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PARA QUE SERVE A ANÁLISE ERGONÔMICA DO TRABALHO
Autores:
José Marçal Jackson Filho
Eugênio Paceli Hatem Diniz
Mauro Marques Muller
Disponível em:
https://www.escolavirtual.gov.br/
Obra referenciada:
Prevenção de acidentes: o reconhecimento das estratégias operatórias dos
motociclistas profissionais como base para a negociação de acordo coletivo
Autores:
Eugênio Paceli Hatem Diniz
Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho
Centro Regional de Minas Gerais
Ada Ávila Assunção
Universidade Federal de Minas Gerais
Departamento de Medicina Preventiva e Social
Francisco de Paula Antunes Lima
Universidade Federal de Minas Gerais
Departamento de Engenharia de Produção
Fonte:
DINIZ, E.P.H.; ASSUNÇÃO, A. A.; LIMA, F.P.A. Prevenção de acidentes:
o reconhecimento das estratégias operatórias dos motociclistas
profissionais como base para a negociação de acordo coletivo. Ciência
e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v.10,n.4, p. 905-916, 2005. Disponível em:
https://www.scielo.br/j/csc/a/Q5v5zqjbYj3fTrKZpF4Gyct/?lang=pt
905
Prevenção de acidentes: o reconhecimento
das estratégias operatórias dos motociclistas
profissionais como base para a negociação
de acordo coletivo
Accident prevention: recognition of motorcycle
couriers’ work strategies as the basis for collective
bargaining
1 Fundação Jorge Duprat
Figueiredo de Segurança
e Medicina do Trabalho,
Centro Regional de Minas
Gerais.
Rua dos Guajajaras
40/14o andar, 30180-100,
Belo Horizonte MG.
eugenio.diniz@
fundacentro. gov.br
2 Departamento
de Medicina Preventiva
e Social da Faculdade de
Medicina da Un iversidade
Federal de Minas Gerais.
3 Departamento de
Engenharia de Produção
da Un iversidade Federal
de Minas Gerais.
Eugênio Paceli Hatem Diniz 1
Ada Ávila Assunção 2
Francisco de Paula Antunes Lima 3
Abstract The aim of this study is to present, as
operational stra tegies, the contribuition to elabo-
ra te some prevention measures to prote ct the pro-
fessional motorcyclists, popularly known as “mo-
toboys”, against accidents. The authors present a
cri tic to the human error co n ception that is hege-
monic to the experts at wo rk security. The results
come from an Ergonomics study that started over
an Union demand of the professional motorcy-
clists in Minas Gerais. The total come to 85 pro-
fessional motorciclists who were interviewed and
observed. The procedures were: report the activity
filmed in the city streets and avenues; selfcon-
frontation of the scenes and of the map rutes, and
of some aspects obeserved in the two selected com-
panies. Finally the authors discuss the limits of
the security rules without considering the knowl-
edge obtained by the workers themselves. The
measures to change the situation that make the
accidents happen were used to elaboratethe col-
lective work convention. These measures were
su ppo rtedby a detailedstudyof the implemented
strategies by the individuals who were analised.
Key words Professional motorcyclists, Motob oy,
Labor accidents, Traffic accidents, Ergonomics
Analysis of Labour
Resumo O objetivo deste artigo é apre sentar co-
mo o estudo das estratégias operatórias contribui
pa ra elaborar medidas de prevenção dos aciden-
tes sofridos pelos motociclistas profissionais, co-
nhecidos popularmente como “motoboys”. Os au-
tores apresentam uma crítica à concepção do erro
humano, hegemônica dentre os especialistas em
segurança do trabalho. Os resultados apresenta-
dos fo ram obtidos de um estudo ergonômico ini-
ciado por demanda do sindicato dos motociclistas
profissionais de Minas Gerais. No total, 85 moto-
ciclistas profissionais foram observados e entre-
vistados. Os procedimentos adotados foram: re-
gistro da atividade por meio de filmagens nas
ruas e avenidas da cidade; autoconfrontação das
cenas do filme e das rotas elaboradas em mapas, e
de certos aspectos das atividades de trabalho ob-
servadas na expedição das duas em presas selecio-
nadas. Ao final, os autores discutem os limites das
normas de segurança prescritas que não conside-
ram o saber desenvolvido pelos próprios trabalha-
dores. As medidas de transformação das situações
geradoras de acidentes elaboradas com apoio no
estudo detalhado das estratégias implementadas
pelos su jei tos estudados servi ram para a elabora-
ção da convenção coletiva de trabalho.
Palavras-chave Motociclistas profissionais, Mo-
toboy, Acidentes de trânsito, Acidente de trabalho,
Análise Ergonômica do Trabalho
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Introdução:
Por uma abordagemcompreensiva
dos acidentes com motociclistas
O obj etivo deste artigoé apre s entar como o es-
tudo das estratégias operatórias contribui para
elaborar medidas de prevenção dos acidentes
sofridos pelos motociclistas profissionais, co-
nhecidos popularmente como “motoboys”. As
medidas de transformação das situações gera-
doras de acidentes foram fundamentadas em
uma pesquisa er gonômica (Diniz, 2003), cujos
resultados orientaram, den tre outras recomen-
dações, a elaboração de uma convenção coletiva
de trabalho, firmada em 31 de março de 2005.
Esta convenção é objeto de discussão mais deta-
lhada na con clusão deste artigo, cujo corpo está
organizado em quatro partes principais: (1)
após apresentarmos, nesta introdução, uma al-
ternativa crítica à con cepção do erro humano,
hegemônica dentre os especialistas em seguran-
ça do trabalho, (2) discorremos brevem en teso-
bre os procedimentos metodológicos e (3) de s-
crevemos os resultados da análise ergonômica
do trabalho dos motociclistas, relatandoao fi-
nal (4) o quadroinstitucional de negociação da
convenção coletiva de trabalho e os avanços
mais significativos. A negociação desta conven-
ção coletiva, inédita no Brasil, orientou-se, em
seus pon tos substantivos, pelos resultados da
análise da atividade co tidiana dos motociclistas
profissionais, e foi direcionada para a criação de
condições de trabalho que os auxilie na gestão
dos diversos incidentes que se apresentam no
decorrer de seu trabalho e na elaboração de es-
tratégias de prevenção.As cláusulas de saúde e
segurança procuraram ampliar a margem de li-
berdade na regulação da atividadecotidiana, de
forma a aliviar a pressão temporal que está na
origem dos acidentes sofridos por esta catego-
ria profissional.
Partindode uma demanda do sindicato dos
motociclistas profissionais de Minas Gerais, a
pesquisa teve início em meados de 1999. Na
ocasião,o presidente do sindicato relatou o ex-
pressivo crescimento do setor, a situação dos
acidentes graves e fatais e a ausência de regula-
mentação das condições de trabalho e dos ser-
viços realizados pela categoria.
Tradicionalmente, os acidentes de trabalho
são analisados ten do como pressupostoa ideo-
logia do ato inseguro, cuja concepção data da
década de 1930. No caso dos motoc i clistas pro-
fissionais, essa visão é legitimadapelo senso co-
mum, manifestado nas páginas dos jornais ou
nas opiniões das pessoas, que se referem aos
motociclistas profissionais em termos de “im-
prudência”, “ousadia”, “irresponsabilidade”, “in-
civilidade”, “prazer por fortes emoções” etc. Eis
alguns julgamentos típicos: a médica que parti-
cipou da pesquisa do Ipea sobre custos de aci-
den tes de trânsito, afirmaque o gosto dos moto-
boys pelo risco da velocidade se compara ao rapel
dos adolescentes da classe média (Folha de S.
Paulo, 1o de junho de 2003); o jornalista Larry
Rohtersintetiza o sentimentopopular dos pau-
listas em relação a este “privilegiado” grupo que
escapa aos obstáculos do trânsito: zigueza-
gueando entre os carros parados, ignorando as
demarcações de faixas, semáforos vermelhos e si-
nais para parar, eles ameaçam regularmente os
pedestres e enfurecem os motoristas enquanto
passam às pressas por ruas e avenidas congestio-
nadas (Rohter, 2004). O mais inquietanteé que
não apenas a mídia e a sociedade em geral, mas
também os especialistas em segurança no trân-
sito e no trabalho referem-se ao ato inseguro
quando analisam e julgam o comportamento e
o perfil dos motociclistas profissionais. Os adje-
tivos atribuídos ao modo de transitar pelas ruas
das cidades indicam que algumas das estraté-
gias e os modos operatórios implementados pe-
la categoria, injustificáveis e inaceitáveis do
ponto de vista do observador, não são vistos co-
mo algo cuja origem é determinada fora do
trânsito em si. Ao contrário, defen demos a tese
de que o comportamento dos motociclistas
profissionais decorre das fortes exigências e dos
limites impostos à ação e à gestão dos riscos a
que estão submetidos, determinados por rela-
ções sociais mais amplas, que devem ser anali-
sadas e transformadas.
A opinião pública em relação aos motoci-
clistas profissionais revela uma verdadeira “hi-
pocrisia social”: avaliamos positivamente o seu
trabalho, mas negativamente seu comporta-
mento, como se um e outro existissemsepara-
damente: Todos od eiam os motoboys, exceto quan-
do precisam de um. Quando ele está levando às
pressas um documento seu pela cidade, então ele
se torna seu salvador, um herói, e você adora o su-
jeito (Caíto Ortiz, diretor do curta Motoboys: vi-
da loca. In Rohter, 2004).
Essa visão do senso comum repete-se tam-
bém entre especialistas da saúde ocupacional.
As abordagens tradicionais interpretam o aci-
den te de trabalho como sen do um even to sim-
ples e determinado por uma causa única (ou
por uma causa imediata, quando se reconhe-
cem múltiplas causas). A dicotomia e superfi-
907
cialidade da ideologia do ato inseguro – fator
pessoal de insegurança x condição insegura –
explicam por que os acidentes são tratados pre-
dominantemente pelo viés do simples receituá-
rio de equipamentos de segurança individual
(EPIs) e da divulgação de cartilhas que objeti-
vam a conscientização dos riscose, conseqüen-
temente, a mudança do comportamento. Assis-
timos, nos mais variados ambientes de traba-
lho, à divu l gaçãode normas que preten dem in-
tensificar a fiscalização e ameaçam os trabalha-
dores com punições. Os ro teiros de investiga-
ção são baseados na verificação do cumpri-
mento ou não de normas internas e legais,
isentando-se de identificar as condições e as
formas de interação dos componentes dos sis-
temas que levaram à ocorrência do evento. No
caso dos motociclistas profissionais, as ações
resumem-se a reforçar a fiscalização ou pro-
m over cursos de direção defensiva.
A prática prevencionista tradicional assu-
me uma con cepção racionalista do comporta-
mento humano, como se este fosse determina-
do exclusivamente pela consciência. Assim, to-
da falha decorreria de uma decisão humana,
donde as ações de controle para evitar os des-
vios e a formação para reforçar o comporta-
mento seguro. Ora, os estudos mais recentes,
em vários campos, confluempara a com preen-
são da “falha técnica” como sendo o resultado
de circunstâncias e decisões anteriores: o aci-
dente, como qualquer outro evento, tem ante-
cedentes e uma história complexa (Perrow,
1984; Reason, 1990; Wisner, 1994; Amalberti,
1996; Co llins & Pinch , 1998; Llory, 1999).
A interrupção precoce da análise, semiden-
tificar as determinações mediatas das falhas,
amputa a identificação da trama complexa de
fatores causais do acidente, com conseqüências
negativas para a prevenção (Lima & Assunção,
2002). O grau de aprofundamento da análise de
acidente é uma con s trução social e o avanço do
conhecimento sobre os riscos e as margens para
implementação das medidas de segurança po-
dem tornar inaceitáveis as escolhas de aborda-
gens que não considerem aspectos sociais e or-
ganizacionais (Almeida, 2003). Infelizmente,
ainda predominam nas empresas, nos órgãos
gestores do trânsito e nas instituições afetas à
saúde e segurança no trabalho, a concepção tra-
dicional de que as regras governam as ações dos
a tores sociais. Como nos ensina a etnometodo-
logia, essas explicações enten dem o com porta-
mento do indivíduo como fruto de regras pos-
tas em pr á ticano momento da ação, e os atores
sociais agiriam em con formidade com as alter-
nativas de ação – obrigatórias e preestabeleci-
das – como se fossem“idiotas culturais”, adotan-
do condutas automáticas e impensadas (Co u-
lon, 1995). Assim, quando ocorre um erro ou
acidente, são investigados os desvios em relação
às regras prescritas ou procuradas regras inade-
quadas, o que insti tui a regra como modelo da
atividade e da prevenção.
Da perspectiva da análise cognitiva do aci-
dente aqui proposta (ver abaixo), aexplicitação
dos “desvios” permite, apenas, evidenciar a
ruptura dos “compromissos cognitivos” que
culminou num acidente, sem alcançar as razões
dessa ruptura.
O estudo da atividade cotidiana dos moto-
ciclistas profissionais em situação real permitiu
compreender as situações de trabalho normais
e o contexto social e organizacional em que se
desenrola seu trabalho, e não apenas as condi-
ções de perturbação do processo próximas, es-
pacial e temporalmente, ao acidente. A todo
instante, os mecanismos cognitivos e as habili-
dades práticas dos trabalhadores são colocados
em ação de forma a garantir os objetivos da
produção e os seus próprios objetivos. A situa-
ção é mantida sob controle por um esforço ati-
vo dos trabalhadores, que, com base em regula-
ções e microrregulações, administram a varia-
bilidade e as disfunções, inevitavelmente pre-
sentes em qualquer processo produtivo. Eles
agem mobilizandoos seus recursos cognitivos
para analisar a situação, constituir uma repre-
sentação do riscode aciden te no procedimento
em curso, verificar o nível de exigência do re-
sultado desejado e aindaconsiderar o seu esta-
do de fadiga e sua capacidade, de forma a ela-
borar uma ação apropriada, em um processo
complexo denominado de “compromisso cog-
nitivo” (Amalberti, 1996).
As habilidades práticas e os processos cog-
nitivos implicados na ação possibilitam ao tra-
balhador estabelecer um compromisso, quase
sempre eficaz, entre três objetivos, às vezes
contraditórios: a sua segurança e a do sistema;
o desempenho aceitável; a minimização dos
efei tos fisiológi cos e mentais (Ibid.). A adoção
de um com promisso cognitivo inadequ ado po-
derá provocar desempenho insuficiente, fadiga
excessiva, perda do controle da situação e, em
caso extremo, desencadear um acidente. Em
função da organização do trabalho, do ambi en-
te e da consciência de sua própria capacidade,
os trabalhadores desenvolvem uma verd adeira
arte de gerenciar de manei ra dinâmica os com-
908
908
908
908
promissos, mantendo a situação sob controle,
na maior parte do tempo (Amalberti, 1996).
Essa concepção nos serviu de base para anali-
sar estratégias e modos operatórios construí-
dos pelos motociclistas profissionais na tenta-
tiva de conciliar as exigências do trabalho, so-
bretudorapidez e pontualidade, e a suaprópria
segurança. O reconhecimento desses modos
operatórios e estratégias subsidiou posterior-
mente a elaboração das cláusulas da convenção
coletiva do trabalho.
Métodos e procedimentos
Para enten der as exigências do trabalho do mo-
tociclista profissional e as estratégias que ele
elabora e implementa, realizou-se um estudo
ergonômico cujos princípios teóricos e meto-
dológicos consideram a distinção entre “o que”
foi estabelecidopara os trabalhadores executa-
rem e “como” eles respondem às exigências do
trabalho (Diniz, 2003). A Análise Ergonômica
do Trabalho (AET) é definida como a descrição
das atividades de trabalho ou dos trabalhadores
a partir da observação de todos os comporta-
mentos – perceptivo, motor ou de comunica-
ção. A análise da atividade é aprofundada em
uma segunda e fundamental etapa, a partir de
dados obtidos por meio da autoconfrontação
dos trabalhadores com registros e descrições
dos comportamentos observados pelo ergono-
mista (Guérin et al., 2001). Em outras palavras,
uma vez que a atividade não pode ser reduzida
ao que se consegue observar (Assunção & Lima,
2003), utilizou-se da autoconfrontação dos re-
sultados das observações sistemáticas a fim de
aceder aos aspectos não-objetiváveis do traba-
lho. A autoconfrontação é uma estratégia que
busca, na palavra livre do trabalhador, com-
preender os sentidos que ele próprio imprime
aos resultados obtidos pelo pesquisador.
À luz desses princípios ergonômicos que
nortearam a pesquisa que deu origem, entre
outros, a este artigo, adotaram-se os seguintes
procedimentos: reuniões com representantes
do sindicato de trabalhadores com o intuito de
se obter um conhecimento mais aprofundado
da demanda e informações gerais sobre a cate-
goria; pesquisa das estatísticas de acidentes em
órgãos oficiais (Hospital João XXIII, Programa
de Saúde do Trabalhador, Grupo de Resgatedo
Corpo de Bombeiros, Detran-MG – em Belo
Horizonte e Hospital de Clínicas de Uberlân-
dia) visandoavaliar a gravidade da questão le-
vantada pelo representantedo sindicato. E ain-
da entrevistas abertas com motociclistas pro-
fissionais em um restaurante popular munici-
pal, indicado pelo representante do sindicato
de trabalhadores por ser um local onde eles
costu
mam se reunir para almoçar.
As entrevistas gravadas, posteriormente
transcritas e analisadas, tinham como objetivo
obter uma visão geral da or ganização do traba-
lho, os probl emas enfrentados pela categoria, a
percepção do risco e as respectivas estratégias
de defesa utilizadas para a prevenção de aci-
dentes; registro da atividade por meio de filma-
gens nas ruas e avenidas da cidade, documen-
tando aleatoriamente motociclistas profissio-
nais, ora seguidos de carro, ora filmados de ci-
ma de passarelas e viadutos. As filmagens bus-
cavam identificar os gestos de ação (modo de
pilotar o veículo), gestos de observação (movi-
mentos da cabeça e, em parte, dos olhos) e os
gestos de comunicação (expressões verbais e
corporais); autoconfrontação das cenas do fil-
me com os motociclistas profissionais no res-
taurante popular. Este procedimento buscava
obter com os motociclistas a significação dos
gestos de seus pares documentados em vídeo,
tantodoponto de vista da produção quantodo
pon to de vista da carga de trabalho, explicitan-
do “o que faz”, “com que finalidade – para que”
e “por quê”; estudo e autocon f rontação das ro-
tas elaboradas em mapas que foram fornecidos
aos motociclistas. A autoconfrontação das ro-
tas visavaconhecer as estratégias e modos ope-
ratórios implementados pelos trabalhadores
para planejar e executar os deslocamentos no
trânsito; en trevistas (gravadas, transcritas e de-
pois, analisadas) com motociclistas e organiza-
dores da produção das em presas com o prop ó-
sitode se conhecer a organização do trabalho;
observações abertas da tarefa foram realizadas
na expedição das duas empresas selecionadas,
local estrategicamente escolhido, já que é ali
onde se fazem o acompanhamento e o controle
dos serviços dedeslocamento dos motociclistas
e on de eles têm a ra ra oportunidade de en con-
trar seus pares por alguns instantes. As obser-
vações e posterior autoconfrontação dos fatos
observados na ex pedição tinham como prop ó-
sito obter elementos para a compreensão do
trabalhorealizadoe de como o trabalhador co-
loca em prática sua demanda. Os gestos de
ação, observação e comunicação que os moto-
ciclistas faziam pessoalmente ou por rádio/te-
lefone, com seus colegas, com a itineralista
(operadora de rádio e encarregada de repassar
909
e receber as ordens de serviço) e com o coorde-
nador foram registrados em papel para poste-
ri or autoconfrontação.
Estudou-se uma empresa em Belo Hori-
zonte, especializada em serviços de motof rete
(empresa A) e que tem 160 motociclistas pro-
fissionais. Do total de motociclistas, 140 pres-
tam serviços por hora como terceirizados nas
empresas contratantes. Os demais atendem ao
setor de expedição da empresa A, na execução
de serviços pordeslocamento. A em presa A, in-
dicada pelo representantedo sindicato de tra-
balhadores, foi escolhida por ser uma presta-
dora de serviço de motofrete com um número
significativode trabalhadores que atendiam di-
versos tipos de demandas tanto de pessoas ju-
rídicas quanto de pessoas físicas. De modo a ser
verificado se os probl emas enfrentados pela ca-
tegoria e as regulações elaboradas se asseme-
lhavam às encontradas na capital, a pesquisa
foi realizada também em uma em presa de uma
cidadedo interior (empresa B), que conta com
115 motociclistas. A opção pela empresa B se
deu pelo número de trabalhadores e sua indi-
cação contou com auxílio de representante do
sindicatode trabalhadores daIndústria do Fu-
mo de Uberlândia. A cidade de Uberlândia foi
selecionada em razão do número expressivode
motocicletas na cidade e da constatação in loco
de alguns acidentes nas vias públicas envo lven-
do esse veículo.
Em resumo, foram envolvidos 85 motoci-
clistas, observados e autoconfrontados, totali-
zando 60 horas de observações e entrevistas.
Além dos motociclistas, entrevistaram-se: uma
esposa de motociclista; dez organizadores da
produção, en tre eles, quatro empresários e dois
diretores. Foram realizadas quatro horas de fil-
magens em situações reais de trabalho (tam-
bém analisadas) e 24 rotas foram traçadas e au-
toconfrontadas com os trabalhadores.
Estratégias, regulação e modos
operatórios: um compromisso eficaz
entre produção e segurança
As entrevistas, as observações e as autoconfron-
tações evidenciara
m os mecanismos cognitivos
colocados em ação pela categoria para atingir
os objetivos de produção com segurança. À me-
dida que o conhecimento tácito vai se consoli-
dando, o motociclista profissional aprende a
avaliar a situação para não ser dominado pelas
urgências: Não adianta apavorar, apavoramento
muitas vezes leva ao acidente. Você tem que an-
dar calmo e tranqüilo, respeitando os veículos e a
sinalização.
A experiência permite ao motociclista ela-
borar estratégias que dão sustentação ao com-
promisso eficaz entre a produção e a seguran-
ça: Você, conhecendo o trajeto e sabendo cortar
os caminhos, você encurta o pra zo da entrega. A
pessoa que não sabe vai tentar a diferença no
acelerador.
Os extratos das entrevistas reproduzidas
acima confirmam os resultados das autocon-
frontações das rotas. O conhecimento das vias
permiteaos motociclistas utilizar caminhos al-
ternativos em vez de procedimentos que incre-
mentam os riscos deacidentes.
O planejamento temporal
Uma das formas en con tradas pelos motociclis-
tas profissionais para superar os desafios da
produção material foi o planejamento tempo-
ral das tarefas. Conhecendoasre s trições de ho-
rário das repartições, eles priorizam certos ser-
viços. Eu procuro dar prioridade ao banco. Órgão
público você tem que dar prioridade também
porque fecha às quatro horas e só vive lotado.
Precisando ir a dois bancos simultaneamente,
eles dividem o tempo disponível entre as duas
tarefas: Você pega uma senha, vai em outro ban-
co e retorna.
Para lidar com a burocracia das repartições
públicas e privadas, a ex periência é fundamental
para o bom planejamento das tarefas. Um mo-
tociclista fala das dificuldades enfrentadas no
início da profissão: Hoje sei o que fazer, antiga-
mente eu tinha problema, é órgão públicoque eu
não sabia onde é que era, era falta de assinatura.
Além das estratégias e dos modos operató-
rios mostrados no planejamento temporal, os
procedimentos adotados pelos motociclistas
profissionais em relação à rota também pro-
porcionam maior agilidade na execução dos
serviços, conforme será vistoa seguir.
A elaboração da rota: quandosaberes
e solidariedade se cruzam
A análise e a autoconfrontação das rotas traça-
das nos mapas colocou em evidência diversas
estratégias e modos operatórios implementa-
dos pelos motociclistas profissionais para pla-
nejar e executar os deslocamentosno trânsito.
910
Os motociclistas recebem de seus superio-
res as informações sobre as tarefas. A partir daí,
antes de saírem para a rua, eles planejam a se-
qüência de deslocamentos, buscando equili-
brar aten d i m en tocompresteza, pontualidade e
econ omia de combustível.
Paraelaboração da rota, eles com entam que
é necessário conhecer a localização das ruas, o
sentido do trânsito, os locais de conversão, os
caminhos alternativos mais curtos etc.: Pelo co-
nhecimento que você já tem, a gente já sabe o ca-
minho mais curto.
Contudo, o caminho mais curto nem sem-
pre é o escolhido. Analisando-se a rotaelabora-
da, foi possível identificar deslocamentos em
semicírculos, em detrimento de um percurso
linear; teoricamente mais econômicoem tem-
po e combustível. O motociclista escl a rece por
que esco l h euotrajeto O probl ema todo é que no
caso dessa rota [alternativa], não tem rua que
favo re ce...onde o trânsitoé mais livre.
Nas empresas pesquisadas foi observado
que os motociclistas mantêm uma intensa rede
solidária de ajuda mútua. Eles trocam inform a-
ções com seus pares, pessoalmente, pelo telefo-
ne ou rádio, procurando saber como chegar a
determinado endereço. Para localizar uma rua
desconhecida, eles consultam também o mapa
ou guia da cidade. Um dado importante para se
elaborar a rota é conhecer a localização do nú-
mero desejado nas quadras. Antecipadamente,
os motociclistas planejam o acesso a ruas que
permitirão chegar o mais próximo possível do
ponto desejado.
Os motociclistas que entregam mala-direta
analisam antecipadamente os endereços e or-
denam as correspondências na mesma seqüên-
cia da rota planejada. A rua escolhida para ini-
ciar a distri buição é aquela com maior número
de malas-diretas. Ele explica que faz entregas
nessa rua e também nas cabeceiras das vias
perpendiculares: Eu mato a ponta aqui, ó. Se eu
já estou passando aqui, eu faço duas entregas ou
três nela. Fei to isso, ele retorna, em ziguezague,
pelas ruas perpendiculares ecompleta as en tre-
gas pendentes.
Um motociclista enumera as vantage
ns que
ele obtém fazendo o seqüenciamentoprévio das
malas-diretas: Ganho tempo, ganhocombustível,
economizo bastante. Também é melhor a gente
perder um pou code tem poaqui, colocando em or-
demcerta, do que a gen te fazer uma coisa corren-
do e ter que sair correndo na rua, que é perigoso.
Então, a ordem ficando bem-feita, não precisa a
gente andar co rrendo na rua. Essas palavras con-
firmam que o planejamento da rota é um dos
procedimentos ado t adospela categoria a fim de
obter maior agilidadena atividade e uma alter-
nativa ao comportamentoderisconotrânsito.
Com o tem po, a rota original elaborada pa-
ra distri buir jornais é modificada. Ao descobrir
atalhos e caminhos mais fluentes, o motociclis-
ta ajusta o itinerário, tornando-o mais econô-
micoem termos de tempo ecombustível.
Os inúmeros procedimentos e estratégias
adotados pelos motociclistas em relação à rota
têm como finalidade encontrar percursos me-
n ores e/ou trânsitomais fluente, visandoreali-
zar a tarefa com menor tempo de deslocamen-
to. E tal propósito é alcançado pelo conheci-
mento do trânsito e das vias, das redes sociais
de cooperação e do planejamento baseado na
experiência acumulada.
Tempo e “petróleo”:
os determinantes que predominam
Eles [clientes] sempre falam o seguinte: “A mer-
cadoria sai da China, aqui ela gasta 24 horas”.
Às vezes eu gasto um dia para fazer a entrega.
Eles questionam essa parte. Por quê?” (Motoci-
clista en trevistado).
O relato do motociclista contém uma das
principais queixas apresentadas pelos clientes,
que chegam a comparar o serviço de motoci-
clista com serviços aéreos. Os atrasos não são
compreendidos pelos clientes até mesmo para
tarefas que envolvam transações em mais de
uma repartição pública, local tradicionalmente
caracterizado por filas ex tensas e atendimento
demorado. O coordenador dos motociclistas
da empresa A exemplifica: O cliente passa qua-
tro serviços para ele. Se ele parar em dois bancos
em dia de pico, o cliente acha que ele está enro-
lando com o serviço.
A impaciência manifestada pelos clientes
revela como a sociedade da era virtual desco-
nhece as condições concretas do trabalho dos
motociclistas. A atividade imaterial não exclui,
paraa sua efetivação, a produção material (Li-
ma et al., 2002). O ato de negociar ou deman-
dar serviços por meio de tecnologias informa-
cionais não se fecha em si mesmo; sua efetiva-
ção depende de ações materiais cuja dinâmica
esbarra em burocracias, variabilidades, deter-
minantes não controláveis e deslocamentos no
espaço. São constrangimentos que ninguém
pode negar, mas que os “clientes” menospre-
zam ou desconhecem a real grandeza.
911
Diante das exigências de tempo por parte
dos clientes, as empresas adotam uma organiza-
ção da produção que submete os motociclistas a
el evada densidadedetrabalho. Observou-se que
o rádio e o tel efone são utilizados ininterrupta-
men tepela itineralista da empresa A. A remune-
ração por deslocamento assegura à empresa que
os motociclistas também façam contatoda rua,
informem o término de cada tarefa e se ofere-
çam para realizar outras. Assim, mesmo a dis-
tância e dispondo de um número reduzido de
trabalhadores para atender à expedição, a em-
presa A consegue manter o ritmo de trabalho
em níveiselevados.Isso torna o trabalho do mo-
tociclista uma luta incessante contra o tempo,
pois cada minuto economizado representa, além
de ganhos financeiros, corresponder à expectati-
va doclien tepor um pronto atendimento.
Ao lado do tempo, o dispêndio de combus-
tível é outro importante fator a ser considera-
do pelo motociclista profissional. Juntos cons-
tituem os elementos determinantes no mo-
mento em que ele planeja e executa o trabalho.
A autocon f rontação das rotas confirma: Tenho
que olhar o tempo queeugasto, o petróleo que eu
queimo. Então, quer dizer, é tempo e petróleo, a
minha prioridade.
Para economizar tempo e combustível, os
motociclistas também se apóiam freqüente-
men te no coletivo de trabalho. Na ex pedição da
empresa A, foi observado que eles ficam aten-
tos às demandas apresentadas aos colegas. Um
deles passou a sua tarefa ao colega e solicitou-
lhe que a executasse. Ao ser interrogado sobre
seu gesto, ele esclareceu: Porque ele ia passar
próximo lá, eu ia para outro lugar, ele ia fazer
mais rápido para mim. Quando ele precisar, eu
faço para ele a mesma coisa.
Em frente à empresa A, foi observado que
um motociclista, após ter recebi do a ordem de
serviço, empurrava sua motocicleta desligada,
beirandoo meio-fio, na contramão do trânsi-
to. Ele ju s tifica seu ato: Eu passo de um quartei-
rão para o outro empurrando ela no cantinho,no
passeio, e economizo de cinco a seis quilômetros.
E enumera as vantagens: Evito fazer um deslo-
camento maior, economizogasolina, ganho mui-
to mais no fim do mês e economizotempo. Por is-
so que eu sou rápido.
A busca por agilidade e econ omia de com-
bustível se traduz em procedimentos e modos
operatórios distintos. Alguns não aumentam os
riscos de acidentes: consultam o guia da cida-
de; não desligam a motocicleta ao colocar a
correspondência na caixa do correio; empur-
ram a motocicleta desligada sobre passarelas e
faixas de pedestres; solicitam auxílio do coleti-
vo de trabalho. Outros, ao contrário, apesar de
alcançarem os resultados pretendidos, incre-
mentam os riscos: andam na contramão do
trânsitoetransitam nas calçadas e passarelas de
pedestres com a motocicleta ligada.
As estratégias e modos operatórios
para evitar acidentes no trânsito
Mesmo quando estão se deslocando no trânsi-
to, os motociclistas desenvolvem várias regras
de prudência. Eles identificam o melhor mo-
mento para ultrapassar o veículo à frente: É
quando o veículo perm i teque vocêpasse. Você es-
tá sendo visto pelo motorista. Para confirmar se
foi vistopelo motorista, seus gestos de obser-
vação antecedem os modos operatórios: Pelo
retrovisor, você vê se o motorista te viu. Se ele não
te viu, você dá um toquinho na buzina.
Reconhecendo um riscomaior de acidentes
nos cruzamentos, um motociclista experienteda
empresa A detalha o modo operatório imple-
mentadoquandopreten de seguir em frente sem
alterar a direção: Todos os cruzamentosque tiver,
você tem que parar, observar. Mesmo você estando
certo, você se to rna errado, po rque se acontecer um
acidente quem vai sair no prejuízo é você.
Pelas filmagens e ob s ervações realizadas nas
ruas, constatou-se que um dos procedimentos
mais utilizados pelos motociclistas para evitar
acidentes é acionar a buzina antes das ultrapas-
sagens, adotada também para chamar a aten-
ção de pedestres que atravessam a rua sem
olhar para os lados ou que permanecem nas
vias atrapalhando o trânsito.
Nos meses de junho a setembro, os motoc i-
clistas utilizam uma ou duas antenas metálicas
na frente do veículo para evitar acidentes pro-
vocados por linhas de pipa com cerol (mistura
de pó de vidro e cola utilizada por crianças e
adolescentes na linha de pipa para cortar a do
adversário). As linhas com cerol podem ferir as
artérias cervicais do motociclista e causar a sua
morte.
Discussão: por que os motociclistas
se acidentam?
Os depoimentos dos motociclistas apresenta-
dos revelam que os acidentes são even tos resul-
tantes de interações de sistemas sociotécnicos
912
complexos, como fazer entregas no quadro da
a tual “sociedade da informação” que se desen-
vo lve sobre um espaço urbano não transforma-
do. A atividade dos motociclistas profissionais
responde a demandas técnicas (serviço com
qualidade e no tempo certo) no interior de re-
lacionamentos sociais de trabalho e de proces-
sos intersubjetivos dominados pelas relações
com os clientes. As inúmeras estratégias e mo-
dos operatórios que a categoria implementa
para evitar acidentes, embora assim pareça, ra-
ramente corre s pondem a uma ação mecânica e
totalmente evidente (Llory, 1999). Encontra-
se, aqui, mais uma razão para que as empresas
deixem uma margem de liberd ade na or ganiza-
ção do trabalho, permitindoque os motociclis-
tas possam não só desenvolver, mas, também,
mobilizar as suas competências.
O uso das antenas é mais uma comprova-
ção de que os motociclistas profissionais não
são “Loucospelo perigo” (Revista Veja, 7/7/99);
sua preocupação em atender os clientes não
permite atribuir-lhes um comportamento an-
ti-social, como foram estigmatizados pelos ve í-
culos de imprensa e pela sociedade em geral.
Mesmo com reduzida margem de liberdade,
eles procuram improvisar medidas que estão
ao seu alcance para resguardar sua segurança.
Ao adquirirem experiência, os trabalhado-
res modificam seus comportamentos, passan-
do aos poucos a assumir atitudes mais ousadas.
As modificações do com portamento diante das
disfunções do processo produtivo são, comu-
mente, os únicos meios que os trabalhadores
dispõempara avaliar os seus limites de adapta-
ção, constituindo um fator importante para o
desenvo lvimentode habilidades e deknow-how
profissional (Rasmussen, 1987). Desse modo,
os trabalhadores se experimentam e adquirem
experiência. Nessas situações, o erro está rela-
cionado à impossibilidade de recuperação, por
ocasião dos “experimentos”conscientes e sub-
conscientes colocados em prática pelos traba-
l h adores (Rasmussen, 1987).
O interesse exclusivo nas normas prescritas
faz com que a dimensão subjetiva desenvo lvida
pelos trabalhadores não seja percebida pelos
investigadores dos acidentes. A iniciativa, a de-
dicação, a criatividade, a inventividade, o do-
mínio de si e a mobilização – ou savoir-faire de
prudência –, os conhecimentos tácitos e as re-
gras não formais mobilizados pelos trabalha-
dores escapam aos olhos dos investigadores
(Llory, 1999). Daí certos comportamentos e
hábitos do trabalhador não serem compreendi-
dos por aqueles que analisam e/ou julgam os
acidentes e com portamentos.
A visão que sobressai na análise é, portanto,
parcial e incriminatória, pois está centrada nos
desvios (contudo, sempre inevitáveis) do qua-
dro prescrito. O resultado é a elaboração de um
conjunto de regras que prescrevem tarefas e
condutas, acompanhadada tentativa de obrigar
os trabalhadores a se conformarem com a exe-
cução rigorosa de normas prescritas (Llory,
1999). Essas normas acabam não sendo cum-
pridas de acordo com o esperado, pois as ins-
truções desconsideram certas propriedades –
como orientação cognitiva, seqüencialidade,
temporalidade – somente percebidas quando as
regras são colocadas em prática (Coulon, 1995).
Nessa pers pectiva, não são os erros isolados
que devem ser particularmente considerados
critério absoluto de fragilidadehumana, pois o
trabalhadorse protege contra eles e até mesmo
os provoca (Amalberti, 1996), quando experi-
menta e se experimenta. Por conseguinte, o
sintoma de disfunções não é cometer erros,
mas não mais detectá-los ou recuperá-los
(Ibid.). E isso sobrevém quando os processos
de trabalho não dispõem de todas as defesas,
ou quando os níveis metacognitivos, ou seja o
conhecimento que o trabalhador tem daquilo
que já sabe, e os processos de confiança se con-
fundem, aceitando-se muitos riscos. As defesas
podem não funcionar por falta de competên-
cia, de tempo ou de conjunturas emocionais
particulares como estresse, hipermotivação etc.
(Amalberti, 1996).
A pesquisa realizada evidenciou que “os
modos de andar a vida”, nos termos de Tambel-
lini (1978), dos motociclistas constituem uma
reação construída e moldada em função das
peculiaridades e dos estímulos sobre os quais a
atividade se estruturou: a pressão dos clientes
por serviços rápidos, pontuais e de confiabili-
dade; a el evada demanda de serviços; as precá-
rias relações de trabalho; a ocorrência de gran-
de número de circunstâncias não controláveis;
o uso da motocicleta como meio de desloca-
mento rápido no trânsito congestionado das
grandes cidades.
Os resultados obtidos explicaram o modo
operatório de riscoimplementado no trânsito
pelos motociclistas profissionais como o últi-
mo recurso da categoria, não como um proce-
dimento de rotina, mas como forma de ação
diantede circunstâncias especiais relacionadas
à or ganização do trabalho, que deve, portanto,
ser objeto de transformação.
913
A remuneração por deslocamentoé um fa-
tor de risco, no entanto, menos forte do que a
pressão das em presas e dos clientes para que os
motociclistas cumpram as tarefas nos tempos
determinados. As exigências por um atendi-
men to com pontualidade, pre s tezae confiabili-
dade é que leva os motociclistas a adotar pro-
cedimentos de riscono trânsito.
Viu-se que os procedimentos geradores e
potencializadores dos riscos de acidentes são
reconhecidos pela categoria como efei to da or-
ganização do trabalho, e não uma necessidade
pessoal de sentir fortes emoções. Ao contrário,
os resultados obtidos com a análise da ativida-
de real não apenas revelam a importância da
or ganização do trabalho, mas também a nece s-
sidadedese alarga rem suas “margens” tradicio-
nais, reconhecen do e facilitando os ajustes que
os motociclistas profissionais constroem para
cumprir os objetivos estabelecidos, como as re-
des sociais solidárias no planejamento das ro-
tas, no controle temporal das tarefas e nas ne-
gociações das demandas de serviço com chefias
e clientes. Em vista disto, os mediadores do
acordo coletivo formularam cláusulas de saúde
e segurança que facilitassemesses ajustes prati-
cados pelos motociclistas. Somente quando as
margens de liberdade deixadas pela organiza-
ção do trabalho são estreitas, não levando em
consideração as exigências de tem po e os con s-
trangimentos do espaço, os motociclistas pro-
fissionais alteram o modo operatório de pilo-
tar com vistas a aumentar a agilidade.
A realidade vivida pela categoria constitui,
dessa forma, uma exigência social passível de
transformação, não determinada pela caracte-
rística intrínseca da profissão ou do perfil do
trabalhador, ao contrário da percepção negati-
va da sociedade e dos especialistas em seguran-
çaarespeito dos motociclistas profissionais.
Conclusão: negociação social
e melhoria das condições de trabalho
dos motociclistas profissionais
A mudança do foco de análise, do comporta-
men todo motociclista para as condições mate-
riais, organizacionais e sociais de realização de
sua atividade, direciona igualmente as trans-
formações para as condições de trabalho, com-
preendidas nesta perspectiva mais ampla. As-
sim, em termos práticos, a partir da pesquisa,
foram formuladas recom endações que cobrem
vários aspectos determinantes do comporta-
mentodos motociclistas profissionais, das rel a-
ções contratuais às relações com os clientes,
passando por medidas de reorganização das
vias de trânsito. Todas essas recomendações
têm como objetivo último aliviar os constran-
gimentos materiais, organizacionais e sociais,
permitindo que os motoc i clistas prestem servi-
ço com agilidade, mas sem necessidade de as-
sumir comportamentos de alto risco. Pelo fato
de ser um trabalho relativamente recente, ain-
da não regulamentado, por se realizar em vias
públicas e por ser um serviço prestado direta-
mente a um cliente que exige presteza e quali-
dade, todas essas mudanças exigem negocia-
ções sociais para serem efetivadas. Nos limites
desteartigo, apresentamos alguns resultados da
negociação da convenção coletiva, assinada re-
cen temente en tre o sindicato dos motociclistas
profissionais e os empresários do setor.
A negociação se deu com a intermediação
do Fórum Estadual de Saúde e Segurança do
Trabalhador de Minas Gerais (FESSTMG), co-
ordenado peloMinistério Públicodo Trabalho.
Instituídoem agostode 2000, o Fórum tem por
objetivo principal aglutinar agentes sociais e
instituições em torno de ações conjuntas de
promoção de melhorias das condições de tra-
balho num processo de negociação social das
questões relativas à saúde do trabalhador (Li-
ma, 2003).
O que motivou a criação do FESSTMG foi
a constatação, compartilhada por especialistas
de diversas insti tuições relacionadas à saúde do
trabalho, da ineficiência das ações de preven-
ção e de melhorias das condições de trabalho
tal como elas vêm ocorren do. Apesar de todo o
esforço realizado no Brasil nos últimos 30
anos, tanto para compreender os problemas
quanto para implementar programas de pre-
venção e legislação sobre o assunto, os índices
de acidentes e doenças relacionadas ao traba-
lho con ti nuam elevados.
No caso dos motociclistas, o Ministério Pú-
blico do Trabalho, aFundacentro e a Del egacia
Regi onal do Trabalhonegociaram, em conjunto,
os termos de uma convenção coletiva do traba-
lho, com representantes dos trabalhadores e de
empregadores do setor de motofrete. O início
do processo se deu com a realização de mesa-re-
donda, realizadano M
inistérioPúbl i codo Tra-
balho, em setembro de 2004, quando osresulta-
dos da pesquisa foram apresentados aos atores
sociais da área de saúde , de trabalho e de trânsi-
to, representantesdos trabalhadores e em prega-
dores. No even to foiexplicitadaacomplexidade
914
do problema, a necessidadedeumnovo model o
de atuação, necessáriopara a melhoria das con-
dições de saúde e trabalho da categoria. A partir
daí, 12 reuniões, ora quinzenais, ora semanais,
num total de 60 horas, foram efetivadas com a
mediação e coordenação do FSSTMG e partici-
pação da Fundacentro, Delegacia Regional do
Trabalho e os representantes dos trabalhadores e
empregadores.
O termo básico da convenção foi produzi-
do pelo M
inistério Público do Trabalho a par-
tir de algumas contribuições dos representan-
tes da categoria patronal e dos trabalhadores.
Coube à Fundacen tro elaborar as cláusulas re-
lativas às questões de saúde e segurança. A nor-
ma coletiva foi finalizada em março de 2005,
com 67 cláusulas. Destas, 34 são pertinentes à
segurança e saúde no trabalho (Quad ro 1), re-
presentando uma conquista importante para
esta categoriaprofissional, até então trabalhan-
do sem nenhuma regulamentação em âmbito
federal, estadual ou m
unicipal. Esse consti tui o
primeiropasso que, certamente, s erá o em brião
de futuralegislação federal e municipal sobre o
assunto, cujo conteúdo de segurança e saúde
no trabalho é inédito no país.
Os resultados da análise ergonômica da ati-
vidade mostraram os motociclistas profissio-
nais sob uma ótica produtiva, desenvolvendo
uma gestão eficaz dos compromissos cogniti-
vos. Ou seja, a atividade foi analisada em condi-
ções normais, com os motociclistas colocando
em prática – nas empresas, no trânsito, nas re-
partições e nos contatos com os clientes – inú-
meros modos operatórios e estratégias que sus-
tentam o processo produtivo e a sua segurança,
assim como as circunstâncias que os levam a
adotar comportamentos de alto risco. Esse co-
nhecimento mostrou ser bem mais profícuo pa-
ra as ações de prevenção do que as investigações
clássicas dos acidentes, com a vantagem de re-
conhecer o saber desenvolvido pelos próprios
trabalhadores, contrastandocom as normas de
segurança prescritas, geralmente incompatíveis
com a atividade. Tanto o conteúdo quanto a
construção social desta norma coletiva não te-
riam sido possíveis sem esse mergulho no coti-
diano dos motociclistas profissionais.
915
Quesitos da convenção coletiva de trabalho
Cursos com conteúdo e carga horária definidos e ministrados por: motociclistas experientes,
Fundacentro, prestadores de serviço em direção defen s iva
Proi bi do qualquer sistema de premiação que esti mule comportamentos de riscono trânsito
Prêmio para o motoc i clista que não cometer infração de trânsito
Elaboração de guia de ori entação ao usuário
In formação ao cliente sobre possíveis atrasos
Descontos para clientes que propiciare
m atendimento rápido ao motociclista
Limitede tempo de espera para o cliente atender motociclista
Estímulo e incentivo por parte das empresas
Tempo prescritodiferenciado con forme a experiência do motociclista, dia do mês,
pré e pós feri ado, condições meteorológicas e logradouros
Tempo para novatos acompanhare
m motociclistas experientes
Tarefas com prazo críti co realizadas por dois motociclistas
Limitede tempo para aceite de tarefas urgentes
Proi bição de locar os serviços de um mesmo motociclista para dois ou mais clientes
simultaneamente
Sugestão para compartilhamento de tarefas com outras empresas em bairros distintos
ou cidades vizinhas
Possibilidad
e de negociação da demanda e do tempo prescritosem represália
aos motociclistas, mesmo na condição de terceirizado
In formação às empresas clientes para cumpri rem também os termos da CCT
Hora extra de 100%
Repouso: local de espera nas empresas contratantes dos serviços
Proi bi do o transporte de caixas e baús sustentados nas costas do motoc i clista
Tempo livre semestral para manutenção, semdesconto em salário
Fiscalização da documentação e condições do veículo
Cores claras para roupas, baús e capacetes
Dispositivos refletivos
Baús térmicos para conservação da temperatura dos produtos e alimentos
Obrigatoriedade de uso de antenas e dois retrovisores
Fornecimento de mapas
Fornecimento, por parte das empresas, de todos os EPIs, capacetes fechados e
cintas refletivas para trabalhos noturnos
Vacina contra gripe
Seguro-saúde
Proi bi do o serviço de rua em estado febril ou sob efei to de sedativos
Auxílio-lanche
Condições de trabalho
Formação
Prêmio de produção-competição
Estímulo às regras de sociabilidade
no trânsito
Envolvimento dos clientes
dos serviços
Apoio aocoletivo de trabalho
e redes solidárias
Organização do trabalho
Con forto
Mo to e acessórios
EPI
Condições específicas de saúde
Quadro 1
Síntese das cláusulas de Segurança e Saúde da Convenção Coletiva.
916
Colaboradores
EPH Diniz realizou o trabalho de campo. Autor da disser-
tação de mestrado que deu origem a este artigo, ele foi
orientado por AA Assunção e FPA Lima. Todos os autores
participaram da elaboração do artigo.
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nados de ergonomia. Fundacentro, São Paulo.
Artigoapresentado em 15/06/2005
Aprovado em 4/07/2005
Versão final apresentada em 27/07/2005

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Análise Ergonômica Motociclistas

  • 1. PARA QUE SERVE A ANÁLISE ERGONÔMICA DO TRABALHO Autores: José Marçal Jackson Filho Eugênio Paceli Hatem Diniz Mauro Marques Muller Disponível em: https://www.escolavirtual.gov.br/ Obra referenciada: Prevenção de acidentes: o reconhecimento das estratégias operatórias dos motociclistas profissionais como base para a negociação de acordo coletivo Autores: Eugênio Paceli Hatem Diniz Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho Centro Regional de Minas Gerais Ada Ávila Assunção Universidade Federal de Minas Gerais Departamento de Medicina Preventiva e Social Francisco de Paula Antunes Lima Universidade Federal de Minas Gerais Departamento de Engenharia de Produção Fonte: DINIZ, E.P.H.; ASSUNÇÃO, A. A.; LIMA, F.P.A. Prevenção de acidentes: o reconhecimento das estratégias operatórias dos motociclistas profissionais como base para a negociação de acordo coletivo. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v.10,n.4, p. 905-916, 2005. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/Q5v5zqjbYj3fTrKZpF4Gyct/?lang=pt
  • 2. 905 Prevenção de acidentes: o reconhecimento das estratégias operatórias dos motociclistas profissionais como base para a negociação de acordo coletivo Accident prevention: recognition of motorcycle couriers’ work strategies as the basis for collective bargaining 1 Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho, Centro Regional de Minas Gerais. Rua dos Guajajaras 40/14o andar, 30180-100, Belo Horizonte MG. eugenio.diniz@ fundacentro. gov.br 2 Departamento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Medicina da Un iversidade Federal de Minas Gerais. 3 Departamento de Engenharia de Produção da Un iversidade Federal de Minas Gerais. Eugênio Paceli Hatem Diniz 1 Ada Ávila Assunção 2 Francisco de Paula Antunes Lima 3 Abstract The aim of this study is to present, as operational stra tegies, the contribuition to elabo- ra te some prevention measures to prote ct the pro- fessional motorcyclists, popularly known as “mo- toboys”, against accidents. The authors present a cri tic to the human error co n ception that is hege- monic to the experts at wo rk security. The results come from an Ergonomics study that started over an Union demand of the professional motorcy- clists in Minas Gerais. The total come to 85 pro- fessional motorciclists who were interviewed and observed. The procedures were: report the activity filmed in the city streets and avenues; selfcon- frontation of the scenes and of the map rutes, and of some aspects obeserved in the two selected com- panies. Finally the authors discuss the limits of the security rules without considering the knowl- edge obtained by the workers themselves. The measures to change the situation that make the accidents happen were used to elaboratethe col- lective work convention. These measures were su ppo rtedby a detailedstudyof the implemented strategies by the individuals who were analised. Key words Professional motorcyclists, Motob oy, Labor accidents, Traffic accidents, Ergonomics Analysis of Labour Resumo O objetivo deste artigo é apre sentar co- mo o estudo das estratégias operatórias contribui pa ra elaborar medidas de prevenção dos aciden- tes sofridos pelos motociclistas profissionais, co- nhecidos popularmente como “motoboys”. Os au- tores apresentam uma crítica à concepção do erro humano, hegemônica dentre os especialistas em segurança do trabalho. Os resultados apresenta- dos fo ram obtidos de um estudo ergonômico ini- ciado por demanda do sindicato dos motociclistas profissionais de Minas Gerais. No total, 85 moto- ciclistas profissionais foram observados e entre- vistados. Os procedimentos adotados foram: re- gistro da atividade por meio de filmagens nas ruas e avenidas da cidade; autoconfrontação das cenas do filme e das rotas elaboradas em mapas, e de certos aspectos das atividades de trabalho ob- servadas na expedição das duas em presas selecio- nadas. Ao final, os autores discutem os limites das normas de segurança prescritas que não conside- ram o saber desenvolvido pelos próprios trabalha- dores. As medidas de transformação das situações geradoras de acidentes elaboradas com apoio no estudo detalhado das estratégias implementadas pelos su jei tos estudados servi ram para a elabora- ção da convenção coletiva de trabalho. Palavras-chave Motociclistas profissionais, Mo- toboy, Acidentes de trânsito, Acidente de trabalho, Análise Ergonômica do Trabalho
  • 3. 906 906 906 906 906 906 906 906 Introdução: Por uma abordagemcompreensiva dos acidentes com motociclistas O obj etivo deste artigoé apre s entar como o es- tudo das estratégias operatórias contribui para elaborar medidas de prevenção dos acidentes sofridos pelos motociclistas profissionais, co- nhecidos popularmente como “motoboys”. As medidas de transformação das situações gera- doras de acidentes foram fundamentadas em uma pesquisa er gonômica (Diniz, 2003), cujos resultados orientaram, den tre outras recomen- dações, a elaboração de uma convenção coletiva de trabalho, firmada em 31 de março de 2005. Esta convenção é objeto de discussão mais deta- lhada na con clusão deste artigo, cujo corpo está organizado em quatro partes principais: (1) após apresentarmos, nesta introdução, uma al- ternativa crítica à con cepção do erro humano, hegemônica dentre os especialistas em seguran- ça do trabalho, (2) discorremos brevem en teso- bre os procedimentos metodológicos e (3) de s- crevemos os resultados da análise ergonômica do trabalho dos motociclistas, relatandoao fi- nal (4) o quadroinstitucional de negociação da convenção coletiva de trabalho e os avanços mais significativos. A negociação desta conven- ção coletiva, inédita no Brasil, orientou-se, em seus pon tos substantivos, pelos resultados da análise da atividade co tidiana dos motociclistas profissionais, e foi direcionada para a criação de condições de trabalho que os auxilie na gestão dos diversos incidentes que se apresentam no decorrer de seu trabalho e na elaboração de es- tratégias de prevenção.As cláusulas de saúde e segurança procuraram ampliar a margem de li- berdade na regulação da atividadecotidiana, de forma a aliviar a pressão temporal que está na origem dos acidentes sofridos por esta catego- ria profissional. Partindode uma demanda do sindicato dos motociclistas profissionais de Minas Gerais, a pesquisa teve início em meados de 1999. Na ocasião,o presidente do sindicato relatou o ex- pressivo crescimento do setor, a situação dos acidentes graves e fatais e a ausência de regula- mentação das condições de trabalho e dos ser- viços realizados pela categoria. Tradicionalmente, os acidentes de trabalho são analisados ten do como pressupostoa ideo- logia do ato inseguro, cuja concepção data da década de 1930. No caso dos motoc i clistas pro- fissionais, essa visão é legitimadapelo senso co- mum, manifestado nas páginas dos jornais ou nas opiniões das pessoas, que se referem aos motociclistas profissionais em termos de “im- prudência”, “ousadia”, “irresponsabilidade”, “in- civilidade”, “prazer por fortes emoções” etc. Eis alguns julgamentos típicos: a médica que parti- cipou da pesquisa do Ipea sobre custos de aci- den tes de trânsito, afirmaque o gosto dos moto- boys pelo risco da velocidade se compara ao rapel dos adolescentes da classe média (Folha de S. Paulo, 1o de junho de 2003); o jornalista Larry Rohtersintetiza o sentimentopopular dos pau- listas em relação a este “privilegiado” grupo que escapa aos obstáculos do trânsito: zigueza- gueando entre os carros parados, ignorando as demarcações de faixas, semáforos vermelhos e si- nais para parar, eles ameaçam regularmente os pedestres e enfurecem os motoristas enquanto passam às pressas por ruas e avenidas congestio- nadas (Rohter, 2004). O mais inquietanteé que não apenas a mídia e a sociedade em geral, mas também os especialistas em segurança no trân- sito e no trabalho referem-se ao ato inseguro quando analisam e julgam o comportamento e o perfil dos motociclistas profissionais. Os adje- tivos atribuídos ao modo de transitar pelas ruas das cidades indicam que algumas das estraté- gias e os modos operatórios implementados pe- la categoria, injustificáveis e inaceitáveis do ponto de vista do observador, não são vistos co- mo algo cuja origem é determinada fora do trânsito em si. Ao contrário, defen demos a tese de que o comportamento dos motociclistas profissionais decorre das fortes exigências e dos limites impostos à ação e à gestão dos riscos a que estão submetidos, determinados por rela- ções sociais mais amplas, que devem ser anali- sadas e transformadas. A opinião pública em relação aos motoci- clistas profissionais revela uma verdadeira “hi- pocrisia social”: avaliamos positivamente o seu trabalho, mas negativamente seu comporta- mento, como se um e outro existissemsepara- damente: Todos od eiam os motoboys, exceto quan- do precisam de um. Quando ele está levando às pressas um documento seu pela cidade, então ele se torna seu salvador, um herói, e você adora o su- jeito (Caíto Ortiz, diretor do curta Motoboys: vi- da loca. In Rohter, 2004). Essa visão do senso comum repete-se tam- bém entre especialistas da saúde ocupacional. As abordagens tradicionais interpretam o aci- den te de trabalho como sen do um even to sim- ples e determinado por uma causa única (ou por uma causa imediata, quando se reconhe- cem múltiplas causas). A dicotomia e superfi-
  • 4. 907 cialidade da ideologia do ato inseguro – fator pessoal de insegurança x condição insegura – explicam por que os acidentes são tratados pre- dominantemente pelo viés do simples receituá- rio de equipamentos de segurança individual (EPIs) e da divulgação de cartilhas que objeti- vam a conscientização dos riscose, conseqüen- temente, a mudança do comportamento. Assis- timos, nos mais variados ambientes de traba- lho, à divu l gaçãode normas que preten dem in- tensificar a fiscalização e ameaçam os trabalha- dores com punições. Os ro teiros de investiga- ção são baseados na verificação do cumpri- mento ou não de normas internas e legais, isentando-se de identificar as condições e as formas de interação dos componentes dos sis- temas que levaram à ocorrência do evento. No caso dos motociclistas profissionais, as ações resumem-se a reforçar a fiscalização ou pro- m over cursos de direção defensiva. A prática prevencionista tradicional assu- me uma con cepção racionalista do comporta- mento humano, como se este fosse determina- do exclusivamente pela consciência. Assim, to- da falha decorreria de uma decisão humana, donde as ações de controle para evitar os des- vios e a formação para reforçar o comporta- mento seguro. Ora, os estudos mais recentes, em vários campos, confluempara a com preen- são da “falha técnica” como sendo o resultado de circunstâncias e decisões anteriores: o aci- dente, como qualquer outro evento, tem ante- cedentes e uma história complexa (Perrow, 1984; Reason, 1990; Wisner, 1994; Amalberti, 1996; Co llins & Pinch , 1998; Llory, 1999). A interrupção precoce da análise, semiden- tificar as determinações mediatas das falhas, amputa a identificação da trama complexa de fatores causais do acidente, com conseqüências negativas para a prevenção (Lima & Assunção, 2002). O grau de aprofundamento da análise de acidente é uma con s trução social e o avanço do conhecimento sobre os riscos e as margens para implementação das medidas de segurança po- dem tornar inaceitáveis as escolhas de aborda- gens que não considerem aspectos sociais e or- ganizacionais (Almeida, 2003). Infelizmente, ainda predominam nas empresas, nos órgãos gestores do trânsito e nas instituições afetas à saúde e segurança no trabalho, a concepção tra- dicional de que as regras governam as ações dos a tores sociais. Como nos ensina a etnometodo- logia, essas explicações enten dem o com porta- mento do indivíduo como fruto de regras pos- tas em pr á ticano momento da ação, e os atores sociais agiriam em con formidade com as alter- nativas de ação – obrigatórias e preestabeleci- das – como se fossem“idiotas culturais”, adotan- do condutas automáticas e impensadas (Co u- lon, 1995). Assim, quando ocorre um erro ou acidente, são investigados os desvios em relação às regras prescritas ou procuradas regras inade- quadas, o que insti tui a regra como modelo da atividade e da prevenção. Da perspectiva da análise cognitiva do aci- dente aqui proposta (ver abaixo), aexplicitação dos “desvios” permite, apenas, evidenciar a ruptura dos “compromissos cognitivos” que culminou num acidente, sem alcançar as razões dessa ruptura. O estudo da atividade cotidiana dos moto- ciclistas profissionais em situação real permitiu compreender as situações de trabalho normais e o contexto social e organizacional em que se desenrola seu trabalho, e não apenas as condi- ções de perturbação do processo próximas, es- pacial e temporalmente, ao acidente. A todo instante, os mecanismos cognitivos e as habili- dades práticas dos trabalhadores são colocados em ação de forma a garantir os objetivos da produção e os seus próprios objetivos. A situa- ção é mantida sob controle por um esforço ati- vo dos trabalhadores, que, com base em regula- ções e microrregulações, administram a varia- bilidade e as disfunções, inevitavelmente pre- sentes em qualquer processo produtivo. Eles agem mobilizandoos seus recursos cognitivos para analisar a situação, constituir uma repre- sentação do riscode aciden te no procedimento em curso, verificar o nível de exigência do re- sultado desejado e aindaconsiderar o seu esta- do de fadiga e sua capacidade, de forma a ela- borar uma ação apropriada, em um processo complexo denominado de “compromisso cog- nitivo” (Amalberti, 1996). As habilidades práticas e os processos cog- nitivos implicados na ação possibilitam ao tra- balhador estabelecer um compromisso, quase sempre eficaz, entre três objetivos, às vezes contraditórios: a sua segurança e a do sistema; o desempenho aceitável; a minimização dos efei tos fisiológi cos e mentais (Ibid.). A adoção de um com promisso cognitivo inadequ ado po- derá provocar desempenho insuficiente, fadiga excessiva, perda do controle da situação e, em caso extremo, desencadear um acidente. Em função da organização do trabalho, do ambi en- te e da consciência de sua própria capacidade, os trabalhadores desenvolvem uma verd adeira arte de gerenciar de manei ra dinâmica os com-
  • 5. 908 908 908 908 promissos, mantendo a situação sob controle, na maior parte do tempo (Amalberti, 1996). Essa concepção nos serviu de base para anali- sar estratégias e modos operatórios construí- dos pelos motociclistas profissionais na tenta- tiva de conciliar as exigências do trabalho, so- bretudorapidez e pontualidade, e a suaprópria segurança. O reconhecimento desses modos operatórios e estratégias subsidiou posterior- mente a elaboração das cláusulas da convenção coletiva do trabalho. Métodos e procedimentos Para enten der as exigências do trabalho do mo- tociclista profissional e as estratégias que ele elabora e implementa, realizou-se um estudo ergonômico cujos princípios teóricos e meto- dológicos consideram a distinção entre “o que” foi estabelecidopara os trabalhadores executa- rem e “como” eles respondem às exigências do trabalho (Diniz, 2003). A Análise Ergonômica do Trabalho (AET) é definida como a descrição das atividades de trabalho ou dos trabalhadores a partir da observação de todos os comporta- mentos – perceptivo, motor ou de comunica- ção. A análise da atividade é aprofundada em uma segunda e fundamental etapa, a partir de dados obtidos por meio da autoconfrontação dos trabalhadores com registros e descrições dos comportamentos observados pelo ergono- mista (Guérin et al., 2001). Em outras palavras, uma vez que a atividade não pode ser reduzida ao que se consegue observar (Assunção & Lima, 2003), utilizou-se da autoconfrontação dos re- sultados das observações sistemáticas a fim de aceder aos aspectos não-objetiváveis do traba- lho. A autoconfrontação é uma estratégia que busca, na palavra livre do trabalhador, com- preender os sentidos que ele próprio imprime aos resultados obtidos pelo pesquisador. À luz desses princípios ergonômicos que nortearam a pesquisa que deu origem, entre outros, a este artigo, adotaram-se os seguintes procedimentos: reuniões com representantes do sindicato de trabalhadores com o intuito de se obter um conhecimento mais aprofundado da demanda e informações gerais sobre a cate- goria; pesquisa das estatísticas de acidentes em órgãos oficiais (Hospital João XXIII, Programa de Saúde do Trabalhador, Grupo de Resgatedo Corpo de Bombeiros, Detran-MG – em Belo Horizonte e Hospital de Clínicas de Uberlân- dia) visandoavaliar a gravidade da questão le- vantada pelo representantedo sindicato. E ain- da entrevistas abertas com motociclistas pro- fissionais em um restaurante popular munici- pal, indicado pelo representante do sindicato de trabalhadores por ser um local onde eles costu mam se reunir para almoçar. As entrevistas gravadas, posteriormente transcritas e analisadas, tinham como objetivo obter uma visão geral da or ganização do traba- lho, os probl emas enfrentados pela categoria, a percepção do risco e as respectivas estratégias de defesa utilizadas para a prevenção de aci- dentes; registro da atividade por meio de filma- gens nas ruas e avenidas da cidade, documen- tando aleatoriamente motociclistas profissio- nais, ora seguidos de carro, ora filmados de ci- ma de passarelas e viadutos. As filmagens bus- cavam identificar os gestos de ação (modo de pilotar o veículo), gestos de observação (movi- mentos da cabeça e, em parte, dos olhos) e os gestos de comunicação (expressões verbais e corporais); autoconfrontação das cenas do fil- me com os motociclistas profissionais no res- taurante popular. Este procedimento buscava obter com os motociclistas a significação dos gestos de seus pares documentados em vídeo, tantodoponto de vista da produção quantodo pon to de vista da carga de trabalho, explicitan- do “o que faz”, “com que finalidade – para que” e “por quê”; estudo e autocon f rontação das ro- tas elaboradas em mapas que foram fornecidos aos motociclistas. A autoconfrontação das ro- tas visavaconhecer as estratégias e modos ope- ratórios implementados pelos trabalhadores para planejar e executar os deslocamentos no trânsito; en trevistas (gravadas, transcritas e de- pois, analisadas) com motociclistas e organiza- dores da produção das em presas com o prop ó- sitode se conhecer a organização do trabalho; observações abertas da tarefa foram realizadas na expedição das duas empresas selecionadas, local estrategicamente escolhido, já que é ali onde se fazem o acompanhamento e o controle dos serviços dedeslocamento dos motociclistas e on de eles têm a ra ra oportunidade de en con- trar seus pares por alguns instantes. As obser- vações e posterior autoconfrontação dos fatos observados na ex pedição tinham como prop ó- sito obter elementos para a compreensão do trabalhorealizadoe de como o trabalhador co- loca em prática sua demanda. Os gestos de ação, observação e comunicação que os moto- ciclistas faziam pessoalmente ou por rádio/te- lefone, com seus colegas, com a itineralista (operadora de rádio e encarregada de repassar
  • 6. 909 e receber as ordens de serviço) e com o coorde- nador foram registrados em papel para poste- ri or autoconfrontação. Estudou-se uma empresa em Belo Hori- zonte, especializada em serviços de motof rete (empresa A) e que tem 160 motociclistas pro- fissionais. Do total de motociclistas, 140 pres- tam serviços por hora como terceirizados nas empresas contratantes. Os demais atendem ao setor de expedição da empresa A, na execução de serviços pordeslocamento. A em presa A, in- dicada pelo representantedo sindicato de tra- balhadores, foi escolhida por ser uma presta- dora de serviço de motofrete com um número significativode trabalhadores que atendiam di- versos tipos de demandas tanto de pessoas ju- rídicas quanto de pessoas físicas. De modo a ser verificado se os probl emas enfrentados pela ca- tegoria e as regulações elaboradas se asseme- lhavam às encontradas na capital, a pesquisa foi realizada também em uma em presa de uma cidadedo interior (empresa B), que conta com 115 motociclistas. A opção pela empresa B se deu pelo número de trabalhadores e sua indi- cação contou com auxílio de representante do sindicatode trabalhadores daIndústria do Fu- mo de Uberlândia. A cidade de Uberlândia foi selecionada em razão do número expressivode motocicletas na cidade e da constatação in loco de alguns acidentes nas vias públicas envo lven- do esse veículo. Em resumo, foram envolvidos 85 motoci- clistas, observados e autoconfrontados, totali- zando 60 horas de observações e entrevistas. Além dos motociclistas, entrevistaram-se: uma esposa de motociclista; dez organizadores da produção, en tre eles, quatro empresários e dois diretores. Foram realizadas quatro horas de fil- magens em situações reais de trabalho (tam- bém analisadas) e 24 rotas foram traçadas e au- toconfrontadas com os trabalhadores. Estratégias, regulação e modos operatórios: um compromisso eficaz entre produção e segurança As entrevistas, as observações e as autoconfron- tações evidenciara m os mecanismos cognitivos colocados em ação pela categoria para atingir os objetivos de produção com segurança. À me- dida que o conhecimento tácito vai se consoli- dando, o motociclista profissional aprende a avaliar a situação para não ser dominado pelas urgências: Não adianta apavorar, apavoramento muitas vezes leva ao acidente. Você tem que an- dar calmo e tranqüilo, respeitando os veículos e a sinalização. A experiência permite ao motociclista ela- borar estratégias que dão sustentação ao com- promisso eficaz entre a produção e a seguran- ça: Você, conhecendo o trajeto e sabendo cortar os caminhos, você encurta o pra zo da entrega. A pessoa que não sabe vai tentar a diferença no acelerador. Os extratos das entrevistas reproduzidas acima confirmam os resultados das autocon- frontações das rotas. O conhecimento das vias permiteaos motociclistas utilizar caminhos al- ternativos em vez de procedimentos que incre- mentam os riscos deacidentes. O planejamento temporal Uma das formas en con tradas pelos motociclis- tas profissionais para superar os desafios da produção material foi o planejamento tempo- ral das tarefas. Conhecendoasre s trições de ho- rário das repartições, eles priorizam certos ser- viços. Eu procuro dar prioridade ao banco. Órgão público você tem que dar prioridade também porque fecha às quatro horas e só vive lotado. Precisando ir a dois bancos simultaneamente, eles dividem o tempo disponível entre as duas tarefas: Você pega uma senha, vai em outro ban- co e retorna. Para lidar com a burocracia das repartições públicas e privadas, a ex periência é fundamental para o bom planejamento das tarefas. Um mo- tociclista fala das dificuldades enfrentadas no início da profissão: Hoje sei o que fazer, antiga- mente eu tinha problema, é órgão públicoque eu não sabia onde é que era, era falta de assinatura. Além das estratégias e dos modos operató- rios mostrados no planejamento temporal, os procedimentos adotados pelos motociclistas profissionais em relação à rota também pro- porcionam maior agilidade na execução dos serviços, conforme será vistoa seguir. A elaboração da rota: quandosaberes e solidariedade se cruzam A análise e a autoconfrontação das rotas traça- das nos mapas colocou em evidência diversas estratégias e modos operatórios implementa- dos pelos motociclistas profissionais para pla- nejar e executar os deslocamentosno trânsito.
  • 7. 910 Os motociclistas recebem de seus superio- res as informações sobre as tarefas. A partir daí, antes de saírem para a rua, eles planejam a se- qüência de deslocamentos, buscando equili- brar aten d i m en tocompresteza, pontualidade e econ omia de combustível. Paraelaboração da rota, eles com entam que é necessário conhecer a localização das ruas, o sentido do trânsito, os locais de conversão, os caminhos alternativos mais curtos etc.: Pelo co- nhecimento que você já tem, a gente já sabe o ca- minho mais curto. Contudo, o caminho mais curto nem sem- pre é o escolhido. Analisando-se a rotaelabora- da, foi possível identificar deslocamentos em semicírculos, em detrimento de um percurso linear; teoricamente mais econômicoem tem- po e combustível. O motociclista escl a rece por que esco l h euotrajeto O probl ema todo é que no caso dessa rota [alternativa], não tem rua que favo re ce...onde o trânsitoé mais livre. Nas empresas pesquisadas foi observado que os motociclistas mantêm uma intensa rede solidária de ajuda mútua. Eles trocam inform a- ções com seus pares, pessoalmente, pelo telefo- ne ou rádio, procurando saber como chegar a determinado endereço. Para localizar uma rua desconhecida, eles consultam também o mapa ou guia da cidade. Um dado importante para se elaborar a rota é conhecer a localização do nú- mero desejado nas quadras. Antecipadamente, os motociclistas planejam o acesso a ruas que permitirão chegar o mais próximo possível do ponto desejado. Os motociclistas que entregam mala-direta analisam antecipadamente os endereços e or- denam as correspondências na mesma seqüên- cia da rota planejada. A rua escolhida para ini- ciar a distri buição é aquela com maior número de malas-diretas. Ele explica que faz entregas nessa rua e também nas cabeceiras das vias perpendiculares: Eu mato a ponta aqui, ó. Se eu já estou passando aqui, eu faço duas entregas ou três nela. Fei to isso, ele retorna, em ziguezague, pelas ruas perpendiculares ecompleta as en tre- gas pendentes. Um motociclista enumera as vantage ns que ele obtém fazendo o seqüenciamentoprévio das malas-diretas: Ganho tempo, ganhocombustível, economizo bastante. Também é melhor a gente perder um pou code tem poaqui, colocando em or- demcerta, do que a gen te fazer uma coisa corren- do e ter que sair correndo na rua, que é perigoso. Então, a ordem ficando bem-feita, não precisa a gente andar co rrendo na rua. Essas palavras con- firmam que o planejamento da rota é um dos procedimentos ado t adospela categoria a fim de obter maior agilidadena atividade e uma alter- nativa ao comportamentoderisconotrânsito. Com o tem po, a rota original elaborada pa- ra distri buir jornais é modificada. Ao descobrir atalhos e caminhos mais fluentes, o motociclis- ta ajusta o itinerário, tornando-o mais econô- micoem termos de tempo ecombustível. Os inúmeros procedimentos e estratégias adotados pelos motociclistas em relação à rota têm como finalidade encontrar percursos me- n ores e/ou trânsitomais fluente, visandoreali- zar a tarefa com menor tempo de deslocamen- to. E tal propósito é alcançado pelo conheci- mento do trânsito e das vias, das redes sociais de cooperação e do planejamento baseado na experiência acumulada. Tempo e “petróleo”: os determinantes que predominam Eles [clientes] sempre falam o seguinte: “A mer- cadoria sai da China, aqui ela gasta 24 horas”. Às vezes eu gasto um dia para fazer a entrega. Eles questionam essa parte. Por quê?” (Motoci- clista en trevistado). O relato do motociclista contém uma das principais queixas apresentadas pelos clientes, que chegam a comparar o serviço de motoci- clista com serviços aéreos. Os atrasos não são compreendidos pelos clientes até mesmo para tarefas que envolvam transações em mais de uma repartição pública, local tradicionalmente caracterizado por filas ex tensas e atendimento demorado. O coordenador dos motociclistas da empresa A exemplifica: O cliente passa qua- tro serviços para ele. Se ele parar em dois bancos em dia de pico, o cliente acha que ele está enro- lando com o serviço. A impaciência manifestada pelos clientes revela como a sociedade da era virtual desco- nhece as condições concretas do trabalho dos motociclistas. A atividade imaterial não exclui, paraa sua efetivação, a produção material (Li- ma et al., 2002). O ato de negociar ou deman- dar serviços por meio de tecnologias informa- cionais não se fecha em si mesmo; sua efetiva- ção depende de ações materiais cuja dinâmica esbarra em burocracias, variabilidades, deter- minantes não controláveis e deslocamentos no espaço. São constrangimentos que ninguém pode negar, mas que os “clientes” menospre- zam ou desconhecem a real grandeza.
  • 8. 911 Diante das exigências de tempo por parte dos clientes, as empresas adotam uma organiza- ção da produção que submete os motociclistas a el evada densidadedetrabalho. Observou-se que o rádio e o tel efone são utilizados ininterrupta- men tepela itineralista da empresa A. A remune- ração por deslocamento assegura à empresa que os motociclistas também façam contatoda rua, informem o término de cada tarefa e se ofere- çam para realizar outras. Assim, mesmo a dis- tância e dispondo de um número reduzido de trabalhadores para atender à expedição, a em- presa A consegue manter o ritmo de trabalho em níveiselevados.Isso torna o trabalho do mo- tociclista uma luta incessante contra o tempo, pois cada minuto economizado representa, além de ganhos financeiros, corresponder à expectati- va doclien tepor um pronto atendimento. Ao lado do tempo, o dispêndio de combus- tível é outro importante fator a ser considera- do pelo motociclista profissional. Juntos cons- tituem os elementos determinantes no mo- mento em que ele planeja e executa o trabalho. A autocon f rontação das rotas confirma: Tenho que olhar o tempo queeugasto, o petróleo que eu queimo. Então, quer dizer, é tempo e petróleo, a minha prioridade. Para economizar tempo e combustível, os motociclistas também se apóiam freqüente- men te no coletivo de trabalho. Na ex pedição da empresa A, foi observado que eles ficam aten- tos às demandas apresentadas aos colegas. Um deles passou a sua tarefa ao colega e solicitou- lhe que a executasse. Ao ser interrogado sobre seu gesto, ele esclareceu: Porque ele ia passar próximo lá, eu ia para outro lugar, ele ia fazer mais rápido para mim. Quando ele precisar, eu faço para ele a mesma coisa. Em frente à empresa A, foi observado que um motociclista, após ter recebi do a ordem de serviço, empurrava sua motocicleta desligada, beirandoo meio-fio, na contramão do trânsi- to. Ele ju s tifica seu ato: Eu passo de um quartei- rão para o outro empurrando ela no cantinho,no passeio, e economizo de cinco a seis quilômetros. E enumera as vantagens: Evito fazer um deslo- camento maior, economizogasolina, ganho mui- to mais no fim do mês e economizotempo. Por is- so que eu sou rápido. A busca por agilidade e econ omia de com- bustível se traduz em procedimentos e modos operatórios distintos. Alguns não aumentam os riscos de acidentes: consultam o guia da cida- de; não desligam a motocicleta ao colocar a correspondência na caixa do correio; empur- ram a motocicleta desligada sobre passarelas e faixas de pedestres; solicitam auxílio do coleti- vo de trabalho. Outros, ao contrário, apesar de alcançarem os resultados pretendidos, incre- mentam os riscos: andam na contramão do trânsitoetransitam nas calçadas e passarelas de pedestres com a motocicleta ligada. As estratégias e modos operatórios para evitar acidentes no trânsito Mesmo quando estão se deslocando no trânsi- to, os motociclistas desenvolvem várias regras de prudência. Eles identificam o melhor mo- mento para ultrapassar o veículo à frente: É quando o veículo perm i teque vocêpasse. Você es- tá sendo visto pelo motorista. Para confirmar se foi vistopelo motorista, seus gestos de obser- vação antecedem os modos operatórios: Pelo retrovisor, você vê se o motorista te viu. Se ele não te viu, você dá um toquinho na buzina. Reconhecendo um riscomaior de acidentes nos cruzamentos, um motociclista experienteda empresa A detalha o modo operatório imple- mentadoquandopreten de seguir em frente sem alterar a direção: Todos os cruzamentosque tiver, você tem que parar, observar. Mesmo você estando certo, você se to rna errado, po rque se acontecer um acidente quem vai sair no prejuízo é você. Pelas filmagens e ob s ervações realizadas nas ruas, constatou-se que um dos procedimentos mais utilizados pelos motociclistas para evitar acidentes é acionar a buzina antes das ultrapas- sagens, adotada também para chamar a aten- ção de pedestres que atravessam a rua sem olhar para os lados ou que permanecem nas vias atrapalhando o trânsito. Nos meses de junho a setembro, os motoc i- clistas utilizam uma ou duas antenas metálicas na frente do veículo para evitar acidentes pro- vocados por linhas de pipa com cerol (mistura de pó de vidro e cola utilizada por crianças e adolescentes na linha de pipa para cortar a do adversário). As linhas com cerol podem ferir as artérias cervicais do motociclista e causar a sua morte. Discussão: por que os motociclistas se acidentam? Os depoimentos dos motociclistas apresenta- dos revelam que os acidentes são even tos resul- tantes de interações de sistemas sociotécnicos
  • 9. 912 complexos, como fazer entregas no quadro da a tual “sociedade da informação” que se desen- vo lve sobre um espaço urbano não transforma- do. A atividade dos motociclistas profissionais responde a demandas técnicas (serviço com qualidade e no tempo certo) no interior de re- lacionamentos sociais de trabalho e de proces- sos intersubjetivos dominados pelas relações com os clientes. As inúmeras estratégias e mo- dos operatórios que a categoria implementa para evitar acidentes, embora assim pareça, ra- ramente corre s pondem a uma ação mecânica e totalmente evidente (Llory, 1999). Encontra- se, aqui, mais uma razão para que as empresas deixem uma margem de liberd ade na or ganiza- ção do trabalho, permitindoque os motociclis- tas possam não só desenvolver, mas, também, mobilizar as suas competências. O uso das antenas é mais uma comprova- ção de que os motociclistas profissionais não são “Loucospelo perigo” (Revista Veja, 7/7/99); sua preocupação em atender os clientes não permite atribuir-lhes um comportamento an- ti-social, como foram estigmatizados pelos ve í- culos de imprensa e pela sociedade em geral. Mesmo com reduzida margem de liberdade, eles procuram improvisar medidas que estão ao seu alcance para resguardar sua segurança. Ao adquirirem experiência, os trabalhado- res modificam seus comportamentos, passan- do aos poucos a assumir atitudes mais ousadas. As modificações do com portamento diante das disfunções do processo produtivo são, comu- mente, os únicos meios que os trabalhadores dispõempara avaliar os seus limites de adapta- ção, constituindo um fator importante para o desenvo lvimentode habilidades e deknow-how profissional (Rasmussen, 1987). Desse modo, os trabalhadores se experimentam e adquirem experiência. Nessas situações, o erro está rela- cionado à impossibilidade de recuperação, por ocasião dos “experimentos”conscientes e sub- conscientes colocados em prática pelos traba- l h adores (Rasmussen, 1987). O interesse exclusivo nas normas prescritas faz com que a dimensão subjetiva desenvo lvida pelos trabalhadores não seja percebida pelos investigadores dos acidentes. A iniciativa, a de- dicação, a criatividade, a inventividade, o do- mínio de si e a mobilização – ou savoir-faire de prudência –, os conhecimentos tácitos e as re- gras não formais mobilizados pelos trabalha- dores escapam aos olhos dos investigadores (Llory, 1999). Daí certos comportamentos e hábitos do trabalhador não serem compreendi- dos por aqueles que analisam e/ou julgam os acidentes e com portamentos. A visão que sobressai na análise é, portanto, parcial e incriminatória, pois está centrada nos desvios (contudo, sempre inevitáveis) do qua- dro prescrito. O resultado é a elaboração de um conjunto de regras que prescrevem tarefas e condutas, acompanhadada tentativa de obrigar os trabalhadores a se conformarem com a exe- cução rigorosa de normas prescritas (Llory, 1999). Essas normas acabam não sendo cum- pridas de acordo com o esperado, pois as ins- truções desconsideram certas propriedades – como orientação cognitiva, seqüencialidade, temporalidade – somente percebidas quando as regras são colocadas em prática (Coulon, 1995). Nessa pers pectiva, não são os erros isolados que devem ser particularmente considerados critério absoluto de fragilidadehumana, pois o trabalhadorse protege contra eles e até mesmo os provoca (Amalberti, 1996), quando experi- menta e se experimenta. Por conseguinte, o sintoma de disfunções não é cometer erros, mas não mais detectá-los ou recuperá-los (Ibid.). E isso sobrevém quando os processos de trabalho não dispõem de todas as defesas, ou quando os níveis metacognitivos, ou seja o conhecimento que o trabalhador tem daquilo que já sabe, e os processos de confiança se con- fundem, aceitando-se muitos riscos. As defesas podem não funcionar por falta de competên- cia, de tempo ou de conjunturas emocionais particulares como estresse, hipermotivação etc. (Amalberti, 1996). A pesquisa realizada evidenciou que “os modos de andar a vida”, nos termos de Tambel- lini (1978), dos motociclistas constituem uma reação construída e moldada em função das peculiaridades e dos estímulos sobre os quais a atividade se estruturou: a pressão dos clientes por serviços rápidos, pontuais e de confiabili- dade; a el evada demanda de serviços; as precá- rias relações de trabalho; a ocorrência de gran- de número de circunstâncias não controláveis; o uso da motocicleta como meio de desloca- mento rápido no trânsito congestionado das grandes cidades. Os resultados obtidos explicaram o modo operatório de riscoimplementado no trânsito pelos motociclistas profissionais como o últi- mo recurso da categoria, não como um proce- dimento de rotina, mas como forma de ação diantede circunstâncias especiais relacionadas à or ganização do trabalho, que deve, portanto, ser objeto de transformação.
  • 10. 913 A remuneração por deslocamentoé um fa- tor de risco, no entanto, menos forte do que a pressão das em presas e dos clientes para que os motociclistas cumpram as tarefas nos tempos determinados. As exigências por um atendi- men to com pontualidade, pre s tezae confiabili- dade é que leva os motociclistas a adotar pro- cedimentos de riscono trânsito. Viu-se que os procedimentos geradores e potencializadores dos riscos de acidentes são reconhecidos pela categoria como efei to da or- ganização do trabalho, e não uma necessidade pessoal de sentir fortes emoções. Ao contrário, os resultados obtidos com a análise da ativida- de real não apenas revelam a importância da or ganização do trabalho, mas também a nece s- sidadedese alarga rem suas “margens” tradicio- nais, reconhecen do e facilitando os ajustes que os motociclistas profissionais constroem para cumprir os objetivos estabelecidos, como as re- des sociais solidárias no planejamento das ro- tas, no controle temporal das tarefas e nas ne- gociações das demandas de serviço com chefias e clientes. Em vista disto, os mediadores do acordo coletivo formularam cláusulas de saúde e segurança que facilitassemesses ajustes prati- cados pelos motociclistas. Somente quando as margens de liberdade deixadas pela organiza- ção do trabalho são estreitas, não levando em consideração as exigências de tem po e os con s- trangimentos do espaço, os motociclistas pro- fissionais alteram o modo operatório de pilo- tar com vistas a aumentar a agilidade. A realidade vivida pela categoria constitui, dessa forma, uma exigência social passível de transformação, não determinada pela caracte- rística intrínseca da profissão ou do perfil do trabalhador, ao contrário da percepção negati- va da sociedade e dos especialistas em seguran- çaarespeito dos motociclistas profissionais. Conclusão: negociação social e melhoria das condições de trabalho dos motociclistas profissionais A mudança do foco de análise, do comporta- men todo motociclista para as condições mate- riais, organizacionais e sociais de realização de sua atividade, direciona igualmente as trans- formações para as condições de trabalho, com- preendidas nesta perspectiva mais ampla. As- sim, em termos práticos, a partir da pesquisa, foram formuladas recom endações que cobrem vários aspectos determinantes do comporta- mentodos motociclistas profissionais, das rel a- ções contratuais às relações com os clientes, passando por medidas de reorganização das vias de trânsito. Todas essas recomendações têm como objetivo último aliviar os constran- gimentos materiais, organizacionais e sociais, permitindo que os motoc i clistas prestem servi- ço com agilidade, mas sem necessidade de as- sumir comportamentos de alto risco. Pelo fato de ser um trabalho relativamente recente, ain- da não regulamentado, por se realizar em vias públicas e por ser um serviço prestado direta- mente a um cliente que exige presteza e quali- dade, todas essas mudanças exigem negocia- ções sociais para serem efetivadas. Nos limites desteartigo, apresentamos alguns resultados da negociação da convenção coletiva, assinada re- cen temente en tre o sindicato dos motociclistas profissionais e os empresários do setor. A negociação se deu com a intermediação do Fórum Estadual de Saúde e Segurança do Trabalhador de Minas Gerais (FESSTMG), co- ordenado peloMinistério Públicodo Trabalho. Instituídoem agostode 2000, o Fórum tem por objetivo principal aglutinar agentes sociais e instituições em torno de ações conjuntas de promoção de melhorias das condições de tra- balho num processo de negociação social das questões relativas à saúde do trabalhador (Li- ma, 2003). O que motivou a criação do FESSTMG foi a constatação, compartilhada por especialistas de diversas insti tuições relacionadas à saúde do trabalho, da ineficiência das ações de preven- ção e de melhorias das condições de trabalho tal como elas vêm ocorren do. Apesar de todo o esforço realizado no Brasil nos últimos 30 anos, tanto para compreender os problemas quanto para implementar programas de pre- venção e legislação sobre o assunto, os índices de acidentes e doenças relacionadas ao traba- lho con ti nuam elevados. No caso dos motociclistas, o Ministério Pú- blico do Trabalho, aFundacentro e a Del egacia Regi onal do Trabalhonegociaram, em conjunto, os termos de uma convenção coletiva do traba- lho, com representantes dos trabalhadores e de empregadores do setor de motofrete. O início do processo se deu com a realização de mesa-re- donda, realizadano M inistérioPúbl i codo Tra- balho, em setembro de 2004, quando osresulta- dos da pesquisa foram apresentados aos atores sociais da área de saúde , de trabalho e de trânsi- to, representantesdos trabalhadores e em prega- dores. No even to foiexplicitadaacomplexidade
  • 11. 914 do problema, a necessidadedeumnovo model o de atuação, necessáriopara a melhoria das con- dições de saúde e trabalho da categoria. A partir daí, 12 reuniões, ora quinzenais, ora semanais, num total de 60 horas, foram efetivadas com a mediação e coordenação do FSSTMG e partici- pação da Fundacentro, Delegacia Regional do Trabalho e os representantes dos trabalhadores e empregadores. O termo básico da convenção foi produzi- do pelo M inistério Público do Trabalho a par- tir de algumas contribuições dos representan- tes da categoria patronal e dos trabalhadores. Coube à Fundacen tro elaborar as cláusulas re- lativas às questões de saúde e segurança. A nor- ma coletiva foi finalizada em março de 2005, com 67 cláusulas. Destas, 34 são pertinentes à segurança e saúde no trabalho (Quad ro 1), re- presentando uma conquista importante para esta categoriaprofissional, até então trabalhan- do sem nenhuma regulamentação em âmbito federal, estadual ou m unicipal. Esse consti tui o primeiropasso que, certamente, s erá o em brião de futuralegislação federal e municipal sobre o assunto, cujo conteúdo de segurança e saúde no trabalho é inédito no país. Os resultados da análise ergonômica da ati- vidade mostraram os motociclistas profissio- nais sob uma ótica produtiva, desenvolvendo uma gestão eficaz dos compromissos cogniti- vos. Ou seja, a atividade foi analisada em condi- ções normais, com os motociclistas colocando em prática – nas empresas, no trânsito, nas re- partições e nos contatos com os clientes – inú- meros modos operatórios e estratégias que sus- tentam o processo produtivo e a sua segurança, assim como as circunstâncias que os levam a adotar comportamentos de alto risco. Esse co- nhecimento mostrou ser bem mais profícuo pa- ra as ações de prevenção do que as investigações clássicas dos acidentes, com a vantagem de re- conhecer o saber desenvolvido pelos próprios trabalhadores, contrastandocom as normas de segurança prescritas, geralmente incompatíveis com a atividade. Tanto o conteúdo quanto a construção social desta norma coletiva não te- riam sido possíveis sem esse mergulho no coti- diano dos motociclistas profissionais.
  • 12. 915 Quesitos da convenção coletiva de trabalho Cursos com conteúdo e carga horária definidos e ministrados por: motociclistas experientes, Fundacentro, prestadores de serviço em direção defen s iva Proi bi do qualquer sistema de premiação que esti mule comportamentos de riscono trânsito Prêmio para o motoc i clista que não cometer infração de trânsito Elaboração de guia de ori entação ao usuário In formação ao cliente sobre possíveis atrasos Descontos para clientes que propiciare m atendimento rápido ao motociclista Limitede tempo de espera para o cliente atender motociclista Estímulo e incentivo por parte das empresas Tempo prescritodiferenciado con forme a experiência do motociclista, dia do mês, pré e pós feri ado, condições meteorológicas e logradouros Tempo para novatos acompanhare m motociclistas experientes Tarefas com prazo críti co realizadas por dois motociclistas Limitede tempo para aceite de tarefas urgentes Proi bição de locar os serviços de um mesmo motociclista para dois ou mais clientes simultaneamente Sugestão para compartilhamento de tarefas com outras empresas em bairros distintos ou cidades vizinhas Possibilidad e de negociação da demanda e do tempo prescritosem represália aos motociclistas, mesmo na condição de terceirizado In formação às empresas clientes para cumpri rem também os termos da CCT Hora extra de 100% Repouso: local de espera nas empresas contratantes dos serviços Proi bi do o transporte de caixas e baús sustentados nas costas do motoc i clista Tempo livre semestral para manutenção, semdesconto em salário Fiscalização da documentação e condições do veículo Cores claras para roupas, baús e capacetes Dispositivos refletivos Baús térmicos para conservação da temperatura dos produtos e alimentos Obrigatoriedade de uso de antenas e dois retrovisores Fornecimento de mapas Fornecimento, por parte das empresas, de todos os EPIs, capacetes fechados e cintas refletivas para trabalhos noturnos Vacina contra gripe Seguro-saúde Proi bi do o serviço de rua em estado febril ou sob efei to de sedativos Auxílio-lanche Condições de trabalho Formação Prêmio de produção-competição Estímulo às regras de sociabilidade no trânsito Envolvimento dos clientes dos serviços Apoio aocoletivo de trabalho e redes solidárias Organização do trabalho Con forto Mo to e acessórios EPI Condições específicas de saúde Quadro 1 Síntese das cláusulas de Segurança e Saúde da Convenção Coletiva.
  • 13. 916 Colaboradores EPH Diniz realizou o trabalho de campo. Autor da disser- tação de mestrado que deu origem a este artigo, ele foi orientado por AA Assunção e FPA Lima. Todos os autores participaram da elaboração do artigo. Referências bibliográficas As sunção AA & Lima FPA 2003. A contribuição da er go- nomia paraaidentificação, redução e eliminação da nocividade do trabalho, pp. 1767-1789. In R Mendes. Patologia do trabalho. Atheneu, São Paulo. Almeida IM 2003. Caminhos da análise de acidentes do trabalho. Ministério do Trabalho e Emprego/SIT. Bra- sília. Amalberti R 1996. Laconduitedesystèmes à ri sques.Press Universitaires de France. Paris. Collins HM & Pinch TJ 1998. The Golem at Large: What you should know abo ut technology. CambridgeUni- versity Press. Coulon A 1995. Etnometodologia e educação. Vozes, Petró- polis. Diniz EPH 2003. As condições acidentogênicas e as estraté- gias de regulação dos motociclistas profissionais: entre as exigências de tempo e osconstrangimen tos do espa- ço. Dissertação de mestrado, Un iversidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte. Granato A 1999. Loucos pelo perigo. Veja 1.605:90-93, 7/7/99. Guérin F, Laville A, Daniellou F, Duraffourg J & Kergue- len A 2001. Compre end er o tra balho para transformá- lo. Edgar Blücher, São Paulo. Leplat J (ed.) 1987. New technology and human error. John Wiley & Sons, New York. Lima FPA & Assunção AA 2002. Anál ise dos acidentes: Cia de Aços Especiais de It a bi ra. Laboratório de Ergono- mia DEP/UFMG, Belo Horizonte. Lima FPA, Soares RG & Leal L 2002. A relação de serviço produção material e na produção imaterial. XII Con- gresso Brasileiro de Ergonomia, Recife. Lima FPA 2003. Ações coordenadas em saúde do traba- lhador: uma proposta de ação supra-institucional, pp. 143-151. In MABC Takahashi & RAG Vilela (orgs.). A saúde do trabalhador e saúde ambiental. CRST, Piracicaba. Llory M 1999. Acidentes industriais: o custo do silêncio. Multimais Editorial, Rio de Janeiro. Pellim R & Biancarelli A 2003. Moto representa 19% do gasto com acidentes. Folha de S. Paulo, 1o de junho. Perrow C 1984. Normal accidents: living with high-risk technologies. Basic Books. RasmussenJ1987. Reasons, causes, and human error, pp. 293-301. InJRasmussen, K Duncan & J Lepat (eds.). Newtechnology and human error. John Wiley &Sons, New York. Rasmussen J 1987. Cognitive control and human error mecahnisms, pp. 53-61. In J Rasmussen, K Duncan & J Lepat (eds.). New technology and human error. John Wiley & Sons, New York. Reason J 1990. Human error. Cambridge UP, New York. Rohter L 2004. Motob oys de SP sãoodiados, mas indispen- sáveis. Disponível em <http://notícias.uol.com.br/ midiaglobal/nytimes>. Acessado em 30/11/2004. Tambellini AM 1978. O trabalhoedoença, pp. 93-119. In R Guimarães (org.). Saúde e med i cina no Brasil: contri- buiçãopara um debate.EdiçõesGraal, Rio de Janeiro. Wisner A 1994. A inteligência do trabalho: textos selecio- nados de ergonomia. Fundacentro, São Paulo. Artigoapresentado em 15/06/2005 Aprovado em 4/07/2005 Versão final apresentada em 27/07/2005