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MOLEIROS E
                               CARVOEIROS
                                            António Torrado
                                             escreveu e
                                    Cristina Malaquias ilustrou

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                                                                        Dia Mundial da Paz




   No tempo em que as velas dos moinhos rodavam ao
vento, um moleiro, todo enfarinhado de carregar com sacas
de farinha, cruzou-se, na estrada, com um carvoeiro todo
enfarruscado de carregar com sacas de carvão.
   Esquecemo-nos de dizer que ao lado do moleiro ia o
filho do moleiro e ao lado do carvoeiro, o filho do
carvoeiro. Nesse tempo também, os filhos dos moleiros
não tinham outro destino senão ser moleiros e os filhos dos
carvoeiros não podiam ambicionar outra vida senão ser
carvoeiros.
   – Ó pai, já viste aqueles dois tão sujos que ali vão? –
disse o filho do moleiro para o moleiro.
   O filho do carvoeiro ouviu o comentário e não gostou.
Aliás, o pai também não gostou.
   – Sujos vão eles – lançou o garoto do carvoeiro.
                                              1
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Carvoeiros e moleiros pararam na estrada, enfrentando-
-se com ar de poucos amigos. Quem está sujo, quem não
está sujo, o certo é que, depois de algumas más palavras
trocadas em despique, os dois miúdos engalfinharam-se à
zaragata. E os pais atrás deles.
   Mãos que ameaçam, murros que se cruzam, joelhadas
que fervem, e os que estavam brancos ficaram manchados
de preto e os que estavam pretos ficaram manchados de
branco. De mistura com o pó da estrada, uma nuvem
cinzenta – cinzenta de carvão e farinha – rodeou os
contendores.
   Correu gente dos campos próximos a apartá-los. Não foi
sem custo que os separaram, magoando-se tanto os que
pediam paz como os que faziam guerra. Então um velho de
respeitáveis barbas, que com os outros camponeses
acudira à contenda, falou assim:
   – Tão tolos são os filhos como os pais. Vejam-se agora,
reparem nos nossos fatos e digam se não estão mais sujos
do que estavam?
   Realmente já se não distinguia qual o moleiro e qual o
carvoeiro.
   – Se tivessem dado um abraço, em vez de bulharem, o
resultado teria sido o mesmo – continuou o velho. – E,
realmente, porque se não hão-de abraçar estes trabal-
hadores honrados, orgulhosos da profissão que escolheram
e dos fatos de trabalho que envergam? Vá, dêem um
abraço, rapazes!
   Os garotos, um pouco reticentes, abraçaram-se. Os
homens, um pouco contravontade, abraçaram-se.
   – Ena, que sujo que eu estou! – riu-se o filho do
carvoeiro.

                                              2
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– Não estás menos do que eu – riu-se o filho do moleiro.
  Riram-se os filhos. Riram-se os pais. Toda a gente riu
com gosto e a história acaba aqui. E bem.


   FIM




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  • 1. MOLEIROS E CARVOEIROS António Torrado escreveu e Cristina Malaquias ilustrou 1 de Janeiro Dia Mundial da Paz No tempo em que as velas dos moinhos rodavam ao vento, um moleiro, todo enfarinhado de carregar com sacas de farinha, cruzou-se, na estrada, com um carvoeiro todo enfarruscado de carregar com sacas de carvão. Esquecemo-nos de dizer que ao lado do moleiro ia o filho do moleiro e ao lado do carvoeiro, o filho do carvoeiro. Nesse tempo também, os filhos dos moleiros não tinham outro destino senão ser moleiros e os filhos dos carvoeiros não podiam ambicionar outra vida senão ser carvoeiros. – Ó pai, já viste aqueles dois tão sujos que ali vão? – disse o filho do moleiro para o moleiro. O filho do carvoeiro ouviu o comentário e não gostou. Aliás, o pai também não gostou. – Sujos vão eles – lançou o garoto do carvoeiro. 1 © APENA - APDD – Cofinanciado pelo POSI e pela Presidência do Conselho de Ministros
  • 2. Carvoeiros e moleiros pararam na estrada, enfrentando- -se com ar de poucos amigos. Quem está sujo, quem não está sujo, o certo é que, depois de algumas más palavras trocadas em despique, os dois miúdos engalfinharam-se à zaragata. E os pais atrás deles. Mãos que ameaçam, murros que se cruzam, joelhadas que fervem, e os que estavam brancos ficaram manchados de preto e os que estavam pretos ficaram manchados de branco. De mistura com o pó da estrada, uma nuvem cinzenta – cinzenta de carvão e farinha – rodeou os contendores. Correu gente dos campos próximos a apartá-los. Não foi sem custo que os separaram, magoando-se tanto os que pediam paz como os que faziam guerra. Então um velho de respeitáveis barbas, que com os outros camponeses acudira à contenda, falou assim: – Tão tolos são os filhos como os pais. Vejam-se agora, reparem nos nossos fatos e digam se não estão mais sujos do que estavam? Realmente já se não distinguia qual o moleiro e qual o carvoeiro. – Se tivessem dado um abraço, em vez de bulharem, o resultado teria sido o mesmo – continuou o velho. – E, realmente, porque se não hão-de abraçar estes trabal- hadores honrados, orgulhosos da profissão que escolheram e dos fatos de trabalho que envergam? Vá, dêem um abraço, rapazes! Os garotos, um pouco reticentes, abraçaram-se. Os homens, um pouco contravontade, abraçaram-se. – Ena, que sujo que eu estou! – riu-se o filho do carvoeiro. 2 © APENA - APDD – Cofinanciado pelo POSI e pela Presidência do Conselho de Ministros
  • 3. – Não estás menos do que eu – riu-se o filho do moleiro. Riram-se os filhos. Riram-se os pais. Toda a gente riu com gosto e a história acaba aqui. E bem. FIM 3 © APENA - APDD – Cofinanciado pelo POSI e pela Presidência do Conselho de Ministros