fazia ao personalismo político do PTB. No entanto, é preciso fazer certa ressalva. Pasqualini era um crítico ao personalismo político, certamente o era, mas fazia e condenava o personalismo de todos os partidos. Considerava que as agremiações e as figuras políticas eram pouco ideológicas, pensavam antes em si mesmas do que na política, cujo ideal maior era, segundo ele, realizar e assegurar o bem comum. O personalismo, portanto, não era um mal exclusivo do PTB, mas sim um fenômeno da política brasileira. A censura que fazia ao centralismo dos partidos e da política em geral não se iniciara com sua entrada no PTB; vinha de antes. Depois que se filiou ao Partido, atuava realmente como um político preocupado em elaborar um arcabouço doutrinário para o trabalhismo, fazendo isso por meio de suas idéias e formulações. Quando se examina sua atuação no PTB, logo se percebe esse perfil nas atuações que teve; criticou o apoio de Getúlio e do Partido à candidatura de Eurico Gaspar Dutra, por julgar que este tinha pouco em comum com os ideais do PTB; suas campanhas tiveram sempre um cunho altamente teórico, deixando, por muitas vezes, a disputa eleitoral em segundo plano; no PTB, fez parte da Revista Trabalhista, como integrante do Departamento de Estudos Planificados do Partido, departamento responsável pela organização doutrinária do trabalhismo e por fornecer as diretrizes das medidas a serem tomadas pelos trabalhistas no Parlamento; já na década de 1950, juntou-se a uma dissidência partidária, integrada por Danton Coelho, a Frente Trabalhista Brasileira, cujo objetivo maior era conferir ao partido maior teor doutrinário.112 112 Sobre a Frente Trabalhista Brasileira, ver o livro de Maria Celina D´Araújo, Sindicatos, crisma e poder. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1996. A autora acredita que, a partir da década de 1950, teria se iniciado uma série de mudanças no PTB. O Partido, que até então se concentrara nas orientações de Getúlio Vargas, começara a presenciar o surgimento de novas lideranças internas, combatendo ou pondo em xeque as ambições de poder de seus integrantes. A partir desse período, Maria Celina D`Araújo observa o florescimento de lideranças que procuravam dar ao Partido um perfil mais programático; a Frente teria sido um dos indícios desses esforços.
  • 34. 60 Suas críticas ao personalismo político, portanto, não se resumiam ao PTB, mas também se dirigiam aos demais partidos. No entanto, suas ressalvas ao uso descompromissado do termo trabalhismo, muitas vezes confundido com a admiração política a Getúlio Vagas, era uma característica do PTB que lhe incomodava. Mas isso é assunto que merece ser tratado com maior cuidado, razão pela qual lhe dedicaremos algumas páginas especiais, logo ao final deste trabalho. 2.5 Ditadura Em um dos seus artigos mais importantes, Pasqualini esclareceria qual sua posição sobre as ditaduras e líderes políticos. Ele não é do livro Bases e sugestões para uma política social,113 mas é um bom exemplo sobre como o nosso teórico avaliava o Estado Novo e a figura de Vargas. Pasqualini reconhecia que a democracia representativa era o sistema político natural das coletividades humanas mais evoluídas, com o poder cada vez mais despersonalizado. No entanto, situações conjunturais poderiam, segundo ele, justificar regimes ditatoriais: A inadaptabilidade ocasional do sistema democrático, o desgaste das suas energias em luta e competições estéreis, a decomposição dos órgãos de governo, a sua falta de coordenação, a sua ineficiência e impotência ante os mais graves problemas sociais e nacionais podem favorecer e propiciar, até nas sociedades mais civilizadas, surto de primitivismo caracterizados pela regressão do poder ao indivíduo e pela centralização da autoridade.114 Ou seja, em momentos de crise generalizada, Pasqualini considerava a tendência à concentração do poder, num retrocesso às formas mais primitivas de regime político. Em momentos como esses, a concepção mística do chefe político – que seria, segundo ele, a forma intelectualizada e estilizada da percepção mítica do chefe quase divino – afloraria. Para Pasqualini, nos povos de certo nível cultural, a ditadura postularia uma base ideológica mais complexa, e fundamentar-se-ia num ideal ou programa político e social. Em povos assim, explica o nosso teórico, o regime ditatorial se apoiaria na ação de um partido, o 113 Correio do Povo, 11 de julho de 1943 114 Idem.
  • 35. 61 que pressuporia o reconhecimento de que o povo seria a origem do poder, e não o líder. Apesar disso, a figura do chefe político, ou ditador, seria muito proeminente, e, sua queda, em muitas das vezes, poderia significar o fim do partido, advertia. Em sociedades de baixo nível cultural, a ditadura não se basearia em premissas ideológicas e na ação do partido, se sustentaria, segundo Pasqualini, na ação golpista do ditador. Assim, Pasqualini concluiria: “Mas se a personalização do poder é sempre uma ditadura, nem sempre a ditadura envolve, necessariamente, a personalização do poder”.115 Para ele, haveria dois tipos de ditaduras: as regressivas, de caráter puramente personalista, míticas e caudilhescas, e as “técnicas”, ocorridas em momento de crise e de perigo nacional. As ditaduras técnicas ocorreriam, portanto, em momentos de circunstâncias excepcionais. Elas não visariam a abolição do regime democrático, e teria objetivos definidos claros: a segurança nacional, uma necessidade de reorganizar o país, a “higienização” da administração, com o restabelecimento da “harmonia e o sintonismo entre os povos e os órgãos governamentais”. 116 Alberto Pasqualini explicava que, nas ditaduras técnicas, o ditador não possui aura de um ser iluminado, um semi-divino ou um “caudilho que se apossou do Estado”. É apenas um cidadão, um magistrado, “um estadista em quem a nação confia e reconhece [...] os atributos morais e intelectuais”.117 Do ponto de vista sociológico, Pasqualini reconhecia que havia entre nós fatores que poderiam estimular a adoção de um regime ditatorial regressivo. Dentre eles, citava o cicliotismo latino (diversos regimes latino-americanos tinham esse perfil) e o misticismo africano. Mas o contato com países anglo-saxões, a nossa rápida industrialização, a conseqüente elevação do padrão cultural de nosso país e a organização de nossa administração em bases técnicas parecem ter afastado aquela nossa tendência natural. Na sua avaliação, o golpe de Estado de 1937 teria preservado entre nós a democracia, por mais paradoxal que isso parecesse. “A concentração de poder foi a vacina antógena polivalente contra o surto epidêmico das formas regressivas do poder”.118 Vê-se, pois, que nosso teórico reconhecia e avaliava o golpe de 1937 como um episódio positivo para a nossa história. Afastando as forças regressivas, Vargas foi o homem intelectualmente capaz de conduzir esse processo que afastaria o Brasil de um regime 115 Idem. 116 Idem. 117 Idem. 118 Idem.
  • 36. 62 ditatorial regressivo e personalista. Mas, com ele a frente, o país parece ter sido salvaguardado de um futuro antidemocrático e primitivo. A ditadura “técnica” varguista parece obedecer às premissas daquela famosa filosofia do mal necessário, que Pasqualini não parecia ou conseguia condenar. 2.6 Sobre Vargas e o processo histórico brasileiro A particularidade desta entrevista, que foi concedida ao Diário de Notícias do dia 10 de dezembro de 1949, é que nela Alberto Pasqualini expõe sua interpretação mais clara sobre o papel de Vargas e sua influência no processo histórico brasileiro. Chama a atenção a similaridade de sua interpretação com a de Paulo Schilling, intelectual que teve atuação política marcante no governo de Leonel Brizola no Rio Grande do Sul. Pasqualini escrevia em 1949 que estaríamos entrando na segunda etapa do trabalhismo. Segundo ele, a legislação social do governo Vargas teria outorgado as garantias jurídicas do trabalhador; ela seria a sua carta de alforria – expressão usada pelo próprio Pasqualini. A peculiaridade e os méritos de Vargas teria sido a realização desta outorga sem derramar lágrimas ou sangue. “A sabedoria de um governo antecipou-se às próprias reivindicações do proletariado. Só isso seria o bastante para redimi-lo de todos os seus possíveis enganos”119 . A segunda etapa do trabalhismo seria dar maior amplitude à legislação social, estendendo seus benefícios a todos os trabalhadores – falava especialmente da previdência social. Em relação a Vargas, dizia assim. É necessário que os nossos homens públicos e que todos os homens de responsabilidade, aqueles que possuem a visão panorâmica das coisas e não o estreito diafragma dos políticos de aldeia, compreendam esse fenômeno e compreendam quanto é útil à coletividade e à ordem social que exista no seio das massas esta força de polarização, de liderança e de contensão que as guie, às conduza às suas legítimas conquistas, suavemente, sem os atropelo, os estravazamento e os excessos das agitações sociais.120 119 Diário de Notícias, 10 de dezembro de 1949. 120 Idem.
  • 37. 63 Prosseguia, exaltando que as medidas de proteção ao trabalho no Brasil não teriam custado uma ameaça, um tiro, uma gota de sangue sequer, “porque a sabedoria do seu governo (Getúlio Vargas) se antecipou às próprias reivindicações das classes proletárias”.121 Não é surpresa que Pasqualini exaltasse a “paz” e a “tranqüilidade” que conduziram todo este processo de conquistas de direitos. Como bom positivista que era, nosso teórico jamais nutriu grandes simpatias por processos revolucionários. Por sua inspiração comteana, Pasqualini acreditava que progresso estava estreitamente ligado à noção de ordem, e acreditava ainda que caberia a uma elite de ilustrados a condução das transformações sociais. 122 2.7 Nacionalismo A ausência de uma preocupação maior por parte de Pasqualini com relação às bandeiras nacionalistas chama a atenção. O fato é ainda mais curioso porque o PTB e Vargas, pessoalmente, foram sempre referências importantes para o levantamento de tais questões no Brasil. No entanto, Pasqualini poucas palavras dedicou ao assunto, manifestando um quase total desapego por esse debate, se comparado a Getúlio Vargas. A identificação entre nacionalismo e trabalhismo foi intensa, sobretudo na década de 1950, quando Vargas fazia pronunciamentos exaltados sobre o assunto.123 Lucília de Almeida Neves fala do nacionalismo como uma febre nacional, que permaneceu no PTB depois da morte de Vargas, mas que superou seus limites, contagiando também outras legendas, organizações da sociedade civil e população em geral. Era época de intenso debate tendo em vista os projetos governamentais de implantação de empresas estatais, como a Vale do Rio Doce, a Petrobras, a Eletrobrás e a Fábrica Nacional de Motores (FNM). No PTB, o nacionalismo foi característica marcante, sobretudo a partir daqueles anos. 121 Idem. 122 Sobre a influencia do positivismo no republicanismo gaúcho ver: LOVE. Joseph L. O regionalismo gaúcho. São Paulo,Editora perspectiva.nele, Love explica a influência de Comte nos líders republicanos, particularmente em Castilho e Vargas. “a filosofia social de Comte forneceu a Castilhos e sua geração uma versão paternalista e altamente racionalista do liberalismo do século XIX”. As principais idéias que absorveram de Comte: a defesa das liberdades individuais, a condenação da escravidão, separação entre Igreja e Estado, educação primária universal e o intervencionismo estatal para proteger os operários industriais. P. 39. 123 A citação é de Paulo Schilling, no seu livro Como se coloca a direita no poder. São Paulo: Global, 1979, e reproduzida pela autora: “Criminosa multiplicação do capital estrangeiro, em detrimento do trabalho de milhões de brasileiros”. DELGADO, Lucília de Almeida Neves. “Trabalhismo, nacionalismo e desenvolvimentismo”. In ___. O populismo e sua história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
  • 38. 64 A ausência de referências maiores de Pasqualini às bandeiras nacionalistas faz alguns estudiosos duvidarem de seu papel como teórico do trabalhismo. Maria Vitória Benevides é uma das que destacam de tal forma a relação entre trabalhismo e nacionalismo que atribui a San Tiago Dantas o papel que muitos indicam para Pasqualini na elaboração doutrinária do trabalhismo. Sant Tiago Dantas [...] participou intensamente da formulação de importantes aspectos do trabalhismo, principalmente em relação ao sindicalismo (praticamente ignorado por Pasqualini) e ao nacionalismo. [...] as contribuições de San Tiago são, a nosso ver, o que de mais concreto se escreveu sobre a doutrina [trabalhista].124 Trabalhismo e nacionalismo, de fato, eram ideologias que andavam juntas, numa identificação que permaneceria no conteúdo programático do trabalhismo tempos depois. No entanto, é preciso dar conta da complexidade do que foi o nacionalismo no Brasil. Na interpretação de Vânia Maria Losada,125 o nacionalismo teria nascido como uma ideologia estatal. Só depois, já na campanha do “Petróleo é nosso”, a partir de 1943, é que ganharia conotação popular. Adepta da teoria do populismo de Francisco Weffort126 – que entende o Estado emergente da crise de 1929 como um Estado sem hegemonia de classe, e que, na busca por legitimidade, teria suas bases de sustentação ampliadas – a autora acredita que o nacionalismo teria se originado a partir da ação do Estado populista de Vargas,127 para perdurar no desenvolvimentismo de Juscelino Kubitschek e no social-reformismo de João Goulart.128 O nacionalismo surgia na década de 1950 como uma ideologia indispensável à construção de uma nação autônoma e independente. A elite política e intelectual da época vociferava em torno da necessidade de industrialização brasileira, única maneira de o país seguir um caminho próprio e independente. A burguesia nacional era a classe escolhida para conduzir este processo, numa forma de combate à elite agrária atrasada e dependente. O objetivo era superar o nosso subdesenvolvimento, modernizar nossa sociedade e economia, para, com isso, construir uma nação brasileira. 124 BENEVIDES, Maria Victoria de Mesquita. O PTB e o trabalhismo: partido e sindicato em São Paulo 1945-1964. São Paulo: Brasiliense, 1989, p. 96. 125 MOREIRA, Vânia M. Losada. “Nacionalismo e reforma agrária nos anos 50”. Revista Brasileira de História, v. 18, n. 35, São Paulo, 1998. 126 Sobretudo WEFFORT, Francisco, O populismo na política brasileira. 3ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003. 127 Na interpretação de Weffort, o nacionalismo teria sido fundamental para a sustentação do Estado populista. 128 MOREIRA, Vânia M. Losada, op. cit., p. 3.
  • 39. 65 Bandeiras como o “anti-imperialismo”, visto como uma ameaça externa ao nosso desenvolvimento, eram alardeadas; no plano interno, o inimigo eram as elites agrárias exportadoras; no plano internacional, o imperialismo, sobretudo o norte-americano, era a ameaça de dominação. Todavia, mesmo possuindo um discurso mais ou menos homogêneo, os nacionalistas discordavam quanto ao papel do capital externo no desenvolvimento industrial do país. Os nacionalistas liberais, liderados pelo grupo do ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros), consideravam que éramos um país não só atrasado economicamente, mas também culturalmente. O papel do ISEB, segundo eles, era, então, operar a necessária “tomada de consciência” de nossa condição de subdesenvolvimento ou semicolonialismo, para superá-la por meio de uma “ideologia do desenvolvimento nacional”, que estimulasse a industrialização brasileira em bases capitalistas.129 Os isebianos tiveram ligação estreita com o governo de Juscelino Kubitschek, em particular com seus “planos de metas”; o vínculo fora tão estreito que, em muitas ocasiões – explica Vânia Losada –, o nacionalismo dos intelectuais do ISEB se confundiu com o desenvolvimentismo daquele período. Os nacionalistas econômicos, de tendência mais esquerdista, liderados por intelectuais variados e por partidos de esquerda, como o PTB e o PCB, não se contentavam com o desenvolvimentismo dos anos de Juscelino. Para Lousada, os nacionalistas econômicos não formavam um bloco monolítico em termos político-partidários, com diferenças ideológicas bastante acentuadas, mas adotavam perspectivas mais reformistas, o que lhes rendeu a alcunha de vermelhos.130 Esses nacionalistas que se reuniram na Frente Parlamentar Nacionalista (FPN) originavam-se de setores da “ala moça” do PSD, do PTB e até mesmo da UDN, representada pela ala “Bossa-Nova”. Todos defendiam reformas estruturais, como a incorporação da população ao sistema econômico, por meio de uma industrialização planejada que elevasse seu padrão de vida. O combate ao imperialismo era tema constante, bem como a defesa de reformas nas estruturas sociais, econômicas e políticas. Nesse conjunto, ganhava destaque a reforma agrária. Uma das bandeiras mais destacadas era mesmo a questão do capital estrangeiro. Para os nacionalistas econômicos, havia necessidade de disciplinar a remessa de lucros, royalties e 129 Idem, p. 6. Citação feita a CORBISIER, Roland. Brasília e o desenvolvimento nacional. Rio de Janeiro: ISEB/MEC, 1960, p. 23. 130 MOREIRA, Vânia M. Losada, op. Cit., p. 7.
  • 40. 66 dividendos. Além disso, defendiam a intervenção do Estado em empresas estrangeiras que estivessem ferindo os interesses nacionais. Argumentavam que os setores básicos da economia, como indústria pesada e energia, deveriam ser desenvolvidos a partir de iniciativa estatal e controlados pelo Estado. Só assim seria possível o desenvolvimento do país sem perda de autonomia. Ao contrário dos nacionalistas liberais, os econômicos não creditavam ao desenvolvimento econômico a solução para superar os problemas socioeconômicos do país. Para isso, militavam também pela reforma agrária, contra a participação indiscriminada do capital estrangeiro na economia nacional e a presença de interesses imperialistas no desenvolvimento nacional.131 Por essa posição, muitos nacionalistas de esquerda não aderiram ao desenvolvimentismo de JK e tomaram atitude dúbia em relação ao presidente, nutrindo certo entusiasmo pelo impulso econômico daquele período, de um lado, mas, ao mesmo tempo, mostrando-se bastante desconfiados com os rumos que a administração de Juscelino assumia. Vânia Losada destaca que foi na Revista Brasiliense onde os nacionalistas econômicos conseguiram sua maior expressão. Ali, Chaves Neto esclareceria a confusão entre nacionalismo e desenvolvimentismo, tão umbilicalmente ligados, sobretudo para os nacionalistas liberais: O elemento essencial para distinguir o nacionalismo do desenvolvimentismo era a orientação econômica no sentido de permitir ou não a internacionalização econômica. Em resumo, ele não considerava o desenvolvimentismo uma política nacionalista, pois estava favorecendo a integração do Brasil no sistema imperialista.132 Anos mais tarde, já no governo de João Goulart, o nacionalismo ganharia um maior conteúdo de massas, por conta das mobilizações a favor das reformas de base, nos anos 1960. Só aí, afirma a autora, pode-se falar em nacionalismo e desenvolvimentismo como duas idéia absolutamente distintas.133 Portanto, o nacionalismo de esquerda assumia uma posição mais cautelosa em relação ao capital estrangeiro – aceitando somente os empréstimos feitos de governo para governo, por exemplo – e sempre se manifestou mais criticamente em relação ao desenvolvimentismo. 131 Idem, p. 8. 132 Idem, p. 8. 133 Idem, p. 9.
  • 41. 67 Suas lutas sempre foram em prol de mudanças mais estruturais na sociedade, sendo a reforma agrária uma das principais. Nacionalismo e trabalhismo se misturaram no PTB dos anos 1950. A análise militante e apaixonada de Paulo Schilling, em seu Como se coloca a direita no poder,134 dá destaque a essa complexa relação e difere bastante da interpretação de Vânia Lousada. No item específico sobre o nacionalismo varguista, Schilling indica o nascimento da ideologia nacionalista na atuação dos homens de 1930 e destaca sua posterior transformação, de movimento policlassista e agregador – assim como teria sido a própria revolução –, em nacionalismo revolucionário e anti-imperialista. A revolução de 30 teria sido a origem de nosso nacionalismo, já que ela, segundo o autor, teria sido fundamental para revolução industrial brasileira. No entanto, longe de concordar com as interpretações que atribuem àquele movimento um caráter eminentemente burguês, Schilling acredita que a Revolução de 30 foi um movimento orientado por latifundiários, com caráter popular, responsável pela criação e o fortalecimento de nossa burguesia: “Não foi a burguesia nacional quem fez a Revolução de 30. Poder-se-ia dizer: foi esta quem ‘fez’ a burguesia nacional”.135 Por não ter sido conduzida pela nossa burguesia nacional, e sim pelo Estado paternalista,136 a Revolução de 30 teria facilitado o avanço do proletariado brasileiro, num processo bem diferente do ocorrido na Europa. O que os trabalhadores europeus conseguiram com anos de lutas, ao longo de um século ou mais, os trabalhadores brasileiros obtiveram em pouquíssimos anos, graças à atuação deste “paternalismo estatal”. A consequência disso tudo, segundo o autor, seria um processo de acumulação de capital não tão brutal como o inglês. Além de um processo de acumulação de capital mais ameno, a falta de protagonismo burguês no processo político da Revolução de 30 teria permitido que outras classes fossem beneficiadas com os seus desdobramentos: as classes médias se tornariam mais atuantes, a pequena-burguesia assumiria um papel destacado nas decisões políticas e a própria classe trabalhadora teria boa parte de suas demandas atendidas. 134 SCHILLING, Paulo. Como se coloca a direita no poder. São Paulo: Global Editora, 1979. 135 SCHILLING. Paulo, op. cit., p. 24. 136 Paulo Schilling explica que, entre as expressões “paternalista” e “bonapartista”, prefere a última para definir o Estado emergente da Revolução de 30. Segundo ele, a nossa burguesia mais forte estava associada ao mercado externo, deixando pouco espaço para que se desenvolvesse uma burguesia nacional, com interesses direcionados para o mercado interno. Diante dessa deficiência, caberia ao Estado dar-lhe o estímulo e as bases necessárias. Para o autor, a burguesia nacional só se consolidou como classe no Brasil, então, pela ação estatal (p. 23). Sem capital necessário e caracterizada por uma artificialidade como classe, à burguesia caberia apenas desenvolver papel importante nas indústrias leves, e, mesmo assim, com o auxílio financeiro estatal. Só com a emergência de um Estado paternalista, assegurador das condições necessárias para a burguesia atuar no processo de industrialização, é que teve início a nossa revolução industrial (p. 25).
  • 42. 68 Por necessitarem do apoio das classes trabalhadoras para aplicar seu ideário político – dentre todos, o autor dá destaque ao nacionalismo econômico –, os revolucionários de 1930 atenderam muitas das demandas históricas dos trabalhadores. Desta forma, vinculava-se a questão nacional à social, resultando num regime que, na avaliação de Paulo Schilling, teve saldo positivo – excetuando-se a questão fundiária, que Getúlio Vargas deixou intocada. Schilling destaca ainda que haveria dois tipos de nacionalismos: o das superpotências, imperialista, racista e colonial; e o dos países subdesenvolvidos, que buscava a igualdade racial, a superação do subdesenvolvimento e da miséria, e o estabelecimento de alguma justiça social. Num regime nacionalista, como Schilling pensa ser o inaugurado pela Revolução de 30, era natural que a principal classe beneficiada pelo movimento assumisse uma posição também nacionalista. Assim foi com a burguesia nativa. No entanto, o nacionalismo burguês jamais foi estrutural, sendo logo dissipado com o passar dos anos. Por sua efemeridade, o autor recusa a expressão “nacionalismo burguês” para definir a ideologia nacionalista daquele período; prefere que defini-lo como “nacionalismo de massas”:137 Os homens de 30 tentaram um tipo diferente de nacionalismo, um nacionalismo que fosse aceito por todas as classes sociais, um nacionalismo policlassista. Um nacionalismo “amálgama” que refletia, aliás, a política paternalista, “bonapartista” adotada pelo governo revolucionário (que se havia instituído como árbitro, por cima das classes sociais).138 Segundo Schilling, esse nacionalismo funcionaria razoavelmente até o momento da traição da burguesia nacional, em 1954. Na carta-testamento de Vargas, o nacionalismo não mais se apresentava como uma ideologia de comunhão, perdendo sua feição bonapartista e unificadora. A burguesia traidora agora representava o papel de testa-de-ferro dos monopólios imperialistas – e era intensamente denunciada por Getúlio Vargas em sua mensagem de morte. A partir de então, o nacionalismo ganhava contornos de uma ideologia revolucionária e popular: era o nacionalismo popular-revolucionário.139 A adesão às diretrizes da carta- testamento estaria, a partir daquele momento, intensamente associada aos interesses da nação, sendo constantemente lembrada pelos líderes trabalhistas, particularmente, Leonel Brizola. A união desse nacionalismo aos trabalhistas seria tão umbilical que João Goulart é considerado por Schilling um traidor dos interesses nacionais, já que não teria resistido ao 137 Idem, p. 30. 138 Idem, p. 30. 139 Idem, p. 34.