Este documento discute a cooperação internacional como elemento para a elaboração de políticas públicas no município de Campinas, São Paulo. Aborda temas como a descentralização do Estado brasileiro após a Constituição de 1988, o papel crescente de cidades na era da globalização, e exemplos de como Campinas vem cooperando internacionalmente por meio de sua Secretaria de Cooperação Internacional.
1. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Faculdade de Ciências Sociais
Curso de Relações Internacionais
A Cooperação Internacional como um Elemento para a
Elaboração de Políticas Públicas no Município de Campinas – SP
Gustavo Brechesi Servilha
São Paulo
Março – 2006
2. Gustavo Brechesi Servilha
A Cooperação Internacional como um Elemento para a Elaboração de
Políticas Públicas no Município de Campinas – SP
Trabalho de Iniciação Científica com bolsa PIBIC-
CEPE/PUC-SP, na área de Relações Internacionais, sob a
orientação do Prof. Dr. Félix Ruiz Sanches.
São Paulo
Março - 2006
3. Índice
Introdução
1. Federação, Paradiplomacia, Política Externa Federativa e Diplomacia
Federativa
1.1 A Federação
1.1.1 Características de uma federação
1.1.2 O federalismo brasileiro na era da Constituição de 1988
1.2 A Paradiplomacia
1.3 Política Externa Federativa
1.3.1 Processo de segmentação e racionalização da formação de política
externa
1.3.2 Fatores que contribuem para o surgimento da Política Externa
Federativa
1.4 Diplomacia Federativa - a Política Externa Federativa e suas implicações no
Direito Constitucional, no Direito Internacional Público e no papel do
Itamaraty
1.4.1 Ator e sujeito internacional
1.4.2 Unidades Subnacionais são atores e sujeitos internacionais?
1.4.2.1 A Constituição Brasileira
1.4.2.2 Segundo o Direito Internacional Público
1.4.3 A natureza e a validade dos “acordos” internacionais celebrados por
unidades subnacionais
1.4.3.1 Características dos atos informais brasileiros
1.4.4 Mecanismos de legalizar e honrar os atos informais
1.4.5 O papel e a atuação do Itamaraty na Diplomacia Federativa
4. 1.4.5.1 O Poder Local e a Participação Internacional de
Cidades
1.5 Urbanização, Poder Local e o fenômeno da Localização
1.6 Solução coletiva de demandas e problemas
1.7 A participação internacional de cidades
1.8 As Relações Internacionais na Administração Municipal
1.9 Cidades-Irmãs (Sister-Cities), City-to-City Cooperation (C2C) e as Redes de
Cidades
1.10As Redes e as Organizações Regionais e Mundiais de Cidades
1.10.1 CGLU – Cidades e Governos Locais Unidos
1.10.2 FLACMA – Federação Latino-americana de Cidades, Municípios e
Associações
1.10.3 Rede Metrópolis
1.10.4 O caso do Mercosul: Mercocidades e a Reunião Especializada de
Municípios e Intendências (REMI)
1.10.5 Programa Urb-Al
1.11As cidades e seu reconhecimento pelas nações Unidas – a Conferência
Habitat-II
1.11.1 A Agenda Habitat
1.11.2 World Association of Cities and Local Authorities Coordination –
WACLAC
2 A Globalização, as inovações, a divisão internacional do trabalho e o novo
papel das cidades no contexto mundial
2.1 O Fenômeno da Globalização
2.2 O papel das novas tecnologias – a evolução das comunicações e transportes
2.3 Global Cities, “novo espaço industrial” e uma nova divisão internacional do
trabalho
2.4 Cidades e a economia global
2.5 A influência da globalização no poder local na formulação de políticas
públicas locais
5. 3 As Relações Internacionais e o Município de Campinas na elaboração de
políticas públicas locais
3.1 Histórico da cidade
3.2 A cidade hoje – a sua vocação comercial e tecnológica
3.3 Secretaria de Cooperação Internacional – SECOOP
3.4 Cidades-Irmãs de Campinas
3.5 Campinas e as Redes e Associações Internacionais de Cidades
Conclusão
Anexos
6. Introdução
Na década de 1980, o Brasil, assim como outros países em desenvolvimento,
sofreu com o impacto das mudanças do padrão de relação entre Estado e sociedade
que se fazia presente desde o final da segunda guerra mundial, que tinha como base a
intervenção estatal na economia e sua presença na provisão de bens públicos – o
Estado nacional-desenvolvimentista. A Constituição de 1988 selou não somente o
retorno da democracia, mas também a idéia de descentralização decisória e financeira,
com a discussão sobre o novo papel dos Estados e Municípios na Federação e as
decorrentes mudanças na forma de gestão de políticas públicas. Entretanto, a
discussão e a implementação da descentralização não se decorreu de modo tranqüilo e
planejado, tendo em vista a conturbada situação econômica e política que o país
passava em toda a década de 1980 – hiperinflação, recessão, extrema concentração de
renda, grande dívida externa, além de toda agitação política do movimento de
democratização do país1.
As políticas públicas, durante muito tempo, até a década de 1980, eram
marcadas pela centralização das decisões na esfera federal, além de serem marcadas
pela troca de favores de natureza clientelista, em que as instâncias locais de poder
público eram vistas como agenciadoras de recursos da União para o município ou para
o estado. Nesse momento, as políticas públicas sociais eram marcadas pelo ser caráter
setorial, as quais eram concebidas de forma isolada e especializada, o que favorecia o
desenvolvimento do insulamento burocrático2.
De acordo com Castells e Borja3, na América Latina em geral, esse sistema de
Estado nacional-desenvolvimentista trouxe uma herança de custo alto ao novo modelo
de Estado democrático e liberal, como a insuficiência de recursos públicos, o déficit de
infra-estrutura física e de comunicações, a fraca integração social nas cidades e
dificuldades de atuação dos governos locais, escassa cooperação entre as esferas
públicas e privadas, etc. A consolidação do processo democrático interno e o processo
de abertura econômica externa contribuíram para uma multiplicação de demandas
1
Lilia A. T. P. MARTINS, Gestão Pública e Democrática: um caminho em construção, p. 14
2
Ibidem
3
Manuel CASTELLS e Jordi BORJA, As cidades como atores políticos, p. 154
7. sociais e acentuaram a sensação de crise funcional das grandes cidades, já que a
intensidade e a visibilidade dos problemas urbanos – congestionamentos, insegurança
pública, contaminação do ar e da água, déficit habitacional e de serviços básicos, etc –
se tornavam cada vez maiores e debatidos. Entretanto, simultaneamente, os processos
de mudanças econômicas (reativação e abertura), sociais (participação cidadã) e
política (democratização), contribuíram para a condição de criação de respostas a
esses problemas. Com a maior autonomia conquistada pelos municípios e estados
brasileiros pela Constituição de 1988, foi possível desenvolver planos estratégicos de
desenvolvimento econômico, social e urbano, sob base de uma participação cívica,
para a condução de projetos urbanos de iniciativa pública e privada e de cooperação
entre ambos.
Por autonomia, Castells e Borja entendem como a proteção legal à capacidade
de auto-organização, às competências exclusivas e específicas, ao direito de agir em
todos os campos de interesse geral da cidadania e à disponibilidade de recursos
próprios não condicionados4. Para os autores, o princípio legitimador da autonomia local
é o da proximidade, já que é possível estabelecer uma relação direta e imediata da
organização representativa e da estrutura administrativa com o território e com a
população.
Além do processo de democratização, o processo globalização, que ganhou
maior destaque a partir da década de 1990, destacou uma nova realidade econômica,
baseada pelo aumento do volume e da velocidade de dos fluxos financeiros
internacionais, pelo nivelamento comercial em termos de oferta e demanda, pela
convergência de processos produtivos e pela convergência de regulações entre os
Estados, além do aumento da concorrência internacional5. Esse processo foi
imensamente favorecido pelo desenvolvimento de novas tecnologias de comunicação,
transporte e informação, que contribuiu para a aproximação de atores e para a
superação de distâncias. Além disso, com o fim da guerra fria, a dicotomia entre alta e
baixa política no sistema internacional desapareceu, já que a ascensão do livre
comércio e do livre fluxo de capitais deprimiram a questão de segurança entre 1991 e
2001. Esse processo de globalização comprometeu a capacidade decisória dos
4
As cidades como atores políticos, p. 158
5
Amado Luiz CERVO e Clodoaldo BUENO, História da Política Exterior do Brasil, p. 455.
8. Estados, principalmente no setor econômico6. Nesse contexto, o Brasil realizou uma
política de abertura econômica e comercial, sem um projeto nacional claro, baseada na
abertura comercial e financeira indiscriminada, sem dar a devida importância a políticas
industriais, de comércio exterior, de emprego e investimentos
O processo de globalização também contribuiu, de acordo com Lafer, para uma
diluição da diferença do que é “interno” e “externo” aos Estados, o que tem levado a
questionamento a autonomia da política externa em relação à política interna. Essa
autonomia, caracterizada pelas relações predominantemente interestatais e
intergovernamentais, era o marco do sistema internacional configurado pela Paz de
Westphalia de 1648. Com essa diluição intensificada pelo movimento centrípeto da
lógica da globalização, fez com que as relações internacionais tenda a ser interpretada
por alguns estudiosos como uma complexa rede de interação governamental e não-
governamental, como entre Estados, cidades, partidos políticos, sindicatos, ONG’s,
empresas multinacionais, etc7.
Hoje, os municípios buscam cada vez maior autonomia, tendo em vista de que é
no território urbano que se localizam as conseqüências do contexto nacional e
internacional, que levam ao agravamento a problemas como a pobreza, a violência, o
desemprego, a poluição, etc; e são os governos municipais quem assumem a maior
parte da responsabilidade de enfrentá-los por serem o poder mais próximo aos
necessitados8. Por exemplo, as crises internacionais nos anos 90, que afetou o Brasil
em 1999, foi um dos fatores que contribuiu para que as taxas de juros nacionais e
internacionais (principalmente entre os países emergentes) subissem, o que fez cair os
investimentos e a atividade industrial e, conseqüentemente, o desemprego aumentou
no país, principalmente nos grandes centros urbanos industriais. Isso foi sentido, de
acordo com dados da Fundação SEADE, na Região Metropolitana de São Paulo, onde
a taxa de desemprego saltou de 13,2% a 19,3% entre 1995 e 19999.
O processo de descentralização do Estado nacional e de maior autonomia local,
somado ao grande processo de urbanização, que gerou grandes concentrações
6
Amado Luiz CERVO e Clodoaldo BUENO, História da Política Exterior do Brasil,, p. 463
7
Celso LAFER, A identidade internacional do Brasil e a política externa brasileira: passado, presente e
futuro, p. 17-18.
8
Kjeld JAKOBSEN, Os Municípios e as Relações Internacionais, p. 138
9
De acordo com a Pesquisa de emprego e desemprego da Região metropolitana de São Paulo/SEADE,
disponível no sítio: http://www.seade.gov.br/produtos/ped/ (última visita: 15/02/2006)
9. urbanas, e ao processo de globalização contribuíram para a criação de oportunidades
de cooperação descentralizada em nível local, o que abriu horizontes para a articulação
de governos locais com outras cidades do mundo todo e ofereceu a formulação de
relações diretas das cidades com organismos e instituições internacionais 10. De acordo
com Jakobsen, as iniciativas internacionais realizadas por atores como estados e
municípios brasileiros não visão a substituição ou o questionamento ao papel dos
Estados-nacionais como responsáveis pelas relações internacionais, como com outros
países e organismos internacionais. Essas iniciativas contribuem para o debate interno
sobre a política internacional do país, o qual não pode ser de responsabilidade do poder
executivo dos Estados-nacionais.
O município de Campinas, assim como outras grandes cidades do Brasil, sofreu
a influência do surto de urbanização e da globalização e passou a criar mecanismos em
nível local para solucionar demandas locais e inserir a cidade no mercado internacional.
Um desses mecanismos foi a criação, em 1994, da Secretaria Municipal de Cooperação
Internacional (SECOOP), a qual busca desenvolver o desenvolvimento econômico e a
superação das atuais limitações financeiras municipais, buscando acordos de
cooperação em diversas áreas com entes governamentais, inter-governamentais e
privados, além de captar recursos externamente.
A participação de cidades como atores políticos internacional abriu um grande
debate em muitas áreas. No campo teórico específico das Relações Internacionais, o
estudo sobre a emergência das cidades como atores políticos internacionais é tratado
tangencialmente por poucas teorias, principalmente a neo-funcionalista, com seu
conceito de spill-over. De acordo com esse conceito, as demandas por cooperação
internacional é inicialmente realizado no plano intergovernamental pelo governos
centrais doas países, acabam gerando novas demandas por cooperação, que
transbordam o campo político, alcançando, em um primeiro plano, os atores trans-
nacionais e não-governamentais e governamentais não-centrais. Entretanto, essa teoria
desenvolve maior ênfase ao desenvolvimento de entidades supranacionais e muita
pouca consideração aos atores sub-nacionais, sejam eles estaduais ou municipais.
Outras teorias importantes como os realistas, neoliberalistas ou neo-institucionalistas
10
Jorge MATTOSO, Relações Internacionais e poder local: o caso de São Paulo, p. 113
10. atribuem peso nulo ao papel desempenhado pelas unidades sub-nacionais nas
relações internacionais, já que para o primeiro, o Estado-nacional é o ator central e os
demais atores, como os sub-nacionais, tem peso irrelevante; e os demais atribuem
maior ênfase aos grupos de interesse e de pressão nas Relações internacionais, como
as ONG’s, corporações transnacionais11.
Este trabalho não dará ênfase em uma análise sob o olhar das teorias das
relações internacionais, mas trabalhará com três possíveis vertentes para explicar a
participação das cidades internacionalmente: o sistema federativo, o poder local e a
globalização. Por seguinte, buscar-se-á entender como se dá a cooperação
internacional envolvendo cidades para a elaboração e implementação de políticas
públicas.
No capítulo 1, buscar-se-á discutir sobre o federalismo, como suas
características e suas implicações no Brasil sob a Constituição de 1988 e o que esse
sistema contribui para uma ação externa de entes federados, como os municípios,
internacionalmente, denominado Paradiplomacia. Buscar-se-á apresentar também uma
visão de essa participação de acordo com o Direito Constitucional e com o Direito
internacional Público e a posição e as medidas tomadas pelo Itamaraty para monitorar
e controlar a participação de entes federados brasileiros no exterior.
No capítulo 2, discutirá a importância do poder local como um dos principais
agentes para a elaboração de políticas públicas, assim como o processo cooperativo
entre cidades, em nível nacional e internacional, para a solução conjunta ou cooperada
de demandas e problemas comuns que permitiu a construção de redes e associações
de cidades em campo nacional e principalmente internacional, além de cooperações
“bilaterais” entre cidades.
No capítulo 3, abordará o impacto do processo de globalização na Agenda
municipal, principalmente quanto a importância das novas tecnologias de comunicação,
transporte e informação, a nova configuração do espaço industrial e a nova divisão
internacional do trabalho, a atuação das corporações transnacionais na construção de
uma economia local competitiva internacionalmente. Além da economia, políticas
11
Informação contida no projeto de pesquisa do CAENI sobre Políticas Públicas Locais e inserção
internacional: a experiência da cidade de São Paulo, disponível no sítio: www.caeni.org.br (última visita:
11/04/2005)
11. sociais locais podem ser influenciadas por tendências ou decisões tomadas em nível
internacional ou global, como é o caso dos “Objetivos do Milênio” das Nações Unidas.
Por fim, no capítulo 4, buscar-se-á analisar, de acordo com as vertentes
estudadas, o município de Campinas, objeto de estudo final desta pesquisa, a qual
desenvolve políticas de relações internacionais principalmente através de sua
Secretaria de Cooperação Internacional criada em 1994. Buscar-se-á verificar como se
dá na prática a participação externa do município, os acordos de cooperação
desenvolvidas com cidades e redes das mesmas, as principais linhas de atuação e
possíveis resultados de suas políticas e acordos.
12. Capítulo 1 – Federação, Paradiplomacia, Política Externa Federativa e Diplomacia
Federativa
Este capítulo buscará apresentar como o sistema federativo, consolidado no
Brasil pela Constituição de 1988, contribuiu para a atuação de unidades subnacionais
no plano internacional a fim de satisfazer seus interesses e necessidades. Buscar-se-á
apresentar as principais características do sistema federal, como se dá o processo de
segmentação e racionalização da elaboração de políticas. Além disso, apresentar-se-á
como a Constituição e o Direito Internacional Público responde à atuação de tais entes,
como os municípios no plano externo. Em seguida, será explicado como são e quais
são “acordos” firmados por unidades subnacionais brasileiros.
1.1. Federação
O sistema federativo contribui substancialmente para que unidades
subnacionais, traduzidos neste contexto em unidades federadas – no caso brasileiro,
em estados e municípios – tenham alguma atuação internacional. Em tese, esse
sistema, consolidado na Constituição de 1988, oferece a cada ente federado a
capacidade de as administrar e de se governar sob as competências e limites
colocados pela Carta, atribuindo-lhes maior autonomia.
1.1.1.Características de uma federação:
O sistema federativo tem como base à divisão da autoridade constitucionalmente
entre o governo nacional – União – e os governos subnacionais – estados e municípios,
os quais gozam de uma autonomia administrativa e legislativa, além de uma
democracia competitiva pluralista.
Essa divisão de poderes entre as esferas federativas é determinada por meio de
uma jurisdição sobre todo o território nacional – a Constituição – e por jurisdições sobre
regiões subnacionais geograficamente delimitadas – as constituições estaduais e as
13. leis orgânicas municipais. Isso leva a uma tendência dialética, entre união e
fragmentação, e uma dualidade nas fontes de poder entre o nacional e o local.
Esse tipo de organização política, inventada pelos founding fathers norte-
americanos e inaugurada com a independência dos Estados Unidos, faz com que os
estados membros da federação ajam obrigatoriamente em conjunto, segundo uma
constituição, para que haja o monopólio na conduta da guerra e da diplomacia, além
das questões de comércio exterior com outros países. Em países muito extensos
territorialmente, esse sistema preserva a diversidade, a liberdade, a ordem e a justiça
dos diversos grupos políticos de natureza distinta existentes dentro de um território,
sejam étnicos, culturais, históricos, em cada unidade federada, onde gozam de uma
autonomia (não soberania) para organizarem seu sistema administrativo, legislativo e
jurisdicional. Dessa maneira, a forma federada de divisão de poder auxilia a acomodar
tensões, reconhece e protege diferenças e promove objetivos de convivência comum12.
Segundo Elazar13:
Como base de organização política, o federalismo pode ser definido como a
maneira pela qual uma organização política une um certo número de comunidades
políticas distintas um todo mais amplo, permitindo que eles mantenham sua
integridade fundamental.
Já Soares desenvolve outra definição de federalismo:
O sistema federal pode ser definido como uma forma de organização do Estado
nacional caracterizada pela dupla autonomia do territorial do poder político, ou seja,
na qual se distinguem duas esferas autônomas de poder: uma central, que constitui
o governo federal, e outra descentralizada, que constitui os governos membros,
sendo que ambas têm poderes únicos e concorrentes para governar sobre o mesmo
território e as mesmas pessoas.14
12
Eduardo KUGELMAS e Marcello S. BRANCO, Os governos subnacionais e a nova realidade do
federalismo, p. 163
13
Daniel ELAZAR, Federalismo, p.18
14
Trecho do artigo SOARES, Márcia M. “Federação, democracia e instituições políticas”. Lua Nova, São
Paulo, Cedec, n. 44 citado em Eduardo KUGELMAS e Marcello S. BRANCO, os governos subnacionais e
a nova realidade do federalismo, p. 164
14. Hoje, aproximadamente 38 países adotaram algum modelo de organização
federativa, principalmente os países com tamanho e importância significativos no
cenário internacional, como, por exemplo, a Rússia, os Estados Unidos, a Índia, o
Brasil, a Alemanha, etc.
Fernando Abrucio15 aborda, em seu estudo sobre o federalismo no Brasil, cinco
aspectos comuns aos Estados que optaram por tal sistema:
a. Existência de heterogeneidades: existem grupos políticos de natureza diversa
em uma federação que tornam complexa a governabilidade de um país. Tais
heterogeneidades, segundo o autor, podem ser territoriais (grande extensão ou
enorme diversidade física), lingüísticas, étnicas, socioeconômicas
(desigualdades regionais), culturais e políticas (diferença na formação das elites
e na construção das rivalidades entre elas)16. Se não houver uma
representatividade desses diversos grupos em uma unidade política nacional
pode conduzir a movimentos de contestação ao governo central, inclusive pela
via armada;
b. Discurso da “unidade na diversidade”: com o reconhecimento das
heterogeneidades que constituem um país, a adoção desse discurso é um passo
fundamental ao federalismo. Segundo Duchchacek17, com a difusão de regras e
poder entre as unidades, cria-se um comportamento de não só baseada no
constitucionalismo e na democracia pluralista, mas também de uma cultura
federativa, de uma constante prática e de valores de cooperação entre temas de
integração e as diferenças locais;
c. Pacto entre unidades territoriais: o pacto assinado pelas unidades
constitutivas de uma federação deve ser equânime e equilibrado, de forma a não
haver distorções internas. Tal pacto deve conter mecanismos e instituições
contínuos de negociação e repactuação entre os atores, um sistema de freios de
15
Fernando Luiz ABRUCIO, A reconstrução das funções governamentais do federalismo brasileiro, p.
95-105
16
ibidem, p. 97
17
Ivo D. DUCHACEK, Perforated Sovereignties: Toward a typology of new actors in international relations,
p. 4
15. contrapesos (para proteger os direitos das minorias) e um sistema de
representação das unidades a esfera federal;
d. É importante a existência de espaço para manobras políticas para as sub-
unidades com base nos direitos pactuados, implicado na maior autonomia e
interdependência entre os entes federados, por meio de uma delimitação clara
dos direitos de cada pactuante territorial e da União na Constituição;
e. Relações intergovernamentais: Segundo Kincaid, [i]n a federal democracies,
conflict and competition between governments are intrinsic elements of political
live, along with cooperation18. A cooperação é necessária não só para reforçar os
laços constitutivos da federação, mas também para o compartilhamento de
políticas públicas. Tal cooperação tem aumentado, inclusive no Brasil, apesar da
autonomia de cada unidade federada, devido a nacionalização ou regionalização
de determinados programas e metas, seja pela fragilidade financeira ou
administrativa dos determinados governos locais ou regiões. A cooperação
também contribui a instalação do sistema de “freios e contrapesos”, ao
estabelecer um controle mútuo, a fim de evitar a tirania de uma esfera federativa
sobre as demais. Por outro lado, a competição também contribui não só para o
sistema de “freios de contrapesos”, mas também reforça as tendências
assimétricas e centrífugas nas relações intergovernamentais, por meio de
práticas como as ”guerras fiscais“ entre estados e municípios. As relações
intergovernamentais pode ser interpretada por meio da existência de duas
tendências: um centrípeta, que procura reter o poder para o governo central, não
impedindo ações autônomas das unidades subnacionais, mas as regulando e
controlando; e uma centrífuga, que expressa a ação das unidades subnacionais
em buscar maior autonomia política e econômica para seus interesses próprios,
facilitados pelas crescentes assimetrias na distribuição de recursos internos e
pelas oportunidades de negócios abertas com os efeitos decorrentes da
globalização19.
18
John KINCAID, Constituent diplomacy in federal polities and the nation-state: conflict and co-operation,
p. 55
19
Eduardo KUGELMAS e Marcello S. BRANCO, os governos subnacionais e a nova realidade do
federalismo, p. 169
16. Fry aponta uma outra visão sobre relações intergovernamentais:
(...)extensive extensive in intergovenmental relations has equipped [federal
systems] to interact with national ans subnational govenments abroad. Moreover,
regional and municipal governments in federations usually have a much better
grasp than their national governments of local conditions and what needs to be
done to enhance the well-being of their constituents. They also have the authority
flexibility, and often the fiscal resourses to implement experimental programs,
which, if successful, can be replicated by others subnational entities within the
federation.20
Segundo Daniel Elazar21, o sistema federativo possui os seguintes fundamentos:
a. Não-centralização: segundo o autor, no federalismo não existe um único centro,
mas múltiplos centros coordenados por uma lei fundamental compartilhada
(Constituição) e uma rede de comunicações interligando esses diversos centros
(União, estados e municípios);
b. Democracia federal: para o desenvolvimento pleno do sistema, é necessário
um sistema democrático que proporcione escolhas públicas e constitucionais em
todas as arenas da federação. Isso porque o sistema federativo busca dar
expressão à pluralidade de interesses presentes na sociedade através da
participação política, apresentando todo um aparato constitucional e institucional
que estabelece regras legítimas para expressão de interesses22.
c. Checks and balances (freios e contrapesos): são as limitações,
constitucionalmente colocadas, que cada instituição deve sofrer por outras
instituições, a fim de limitar seus excessos e ao mesmo tempo dar autonomia e
autoridade para a sustentação política e social, além de evitar a prevalência de
um poder sobre o outro, como o governo central sobre o local;
d. Negociação aberta: as negociações e os acordos entre as diferentes esferas do
governo devem ocorrer de forma transparente e como parte do sistema.
20
Earl H. FRY, Globalization, federalism ans governance, p. 6.
21
Daniel ELAZAR, Federalismo, p.7-24
22
Eduardo KUGELMAS e Marcello S. BRANCO, os governos subnacionais e a nova realidade do
federalismo, p. 166
17. Segundo o autor, o federalismo (...) é o único sistema que faz da negociação
uma parte integral e necessária de seu funcionamento, submentendo-se apenas
à exigência de que seja aberta e acessível.23
e. Constitucionalismo: a Constituição é o mecanismo regulador de todo o
complexo funcionamento do sistema federativo, com o estabelecimento de
regras de não centralização, freios e contrapesos, de negociação e delegação de
competências;
f. Unidades delimitadas: existência de alguma delimitação geográfica entre
unidades-membro do sistema com base em critérios pré-estabelecidos.
Para Elazar, ainda existem elementos suplementares que contribuem a
construção federal:
a. Elementos mantenedores da união: o federalismo moderno estabelece
linhas diretas de comunicação entre os cidadãos e os governos que os
servem. O povo (...) elege representantes em todos os níveis de governo e
esses representantes habitualmente administram programas que beneficiam
o cidadão individual24. Segundo ainda o autor, além do elo entre cidadãos e
governantes, o senso de nacionalidade comum é importante para a união de
comunidades constituintes em um único povo.
b. Elementos mantenedores da não-centralização: as comunidades
constituintes de um sistema federal devem ser razoavelmente similares em
termos de riqueza e população ou geográfica ou numericamente equilibradas
em suas desigualdades25. A não-centralização pode ser sustentada pela
existência de diferentes sistemas legais nas diferentes áreas políticas
constituintes – estados e municípios – garantidos constitucionalmente; pela
representação na legislatura nacional e por uma participação respectiva no
processo político nacional; e pelo respeito pelas partes ao princípio federal, a
qual exige da elite política – prefeitos e governadores – a manutenção de
suas unidades políticas, sendo consideradas tão importantes quanto à
preservação da nação como um todo.
23
Daniel ELAZAR, Federalismo, p. 11
24
ibidem, p. 19
25
ibidem, p. 20
18. c. Elementos mantenedores dos princípios federais: a manutenção do
federalismo requer que a nação e as unidades políticas constituintes tenham
suas próprias instituições de governo e o direito de modifica-las
unilateralmente, dentro dos limites determinados pelo pacto federal26. Para
Elazar, corpos legislativos e administrativos distintos em cada esfera da
federação tornam-se necessários. Entretanto, essa descentralização e
autonomia de cada unidade federada não significam que suas atividades
governamentais devam ser executadas por órgãos distintos de cada esfera do
governo. As agências de um governo podem servir a outro em comum
acordo. Para o autor cada governo deve possuir suficiente capacidade
administrativa, nas áreas de sua autoridade, para cooperar livremente com as
agências de outros níveis de governo27 .
O sistema federativo tem se colocado às sociedades modernas como um meio
de permitir maior autonomia político-administrativa e respeito pelas diferenças locais,
como apontam as características apontadas acima. Esse sistema permite uma
descentralização no nível de suas unidades com respeito a assuntos que lhe sejam
específicos e não contradigam as orientações gerais válidas para a federação como um
todo28. Ao mesmo tempo, com o compartilhamento de projetos políticas públicas entre
diferentes esferas do governo, faz com que ocorra uma otimização dos recursos
públicos e um aumento da interconexão entre os diversos entes da federação.
1.1.2. O federalismo brasileiro na era da Constituição de 1988:
A questão das relações intergovernamentais, garantido pela Constituição, é muito
importante para não só para o funcionamento do sistema federativo, mas também para
a diplomacia federativa ( que será visto no tópico 3.4).
26
Daniel ELAZAR, Federalismo, p. 23
27
ibidem, p. 23
28
Eduardo KUGELMAS e Marcello S. BRANCO, os governos subnacionais e a nova realidade do
federalismo, p. 165
19. Segundo Abrucio29, o Brasil possui duas heterogeneidades que justificam a
construção do sistema federativo: a existência de desigualdades regionais e a
diversidade na formação das elites locais. O sistema federativo colocou-se como uma
via para o convívio entre essas diferentes elites, frente às peculiaridades estaduais ou
regionais, e, apesar de conviverem de forma tensa, conseguiram manter o pacto
garantidor da ordem e do desenvolvimento.
Na década de 1980, com o fim do governo militar, as idéias de democratização e
descentralização, com a reformulação da federação nacional, ganharam força. Segundo
o autor:
O discurso pela descentralização associou-se à luta pela democracia na
redemocratização brasileira, o que pode ser constatado pela importância dos
governadores e, em menor medida, dos prefeitos, nos rumos tomados pelo país
na década de 80 e consubstanciados na Constituição de 1988.30
A Constituição de 1988 consolidou, a democracia e o sistema federativo
nacional. No entanto, o sistema federal, elaborado sob os princípios da autonomia, da
cooperação e da competição entre os entes federados, passou à apresentar seus
defeitos. Um deles é a questão do municipalismo autárquico. Muitas vezes, o discurso
pela descentralização tornou-se sinônimo de municipalização, o que fez os municípios
tornarem um ente federativo – algo incomum na experiência internacional, com
competências específicas na elaboração e execução de políticas públicas,
independentemente de suas diferenças. Tal visão, segundo Abrucio, tem três
obstáculos31:
a. a desigualdade do país e a heterogeneidade no plano local inviabilizam o
municipalismo autárquico. Segundo o autor, a grande maioria dos municípios brasileiros
não tem como se auto-sustentar, mesmo recebendo repasse de recursos dos governos
federal e estadual (90% dos municípios brasileiros têm até 50 mil habitantes e precisam
dos recursos estaduais e federais para sobreviverem). Para manter o sistema, muitos
29
Fernando Luiz ABRUCIO, A reconstrução das funções governamentais do federalismo brasileiro, p.
100-105
30
ibidem, p. 101
31
Fernando Luiz ABRUCIO, A reconstrução das funções governamentais do federalismo brasileiro, p. 102
20. municípios disputam por dinheiro público e investimentos privados de forma “selvagem”,
de uma forma predatória de lidar com regiões vizinhas.
b. na configuração administrativa e pública, ocorre um grande desnível entre os
governos locais, tendo em vista que a falta de capacidade de muitos municípios de,
sozinhos, resolverem seus problemas de ação coletiva e produção de políticas públicas.
A ausência de mecanismos efetivos e eficazes de controle público auxiliaria em diminuir
os vícios patrimoniais e corruptos de nosso sistema político.
c. os instrumentos de parceria e cooperação no plano subnacional são reduzidos
ou frágeis institucionalmente. Ou seja, muitos líderes locais temem, de certa maneira, a
instituição de organizações supramunicipais, como consórcios e regiões metropolitanas,
fazendo-os ter pouca eficácia quando realizados.
De acordo com Prazeres, o caso brasileiro na discussão sobre federalismo é
muito específico, tendo em vista que, historicamente, a tendência centralizadora
sempre foi quem ganhou maior destaque. Isso porque o país, ao contrário da tendência
histórica de outros países que constituíram o federalismo, caminhou do sistema unitário
a federação, o que fez com que o país nunca tivesse deixado de lado sua tendência
centralizadora que marcou seu nascimento como nação soberana de 1822 32.
No campo das contas públicas, o Plano Real trouxe, de certa maneira, um
reordenamento das finanças federativas, obtidos com o fim da inflação e com a Lei de
Responsabilidade Fiscal, o qual instituiu uma forma de accountability financeiro dentro
da federação. Além disso, segundo ainda Abrucio, muitas políticas sociais foram
estabelecidas a fim de repartir melhor os recursos públicos para tornar mais justa e
racional a distribuição do dinheiro do Governo Federal.33 Apesar disso, ainda vigora
alguns vícios, como uma ampla centralização tributária baseada em tributos de péssima
qualidade, além da falta de mecanismos de coordenação intergovernamental de debate
e deliberação nos quais participem todos os níveis de governo. O que ocorre no país
nas relações intergovernamentais, em suma, são a falta de um controle público
subnacional, a falta de mecanismos de cooperação e negociação entre os níveis de
governo, os quais são substituídos, por vezes, pela “mão invisível” da União.
32
Tatiana L. PRAZERES, Por uma ação constitucionalmente viável das unidades federadas brasileiras
ante os processos de integração regional, p. 294-295 e Eduardo KUGELMAS e Marcello S. BRANCO, os
governos subnacionais e a nova realidade do federalismo, p. 180
33
Fernando Luiz ABRUCIO, A reconstrução das funções governamentais do federalismo brasileiro, p. 104
21. Apesar de todos esses defeitos, o processo de democratização e de autonomia
local contribuiu para a geração de programas inovadores de políticas públicas, como
são os casos do Renda Mínima, Bolsa Família e do Orçamento Participativo, os quais
nasceram principalmente na esfera municipal, os quais auxiliaram na consolidação do
sistema democrático, já que a participação popular aumentou e passou também a ser
mais demandada nas decisões públicas, e instituíram meios de distribuição de renda
para a população mais pobre, o que tem contribuído na sobrevivência financeira de
muitas famílias e municípios.
1.2. A Paradiplomacia:
Cada vez mais, novos atores passam a fazer parte das relações internacionais.
Tradicionalmente, os Estados nacionais são considerados por muitos teóricos (os
realistas) e pelo direito internacional público como o principal e maior ator e sujeito
internacional. A participação de unidades subnacionais, como as unidades federadas, é
normalmente efetivada pelo poder central (federal), que costuma representar o conjunto
de interesses nacionais no âmbito externo.
Nos últimos tempos, as unidades federadas e subnacionais de vários países do
mundo não estão se mostrando acomodadas com as limitações que lhes são impostas
à sua ação externa, tendo em vista as novas possibilidades decorrentes da arena
internacional (processos de regionalização – como Mercosul e EU; desenvolvimento
tecnológico, principalmente nos setores de informação, comunicação, transportes e
serviços; grande atuação de corporações internacionais na arena comercial e
econômica internacional, etc.). Assim, várias regiões e localidades de países vêm
manifestando interesse em operar no plano externo, muitas vezes de forma
independente da chancela das unidades centrais. Isso pode ser verificado, ultimamente,
por meio dos acordos de cooperação celebrados diretamente entre entes federados de
um lado e Estados soberanos ou unidades subnacionais de países estrangeiros de
outro34.
Prieto define paradiplomacia como:
34
PRAZERES, Por uma ação constitucionalmente viável das unidades federadas brasileiras ante os
processos de integração regional p. 284
22. O envolvimento de governo subnacional nas relações internacionais, por meio de
estabelecimento de contatos, formais ou informais, permanentes ou provisórios
(ad hoc), com entidades públicas ou privadas, objetivando promover resultados
socioeconômicos ou políticos, bem como outra dimensão externa de sua própria
competência constitucional.35
A origem do neologismo estaria relacionada, de acordo com Aguirre, com o
debate acadêmico sobre novas visões sobre federalismo (“new federalism”) do início
dos anos 80, principalmente nos Estados Unidos, sobre a análise do comportamento
dos estados federados, principalmente na questão das relações entre governo federal e
governos federados em questões de política externa36.
De acordo com Keating, a Paradiplomacia difere-se da diplomacia tradicional dos
Estados, por agir politicamente de modo mais específico e muitas vezes de maneira
experimental ou oportunista.
Paradiplomacy is not the same as conventional state diplomacy, which is about
pursuing a defined state interest in the international arena. It is more functionally
specific and target, often opportunistic and experimental. 37
Esse envolvimento de atores subnacionais nas relações internacionais pode ser
categorizado, de acordo com Soldatos, em três tipos de Paradiplomacia:
a. Paradiplomacia global (global paradiplomacy): Segundo Soldatos38, este é
um tipo de paradiplomacia pouco comum que ocorre quando uma unidade subnacional,
como uma unidade federada – estados e municípios – busca discutir temas gerais da
agenda do sistema internacional, como, por exemplo, a questão de guerra e paz ou
liberalização do comercio internacional. Para Duchacek, consiste nos contatos político-
35
Noé Cornago PRIETO, O outro lado do novo regionalismo pós-soviético e da Ásia-Pacífico: a
diplomacia federativa além das fronteiras do mundo ocidental, p. 251
36
AGUIRRE, Making Sense of Paradiplomacy? An Intertextual Enquiry about a concept in search of a
Definition, p. 187
37
Michael KEATING, Regions and International Affairs: motives, opportunities and strategies, p. 11
38
Panayotis SOLDATOS, An Explanatory Framework for theS tudy of federated States as Foreign-policy
Actors, p.37
23. funcionais entre unidades subnacionais de países distantes, os quais buscam não só
contato em centros de comércio, indústria ou cultura em outros continentes, mas
também em agências ou ramos nacionais de relações exteriores.
b. Paradiplomacia regional (regional paradiplomacy): Soldatos39 coloca que
este é um tipo de paradiplomacia que ocorre quando algumas questões são relevantes
a serem discutidas e implementadas em atividades e por atores subnacionais.
b.i. Macro-regional (macro-regional): Este é um tipo de paradiplomacia regional
que ocorre quando atores subnacionais estão se relacionando, porém tais atores não
estão próximos em áreas contíguas. Um exemplo disso são as relações entre Quebec e
França.
b.ii. Micro-regional (micro-regional): Ocorre quando temas concernidos a atores
subnacionais que estão geograficamente contíguas;
b.iii. Trans-fronteiriço (transborder or transfrontier): este é um caso especial
paradiplomacia micro-regional em que há uma contigüidade das fronteiras ou das
divisas entre as áreas sub-nacionais que estão se relacionando.
c. Paradiplomacia transregional (transregional paradiplomacy): segundo
Duchacek40, esta é uma classificação dada as relações e negociações entre atores
subnacionais que não são vizinhos, mas seus países são.
São denominadas Ações paradiplomáticas (paradiplomatic actions)41 as
iniciativas concretas tomadas pelas unidades subnacionais no campo internacional.
Tais ações podem ser classificadas como:
i. Ação cooperativa ou de suporte (co-operative [supportive] action): ocorre
quando é possível tais iniciativas – como atores federados – são coordenados (co-
ordenated) ou desenvolvidos conjuntamente (joint) pelo governo central ou federal.
ii. Ação paralela ou substitutiva (parallel [substitutive] action): ocorre quando
unidades subnacionais realizam ações e relações independentes do governo central ou
federal. A ação pode ser harmônica, que pode envolver ou não um monitoramento do
governo central ou federal, ou desarmônica, quando há diferenças de interesse em
39
ibidem, p. 47-48
40
Ivo D. DUCHACEK, Perforated sovereigns: Towards a typology of new actors in international relation, p.
25
41
Todo esse tópico é desenvolvido em Panayotis SOLDATOS, An Explanatory Framework for the Study
of federated States as Foreign-policy Actors, p. 38-39
24. questão, levando ao conflito as duas esferas e uma segmentação da política externa de
um país.
Essas taxonomias desenvolvidas por Soldatos contribuem para uma análise do
comportamento de um ente federado e de suas devidas políticas internacionais. No
caso de entes federados, a análise tem características e taxonomias especiais.
1.3. Política Externa Federativa:
A política externa federativa, segundo Gilberto Rodrigues é a estratégia própria,
de um estado ou município, desenvolvida no âmbito de sua autonomia, visando a
inserção internacional, de forma individual ou coletiva42. Para tanto, dois processos
estão em questão: o primeiro é segmentação e a racionalização da formação de política
externa e o segundo é sua viabilidade jurídica. No primeiro caso, buscar-se-á apontar
os motivos pelos quais a formação de política externa está sendo desmembrada e
exercida por atores subnacionais e quais são os mecanismos adotados pelos governos
centrais a fim de manter seu monopólio na elaboração e execução de política externa.
Também será colocado como o Direito Constitucional brasileiro coloca o papel e as
competências dos municípios no cenário nacional e como é vista sua atuação
internacional, assim como a visão do Direito Internacional Público. Buscar-se-á, em
seguida caracterizar os “contratos” (atos informais) realizados pelos entes federados
nacionais e qual é o papel do Itamaraty nesse processo paradiplomático.
1.3.1. Processo de segmentação e racionalização da formação de política
externa:
Com o desenvolvimento das tecnologias de comunicações e transportes mais
eficientes, fez com que aumentasse as relações intergovernamentais não só dentro de
uma federação, mais também com unidades federadas de outros países para melhor
desenvolvimento e otimização de políticas públicas. Apesar de ser atribuído a União
(governo central) o papel de planejar e implementar a política externa de um país, nem
42
Gilberto M. A. RODRIGUES, Política Externa Federativa: Análise de ações internacionais de Estados e
Municípios brasileiros, p. 40
25. sempre este consegue sozinho atingir ou promover efetivamente interesses de
unidades subnacionais. Segundo Fry, it more difficult for a nation-state as a whole to
speake with “one voice” in foreign policy arena.43 Segundo Kincaid, a federal policy,
therefore, is construed as nation-state in the eyes of the world, but as a nation of ‘states’
in the eyes of the citizens.44 Ou seja, estados e municípios, por conhecerem melhor a
realidade dos seus cidadãos, a fim de resolver as crescentes demandas por políticas
públicas, buscam se envolver mais nas relações intergovernamentais e internacionais,
podendo ocorrer segmentações na política externa, já que alguns interesses e políticas
colocadas por atores subnacionais externamente estão além, paralela ou contrária à
política externa do país. Nesse contexto, o governo federal, para zelar pela coerência e
pela unidade (não segmentação) de política externa, busca coordenar e supervisionar
tais atividades externas.
Existem dois tipos de segmentação de política externa, segundo Soldatos45:
1. Segmentação territorial ou vertical (territorial segmantation): ocorre quando
os entes federativos – União, estados e municípios – estão diretamente ativos
nas relações exteriores ou na elaboração de política externa;
2. Segmentação funcional ou horizontal (functional segmentation): ocorre
quando na mesma esfera de governo – federal, estadual ou municipal –
diferentes departamentos e agências governamentais estão diretamente
envolvidas nas relações internacionais, devido o processo de “domesticação
de política externa” e no desenvolvimento de atividades na área de low
policies.
Sobre a segmentação territorial colocado acima, existem quatro implicações
segundo Soldatos46:
• Segmentação objetiva (objective segmentation): refere-se a variedade de
características que diferenciam as unidades territoriais e que tem um impacto
nas atividades de política externa. Essas diferenças são expressas, por
43
Earl H. FRY, Globalization, federalism ans governance, p. 5.
44
John KINCAID, Constituent diplomacy in federal polities and the nation-state: conflict and co-operation,
p. 64
45
Panayotis SOLDATOS, Na explanatory framework for the study of federated states as foreign-policy
actos, p. 36
46
ibidem
26. exemplo, em termos de estrutura econômica, situações geográficas e
características políticas, culturais e religiosas;
• Segmentação perceptiva (perceptual segmentation): refere-se as diferentes
atitudes, percepções, concepções de interesses, etc. das elites e da
população que formam diferentes ‘vozes’ em política externa. É claro que tal
segmentação tem como base a segmentação objetiva e um certo grau de
subjetividade das elites e da população;
• Segmentação política (policy segmentation): refere-se ao resultado prévio
da segmentação dos níveis federal e federado, que leva a uma variedade de
posições a política externa;
• Segmentação de ator (actor segmentation): refere-se a um certo nível de
segmentação prévia que pode induzir entes federados a se tornarem atores
de política externa, atuando a partir de sua própria maquinaria institucional
para desenvolver e atuar internacionalmente.
A segmentação de ator pode aumentar a segmentação política, já que o
envolvimento direto de uma unidade federada pode levar a diferenciação, quanto a
esfera federal e outros entes federados, na percepção do interesse doméstico nas
relações internacionais. Porém, a segmentação política não leva necessariamente a
uma segmentação do ator, pois unidades federadas podem ter gozar de uma forte
posição junto ao governo federal e utiliza-lo a seu favor, utilizando a maquinaria federal
de política externa.
Para racionalizar esse processo de participação de unidades subnacionais e
para reduzir a segmentação na política externa do país, o governo central passa a
reconhecer dois tipos de governo na formação e harmonização de política externa – o
ator federal e federado. Assim, o governo federal (ator federal) ao aceitar a participação
de atores federados na formação de política externa, busca coordenar e monitorar a
elaboração das políticas externas de atores subnacionais e a fim de harmonizar com as
várias atividades transnacionais47 com a sua política externa. Esse processo gera uma
descentralização na formação de política externa e que permite aos atores federados:
47
Segundo SOLDATOS, transnational activity é a atividade externa conduzida pelos governos
constituintes (constituent governments) de uma federação ou subunidades de um governo central.
27. • Promover seus interesses internacionalmente, mas em concordância com todo
interesse nacional;
• Dividir os custos e o conjunto de forças e recursos na formação de política
externa junto ao governo federal;
• Observar complementaridades.
Assim, segundo Soldatos, essa descentralização pode aumentar a unidade e a
eficiência nas relações exteriores do país e tornar-se um remédio para crises do ator
federal em política externa. Segundo ainda o autor, por estarmos em uma era de
especialização, de limitados recursos públicos, de interdependência internacional e de
melhor eficiência, a relação entre o ator federal e federado pode enriquecer e aumentar,
em certas circunstâncias, a política externa do país. Ou seja, para ele, a capacidade
das elites em se adaptar e responder a impulsos de segmentação de política externa,
através de mecanismos de solução de conflitos, de um maquinário de articulação e
agregação de interesses, de um processo de desenvolvimento de complementaridades
em ações externas pode transformar crises em processos de racionalização 48. Tudo
para o autor depende da natureza do sistema federativo para responder as questões de
conflito entre segmentação e racionalização da paradiplomacia: quanto mais integrado
for o sistema, menos conflitos trará a paradiplomacia, o que diretamente contribui a
racionalização desse processo.
1.3.2. Fatores que contribuem para o surgimento da Política Externa
Federativa:
Soldatos49, ao abordar os determinantes para a atuação externa das unidades
subnacionais, divide-os em três grupos: as causas domésticas por parte dos atores
federados (federated-units level), as causas domésticas por parte do ator federal
(federal level) e as causas externas.
São quatro os determinantes domésticos por parte dos atores federados:
48
Panayotis SOLDATOS, An explanatory framework for the study of federated states as foreign-policy
actos, p. 42
49
ibidem, p. 44-48.
28. 1. Segmentação objetiva (objective segmentation): refere-se a características
geográficas, culturais, lingüística, religiosa, política, histórica, etc., que
distingue uma unidade federada de outras. Tal segmentação pode criar
conflito de interesses durante a discussão da centralidade da política externa
e pode induzir elites de unidades federadas e suas populações a acreditarem
em agir de modo mais direto e autônomo atividades externas.
2. Segmentação perceptiva ou eleitoralismo (perceptual segmentation ou
electoralism): este conceito retoma o anterior, porém é produzido pela
percepção das diferenças motivadas por pressões eleitorais. Tanto a
segmentação objetiva ou perceptiva, pode ser motivada, por exemplo,
quando as unidades não se sentem devidamente representadas no governo
central para defender seus interesses na elaboração de política externa.
Assim, estas unidades buscam atuar diretamente no plano externo para
atingi-los.
3. crescimento das unidades federadas (growth of federated units): o
crescimento das instituições, do orçamento e das funções de uma unidade
federada faz com que suas elites busquem procurem novos campos de
atuação, como na política externa.
4. “eu também” (me-tooism): são unidades federadas buscam seguir o
exemplo de outras unidades que desempenham alguma atuação
internacional na formação de política externa.
Soldatos aponta em seguida os determinantes domésticos oriundos da parte federal:
1. erros e ineficiência federal: questões como a burocracia na participação de
unidades subnacionais, falta de experiência para lhe dar com esses atores,
limitação de recursos, etc, podem estimular atitudes de segmentação de política
externa;
2. problemas no ‘processo de construção da nação’ (problems with the ‘national
building process’): em alguns casos, para melhor defender um interesse nacional
em casos que a política externa tem dificuldades, é colocada a necessidade sob
o controle subnacional as relações externas uma determinada questão;
29. 3. Institucional ‘gap’: é a ausência de uma instituição federal representando uma
unidade federada externamente;
4. Incertezas constitucionais (Constitucional uncertainties): a divisão de
competências em questões de política externa que pode encorajar unidades
federadas a procurar alguma atuação internacional;
5. domesticação de política externa (foreign-policy domestication): questões
consideradas low politics50 na política externa de um país pode motivar unidades
subnacionais a ter uma participação na elaboração da política externa federal ou
diretamente caso haja competências constitucionais que coincidem com tais
politics, a fim de defender os direitos constitucionais e a responder aos novos
desafios internacionais debatidos na gama desse low politics.
Para Soldatos, as causas externas da paradiplomacia são:
1. Interdependência: o aumento dos laços entre as sociedades industrializadas
tem um profundo impacto nas soberanias dos estados. Nem sempre as
fronteiras nacionais podem proteger as unidades subnacionais da influência
externa da low politics, da economia, de culturas, do desemprego estrutural.
Em um contexto global de grande mobilidade de capital, join ventures,
articulações econômicas across-the-border, induz algumas unidades a buscar
iniciativas paradiplomáticas a promover diretamente seus distintos interesses,
especialmente nos casos que o governo federal não consegue corrigir ou
atuar em uma determinada situação, no que pode culminar em ações de
suporte ou de substituição ao governo (supportive or substitutive action).
2. influência e envolvimento com atores externos: atores como instituições
internacionais, corporações transnacionais, governos nacionais ou
subnacionais de outros países podem contribuir para que um ente federativo
motive-se a ter alguma atuação externa.
3. interdependência regional (regional interdependence): este fator pode ser
abordado de duas formas. A primeira reflete fatores “micro-regionais” o qual,
a partir da proximidade geográfica e demográfica, as afinidades e
complementaridades culturais e econômicas; levam a uma cooperação e
50
em Relações Internacionais, low politics são todas as políticas as quais não tem como foco a
segurança de um país, como a questão de meio-ambiente, transporte, saúde, educação, entre outros.
30. paradiplomacia trans-regional ou trans-fronteiriça como entre duas cidades.
O segundo são as interações “macro-regionais”, que ocorre as mesmas
interações de complementaridades e interdependência “micro-regional”,
porém envolvendo regiões maiores e às vezes mais afastadas (como as
relações entre a França e Quebec).
1.4. Diplomacia Federativa - a Política Externa Federativa e suas
implicações no Direito Constitucional, no Direito Internacional Público e no papel
do Itamaraty
1.4.1. Ator e sujeito internacional
Dois termos são colocados agora como relevantes para serem diferenciados:
qual é a diferença entre ator e sujeito internacional. Esses termos, que parecem ser
sinônimos, aparecem com freqüência nas principais obras de relações internacionais.
No debate sobre a participação de unidades subnacionais no sistema internacional,
esses termos claramente se distinguem.
A expressão ator internacional é um termo utilizado amplamente principalmente
nas áreas das Relações Internacionais, da Ciência Política e da Sociologia, que implica
na participação externa ativa de um elemento no sistema internacional. Esse elemento
não tem um caráter pré-definido e pode ganhar várias interpretações.
Já a expressão sujeito internacional é um termo mais centrado no campo do
Direito. Guido Soares51 coloca que o conceito de sujeito de direito, em qualquer
ordenamento jurídico, é o reconhecimento por ele operado dessas pessoas, indivíduos
ou coletividades de indivíduos, ou mesmo outros determinados fenômenos, que são
titulares de direitos e obrigações. A personalidade jurídica, segundo o autor:
(...) é um ‘status’ conferido pelo sistema jurídico a pessoas ou entidades, mediante uma
qualificação operada por critérios determinados exclusivamente pelo próprio sistema
jurídico, que, além de definir quais fenômenos constituem um sujeito de direito, ainda
fixa-lhes os conteúdos e a extensão dos respectivos direitos e obrigações.52(meu grifo)
51
Guido F.S. SOARES, Curso de Direito Internacional Público, vol.1, p. 141
52
ibidem
31. Portanto, segundo ainda Soares, trata-se de uma criação do mundo normativo
jurídico, levado a cabo pelo mesmo com exclusividade pelas normas jurídicas, que sua
atuação independe de outras de qualquer outra linguagem (a linguagem, no caso, se
autobasta), como o da Sociologia, da Economia ou da Ciência Política. Portanto, a
atribuição de personalidade jurídica a qualquer fenômeno é uma operação
individualizada do direito, segundo seus critérios, determinados por normas. Dessa
forma, Soares considera que o conceito de atores internacionais é extremamente
relevante na Política internacional e muito mais generoso que o conceito de sujeito
internacional, mas que não possui qualquer serventia para o Direito Internacional
Público.
1.4.2. Unidades Subnacionais são atores e sujeitos internacionais?
Não há dúvida de que as unidades subnacionais, como as cidades, são atores
internacionais. Principalmente a partir da década de 1980, muitas delas começaram a
ter um papel ativo nas relações internacionais, a fim de garantir seus interesses, seja
em harmonia ou não com a política externa praticada pelo país. Com o estímulo da
globalização, principalmente no campo dos transportes e das comunicações, criou-se
vários vínculos entre tais unidades subnacionais, as quais passaram a buscar
conjuntamente, seja bilateralmente ou em redes, a solução de problemas comuns, o
auxílio mútuo e a objetivação de interesses. No capítulo 2, mostrará como ocorrem tais
relações entre tais unidades, com ênfase nas cidades.
O inverso ocorre na discussão se os atores subnacionais, como as
cidades/municípios, na égide do Direito. De antemão, Tanto o Direito Constitucional
como o Direito Internacional Público não reconhecem as unidades subnacionais – no
caso do Brasil, os entre federados como estados e municípios – como sujeitos de
personalidade jurídica internacional.
32. 1.4.2.1. A Constituição Brasileira
A Constituição, segundo Dallari, é uma lei que se impõe à obediência de todos,
sem qualquer exceção, ninguém estando isento de respeita-la. As regras
constitucionais, portanto, não podem ser desrespeitadas por qualquer outra lei, tratado,
decisão judicial ou acordo entre particulares, que possam gerar efeitos jurídicos no
país.53
A Constituição Brasileira de 1988 oferece uma grande ênfase ao papel dos
Municípios na estrutura político-adminstrativa brasileira, principalmente ao fato que esta
Carta conferiu a tal ente uma autonomia político-administrativa, como é colocada aos
estados e a União. Esta autonomia estaria assegurada pela eleição dos próprios
prefeitos, vice-prefeitos e vereadores (art. 29), pela autonomia financeira (portanto,
podendo instituir tributos), em matéria legislativa, pela competência de agir de forma
concorrente, suplementar ou complementar aos estados e a União (art.30, colocado
abaixo), pelo poder de auto-organização, através da competência de elaboração da leí
orgânica. Além de tudo, o Município foi elevado explicitamente ao papel de ente
integrante da federação (art.18), algo que é considerado por poucos países com
regimes federativos.
Segundo a Constituição:
“Art. 18 - A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a
União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta
Constituição
“Art. 23 - É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:
I – zelar pela guarda da Constituição das lei e das instituições democráricas e conservar o
patrimônio público;
II – cuidar da assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência;
III - proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os
monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos;
IV - impedir a evasão, a destruição e a descaracterização de obras de arte e de outros bens de
valor histórico, artístico ou cultural;
V - proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação e à ciência;
VI - proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas;
VII - preservar as florestas, a fauna e a flora;
“Art. 30. Compete aos Municípios:
53
Pedro DALLARI, Constituição e Relações Exteriores, p. 20
33. I - legislar sobre assuntos de interesse local;
II - suplementar a legislação federal e a estadual no que couber;
III - instituir e arrecadar os tributos de sua competência, bem como aplicar suas rendas, sem
prejuízo da obrigatoriedade de prestar contas e publicar balancetes nos prazos fixados em lei;
IV - criar, organizar e suprimir distritos, observada a legislação estadual;
V - organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços
públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial;
VI - manter, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, programas de
educação pré-escolar e de ensino fundamental;
VII - prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de
atendimento à saúde da população;
VIII - promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e
controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano;
IX - promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação
fiscalizadora federal e estadual.”
As competências acima verificadas aos municípios brasileiros são amplas,
abrangem várias áreas, como saúde, educação, cultura, tributação, transporte,
ocupação territorial, entre outros. Cabe aos municípios assisti-los, em caráter local ou
em complementação às competências estaduais e federais. Qualquer cooperação deve
ser feita com essas instâncias para o planejamento e execução de políticas públicas.
Seu papel, portanto, é estritamente restrito a atender a política interna. Porém, em
matéria de política externa são competências privadas do presidente da República,
como é colocado no artigo 8454:
Art. 84: compete privativamente ao Presidente da República:
[...]
VII – manter relações com estados estrangeiros e acreditar seus representantes diplomáticos;
VIII – celebrar tratados, convenções e atos internacionais, sujeitos a referendo do Congresso
Nacional;
Esse artigo demonstra o caráter centralizador da federação brasileira na
condução de política externa ao atribuir exclusivamente ao presidente da República o
poder de celebração de compromissos internacionais e relações exteriores.
Segundo Prazeres55, em matéria de relações exteriores, a Constituição brasileira
conta com os seguintes dispositivos: o artigo n. 21.I56, que determina a competência à
54
Valério de Oliveira MAZZUOLI, (org.). Coletânea de Direito internacional, p. 24
55
Tatiana Lacerda PRAZERES, Por uma atuação constitucionalmente viável das unidades federadas
brasileiras ante o processo de integração regional, p. 283-312
56
Artigo 21 da Constituição de 1988:
Compete à União:
I – manter relações com Estados estrangeiros e participar de organizações internacionais;
II – declarar guerra e celebrar a paz;
34. União de manter relações com Estados estrangeiros e participar de organizações
internacionais; o artigo 84, em seus incisos VII e VIII, colocados acima; e o artigo 25,
parágrafo 1º, que confere aos estados as competências que não lhe sejam vedadas por
esta Constituição. Para a autora, estes são dispositivos chaves na análise dos limites
da atuação externa das unidades brasileiras.
Prazeres, que buscava identificar a posição de constitucionalistas brasileiros,
cita Ferreira Filho, quem expressa a voz majoritária sobre a questão:
(...) no plano internacional, o Estado federal aparece como um só Estado.
Apenas seu aspecto unitário é visível. Assim, o Estado federal é quem goza da
personalidade jurídica, em termos de direito internacional. Por isso, é ele e tão-
somente ele que mantém relações com outros Estados, com organizações
internacionais, enfim, com aos outras pessoas jurídicas, reconhecidas tais pelo
direito internacional público. Só ele tem, pois, relações internacionais57.
Este também é o posicionamento do Itamaraty sobre a questão que, por meio de
pareceres emitidos por meio de sua Consultoria Jurídica, procura colocar a
impossibilidade das unidades federadas brasileiras assumirem compromissos np
âmbito internacional. Um desses pareceres, citados pela autora, por Cachapuz de
Medeiros, ele conclui que:
(...) a ordem constitucional pátria é categórica ao conceder expressamente à
União competência para conduzir as relações exteriores. Não faz nenhum
concessão às unidades federadas, sejam Estados, Municípios ou Distrito
Federal58.
III – assegurar a defesa nacional;
IV – permitir, nos casos previstos por lei complementar, que forças estrangeiras transitem pelo território
nacional ou nele permaneçam temporariamente;
V – decretar estado de sítio, o estado de defesa e a intervenção federal.
57
FERREIRA FILHO, Manoel G. Curso de Direito Constitucional.17º edição. São Paulo, Ed. Saraiva,
1989, p. 151 – trecho citado em Tatiana Lacerda PRAZERES, Por uma atuação constitucionalmente
viável das unidades federadas brasileiras ante o processo de integração regional, p. 296.
58
BRASIL. Ministério das relações Exteriores. Parecer MRE/CJ n. 13/1999
35. Apesar das limitações colocadas pela Constituição, as unidades federadas não
se acomodaram frente às normas. O interesse em atuação no plano externo é
crescente por esses atores, desde a redemocratização e a construção da nova
federação do país, que concedeu maior autonomia administrativa e jurisdicional a
estados e municípios. Segundo Neves, considerando o conjunto de mecanismos
oferecidos pelo texto constitucional para controle dos atos municipais, pode-se afirmar,
(...), que eles seriam satisfatórios se houvesse um grau mínimo de concretização
normativo-constitucional dos respectivos mecanismos.59 Ou seja, existe um hiato entre
o que diz a norma constitucional e sua concretização, tendo em vista a falta de uma
infra-estrutura mínima para a maioria dos municípios brasileiros se organizarem e
agirem conforme o texto constitucional, fazendo-os andar, muitas vezes, às margens do
Texto, o que abre espaços para a generalização de inconstitucionalidades e
ilegalidades. É nesse hiato também que os municípios, tendo em vista sua dificuldade
em atender suas competências, buscam alternativas nas experiências em governos
não-centrais de outros países para poderem cumpri-los mais satisfatoriamente.
1.4.2.2. Segundo o Direito Internacional Público
Como já colocado, os atores subnacionais, como os entre federados – estados e
municípios, não são reconhecidos pelo Direito Internacional Público como sujeitos de
direitos e deveres internacionais e com capacidade de defender seus interesses através
de reclamações internacionais. Há uma vinculação histórica entre a construção de um
direito internacional e a construção e consolidação do estado moderno. A priori, tal
direito buscaria criar normas, sob os princípios da soberania, da reciprocidade, do
cumprimento dos contratos – pacta sunt servanda, coexistência pacífica e a não
intervenção em assuntos domésticos, a fim de regular as relações entre os Estados.
Para Soares, o atual Direito Internacional público coloca o Estado é apontado
como pessoa indivisa, independentemente de sua organização interna, que é colocada
como “domínio reservado dos Estados” 60. Tanto ele como Hedley Bull apontam que a
soberania do Estado é dupla e que teoricamente são duas realidades mutuamente
59
NEVES, Marcelo. Concretização constitucional “versus” controle dos atos municipais, p. 577
60
Guido F.S. SOARES, Curso de Direito Internacional Público, vol.1, p. 144-5
36. impenetráveis: a soberania interna, que, segundo Soares61, vigora o poder normativo e
de ação política no relativo ao sistema jurídico interno ; ou como coloca Bull62,
supremacia sobre as demais autoridades dentro [de um] território e com respeito a [sua]
população; e a soberania externa, que para Soares é o elemento que mais
precisamente definiria a personalidade do Estado, no universo das relações
internacionais e que marcaria sua individualidade, e, para Bull, essa soberania consiste
não na supremacia, mas na independência com respeito às autoridades externas. Para
ele, tais soberanias existem tanto no plano factual como normativo.
Gilberto Rodrigues63, em sua dissertação de doutorado sobre Política Externa
Federativa, aponta as principais interpretações sobre os sujeitos de Direito
Internacional. Para Brownlie64, as pessoas reconhecidas são: (a) Estados; (b)
Entidades políticas juridicamente próximas dos Estados (como a Cidade Livre de
Dantzig e o Território Livre do Trieste); (c) Condominía; (d) Territórios
internacionalizados (como o regime proposto a cidade de Jerusalém em 1950); (e)
Organizações Internacionais; (f) representações de Estados (como Tribunal Arbitral); (g)
agências de organizações internacionais (como a AIEA – Agência Internacional de
Energia Atômica). Brownlie expõe ainda o que ele denomina de tipos especiais de
personalidade jurídica internacional, como (a) povos não autônomos (Curdos); (b)
Estados em statu nascendi, como foi o caso do Timor Leste, que esteve sob
administração provisória da ONU; (c) Interpretações jurídicas, como questões de
Estados que deixaram de existir, mas que continuam projetando sua ordem jurídica,
como é o caso da ex-Iugoslávia e ex-União Soviética; (d) Comunidades beligerantes e
insurrectas, como a FMLN em El Salvador e o movimento indígena na Bolívia; (e)
entidades sui genesis, como a Cidade do vaticano, Taiwan e a Cruz Vermelha
Internacional; (f) Indivíduos. Poderia colocar nessa lista de Bownlie as organizações
não governamentais, como coloca Guido Soares65. Brownlie não cita os algum governo
61
ibidem, p. 145
62
Herdley BULL, Sociedade Anárquica, p.13
63
Gilberto M.A. RODRIGUES, Política Externa Federativa: Análise de ações internacionais de Estados e
Municípios brasileiros, p.53-55
64
BOWNLIE, Ian. Princípios do Direito Internacional Público. Lisboa. Fundação Calouste Gulbenkian,
1997, p.73-6 – abordado em ibidem, p. 53
65
Guido F.S. SOARES, Curso de Direito Internacional Público, vol.1, p.150
37. subnacional e coloca que se em ente federado celebrar acordos internacionais, poderá
faze-lo desde que com autorização ou representação da União.
Seguindo a lógica da “dupla soberania dos Estados” e dos sujeitos reconhecidos
pelo Direito Internacional Público, a participação das unidades subnacionais nas
relações exteriores ficaria a mercê do controle, monitoramento e vontade do governo
central ou federal.Assim, as relações exteriores de uma unidade subnacional com
outros sujeitos ou atores dar-se-á via Estado, já que este é quem, para o Direito, exerce
de fato as relações internacionais, e tais unidades agirão, para tanto, em respeito às
normas jurídicas (Constituição) e ao controle e vontade do governo central. Caso
contrário, tais relações seriam impraticáveis.
1.4.3. A natureza e a validade dos “acordos” internacionais celebrados por
unidades subnacionais
A Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969, assim define o que
é um ”Tratado” (e seus sinônimos, como acordos, pactos, etc.):
Art.2 Expressões empregadas
1. ”tratado” significa um acordo internacional concluído por escrito entre Estados e regido pelo
Direito Internacional, quer conste de um instrumento único, quer de dois ou mais
instrumentos conexos, qualquer que seja sua denominação específica.
Segundo a Convenção de Havana sobre Tratados de 1928, no artigo 1º:
Os tratados serão celebrados pelos poderes competentes dos Estados ou pelos seus
representantes, segundo seu direito interno respectivo.
Dessa maneira, como foi convencionado que somente os Estados poderiam
celebrar tratados, e seus sinônimos, tal designação torna-se imprópria quando utilizada
em relações com unidades subnacionais. Se não houver uma participação do governo
central ou federal em uma ação cooperativa ou de suporte(co-operative [supportive]
action), tal acordo não terá qualquer legalidade e sustentação no Direito Internacional
Público como instrumento de regulação. Como aborda Rodrigues, citando J. Francisco
Rezek, as unidades federadas podem celebras acordos, desde que a autorização
38. reponte inequívoca, operando com o penhor da responsabilidade da união federal pelo
fiel cumprimento do compromisso66.
Nos últimos anos, o número de acordos internacionais celebrados por governos
subnacionais no Brasil tem aumentado consistentemente. Porém, nem todos esses
acordos obedecem a via juridicamente aceitável, como apontada por Rezek. Muitas
delas são elaboradas e acordadas sem qualquer conhecimento ou balizamento do
governo federal ou central. Pelo fato de muitos desses acordos não estarem no perfil
tradicional da diplomacia, Lessa67 denomina-os como atos Informais.
1.4.3.1 Características dos atos informais brasileiros
Os acordos realizados pelas unidades subnacionais, denominados por Lessa de
atos informais, possuem características próprias em sua elaboração, as quais Lessa
também desenvolve em seu trabalho, além da questão da legitimidade aqui apontada.
a. A Variedade de terminologias: é ampla a variedade de denominações que
tais atos informais utilizam em suas celebrações. Segundo Lessa, a terminologia
utilizada reflete a relevância política atribuída por seus signatários e o grau de
abrangência de seus objetivos68. Para os atos mais solenes, Lessa aponta que são
utilizados “Atas” ou “Declarações”, normalmente utilizados em redes de cidades, como
as Mercocidades, CODESUL e CREDENEA.
Há também os que se intitulam como “Acordo”, “Carta de Intenções” (ou
“Protocolo de Intenções”), “Convênios” (“Convênio de Cooperação”, “Termo de
Convênio”, “Convênio Operacional”), “Convênio-Macro de cooperação” (este fixado
entre um governo nacional – Chile – e um subnacional – governo de Santa Catarina e
de Mato Grosso do Sul), “Acordos Interparlamentares” (firmados pelas Assembléias
Legislativas com órgãos semelhantes no exterior), “Carta de Cooperação” (ou
“Protocolo de Cooperação” ou “Termo de Cooperação”), Termo de Colaboração”,
66
REZEK, J.F. Direito dos Tratados. Rio de Janeiro, Florense, 1984, p. 34. Trecho citado por Gilberto
M.A. RODRIGUES, Política Externa Federativa: Análise de ações internacionais de Estados e Municípios
brasileiros, p. 61
67
José V.S. LESSA, A paradiplomacia e os aspectos legais dos compromissos internacionais celebrados
por governos não-centrais.
68
ibidem, p. 91
39. “Termo de Ajuste”, “termo de Referência”, “Programa”, “Memorando de Entendimento”,
entre outros69.
b. Parcerias: Segundo Lessa, os atos informais assinados por governos dos
estados e municípios e órgãos de sua administração têm geralmente, como parceiros
internacionais, entidades políticas de igual nível ou natureza jurídica.70 Ou seja, tais atos
são firmados, por exemplo, entre um estado federado com uma (ou mais) província ou
região administrativa; entre municípios; entre órgãos dos poderes executivos e
legislativos estaduais ou municipais. Busca-se, em geral, em se estabelecer um certo
equilíbrio nessas relações. Porém, há exceções. Um caso apontado por Lessa foi o
“Convênio-Macro” firmado entre os Estados de Santa Catarina e Mato Grosso do Sul
com o Ministério da Agricultura do Chile, em 20 de março de 2002 – um ato entre entes
federados e um órgão do poder executivo do governo central chileno, ou o “Protocolo
de Cooperação” entre o Estado de Santa Catarina e o governo da Costa Rica – um ato
entre um ente federado e um governo nacional.
c. Número de autoridades signatárias: o número de participantes pode variar.
De acordo com Lessa71, são comuns os atos bilaterais, tripartites ou quadripartites. São
comuns a inclusão de “testemunhas” entre os signatários. Essa prática das
“testemunhas”, segundo o autor, origina-se do direito privado, costuma conferir
dignidade ao ato em razão da hierarquia das “testemunhas”. Ele coloca o exemplo de o
caso do “Memorando de Intenções” entre A Secretaria de Transportes do Estado do
Paraná, a Coordenação da Região Metropolitana de Curitiba e a Administração Federal
de Trânsito do Departamento de Transporte dos Estados Unidos, de 18 de outubro de
1999, o qual teve como “testemunhas” o Secretário de Transportes dos Estados
Unidos, Rodney Slater, e o Governador do estado do Paraná, Jaime Lerner.
d. Temas abordados: em vários países, existe um padrão de competências
estipulados na Constituição à paradiplomacia que variam sensivelmente em cada um
deles. Lessa72, em seu trabalho, aborda que os temas comuns são as questões
69
ibidem, p. 92
70
José V.S. LESSA, A paradiplomacia e os aspectos legais dos compromissos internacionais celebrados
por governos não-centrais, p. 92
71
ibidem, p. 93
72
ibidem, p. 99
40. econômico-comerciais, de cooperação científica e tecnológica, de relações culturais,
esportivas e educacionais, de meio-ambiente, de transporte e de administração.
No caso brasileiro, as competências dadas aos entes da federação – União,
estados e municípios, são amplas, porém limitadas pelo artigo 25, parágrafo 1º. A
limitação da atuação dos estados e municípios nas relações internacionais (a qual
deveria ser feita com a intermediação federal) é dada pelo art. 84, parágrafo VIII da
Constituição federal, a qual, como já dito anteriormente, é colocado como competência
privativa do Presidente da República.
Lessa ainda aponta algumas carências dos atos informais que comprometem
seu atendimento por órgãos administrativos do governo federal, como o Itamaraty, para
serem admitidos no ordenamento jurídico nacional, estadual ou municipal, para que
possa, de fato gerar obrigações legais.
Dispersão de objetivos: segundo Lessa, muitos atos informais estipulam mais
uma espécie de inventário de campos de recíproco interesse, do que um pacto que visa
um objetivo concreto73.
Nesses casos, procuram as partes programar um maior número possível de
trocas e contatos, o que resulta na dispersão de objetivos. Vários textos
examinados contemplam, ap mesmo tempo, ações de cooperação técnica,
tecnológica, científica, cultural, educacional, turismo, investimentos recíprocos e
intercâmbio de missões empresariais.74
O problema desse tipo de ato é que haverá uma perda do foco necessário a uma
cooperação harmônica entre os contratantes, tendo em vista que a execução dar-se-á
em instâncias executivas diferentes devido as várias áreas levantadas do acordo. A
falta de um foco também compromete o reconhecimento pelo governo federal ou central
de tal ato, o que compromete a sua juridicidade.
Personalismo: como os atos são celebrados em base informal, sua execução
será respaldada no cometimento pessoal do líder local75. Muitos prefeitos municipais ou
73
José V.S. LESSA, A paradiplomacia e os aspectos legais dos compromissos internacionais celebrados
por governos não-centrais, p. 94
74
ibidem, p. 95
75
ibidem
41. governadores de estado, segundo Lessa, desejoso de demonstrar dinamismo e de
atrair investimentos, negócios e outras oportunidades para suas regiões, hipotecam sua
garantia pessoal ao sucesso daquela parceria. Esse fato acarreta um problema sério,
que é a incerteza quanto a garantia continuidade do ato acordado. Na nos regimes
democráticos, como os mandatos são limitados temporalmente – quatro anos de
mandato para prefeitos e governadores – e com a possibilidade de que novos eleitos
não se comprometam da mesma forma que o anterior, tal garantia oferecia é muito
limitada e frágil.
Descontinuidade: como os atos informais carecem de institucionalidade, sua
vigência depende da vontade política das partes e com mudanças que podem vir a
ocorrer no governo devido a estrutura e o regime democrático de um país, é possível
que as responsabilidades pela implantação da matéria pactuada não sejam acolhidas
pelos novos administradores. (...) Essa circunstância conspira contra a formação de
laços inter-regionais duradouros, capazes de gerar benefícios reais a médio e longo
prazo.76
Assimetria: como o ato é normalmente destinado a atrair entidades estrangeiras
a investir e a promover um interesse local, por meio de investimentos, transferência de
tecnologia, abertura de mercados, é natural que muitos dos compromissos assumidos
sejam assimétricos. Lessa, em seu trabalho, ao analisar vários atos informais entre
unidades subnacionais brasileiras constatou que muitos desses atos apresentavam
assimetria de objetivos em favor da parte brasileira, em consonância com o interesse
geral de atrair investimentos e o financiamento de projetos. Essa assimetria torna-se
evidente ao constatar que a grande maioria dos entes federados brasileiros não dispõe
de recursos e conhecimento técnico suficiente ou expressivo para fazer um ato
equilibrado com unidades subnacionais, como Espanha, França e China, como nas
áreas tecnológicas, de meio-ambiente e agricultura.
Extrapolação: em alguns atos realizados, são feitos acordos sobre assuntos que
não estão de acordo com a competência da unidade federada, o que inviabiliza a
execução do ato e o que impede seu reconhecimento pelo governo federal. Lessa cita o
exemplo do “Acordo de Cooperação” entre o Governo de Minas Gerais e o Governo de
76
José V.S. LESSA, A paradiplomacia e os aspectos legais dos compromissos internacionais celebrados
por governos não-centrais, p. 95
42. Quebec, de 4 de setembro de 1996, em que no artigo 5 do acordo é proposto: b) apoio
ao desenvolvimento de um ambiente jurídico que favoreça o investimento entre as
partes. Sobre a questão de investimentos estrangeiros no Brasil, cabe somente a União
legislar sobre o assunto, o que torna tal cláusula irrealizável.
1.4.4. Mecanismos de legalizar e honrar os atos informais
Apesar de todas as carências apontadas quanto os atos informais fechados em
nível paradiplomático, existem alguns mecanismos que contribuem para dar validade
jurídica aos atos acordados entre entes federados brasileiros e unidades subnacionais
de outros países.
Segundo Lessa77, existem duas formas de validá-los juridicamente:
a. complementação de um ato celebrado pelo governo federal com o
governo central de outro Estado: como pode existir uma convergência de interesses
entre unidades federadas e o governo federal quanto a temas de interesse da ação
diplomática brasileira, tais entes podem realizar atos complementares a acordos-quadro
vigentes entre o Brasil e um outro Estado, o qual foi devidamente aprovado pelo poder
Legislativo, a fim de garantir respaldo jurídico ao ato. Para entrar em vigor tal ato, o
projeto deve ser apreciado pelo Ministério das Relações Exteriores, o qual analisará e
dará o parecer favorável ou não ao ato complementar, sob aos seguintes condições:
• o ato não pode implicar em encargo ou compromisso gravoso ao patrimônio
nacional;
• não pode contrariar ou extrapolar os objetivos do acordo-quadro referente;
• estipular a origem dos recursos financeiros eventualmente previstos,
desobrigando a União desse encargo;
• demonstrar objetividade, simetria, foco, ou seja, algum agrau de limitação de
temas e propósitos, de modo a nçao extrapolar o univers0o de cooperação
contemplado no acordo-quadro.
b. Troca de notas entre governos centrais: o Ministério das Relações
Exteriores, ao analisar o ato firmado em nível paradiplomático, mediante também os
77
José V.S. LESSA, A paradiplomacia e os aspectos legais dos compromissos internacionais celebrados
por governos não-centrais, pp. 101-103
43. critérios acima apontados, em conformidade com o outro governo central em questão,
poderiam decidir elevá-los à condição de acordo entre governos, mediante notas
diplomáticas, as quais validariam o texto em âmbito nacional.
Prazeres78 aponta quatro alternativas a fim de viabilizar a atuação externa direta
de alcance menos superficial aos entes federados brasileiros:
a. possibilidade de uma reforma constitucional: a autora coloca a hipótese de
uma reforma constitucional que permitiria, de modo expresso, a possibilidade de
atuação internacional de unidades federadas, de forma a romper o monopólio de ação
externa da União (revisão dos artigos 21.I e 84 VII-VIII). Essa possibilidade, porém, se
coloca como remota, apesar de juridicamente viável, por não haver um debate político
necessário e capacitado a sobre esse assunto. A exegese constitucional não afasta a
possibilidade das unidades federadas defenderem seus interesses no plano
internacional, desde que não assumam compromissos jurídicos, e se o fizerem,
carecerão de validade jurídica.
b. atuação informal: seriam relações entre unidades federadas com outra
unidades subnacionais estrangeiras sem o estabelecimento de vínculos jurídicos, como
a realização reuniões de divulgação do entre no exterior para a atração de
investimentos.
c. diplomacia federativa com o MRE: a autora coloca como importante o
aperfeiçoamento dos mecanismos de diplomacia federativa, principalmente por um
maior respaldo do Itamaraty a seus próprios Escritórios de Representação regional, a
fim de permitir uma melhor contemplação pela política externa brasileira aos interesses
dos entes federados. Também é importante que estes entes tenham uma maior
atenção e atuação nesses Escritórios, para consolidar a sua importância.
d. via Direito Internacional Privado: uma solução paliativa apontada pela
autora seria a substituição dos atos informais por acordos de Direito Internacional
Privado, os quais são celebrados por pessoas jurídicas de direito privado (como
empresas, fundações, associações), que se submeteriam a esse Direito. Nesse caso, o
ente federado precisaria encontrar um “intermediário” para dar seguimento aos seus
objetivos, caso o ente desejar atribuir validade jurídica a um instrumento desejado.
78
Tatiana Lacerda PRAZERES, Por uma atuação constitucionalmente viável das unidades federadas
brasileiras ante o processo de integração regional, pp. 301-309
44. 1.4.5. O papel e a atuação do Itamaraty na Diplomacia Federativa
Desde a Constituição de 1824, na era do Brasil Império, a histeria constitucional
brasileira confere juridicamente ao Itamaraty o monopólio legal das relações
exteriores79. Segundo Rodrigues, a partir do governo de José Sarney, o Itamaraty
começou a esboçar movimentos de aproximação com o Congresso nacional e com a
sociedade civil. Porém, tal iniciativa pouco se traduziu em um compartilhamento de
tomada de decisão em política externa, com raras exceções. Foi, segundo o autor, no
governo de Fernando Henrique Cardoso que a questão da Diplomacia Federativa
ganhou ênfase e um espaço maior no Ministério. Um marco inicial foi à atuação do
governador do Amapá, João Alberto Capiberibe, ao desenvolver uma política externa
estadual com Guiana Francês e com o governo francês. Esse fato colocou o Palácio do
Planalto em alerta. O presidente estava atento a crescente atuação das unidades
subnacionais no plano externo e passou a colocar a possibilidade de uma estratégia de
uma atuação de estados e municípios como entes complementares a União, segundo o
princípio da subsidiariedade. Para Cardoso80:
(...) agora está ocorrendo um fato que não tem nada a ver com o velho Estado
subnacional: os governadores vão ao exterior, fazem acordos, trazem dinheiro.
Isso no passado era impensável. Tudo o que era em relação com o exterior
cabia à União. Hoje o número de governadores que anda pela Ásia, pela Europa,
pela América Latina, e pelo Mercosul é muito grande. Às vezes eles informam a
União. Outras você nem fica sabendo. No fundo eles assumem a representação
que era da União para as suas regiões (...). O Itamaraty no começo não
assimilava essa idéia, porque relação com o exterior era monopólio da União. Os
governadores agora têm essa função e alguns prefeitos também (...).
79
Gilberto M.A. RODRIGUES, Política Externa Federativa: Análise de ações internacionais de Estados e
Municípios brasileiros, p.195
80
O presidente segundo o sociólogo. Entrevista de Fernando Henrique Cardoso a Roberto Pompeu de
Toledo. São Paulo, Companhia das Letras, 1998, p. 263 – trecho citado em ibidem, p. 198
45. Como colocou o presidente, estava se tornando cada vez mais clara a
participação de estados e municípios internacionalmente, com ou sem o conhecimento
da União. Tais entidades assumiram o papel de obter recursos externos – como
financiamentos, cooperação técnica, entre outros – para suas regiões e localidades, o
que rompia com o “tabu” no monopólio da política externa do Itamaraty. Como colocou
o presidente, houve divergências dessa prática dos estados e municípios brasileiros
pelo Ministério. Como coloca Kincaid, muitos diplomatas consideram que [f]oreign
affairs are usually viewed as being tôo important, too sensitive and too complex to allow
‘local yokels’ to play a useful role.81 Porém, pelo fato da diplomacia federativa ter se
colocado de forma crescente, seu reconhecimento foi inevitável e mecanismos de
controle e monitoramento foram criados.
A expressão diplomacia federativa foi pela primeira vez utilizada pelo chanceler
Luiz Felipe Lampreia em uma audiência na câmara dos Deputados, no dia 5 de abril de
1995. Em seu discurso, o ministro reconheceu que [os] Estados mesmo os Municípios
têm crescentemente uma agenda internacional que se soma à agenda externa da
União, responsável em primeira instância pelas relações exteriores do País. Em
seguida, Lampreia aponta os atores que têm ação externa e os mecanismos que o
Ministério se propõe a criar para um melhor contato entre a União e esses diversos
atores:
Essa nova dinâmica da nossa diplomacia requer um esforço permanente de
diálogo, de troca de informações e de consultas entre o Executivo federal e as
regiões, Estados e Municípios, de forma que haja a maior coordenação e a maior
harmonia possível nos diversos níveis do relacionamento internacional do Brasil.
Governadores e prefeitos, membros do Congresso Nacional em representação
de um Estado ou de uma região, associações e sindicatos, a imprensa e os
meios de comunicação locais têm procurado com intensidade cada vez maior o
Itamaraty para tratar de assuntos internacionais de interesse imediato. O
Itamaraty, por sua vez, tem procurado, dentro dos limites dos seus recursos
81
John KINCAID, Constituent diplomacy in federal polities and the nation-state: conflict and co-operation,
p. 61