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LEI DO “VENTRE LIVRE”?!



                                                                             Rebeca Oliveira Duarte


       Vinte e oito de setembro. Algumas pessoas até lembram: é o dia da “Lei do Ventre Livre”.
Ensina-se nas escolas se tratar de lei que concedia liberdade aos filhos de escravas gerados a partir
de então. Era a abolição gradual e etapista, dizem, ainda, alguns manuais.
       Pouco ou nada se conhece entretanto da real matéria da lei. Conhecida mais oficialmente
como Lei Rio Branco – o linguajar romântico do abolicionismo folhetinesco foi quem trouxe o
ilusório “ventre livre” -, a lei nº2.040/1871 tratou na verdade de formalizar o processo indenizatório
aos exploradores de mão-de-obra escrava que, diante da proibição do tráfico de escravizadas/os e do
inevitável movimento político-econômico de substituição da mão-de-obra escravizada para
assalariada, ao qual o Estado brasileiro foi um dos últimos a seguir, exigiam do Governo a
“reparação” dos prejuízos que teriam diante da revogação do estatuto jurídico da escravidão. Da Lei
Rio Branco, seguir-se-ia a Lei Saraiva-Cotegipe (Lei dos Sexagenários), também de conteúdo
indenizatório, e a Lei Áurea que, por não conter dispositivos de indenização, causou o que seria
chamado de movimento indenizista pelos fazendeiros e ex-”proprietários” de pessoas escravizadas.
       De liberdade, na Lei Rio Branco não havia nada. Havia tão-somente a manipulação das
vidas humanas por uma negociação dos senhores com o Governo brasileiro; nela, encontraremos a
exploração do trabalho forçado de crianças e adolescentes negros/as, chamadas então de “menores”,
e a comercialização dos mesmos: ao invés de nascidas livres, como a lei dizia garantir, as crianças
ficariam sob o poderio e autoridade dos senhores de suas mães até os oito anos completos;
chegando a essa idade, o senhor teria as opções de, ou negociar sua entrega ao Estado em troca de
uma indenização de seiscentos mil réis, ou utilizar seus trabalhos e serviços até que completasse 21
anos de idade (art. 1º, §1º).
       Como complementação ao procedimento indenizatório, pois, que ajudava ainda mais a
elevar a concentração de renda nas mãos da elite proprietária do país, estava o processo de
institucionalização das crianças e dos adolescentes negros/as, pela criação de associações e/ou
estabelecimentos públicos para os quais seriam entregues. Tais associações e estabelecimentos
poderiam, por seu turno, explorar o trabalho dos ditos “menores” até que completassem 21 anos de
idade, sendo-lhes facultado inclusive alugar os seus serviços (art. 2º).
       Aqui, o termo “menor” utilizado nos dá o exato significado da palavra que hoje lutamos por
derrubar. Destituídas de humanidade e da condição de sujeitos, as crianças e adolescentes negras
foram então institucionalizadas, inaugurando o tempo em que menor será um refugo social sobre o
qual as leis e os juízes deverão tutelar em “benefício” da sociedade. Será esse menor, ainda, que
décadas depois será tratado no famigerado Código de Menores, constituindo todo um arsenal
jurídico – legal e doutrinário – de caráter opressor e objetificante em relação àquelas crianças e
adolescentes excluídos do acesso a direitos. Em especial e sob o foco dos aplicadores da lei, as
crianças e adolescentes negros/os, por receberem como herança o estigma da escravidão e da
institucionalização decorrente da Lei Rio Branco, independentemente da “abolição” completa da
escravidão legal e de uma República meritocraticamente “igualitária”.
       Imaginamos como deverá ter sido tratado o ventre da mulher negra; ao invés de livre, um
instrumento de produção de bens a serem negociados com o Governo por títulos de renda com o
juro anual de 6%. Livre mesmo, somente a imaginação dos detentores de poder no Brasil, de tantos
mecanismos tão bem construídos para fundamentar esse país estruturalmente racista.




LEI Nº2.040, DE 28 DE SETEMBRO DE 1871


(Lei Rio Branco)


Declara de condição livre os filhos de mulher escrava que nascerem desde a data desta lei, liberta os
escravos da nação e outros, e providencia sobre a criação e tratamento daqueles filhos menores e
sobre libertação anual dos escravos.


A Princesa Imperial Regente, em nome de sua Majestade o Imperador o Senhor D. Pedro II, faz
saber a todos os súditos do Império que a Assembléia-Geral decretou e ela sancionou a lei seguinte:


Art. 1º. Os filhos da mulher escrava, que nascerem no Império desde a data desta lei, serão
considerados de condição livre.
§1º. Os ditos filhos menores ficarão em poder e sob a autoridade dos senhores de suas mães, os
quais terão obrigação de criá-los e tratá-los até a idade de oito anos completos. Chegando o filho da
escrava a esta idade, o senhor da mãe terá a opção, ou de receber do Estado a indenização de
seiscentos mil réis ou de utilizar-se dos serviços do menor até a idade de 21 anos completos. No
primeiro caso, o governo receberá o menor, e lhe dará destino, em conformidade da presente lei. A
indenização pecuniária acima fixada será paga em títulos de renda com o juro anual de 6%, os quais
se declararão extintos no fim de 30 anos. A declaração do senhor deverá ser feita dentro de 30 dias,
a contar daquele em que o menor chegar à idade de oito anos e, se a não fizer então, ficará
entendido que opta pelo arbítrio de utilizar-se dos serviços do mesmo menor.
§2º. Qualquer desses menores poderá remir-se do ônus de servir, mediante prévia indenização
pecuniária, que por si ou por outrem ofereça ao senhor de sua mãe, procedendo-lhe à avaliação dos
serviços pelo tempo que lhe restar a preencher, se não houver acordo sobre o quantum da mesma
indenização.
§3º. Cabe também aos senhores criar e tratar os filhos que as filhas de suas escravas possam ter
quando aquelas estiverem prestando serviços. Tal obrigação, porém, cessará logo que findar a
prestação dos serviços das mães. Se estas falecerem dentro daquele prazo, seus filhos poderão ser
postos à disposição do governo.
§4º. Se a mulher escrava obtiver liberdade, os filhos menores de oito anos que estejam em poder do
senhor dela, por virtude do parágrafo 1º, lhe serão entregues, exceto se preferir deixá-los e o senhor
anuir a ficar com eles.
§5º. No caso de alienação da mulher escrava, seus filhos livres menores de 12 anos, a
acompanharão, ficando o novo senhor da mesma escrava sub-rogado nos direitos e obrigações do
antecessor.
§6º. Cessa a prestação dos serviços dos filhos das escravas antes do prazo marcado no parágrafo 1º,
se, por sentença do juízo criminal, reconhecer-se que os senhores das mães os maltratam,
infligindo-lhes castigos excessivos.
§7º. O direito conferido aos senhores no parágrafo 1º, transfere-se nos casos de sucessão necessária,
devendo o filho da escrava prestar serviços à pessoa a quem nas partilhas pertencer a mesma
escrava.


Art. 2º. O Governo poderá entregar às associações por ele autorizadas os filhos das escravas,
nascidos desde a data desta lei, que sejam cedidos ou abandonados pelos senhores delas, ou tirados
do poder destes em virtude do art. 1º, parágrafo 6º.
§1º. As ditas associações terão direito aos serviços gratuitos dos menores até a idade de 21 anos
completos e poderão alugar esses serviços, mas serão obrigadas: 1º – A criar e tratar os mesmos
menores. 2º – A construir para cada um deles um pecúlio, consistente na quota que para este fim for
reservada nos respectivos estatutos. 3º – A procurar-lhes, findo o tempo de serviço, apropriada
colocação.
§2º. As associações de que trata o parágrafo antecedente serão sujeitas à inspeção dos juízes de
órgãos, quanto aos menores.
§3º. A disposição deste artigo é aplicável ás casas de expostos, e às pessoas a quem os juízes de
órfãos encarregarem a educação dos ditos menores, na falta de associações ou estabelecimentos
criados para tal fim.
§4º. Fica salvo ao governo o direito de mandar recolher os referidos menores aos estabelecimentos
públicos, transferindo-se neste caso para o Estado as obrigações que o parágrafo 1º impõe às
associações autorizadas.
(Seguem-se os artigos referentes à libertação etapista dos escravos – de nação, das heranças vagas e
os abandonados por seus “senhores”).

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  • 1. LEI DO “VENTRE LIVRE”?! Rebeca Oliveira Duarte Vinte e oito de setembro. Algumas pessoas até lembram: é o dia da “Lei do Ventre Livre”. Ensina-se nas escolas se tratar de lei que concedia liberdade aos filhos de escravas gerados a partir de então. Era a abolição gradual e etapista, dizem, ainda, alguns manuais. Pouco ou nada se conhece entretanto da real matéria da lei. Conhecida mais oficialmente como Lei Rio Branco – o linguajar romântico do abolicionismo folhetinesco foi quem trouxe o ilusório “ventre livre” -, a lei nº2.040/1871 tratou na verdade de formalizar o processo indenizatório aos exploradores de mão-de-obra escrava que, diante da proibição do tráfico de escravizadas/os e do inevitável movimento político-econômico de substituição da mão-de-obra escravizada para assalariada, ao qual o Estado brasileiro foi um dos últimos a seguir, exigiam do Governo a “reparação” dos prejuízos que teriam diante da revogação do estatuto jurídico da escravidão. Da Lei Rio Branco, seguir-se-ia a Lei Saraiva-Cotegipe (Lei dos Sexagenários), também de conteúdo indenizatório, e a Lei Áurea que, por não conter dispositivos de indenização, causou o que seria chamado de movimento indenizista pelos fazendeiros e ex-”proprietários” de pessoas escravizadas. De liberdade, na Lei Rio Branco não havia nada. Havia tão-somente a manipulação das vidas humanas por uma negociação dos senhores com o Governo brasileiro; nela, encontraremos a exploração do trabalho forçado de crianças e adolescentes negros/as, chamadas então de “menores”, e a comercialização dos mesmos: ao invés de nascidas livres, como a lei dizia garantir, as crianças ficariam sob o poderio e autoridade dos senhores de suas mães até os oito anos completos; chegando a essa idade, o senhor teria as opções de, ou negociar sua entrega ao Estado em troca de uma indenização de seiscentos mil réis, ou utilizar seus trabalhos e serviços até que completasse 21 anos de idade (art. 1º, §1º). Como complementação ao procedimento indenizatório, pois, que ajudava ainda mais a elevar a concentração de renda nas mãos da elite proprietária do país, estava o processo de institucionalização das crianças e dos adolescentes negros/as, pela criação de associações e/ou estabelecimentos públicos para os quais seriam entregues. Tais associações e estabelecimentos poderiam, por seu turno, explorar o trabalho dos ditos “menores” até que completassem 21 anos de idade, sendo-lhes facultado inclusive alugar os seus serviços (art. 2º). Aqui, o termo “menor” utilizado nos dá o exato significado da palavra que hoje lutamos por derrubar. Destituídas de humanidade e da condição de sujeitos, as crianças e adolescentes negras foram então institucionalizadas, inaugurando o tempo em que menor será um refugo social sobre o
  • 2. qual as leis e os juízes deverão tutelar em “benefício” da sociedade. Será esse menor, ainda, que décadas depois será tratado no famigerado Código de Menores, constituindo todo um arsenal jurídico – legal e doutrinário – de caráter opressor e objetificante em relação àquelas crianças e adolescentes excluídos do acesso a direitos. Em especial e sob o foco dos aplicadores da lei, as crianças e adolescentes negros/os, por receberem como herança o estigma da escravidão e da institucionalização decorrente da Lei Rio Branco, independentemente da “abolição” completa da escravidão legal e de uma República meritocraticamente “igualitária”. Imaginamos como deverá ter sido tratado o ventre da mulher negra; ao invés de livre, um instrumento de produção de bens a serem negociados com o Governo por títulos de renda com o juro anual de 6%. Livre mesmo, somente a imaginação dos detentores de poder no Brasil, de tantos mecanismos tão bem construídos para fundamentar esse país estruturalmente racista. LEI Nº2.040, DE 28 DE SETEMBRO DE 1871 (Lei Rio Branco) Declara de condição livre os filhos de mulher escrava que nascerem desde a data desta lei, liberta os escravos da nação e outros, e providencia sobre a criação e tratamento daqueles filhos menores e sobre libertação anual dos escravos. A Princesa Imperial Regente, em nome de sua Majestade o Imperador o Senhor D. Pedro II, faz saber a todos os súditos do Império que a Assembléia-Geral decretou e ela sancionou a lei seguinte: Art. 1º. Os filhos da mulher escrava, que nascerem no Império desde a data desta lei, serão considerados de condição livre. §1º. Os ditos filhos menores ficarão em poder e sob a autoridade dos senhores de suas mães, os quais terão obrigação de criá-los e tratá-los até a idade de oito anos completos. Chegando o filho da escrava a esta idade, o senhor da mãe terá a opção, ou de receber do Estado a indenização de seiscentos mil réis ou de utilizar-se dos serviços do menor até a idade de 21 anos completos. No primeiro caso, o governo receberá o menor, e lhe dará destino, em conformidade da presente lei. A indenização pecuniária acima fixada será paga em títulos de renda com o juro anual de 6%, os quais se declararão extintos no fim de 30 anos. A declaração do senhor deverá ser feita dentro de 30 dias, a contar daquele em que o menor chegar à idade de oito anos e, se a não fizer então, ficará
  • 3. entendido que opta pelo arbítrio de utilizar-se dos serviços do mesmo menor. §2º. Qualquer desses menores poderá remir-se do ônus de servir, mediante prévia indenização pecuniária, que por si ou por outrem ofereça ao senhor de sua mãe, procedendo-lhe à avaliação dos serviços pelo tempo que lhe restar a preencher, se não houver acordo sobre o quantum da mesma indenização. §3º. Cabe também aos senhores criar e tratar os filhos que as filhas de suas escravas possam ter quando aquelas estiverem prestando serviços. Tal obrigação, porém, cessará logo que findar a prestação dos serviços das mães. Se estas falecerem dentro daquele prazo, seus filhos poderão ser postos à disposição do governo. §4º. Se a mulher escrava obtiver liberdade, os filhos menores de oito anos que estejam em poder do senhor dela, por virtude do parágrafo 1º, lhe serão entregues, exceto se preferir deixá-los e o senhor anuir a ficar com eles. §5º. No caso de alienação da mulher escrava, seus filhos livres menores de 12 anos, a acompanharão, ficando o novo senhor da mesma escrava sub-rogado nos direitos e obrigações do antecessor. §6º. Cessa a prestação dos serviços dos filhos das escravas antes do prazo marcado no parágrafo 1º, se, por sentença do juízo criminal, reconhecer-se que os senhores das mães os maltratam, infligindo-lhes castigos excessivos. §7º. O direito conferido aos senhores no parágrafo 1º, transfere-se nos casos de sucessão necessária, devendo o filho da escrava prestar serviços à pessoa a quem nas partilhas pertencer a mesma escrava. Art. 2º. O Governo poderá entregar às associações por ele autorizadas os filhos das escravas, nascidos desde a data desta lei, que sejam cedidos ou abandonados pelos senhores delas, ou tirados do poder destes em virtude do art. 1º, parágrafo 6º. §1º. As ditas associações terão direito aos serviços gratuitos dos menores até a idade de 21 anos completos e poderão alugar esses serviços, mas serão obrigadas: 1º – A criar e tratar os mesmos menores. 2º – A construir para cada um deles um pecúlio, consistente na quota que para este fim for reservada nos respectivos estatutos. 3º – A procurar-lhes, findo o tempo de serviço, apropriada colocação. §2º. As associações de que trata o parágrafo antecedente serão sujeitas à inspeção dos juízes de órgãos, quanto aos menores. §3º. A disposição deste artigo é aplicável ás casas de expostos, e às pessoas a quem os juízes de órfãos encarregarem a educação dos ditos menores, na falta de associações ou estabelecimentos criados para tal fim.
  • 4. §4º. Fica salvo ao governo o direito de mandar recolher os referidos menores aos estabelecimentos públicos, transferindo-se neste caso para o Estado as obrigações que o parágrafo 1º impõe às associações autorizadas. (Seguem-se os artigos referentes à libertação etapista dos escravos – de nação, das heranças vagas e os abandonados por seus “senhores”).